Resumo: Com o objetivo de elaborar um estado da arte sobre a Decolonialidade no contexto dos centros brasileiros de produção do conhecimento, o presente trabalho apresenta os resultados de um estudo bibliométrico elaborado a partir do levantamento de artigos publicados em revistas científicas brasileiras entre os anos de 2018 e 2022. O levantamento resultou em uma amostra de 283 artigos, que foram analisados quantitativa e qualitativamente, além de possibilitar a produção de um ranking das referências teóricas mais utilizadas sobre o tema. Foi possível observar que o recente espaço temporal promoveu uma discussão latente nos centros brasileiros de pesquisa que incorporou, entre outras, autoras e autores latino-americanos em suas abordagens, alterando a hegemonia europeia nas produções científicas. Este importante passo na perspectiva decolonial permite a inserção de temáticas periféricas no cenário científico mundial, dando lugar às problematizações e teorizações secularmente invisibilizadas.
Palavras-chave: Decolonialidade, Decolonial, Colonialidade, Estudo bibliométrico.
Abstract: This study aimed to conduct a state-of-the-art review of Decoloniality in the context of Brazilian knowledge production centers. A bibliometric analysis of articles published in Brazilian scientific journals between 2018 and 2022 was conducted. The analysis yielded a sample of 283 articles, which were then subjected to quantitative and qualitative analyses. In addition, the most cited theoretical references were compiled. The findings reveal that the recent period has fostered a latent discussion in Brazilian research centers, incorporating, among others, Latin American authors and authors into their approaches and challenging the European hegemony in scientific production. This significant step in the decolonial perspective enables the inclusion of peripheral themes in the global scientific scenario, giving rise to problematization and theorizations that have been historically marginalized.
Keywords: Decoloniality, Decolonial, Coloniality, Bibliometric study