Resumo: O artigo visa a realizar um balanço crítico das relações econômicas entre Brasil e China nos últimos 20 anos. O texto busca sintetizar os temas e eixos destacados na literatura que tem analisado as relações econômicas bilaterais com ênfase nos temas de comércio e investimento, enfatizando a necessidade de avanços qualitativos para além do que se consolidou nas duas décadas iniciais do século XXI. Essa necessidade é decorrente do longo processo de desindustrialização pelo qual a economia brasileira vem passando, e reforçado pelo cenário complexo de transformações que vem ocorrendo na economia global depois da grande crise financeira (GCF) de 2008 e pelas mudanças nas estratégias de desenvolvimento que a própria China vem adotando desde então.
Palavras-chave: China, Relações Brasil, Reindustrialização.
Abstract:
This paper aims to provide a critical assessment of economic relations between
Brazil and China over the last 20 years. The text seeks to synthesize the themes
and axes highlighted in the literature that has analyzed bilateral economic
relations with an emphasis on trade and investment themes, emphasizing the need
for qualitative advances beyond what was consolidated in the first two decades
of the 21st century. This need is due to the long process of deindustrialization
that the Brazilian economy has been going through, and reinforced by the complex
scenario of transformations that have been taking place in the global economy
after the great financial crisis (GCF) of 2008 and by the changes in the
development strategies that the country itself China has been adopting it ever
since.
JEL: F10, F21, O14, O24.
Keywords: China, Brasil, China relations, Brazilian reindustrialization.
China / Artigo Original
Relações econômicas entre Brasil e China nas duas primeiras décadas do século XXI: uma perspectiva a partir dos desafios contemporâneos para a reindustrialização brasileira*
Brazil-China economic relations in the first two decades of the 21st century: an analysis based on contemporary challenges for Brazilian reindustrialization
Received: 31 January 2024
Accepted: 11 April 2024
Em 2024, o Brasil completará 50 anos de relações diplomáticas com a República Popular da China. Ao longo desse meio século, as relações bilaterais avançaram de maneira significativa. As iniciativas diplomáticas, como o Acordo de Parcerias Estratégicas, firmado em 1993, e o estabelecimento da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN) em 2004, foram acompanhadas, em especial a partir do início dos anos 2000, de um grande salto nas relações econômicas entre os dois países.
Observou-se desde então uma intensificação notável dos fluxos comerciais. Desde 2009 a China é o principal parceiro comercial do Brasil. Além do comércio, novas dimensões foram ganhando importância, como o aumento da presença de empresas Chinesas no Brasil em diferentes setores, inclusive em segmentos de infraestrutura como energia elétrica. Mas a despeito do rápido e importante aprofundamento das relações econômicas bilaterais, também surgiram preocupações relevantes associadas à necessidade de melhorar qualitativamente o perfil dessas relações, ainda muito concentrada na exportação de commodities.
Da perspectiva brasileira, essas preocupações se associam à necessidade de retomar um processo de desenvolvimento que esteja ancorado em uma estrutura industrial capaz de enfrentar o desafio de aumentar a geração de renda e emprego de qualidade. Ao mesmo tempo, capaz também de buscar uma inserção mais competitiva em um cenário internacional complexo e de disputa mais acirrada, com a difusão de políticas industriais voltadas para atividades intensivas em conhecimentos e para a promoção da sustentabilidade ambiental. A preocupação com essa questão ficou evidenciada em artigo assinado pelo Presidente Lula e pelo Vice-Presidente e Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), Geraldo Alckmin, onde defendem a necessidade de uma estratégia para a neoindustrialização brasileira (Da Silva; Alckmin, 2023).
Nesse contexto, este artigo tem como principal objetivo fazer um balanço crítico das relações econômicas entre Brasil e China nos últimos 20 anos. Ao mesmo tempo em que procura sintetizar os temas e eixos destacados na literatura que analisou as relações econômicas bilaterais, o artigo também enfatiza a necessidade de avanço qualitativo para além do que se consolidou nas duas décadas iniciais do século XXI. Essa necessidade é ancorada em primeiro lugar na constatação do longo processo de desindustrialização pelo qual a economia brasileira vem passando. Mas que é agravado pelo cenário mais complexo pelo qual a economia global vem atravessando depois da grande crise financeira (GCF) de 2008, com a intensificação da utilização de políticas industriais e tecnológicas ativas voltadas para acelerar a difusão das tecnologias da indústria 4.0. Além disso, o artigo enfatiza a necessidade de levar em conta as transformações nas estratégias que a própria China vem adotando para enfrentar esse cenário, sendo ela própria um agente importante que molda o novo ambiente global.
O texto está organizado em mais 5 seções, além desta introdução. A primeira seção caracteriza o movimento de desindustrialização brasileiro e explicita os desafios da neoindustrialização em um contexto de mudanças importantes no cenário competitivo global. A segunda destaca as mudanças recentes na estratégia de desenvolvimento da China, enfatizando a importância das inovações e das políticas ambientais para acelerar a transição para uma economia menos intensiva em capital e recursos e capaz de continuar promovendo o aumento da produtividade e da renda de sua população. A terceira traça um breve panorama das relações comerciais entre os dois países, destacando a assimetria entre os fluxos de exportações e importações, ao mesmo tempo em que procura destacar as diferentes questões levantadas na literatura para problematizar os efeitos dessas relações sobre a especialização produtiva brasileiras. A quarta destaca informações sobre os investimentos Chineses e enfatiza a importância fundamental de mudanças nesse perfil para que as relações bilaterais possam ser alteradas qualitativamente. Finalmente, a última seção apresenta as considerações finais.
Esta seção tem o objetivo de oferecer um breve panorama do longo processo de perda de dinamismo produtivo brasileiro, buscando também contextualizar o cenário atual de mudanças aceleradas que acontecem na estrutura produtiva e tecnológica global. Não se trata de realizar uma revisão de literatura, até porque o fenômeno da desindustrialização brasileira e o atraso relativo em relação a outros países em desenvolvimento foi vastamente tratado em outros trabalhos, com diferentes abordagens, ênfases, indicadores e métodos de mensuração (por exemplo, Oreiro; Feijó, 2010; Morceiro, 2012; Nassif et al., 2017; Hiratuka; Sarti, 2017; Diegues, 2021; Morceiro; Guilhoto, 2023). Mas para o argumento desenvolvido neste artigo, é importante destacar rapidamente alguns indicadores sintéticos de perda de dinamismo industrial e enfatizar o movimento de acirramento da competição no cenário global e a retomada de políticas industriais e tecnológicas, antes de mencionar os canais pelos quais as relações com a China se relacionam com este processo.
Depois do período de grande turbulência observado nos anos 1980, decorrente dos efeitos da crise da dívida externa, o Brasil ingressou nos anos 1990 aderindo às políticas de liberalização, buscando aumentar o grau de integração à economia mundial seja pelos fluxos de comércio, seja pelos fluxos de investimento ou financeiros. Apesar do aumento da especialização e da redução da verticalização da produção, o impacto em termos de aumento de competitividade industrial foi bastante restrito. A redução das alíquotas de importação, combinada com a valorização cambial a partir do Plano Real fomentou a substituição de partes das cadeias produtivas locais realizadas localmente por importações, elevando tanto o coeficiente de importações quanto o conteúdo importado (Coutinho, 1997, Laplane; Sarti, 2006). Esse movimento, no entanto, não se traduziu em aumento da inserção exportadora no mercado mundial de manufaturados, nem em investimentos industriais capazes de recuperar a participação da indústria manufatureira no PIB ou a importância relativa do Valor Adicionado Manufatureiro (VAM) do Brasil no total mundial ou dos países emergentes (Tabela 1).

Na passagem para o século XXI, observou-se o início de uma nova dinâmica, em especial a partir de 2003, quando começa o ciclo de commodities, influenciado pelo próprio crescimento da China. As exportações aumentaram rapidamente alavancadas pelo aumento de volume exportado e preço das commodities, ao mesmo tempo em que os efeitos macroeconômicos de redução da vulnerabilidade externa permitiram um período de maior crescimento do PIB. O aumento das exportações de produtos primários foi acompanhado pelo crescimento das importações de manufaturados, em decorrência da combinação de câmbio valorizado e aumento da demanda interna (Chiarini, 2016; Nassif; Castilho, 2020). Nesse cenário, apesar da retomada de políticas mais ativas de apoio ao setor industrial e de um curto ciclo de recuperação da produção industrial, a primeira década do século XXI continuou assistindo à redução da participação da atividade manufatureira no PIB e à perda de participação no VAM global e dos países emergentes.
Mas o período posterior à grande crise financeira (GCF) de 2008 se mostrou ainda mais desafiador. Como pode ser observado no Gráfico 1, a produção industrial brasileira acompanhou de perto a tendência observada de crescimento da produção industrial mundial até a GCF. Mesmo no período imediatamente posterior à crise, não destoou muito do desempenho global, embora o crescimento da produção industrial local fosse ligeiramente inferior ao observado nas economias emergentes. No entanto, a situação se tornou muito mais crítica a partir de 2011, quando a indústria brasileira entrou em um período de estagnação, seguido de forte contração em 2015 e 2016. Os anos seguintes voltaram a ser de estagnação até nova retração se abater sobre a indústria brasileira com a crise da Covid-19 (Gráfico 1).

É importante destacar o acirramento do cenário competitivo global em decorrência da estagnação no crescimento mundial, em especial a partir do momento em que os efeitos da GCF atingem a União Europeia e se desdobram em uma estagnação prolongada a partir de 2011. Esse contexto de concorrência mais acirrada e seus efeitos sobre o Brasil fica evidente também pelo aumento no ritmo de piora nos indicadores de industrialização entre 2010 e 2020. Nos vinte anos entre 1990 e 2010, o grau de industrialização sofreu redução de 2,4 pontos percentuais, enquanto nos dez anos entre 2010 e 2020 a redução foi de 2,2 pontos percentuais, chegando a apenas 10,2% do PIB. A participação do VAM do Brasil entre os países emergentes (excluindo a China) teve redução de 2,7 e 3,9 pontos percentuais nos mesmos períodos. A posição no ranking de Desempenho Competitivo Industrial (CIP) da Unido levou 20 anos para cair da posição 26 para 31 e apenas dez para cair até a posição 42.
Cabe destacar também que como reação a esse cenário de estagnação global, se iniciou um movimento liderado pelos países centrais, de promover a aceleração tecnológica em torno das tecnologias da indústria 4.0, combinada com a retomada de políticas ativas para promover a produção manufatureira e o reshoring de cadeias produtivas, revertendo o contexto favorável à globalização.
Vários analistas têm destacado os novos desafios associados à mudança estrutural e ao desenvolvimento industrial para os países em desenvolvimento nesse contexto de aceleração de mudanças tecnológicas (Fargerberg; Verstpagen, 2021; Malerba; Lee, 2021; Chang; Andreoni, 2021). A busca por encontrar novos vetores de crescimento depois da GCF, tem se concretizado na importância cada vez maior da indústria 4.0 e suas várias tecnologias-chave como Computação em Nuvem, Big Data, Inteligência Artificial, 5G e Manufatura Aditiva. Mais recentemente tem se agregado as tecnologias verdes como chave para garantir retomar o crescimento com sustentabilidade social e ambiental (Mazzucato, 2019; Anzolin; Lebdioui, 2023).
Estratégias ativas consubstanciadas em políticas industriais e tecnológicas, voltadas para dominar capacitações produtivas e tecnológicas e acelerar a transição para atividades mais sofisticadas e capazes de gerar maior produtividade, renda e emprego passam a se fazer cada vez mais presentes (Ocampo, 2016; Aiginger; Rodrik, 2020; Irwin, 2023). Os avanços da ciência e da tecnologia e o domínio de atividades inovativas se tornaram cada vez mais necessárias para não ficar para trás na corrida pelo desenvolvimento dentro do novo padrão, associado a tecnologias, processos, produtos e infraestruturas digitais, sociais e ambientalmente mais sustentáveis. Reafirmou-se, assim, a ideia de que a atividade de manufatura carrega com ela a possibilidade de explorar efeitos dinâmicos, de encadeamentos produtivos e spillovers tecnológicos, capazes de favorecer o aumento da produtividade e de empregos com melhores salários. Deve-se destacar também a crescente integração das atividades industriais com os serviços sofisticados, como software e serviços de informação (Unido, 2019).
Ao mesmo tempo, as dificuldades para retomar o crescimento global não foram superadas, acirrando ainda mais as tensões comerciais, geopolíticas e tecnológicas, em especial entre Estados Unidos e China (Kwuan, 2020; Diegues; Roselino, 2023). A pandemia da COVID-19 e a guerra entre Rússia e Ucrânia foram também elementos catalisadores dessas tensões, aumentando o ceticismo sobre os benefícios da globalização (Unctad, 2020; Shekhar et al., 2023).
Frente a este contexto extremamente complexo e de tensões competitivas acirradas com o retorno de políticas mais ativas para a transformação produtiva e para aceleração de mudanças tecnológicas, inclusive para fomentar a transição energética e promover a sustentabilidade ambiental, o Brasil caminhou na direção contrária. Os governos Temer e Bolsonaro, não apenas não buscaram enfrentar o problema da desindustrialização e criar condições para enfrentar o cenário competitivo internacional, como também deliberadamente desmobilizaram instrumentos e instituições fundamentais para a promoção do desenvolvimento econômico, da sustentabilidade ambiental e do bem-estar social, limitando a atuação do Estado em várias esferas (Dweck, 2020; Andrade, 2022).
Este é o cenário com o qual se defronta a equipe econômica do novo governo para o terceiro mandato do presidente Lula da Silva. Como já destacado na introdução, a reversão do longo processo de desindustrialização é um dos objetivos explícitos do novo governo. Cabe, portanto, buscar avaliar de que maneira as relações com a China se conectam com esta questão e podem ajudar ou criar obstáculos a essa estratégia. Antes, porém, é importante observar também as transformações recentes na própria estratégia chinesa de desenvolvimento.
A China tem sido um ator chave nas mudanças destacadas na seção anterior. O cenário de disputa global em parte envolve a reação dos países avançados à crescente expansão internacional e modernização de sua estrutura produtiva em direção a atividades mais sofisticadas tecnologicamente, desafiando posições de liderança em várias cadeias produtivas historicamente comandadas pelas empresas de países desenvolvidos. Diversos autores destacam a transição de uma situação complementaridade, baseada na integração da estrutura produtiva chinesa às estratégias de offshoring das empresas dos Estados Unidos, para uma situação de crescente rivalidade comercial e tecnológica (Diegues; Roselino, 2023; Medeiros; Trebat, 2024).
Para o argumento que está sendo construído neste artigo, é importante destacar que a posição atual da China como um dos países que disputa a liderança tecnológica é resultado de um conjunto de mudanças muito significativas pelas quais vem passando o país asiático na busca por recuperar uma posição relevante na economia e na geopolítica global. Entender essas mudanças, ao mesmo tempo em que ajuda a interpretar a direção e a forma que assumiu as relações entre Brasil e China, a ser tratada nas duas próximas seções, também permite vislumbrar possíveis desafios no futuro, tema das considerações finais do artigo.
Depois do forte impulso dado à industrialização chinesa com integração às cadeias globais de valor, desde o período posterior à crise asiática no final do século XX, e com mais ênfase no início do século XXI, o dinamismo econômico da China esteve associado ao forte crescimento dos investimentos, com o planejamento estatal articulando os processos de industrialização, urbanização e expansão de infraestrutura (Cintra; Pinto, 2017; Dinlersoz; Fu, 2022). Observou-se um processo de crescimento coordenando pelo planejamento estatal onde a taxa de investimento suportou um processo de intensa mudança estrutural associado à urbanização, que por sua vez articulou a oferta de infraestrutura com forte expansão de capacidade e desenvolvimento industrial em setores da indústria pesada e de duráveis (Hiratuka, 2018a). Os setores ligados à atividade exportadoras, por sua vez, continuaram a se expandir, articuladas pelo movimento de ampliação das cadeias globais de valor e impulsionados pela adesão da China à OMC em 2001. A rápida transformação estrutural chinesa, em um contexto de crescimento sincronizado na economia global propiciou inclusive o boom de commodities, com efeitos substanciais sobre a demanda e os preços das commodities metálicas, minerais e energéticas (Farooki; Kaplinsky, 2012).
Vários autores destacaram como este padrão fortemente intensivo em capital foi reforçado após a GCF, uma vez que a reação da política econômica chinesa estimulou ainda mais os investimentos, seja através do crédito, seja por meio de incentivos fiscais, de maneira a sustentar a taxa de crescimento (Glaeser et al, 2017, Dilersonz; Fu, 2022). A estratégia Chinesa surtiu algum efeito, evitando uma redução mais drástica no seu crescimento, contribuindo ainda para sustentar os preços das commodities nos anos imediatamente posteriores à crise. No entanto, o agravamento da crise a partir de 2011, em especial na União Europeia, tornou evidente a dificuldade para superação da crise global. O próprio crescimento da economia chinesa caiu abaixo de 8% em 2012, pela primeira vez no século XXI (Gráfico 2).

No entanto, a elevação da capacidade de produção e a disparidade entre a taxa de investimento e a taxa de crescimento do PIB fizeram crescer fortemente a capacidade ociosa em diversos setores industriais. Essas contradições aceleraram as mudanças, consubstanciadas na Terceira Plenária do 18º Congresso do Partido Comunista Chinês (PCCh) em 2013, já sob a liderança de Xi Jinping (Aglietta; Bai, 2016, Dittmer, 2017). A direção principal foi buscar avançar na transição para uma economia menos dependente da expansão de setores intensivos em capital e priorizar os setores mais intensivos em tecnologia e conhecimentos. Ainda do ponto de vista da estrutura de oferta, setores menos intensivos em recursos e associados à transição energética também passaram a ser incentivados, de maneira a reduzir os danos ambientais decorrentes do modelo anterior. A redução de disparidades regionais e entre áreas urbanas e rurais, capaz de incluir um contingente crescente da população chinesa à classe média, também são mencionados.
A preocupação com o aumento da capacidade inovativa e a redução da dependência de tecnologia sob controle estrangeiro, presente desde as discussões para o lançamento da Plano de Médio e Longo Prazo de Ciência e Tecnologia em 2006, também se torna mais explícita, com o acirramento da disputa por mercados internacionais e a aceleração da mudança tecnológica mencionada anteriormente. Essa questão fica evidente pela sucessão de documentos do governo chinês, voltados para promover a inovação endógena, como no Plano Made in China 2025, lançado em 2015, ou no Plano Nacional de Inteligência Artificial, lançado em 2017 (Naughton, 2021). Nessa estratégia, a inovação torna-se um fator fundamental para pavimentar o caminho até o centenário da Revolução, quando a China se tornaria um país próspero, culturalmente avançado, harmonioso e veria realizado o sonho chinês de rejuvenescimento nacional, como explicitado no documento Estratégia Nacional de Desenvolvimento Impulsionado pela Inovação (Zhou; Liu, 2016; Ceset, 2019).
Dessa forma, além de se tornar uma potência exportadora e manufatureira global, a China vem reforçando sistematicamente seu sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). Atualmente a China é o segundo país que mais gasta em P&D globalmente, representando 24,8% do total em 2020, atrás apenas dos Estados Unidos com 30,7% (Congressional Research Service, 2022). Considerando o número total de publicações científicas, a China passou da 8ª posição no período 1998-2000, para a primeira entre 2018-2020. Esse avanço nas publicações científicas não foi apenas quantitativo, uma vez que considerando as publicações entre as 10% mais citadas, a China também aparece em primeiro lugar no período 2018-2020, com 26,6% do total (NISTEP, 2022). O avanço chinês também pode ser avaliado pela forte presença de suas grandes empresas em setores das tecnologias digitais, como computação em nuvem, big data, inteligência artificial, 5G, além dos setores-chave para fazer frente à crise climática e garantir crescimento com sustentabilidade ambiental e social, como energia solar, eólica e veículos elétricos.
Além de ser fundamental para elevar a produtividade e manter o aumento da renda per capita, o domínio dos princípios da inovação e a redução da dependência de tecnologia e conhecimento estrangeiro são consideradas chave para abrir novos espaços de acumulação alternativos à expansão da infraestrutura e menos dependentes da expansão imobiliárias associada ao excesso de alavancagem financeira, além de acelerar o enfrentamento dos impactos ambientais do crescimento chinês e a transição energética.
A contradição entre o crescimento da capacidade produtiva e o ritmo de crescimento também propiciou mudanças importantes na extroversão de capitais chineses e na internacionalização das grandes empresas do país. Esse movimento foi articulado com o lançamento da Belt and Road Initiative em 2013. A busca por incentivar novos projetos de investimento de infraestrutura teve, entre suas várias motivações, a necessidade de compensar a queda no ritmo de expansão no mercado interno da China, com mais projetos no exterior. Trata-se, portanto, de uma política que dá continuidade à estratégia de internacionalização das grandes empresas chinesas, iniciada no começo dos anos 2000, e que recebeu ainda mais impulso após a crise global. Importante destacar que a estratégia está articulada com a busca por maior protagonismo na esfera financeira, com a busca por maior atuação da China em instituições financeiras multilaterais, com a expansão da atuação de seus Bancos no mercado global e a internacionalização de sua moeda (Cai, 2017).
Como destacam Cabré et al. (2018) e Jackson et al. (2021), a rápida acumulação de vantagens e capacitações industriais e tecnológicas em áreas importantes como energias renováveis, tecnologias digitais e crescentemente em veículos elétricos, a partir da nova estratégia Chinesa, faz com que o movimento de internacionalização das empresas chinesas também se reflita em mudanças qualitativas importantes inclusive no perfil setorial dos investimentos chineses no exterior. Myers et al. (2024) destacam como esse novo perfil já pode ser vislumbrado nos investimentos da China na América Latina, com importância crescente dos setores chamados de “nova infraestrutura”, englobando tecnologias de informação, telecomunicações, energias renováveis e outros setores mais intensivos em conhecimento.
Abre-se, assim novas oportunidades para compatibilizar os interesses da China com outros países que busquem captar investimentos voltados para acelerar projetos focados em transição energética e setores mais intensivos em conhecimento. Por parte do Brasil, frente ao que foi apontado na seção anterior, é fundamental uma estratégia de longo prazo que viabilize um engajamento que aproveite novas oportunidades abertas por essa etapa.
As relações comerciais têm sido, desde o início do século XXI, o grande vetor das relações econômicas entre Brasil e China. Em paralelo a esse crescimento e suscitado por ele, também floresceu um debate acadêmico e na mídia especializada sobre os impactos desse crescimento sobre o desenvolvimento econômico e social brasileiro. Esta seção busca recuperar rapidamente as linhas gerais das relações comerciais, ao mesmo tempo em que destaca os aspectos-chave do debate sobre os impactos e desafios de longo prazo para a estrutura produtiva brasileira decorrente da maior presença da China no Brasil.
Como destacado na seção anterior o crescimento acelerado da economia Chinesa, combinando desenvolvimento industrial com um rápido processo de urbanização e expansão de infraestrutura, exerceu um grande impacto sobre as quantidades demandas e sobre os preços de commodities no mercado global. O efeito do ciclo de commodities teve impactos importantes em toda a América Latina, mas no Brasil, pela sua extensão geográfica, pela disponibilidade de recursos e pelas capacidades competitivas acumuladas anteriormente em várias cadeias produtivas como no agronegócio, no setor extrativo mineral e de petróleo, os efeitos sobre os fluxos comerciais foram particularmente importantes.
De valores próximos a US$ 1 bilhão em 2000, as exportações para a China cresceram em ritmo acelerado, se tornando o principal destino das exportações brasileiras em 2009, deixando para trás parceiros tradicionais como Estados Unidos e Argentina. O crescimento acelerado permaneceu até 2011, quando atingiu US$ 44 bilhões. Em termos de participação relativa, o aumento foi de 2% para 17% do total das exportações no mesmo período. Os efeitos da crise internacional e da desaceleração chinesa sobre os preços das commodities causaram alguma instabilidade entre 2012 e 2014, com uma queda mais pronunciada entre 2015 e 2016. Em termos de participação relativa, no entanto, a tendência foi de uma certa acomodação. A partir de 2017 observa-se novamente uma tendência de crescimento, com recordes sucessivos nos valores exportados, atingindo US$ 90 bilhões em 2022. Em termos de participação relativa, o auge foi atingido em 2020, quando praticamente um terço de todas as exportações brasileiras foram direcionadas à China. A recuperação de outros mercados no período pós-pandemia fez com que a participação chinesa apresentasse uma pequena queda em 2021 e 2022, mas ainda assim, neste último ano a China representou 27% de todas as exportações brasileiras.
Do lado das importações o crescimento também foi muito significativo. Apesar das oscilações no valor absoluto, decorrente das flutuações da atividade econômica brasileira, observou-se praticamente ao longo de todo o período, um aumento do market-share chinês, saindo de cerca de 2% no início da década e chegando a 22% em 2022 (Gráfico 3).

A integração comercial com a China representou sem dúvida, um grande salto em exportações e uma enorme alavanca para a expansão de setores como o agronegócio, a indústria extrativa e de petróleo. Além disso, o superavit comercial em favor do Brasil na maior parte do período contribuiu para a elevação das reservas e a redução da vulnerabilidade externa do país. Somente em 2022, o saldo comercial do Brasil com a China foi de US$ 28,6 bilhões, de um total brasileiro de US$ 61,5 bilhões.
Apesar do extraordinário crescimento do comércio bilateral, o padrão de comércio observado vem gerando preocupações de diferentes naturezas por parte de vários analistas. Termos como “Doença Holandesa”, “Maldição de Recursos Naturais” e “Relação Centro-Periferia” têm sido comumente usados para destacar a preocupação com o perfil do comércio com a China (Jenkins, 2015; Powell, 2016; Borghi, 2020; De Assis; da Silva, 2020). Um relatório publicado pela Unctad (2021), aponta que a armadilha da dependência de commodities é um problema que continua afetando grande parte dos países em desenvolvimento, causando baixo crescimento, instabilidade macroeconômica e dificuldades para a diversificar a estrutura produtiva e elevar a produtividade. A mudança e a diversificação da estrutura produtiva em direção setores industriais e de serviços com maior incorporação de conhecimento e conteúdo tecnológico é apontado como chave para superar a armadilha da dependência de commodities. Do ponto de vista agregado, os efeitos decorrentes da sobrevalorização da taxa de câmbio e sobre a rentabilidade relativa das atividades industriais são os pontos mais destacados que dificultam essa mudança (Nassif et al., 2017). Mas para além das informações macroeconômicas, dados mais detalhados por produtos e setores também são importantes de serem analisados.
Em primeiro lugar, destaca-se a forte concentração observada nas exportações brasileiras para a China em produtos primários. Soja, minério de ferro, petróleo e carne, juntos representaram cerca de 87% de todas as exportações brasileiras para a China em 2022. Um indicador mais desagregado de concentração, que considera o conjunto dos produtos exportados a 6 dígitos da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), obtido a partir do cálculo do índice de Herfindahl-Hirschman (IHH),1 mostra uma tendência de aumento de 0,11 em 2003 para 0,26 em 2013, permanecendo em torno deste patamar até 2018. A partir de então verifica-se uma ligeira queda para 0,21 em 2022, resultado do aumento da importância relativa de outras commodities como celulose, açúcar e algodão. Ainda assim, a concentração ainda é bastante elevada.
A preocupação com a elevada concentração da pauta e com a necessidade de diversificação das exportações brasileiras para a China tem se somado a preocupações ambientais, dado a predominância de commodities com elevado potencial de gerar impactos ambientais negativos. A preocupação principal tem sido com a desmatamento ocasionado pela expansão da produção de soja e da pecuária em biomas importantes como a Amazônia e o Cerrado (Fearnside; Figueiredo, 2015; Studart; Myers, 2021, Wilkinson et al., 2022). De acordo com análise realizada pelo CDP (2019), impulsionada pelo crescimento da demanda global de proteína, a produção de soja no Brasil aumentou 66% entre 2010 e 2017. De 2010 a 2016, esse aumento levou a 104 milhões de toneladas adicionais de emissões de CO2 como resultado do desmatamento e conversão de vegetação nativa. O relatório também estimou que em 2017 as importações de soja da China foram associadas a 6,5 milhões de toneladas de emissões de CO2 relacionadas ao desmatamento para expansão da soja na Amazônia brasileira e no Cerrado.
Como destacam Studart e Myers (2021) e Teixeira e Rossi (2020), o Brasil sempre buscou ter um papel estratégico na agenda global de segurança alimentar, combinada com uma agenda de sustentabilidade ambiental. Porém, com o Governo Bolsonaro, o país teve sua imagem impactada negativamente por sua política ambiental desastrosa, resultando em avanço de queimadas e do desmatamento ilegal. O esforço do novo governo é voltar a ter um papel de protagonismo neste aspecto no cenário internacional e reforçar mecanismos de regulação e fiscalização em âmbito interno. De qualquer maneira, esses estudos apontam para a necessidade do Brasil de repensar as relações bilaterais tendo a sustentabilidade ambiental como um de seus eixos, levando em conta a centralidade que o tema ambiental passou a ter na agenda global e na própria estratégia Brasileira e Chinesa de desenvolvimento de longo prazo.
De outro lado, as importações da China incluem um conjunto bastante diversificado de produtos manufaturados, desde produtos intensivos em mão de obra até intensivos em tecnologia. Considerando o IHH para as importações da China, ele apresentou tendência decrescente em patamares bastante baixos, chegando a 2022 a um patamar de 0,01.
A diferença observada no perfil dos fluxos de exportação e importação pode ser observada no Gráfico 4. O saldo comercial, que tem se mostrado favorável ao Brasil ao longo do tempo, é resultado dos saldos comerciais positivos obtidos com commodities primárias. Por outro lado, em produtos manufaturados, há um grande déficit comercial, concentrado em produtos classificados como de alta tecnologia (principalmente eletroeletrônicos) e manufaturados de média tecnologia (máquinas e equipamentos, autopeças, produtos químicos, entre outros), mas também em produtos intensivos em mão de obra (têxteis, vestuário e calçados).

Do lado das importações, o rápido aumento da penetração das importações de produtos da China no mercado doméstico se entrelaça com o debate sobre a desindustrialização por conta de efeitos de competição com a produção industrial interna
Sugimoto e Diegues (2022) e Almeida et al. (2022) utilizam o banco de dados do World Input-Output Database (WIOD) para destacar como entre 2000 e 2014 elevou-se a dependência da indústria manufatureira brasileira de insumos produzidos na China, em detrimento dos insumos domésticos. Almeida et al (2022) enfatizam que o efeito de dinamização intrasetorial brasileiro foi, ao longo do tempo, deslocado pelos efeitos para dinamizar setores produtivos chineses. Os autores destacam que os setores mais afetados foram informática, produtos óticos e eletrônicos, têxteis e vestuário, máquinas e equipamentos e equipamentos elétricos. Sugimoto e Diegues (2022) apontam na mesma direção, destacando que a elevação de insumos importados oriundos da China em relação ao total dos insumos importados setorialmente foi percebida em praticamente todos os setores, mas destacando os mesmos setores de Almeida et al (2022). Dessa forma, haveria um processo de desadensamento de cadeias produtivas no Brasil, no qual a China estaria jogando um papel importante.
Outro indicador que pode ser mobilizado para verificar os efeitos da concorrência chinesa no mercado brasileiro de produtos manufaturados é própria competição direta no mercado local (Jenkins, 2015, Hiratuka; Sarti, 2016). Para avaliar essa competição e sua evolução recente, foi calculado para este artigo o coeficiente de penetração de importações chinesas setorial.2 Esse indicador permite verificar, para o total da indústria de transformação e para cada setor a 2 dígitos da CNAE, qual parcela do consumo aparente total brasileiro é atendida por importações chinesas.
Como pode ser observado pelo Gráfico 5, para o conjunto da indústria manufatureira brasileira, o coeficiente de penetração das importações chinesas apresentou uma tendência contínua de crescimento, saindo de 0,8% em 2003 e chegando a 5,8% em 2022 (para um coeficiente total de 23,1%). O ritmo de crescimento foi muito maior do que dos demais países, que tiveram em conjunto aumento de 14,3% para 17,3% no mesmo período. Ou seja, o crescimento do coeficiente de penetração de importações da China respondeu por 62% do aumento do coeficiente total ao longo do período.

Abrindo as informações setorialmente, é possível verificar os setores onde o crescimento da oferta chinesa representou maior parcela do consumo aparente. De longe o setor onde a presença chinesa é mais significativa é no setor de informática e produtos eletrônicos, onde a importação da China representou pouco mais de 30% do consumo aparente. No setor de equipamentos elétricos o coeficiente foi bastante elevado, atingindo 18% do consumo aparente. Têxteis, Máquinas e Equipamentos e outras manufaturas completam os setores onde a China tem indicador acima de 10%. Dos 23 setores analisados na Tabela 2, nenhum setor tinha grau de penetração de importações chinesas maior do que 5% em 2003. Em 2022 eram 8 setores. Considerando mais de 10%, eram 5 setores neste mesmo ano.

Percebe-se, portanto, que além de ocupar espaço no fornecimento de insumos, o crescimento das importações chinesas também contribuiu para reduzir a proporção de produção doméstica atendendo ao consumo interno ao longo do período em análise.
Finalmente, cabe destacar o efeito sobre os mercados externos da produção industrial brasileira. Notadamente, os mercados regionais, especialmente os países da América Latina e do Mercosul sempre tiveram um perfil de pauta com predomínio de produtos manufaturados, comparativamente a outras regiões de destino. A preocupação com os efeitos da competição chinesa em terceiros mercados nos países da América Latina é recorrente e aparece, por exemplo, em Jenkins (2012), Bittencourt (2012), Jenkins e Dussel-Peters (2009) e Gallagher (2016).
Especificamente para o caso Brasileiro, a análise de Castilho et al. (2019), utilizou a metodologia de Constant Market Share para estimar as perdas e ganhos de diferentes países nos mercados de produtos manufaturados da ALADI, comparando Brasil e China. Os dados apontam que entre 2000 e 2007 43% das perdas brasileiras estiveram associadas a ganhos da China, número que aumentou para 62% entre 2007 e 2013. Não apenas o percentual atribuído à China aumentou como a estimativa de valor das perdas passou de US$ 564 milhões para US$ 7,1 bilhões entre os dois períodos. Os setores mais afetados foram produtos de metal, máquinas e equipamentos e material de transporte.
Para o Mercosul, utilizando a mesma metodologia, a análise realizada por Hiratuka (2016) indicou que no período 2001 a 2014 se verificou aumento da similaridade da pauta das exportações Brasileiras e Chinesas e que 54% do total exportado pelo Brasil para a região esteve sob ameaça direta da China, isto é, correspondeu a produtos (a 4 dígitos) onde observou-se um aumento de market-share da China e redução do market-share do Brasil. Pela estimativa do Constant Market Share, as perdas atribuídas à China representaram 62% do total das perdas de mercado do Brasil no Mercosul, com valor equivalente a US$ 4,6 bilhões. Desta forma, a emergência Chinesa explicitou o insuficiente avanço na constituição de um aparato normativo e institucional dentro do Mercosul. Oportunidades importantes de comércio regional foram desperdiçadas, ou seja, a ampliação das importações dos países de fora do Bloco, com destaque crescente para a China se deu em detrimento do market share das exportações dos parceiros regionais.
As dificuldades associadas à desindustrialização e à falta de competitividade em produtos industriais do Brasil tem causas diversas e complexas e não pode ser atribuída somente à concorrência Chinesa. No entanto, é fato que a competição com a China tornou explícita os problemas relacionados à desindustrialização e à mudança estrutural necessária para elevar a produtividade e o nível de renda do país, apesar de ter permitido um salto em termos de exportações e geração de saldos comerciais. A próxima seção aborda os fluxos de investimentos de empresas chinesas no Brasil.
A preocupação com a questão do desenvolvimento industrial e tecnológico e a sustentabilidade ambiental não se resumem apenas à dimensão comercial, mas também envolvem questões relacionadas aos investimentos Chineses. Se a primeira década do século XXI foi marcada pelo crescimento e consolidação das relações comerciais, a partir de 2010, se observam novas dimensões na relação entre os dois países, sobretudo pelo aumento da presença direta de empresas chinesas em território brasileiro. O aumento dos investimentos diretos esteve ancorado na maior aproximação diplomática da China com a América Latina e o Brasil, mas está associado principalmente à estratégia da China de promover a internacionalização de suas grandes empresas.
Como destacado na seção 1, o movimento de expansão internacional das empresas Chinesas vem buscando combinar os objetivos de longo prazo da economia chinesa de transitar para um padrão menos dependente dos investimentos, mais inovadora, porém com taxas de crescimento menores. Nesse processo de transição, a inserção internacional chinesa tem diferentes motivações, como a garantia de acesso a recursos, alimentos e matérias-primas, a busca por expansão de mercados externos para fortalecer a capacidade de produção global, a necessidade de adquirir capacidade de inovativa e aumentar o grau de internacionalização do Reminbi (Jaguaribe, 2018; Schutte, 2020).
Nesse contexto, enquanto o crescimento das relações comerciais entre Brasil e China se iniciaram no início dos 2000, o aumento dos investimentos diretos e a maior presença de empresas Chinesas no Brasil começou a se verificar de maneira mais efetiva apenas a partir da segunda década dos 2000.
Outro fator importante que ajuda a explicar o aumento dos investimentos foi o esforço de aproximação do ponto de vista diplomático, ao menos até o Governo Bolsonaro. Do lado do Brasil, observou-se desde o primeiro mandato governo Lula, uma política externa que buscou alinhamento com países do Sul Global e em especial com a China. Do lado da China, em 2008, o Governo chinês lançou o primeiro documento voltado exclusivamente para as relações com a América Latina, posteriormente atualizado em 2016. Embora o documento fosse voltado para o conjunto da AL, a importância do Brasil, para além do próprio tamanho da economia brasileira, pode ser destacada pela aproximação permitida pela participação dos dois países nos BRICS e pelos diversos documentos lançados no plano bilateral, como o Plano de Ação Conjunta Brasil-China adotado em 2010, no Plano Decenal de Cooperação assinado em 2012 e no Plano de Ação Conjunta 2015-2021 (Rosito, 2020).
O aumento dos investimentos Chineses no Brasil pode ser verificado a partir de diferentes fontes de informações. As estatísticas oficiais registradas pelo Banco Central do Brasil permitem diferenciar as informações de origem dos estoques de investimentos estrangeiros tanto pelo investidor imediato quanto pelo controlador final (Banco Central do Brasil, 2022). A diferença ocorre porque muitas vezes o investimento estrangeiro passa por países com vantagens fiscais, como Ilhas Cayman, dificultando a identificação da origem primária. No caso das estatísticas que apresentam o controlador final, esta distorção é contornada, permitindo verificar de maneira mais acurada a origem do capital investidor. No caso da China, esta distinção é particularmente importante, uma vez que em termos de participação no estoque em 2021, os dados de investidor imediato mostram uma participação de apenas 0,1% do total, enquanto nas estatísticas que consideram o controlador final o indicador aumenta para 4,5%. Os dados apresentados na tabela 3, portanto, utilizam esse último critério.

Em 2005, o estoque de investimentos chineses era de apenas US$ 300 milhões e correspondia a 0,2% do total recebido pelo Brasil. Em 2010, o estoque subiu para US$ 7,8 bilhões e chegou a 1,3%. Entre 2005 e 2010, a desagregação setorial mostra um notável aumento do setor extrativo. Foi um período em que os investimentos foram bastante concentrados no setor de extração de petróleo e minerais. Entre 2010 e 2021, houve um importante crescimento dos investimentos chineses, com o estoque atingindo US$ 29,8 bilhões, saindo da 16ª posição e alcançando a 5ª posição entre os principais investidores entre os dois anos. É importante destacar que, dado o longo histórico de penetração de empresas estrangeiras no Brasil, a posição de investidores como os Estados Unidos, países europeus como Espanha e França, além do Japão, continua dominante. No entanto, a China foi o país com a taxa de crescimento mais importante entre os dois anos.
O aumento dos investimentos chineses é acompanhado de alguma diversificação setorial, apontando para um estágio de maior amadurecimento nas relações bilaterais entre os países, complementando a forte relação comercial (Hiratuka, 2019; Kupfer; Rocha, 2018). Nesse processo, os setores de infraestrutura merecem destaque. Dentre estes, é possível perceber a predominância do Setor Elétrico. De apenas 0,6% do total em 2010, o estoque de IED chinês em setores associados a infraestrutura chega a 42,2% do total em 2021, com o setor de eletricidade e água representando sozinho 41,4%. Ramos e Macedo (2014), Schutte e Debone (2017), Barbosa (2020) e Ramos et al (2022) destacam como em um curto espaço de tempo, as empresas chinesas se tornaram agentes muito relevantes na geração, transmissão e distribuição de eletricidade no Brasil. Embora tenha perdido bastante importância entre 2010 e 2019, o setor extrativo e de petróleo ainda continuou sendo muito importante, com uma participação ligeiramente superior ao de eletricidade e água. Vale destacar que as atividades de manufatura e serviços mais sofisticados, como informações e comunicações permanecem com importância relativamente baixa, tendo, porém, um potencial futuro bastante importante.
Outra fonte de informação bastante utilizada para a análise dos investimentos Chineses no Brasil são os levantamentos de investimentos a partir da imprensa ou da própria empresa investidora. No caso desta metodologia os dados não diretamente comparáveis aos registrados no Banco Central, seja porque parte dos investimentos são financiados no mercado local e, portanto, não envolve operação cambial, seja porque muitas vezes o valor do investimento anunciado pode ocorrer ao longo de vários anos, mas é geralmente registrado no ano do anúncio. De qualquer maneira, pelas duas metodologias é evidente o aumento da importância dos investimentos a partir da segunda década do século 21 (Hiratuka, 2019; Cariello, 2023).
De acordo com Cariello (2023), o volume total de investimentos Chineses no Brasil anunciados e confirmados entre 2007 e 2022 foi de US$ 71,61 bilhões em 235 projetos. Do ponto de vista setorial, 45,5% do valor dos investimentos confirmados no período foi direcionado ao setor de energia elétrica, seguido por extração de petróleo e gás (30,4%), extração de minerais metálicos (6,2%). Ou seja, confirma-se a concentração dos investimentos no setor de energia elétrica e extrativo. A indústria manufatureira teve participação de 6,2%, enquanto a obras de infraestrutura representaram 4,4% e a agricultura e a pecuária 3,2%.
Do ponto de vista da discussão sobre os impactos gerais sobre o desenvolvimento econômico em geral e o desenvolvimento industrial em particular, alguns aspectos merecem ser destacados. Em primeiro lugar deve-se mencionar a grande concentração dos investimentos em fusões e aquisições, em relação e investimentos greenfield (Schutte, 2020, Hiratuka, 2019). De acordo com estimativa de Hiratuka (2019), as aquisições e fusões representaram 85% dos investimentos entre 2010 e 2013 e 95% entre 2014 e 2017. Parte importante dos valores associados aos investimentos, portanto, não tiveram contribuição imediata para a expansão da formação bruta de capital do país.
Em segundo, do ponto de vista setorial, como já destacado, observou-se uma forte concentração no setor de energia elétrica e no setor extrativo e em energia. Na área de energia elétrica, para além da aquisição de empresas já existentes, as empresas chinesas como State Grid e Three Gorges têm contribuído para realizar investimentos importantes tanto na geração como na transmissão de energia (Barbosa, 2020; Ramos, 2020). Mas no caso do setor extrativo de petróleo e de minérios, a estratégia tem sido a busca por garantir fornecimento de matéria-prima para processo de desenvolvimento da China, muitas vezes com suporte de operações dos Bancos de Desenvolvimento Chineses através aporte de recursos do tipo “Commodity-backed operations” (Myers; Gallagher, 2017). São, portanto, investimentos em setores que reforçam o perfil de especialização produtiva concentrado em commodities.
Também podem se agregar nessa condição, os investimentos chineses no agronegócio, como os investimentos da COFCO em distribuição (Wilkinson et al., 2022). Mesmo na área de infraestrutura, os investimentos em portos combinaram o processo de internacionalização das grandes empresas chinesas do setor de infraestrutura com a estratégia de melhorar o escoamento da produção de commodities para a China. Também na área de infraestrutura, tem havido muita expectativa na área de Ferrovias. Como destacado em Hiratuka (2018b) e Oliveira e Myers (2020) e Abdenur et al, (2021), projetos como a Ferrovia Bioceânica e a Ferrovia de Integração do Centro Oeste (FICO) são exemplos de projetos onde empresas Chinesas como a China Railway Construction Company (CRCC) e a China Railway Eryuan Engineering Group (CREEC) demonstraram interesse e chegaram a realizar projetos de viabilidade, mas não se concretizara por enquanto.
Como destacam Abdenur et al. (2021) e Aguiar (2017), a perspectiva de grandes projetos de infraestrutura tem sido objeto de bastante debate sobre seus impactos sociais e ambientais porque grande parte dos projetos se vinculam à necessidade de escoar a produção de commodities com maior eficiência para a China. A exportação através do chamado “Arco Norte”, que engloba os portos do Norte e Nordeste, é considerada uma rota com elevado potencial de aumentar a eficiência logística em relação a alternativas no Sudeste e Sul do Brasil, em especial pela maior proximidade das áreas de maior expansão na produção de grãos, proteína animal e minérios, como Mato Grosso, Pará, Maranhão, Tocantins e Bahia. Mas assim como a própria produção em si, os investimentos em infraestrutura para melhorar a estrutura de exportações podem ter impactos sociais e ambientais elevados na região Amazônica e no Cerrado.
Por outro lado, os investimentos na manufatura e em atividades intensivas em conhecimento ainda tem sido pouco representativa, contribuindo pouco para a diversificação da estrutura produtiva e para a mudança estrutural para setores mais intensivos em conhecimento. Investimentos relativamente esparsos de empresas como Huawei e BYD tiveram que se deparar com as indas e vindas da política econômica e industrial brasileira (Hiratuka, 2022). Somente mais recentemente, investimentos mais consistentes na indústria manufatureira parecem estar se iniciando.
Em especial na área de veículos elétricos, os anúncios de investimento têm sido significativos. A BYD, que já opera uma planta de produção de chassis para ônibus elétricos e placas solares inaugurada em Campinas em 2015 e de baterias em Manaus que iniciou a produção em 2020, anunciou em 2022 investimentos de R$ 3 bilhões para produzir veículos elétricos, chassis de ônibus e caminhões elétricos no local onde se localizava a planta da Ford em Camaçari. Também merece destaque a Great Wall Motors, que comprou a fábrica da Mercedes-Benz em Iracemápolis e anunciou planos de investir R$ 4 bilhões entre 2022 e 2025 (Cariello, 2023).
O volume de investimentos anunciados indica uma mudança na escala em relação aos investimentos anteriores no setor automotivo, realizados pela Cherry e pela própria BYD no passado. De acordo com informações da BYD a expectativa é de uma capacidade de produção de 150 mil veículos-ano na planta da Bahia, além dos planos para ter também um centro de P&D voltado para o desenvolvimento de veículos híbridos a etanol (Souza, 2023). O aumento da escala de produção local, poderia inclusive articular a produção local para exportar para os mercados vizinhos da América Latina, contribuindo para reverter a perda de espaço em manufaturas que ocorreu para a própria China.
Existem perspectivas também na área de mobilidade urbana, para além dos automóveis de passeio. Tem ocorrido um aumento da tendência de substituição da frota de veículos a diesel por ônibus elétricos em algumas cidades brasileiras, com destaque para o município de São Paulo. Depois de adiamentos e mudanças de cronograma, a cidade está acelerando a eletrificação da frota de ônibus para atingir a meta de reduzir as emissões em 2027 para 50% do nível verificado em 2016 (Bermudez; Consoni, 2020; PNME, 2021). Recentemente, a prefeitura de São Paulo obteve financiamento de R$ 2,5 bilhões do BNDES para promover a renovação e eletrificação da frota. A expectativa é de renovação de 10% da frota de ônibus, o que seria o equivalente a cerca de 1,3 mil ônibus elétricos (Martini, 2023). No final de 2023, existia um total de 444 ônibus elétricos (a maioria trólebus) em circulação no Brasil, de acordo com a Plataforma E-bus radar.3 Esse número representava apenas 8% do total da América Latina e 20% da frota do Chile, país mais avançados na eletrificação da frota na região (PNME, 2021). Ou seja, somente com a perspectiva da demanda decorrente de 10% da frota de São Paulo, o estoque seria multiplicado por 3. Existe, portanto, uma perspectiva bastante ampla de demanda, portanto, que justifica o interesse de empresas Chinesas, e também de empresas brasileiras e de outras nacionalidades.
Esses projetos, voltados para a mobilidade urbana, têm características bastante distintas dos grandes projetos ferroviários de transporte para a exportação de commodities agrícolas e minerais. Podem auxiliar a solucionar um dos principais problemas dos grandes centros urbanos brasileiros, com impactos ambientais muito distintos dos projetos de escoamento da produção que cruzam regiões sensíveis como o Centro-Oeste e o Norte do Brasil, tanto em termos de impacto no meio ambiente quanto nas populações locais. No caso dos projetos de mobilidade urbana, pelo contrário, permite a redução das emissões de CO2, uma vez que se destinam a funcionar com energia elétrica.
Observa-se, portanto, que a perspectiva de demanda pode estimular investimentos que podem potencialmente ajudar o Brasil a simultaneamente incorporar investimentos que contribuam para a reindustrialização, incorporem atividades mais intensivas em conhecimento ao longo das cadeias produtivas locais e tenham impactos sociais e ambientais positivos. A busca por alterar qualitativamente o perfil dos novos investimentos chineses é chave para potencializar a contribuição da China para o desenvolvimento de longo prazo do Brasil.
A análise das relações econômicas do Brasil com a China ao longo dos últimos 20 anos aponta para um processo de rápida consolidação, calcada na explicitação de uma forte complementaridade em termos de comércio exterior. A partir de 2010 é visível também o aumento da presença chinesa mediante instalação de empresas no Brasil em diferentes áreas, além da participação em projetos de infraestrutura e no setor financeiro.
Como não poderia deixar de acontecer, esse crescimento tem sido acompanhado de discussões importantes sobre os impactos sobre o desenvolvimento econômico, social e ambiental brasileiro. Os aspectos abordados ao longo deste artigo apontam para a necessidade, pelo lado do Brasil, de avançar nas relações bilaterais em aspectos qualitativos associados à diversificação na pauta de exportações, aumento da contribuição dos investimentos chineses para a diversificação da estrutura produtiva (em especial em setores mais intensivos em conhecimento) e a incorporação de maneira mais efetiva do aspecto ambiental.
Considerando o longo período de dificuldades vivenciados pela estrutura produtiva brasileira, o Brasil se defronta com vários desafios para voltar a ter uma indústria mais competitiva, inovativa e que contribua para um desenvolvimento econômico social e ambientalmente sustentável. Esses desafios se fazem mais prementes dada a necessidade de avançar em uma estratégia de mudança estrutural associada às transformações importantes nos padrões produtivos, tecnológicos e de consumo observados na economia mundial. O período posterior à GCF assistiu a uma aceleração da mudança tecnológica, com a difusão das tecnologias associadas à indústria 4.0, combinada com a preocupação crescente de promoção da sustentabilidade ambiental. Essa preocupação tem se traduzido em fortes políticas de apoio por parte dos Estados Nacionais para acelerar a recuperação da Pandemia e, ao mesmo tempo, precipitar a mudança em direção a tecnologias e infraestruturas digitais e social e ambientalmente sustentáveis.
As dificuldades associadas à desindustrialização e à falta de competitividade em produtos industriais do Brasil têm causas diversas e complexas; e obviamente a China não pode ser culpada por fatores que dizem respeito fundamentalmente às causas internas do Brasil. As relações com a China apenas tornaram explícitos os problemas relacionados à desindustrialização e à mudança estrutural necessária para elevar a produtividade e o nível de renda do país. Mas as informações abordadas ao longo deste artigo apontam a necessidade de repensar a relação com a China como uma alavanca estratégica para fomentar o impulso da economia brasileira em um cenário global no qual as mudanças estruturais para incorporação de capacidade inovativa e em direção à maior sustentabilidade ambiental e social são cada vez mais necessários.
Para avançar em uma nova etapa nas relações bilaterais, é importante considerar formas de engajamento para além das já consolidadas e isso inclui, necessariamente o reconhecimento da nova fase de desenvolvimento em que a China ingressou, na qual setores mais intensivos em conhecimento e as tecnologias ambientais têm papel cada vez mais significativo. Desta forma, por parte do Brasil, é importante uma estratégia de longo prazo que viabilize um engajamento que aproveite novas oportunidades abertas por essa etapa.
Vale destacar que esta estratégia não significa abdicar da posição já consolidada pelo Brasil de grande fornecedor de produtos intensivos em recursos para a China. Ao contrário, para garantir e expandir esta posição, vai ser necessário incorporar cada vez mais conhecimento às cadeias produtivas de commodities, como na área de rastreabilidade, sistemas de monitoramento inteligentes e incorporação de equipamentos avançados, além de avançar em aspectos relacionados à sustentabilidade. Encontrar parceiros Chineses - e buscar reforçar a participação de conhecimento de empresas e instituições de pesquisas do Brasil nessas cadeias produtivas - é, com certeza, uma grande oportunidade que se abre.
Mas, ao mesmo tempo, será importante também aproveitar as oportunidades relacionadas à expansão dos investimentos Chineses, buscando aumentar os investimentos do tipo greenfield, e reforçar atividades em manufaturas e serviços mais intensivos em conhecimento. Os novos investimentos na área de veículos elétricos podem inaugurar uma etapa nas relações bilaterais, caso resultem de fato em cadeias produtivas com maior conteúdo local e incorporação de atividades mais intensivas em conhecimento. Articulados com os investimentos na área de energia renovável, podem significar oportunidades importantes para impulsionar atividades industriais com maior grau de encadeamento produtivo local e foco em setores inovadores e sustentáveis.
Outra área importante diz respeito aos setores de infraestrutura. Os investimentos chineses têm sido importantes em áreas como energia elétrica. No futuro, podem continuar contribuindo para reduzir o gap de infraestrutura do Brasil e melhorar a competitividade sistêmica do nosso sistema produtivo, mas a priorização de projetos associados a problemas urbanos como mobilidade e conectividade parecem ter mais potencial de resultar em impactos positivos do que grandes projetos voltados para fomentar o escoamento de commodities, passando por regiões sensíveis do ponto de vista social e ambiental e que reforçam o perfil de especialização primária. A priorização das áreas relacionadas à chamada “nova infraestrutura”, também é compatível com algumas mudanças recentes no perfil dos investimentos recentes da China na América Latina e no Brasil.
Finalmente, o estímulo à cooperação em ciência e tecnologia - combinada com incorporação de inovações e aproveitamento de oportunidades empresariais em segmentos industriais e de serviços associados a áreas mais intensivas em conhecimento e voltadas para a sustentabilidade - pode garantir um futuro ainda mais profícuo para o bem-estar das populações dos dois países nos próximos anos.







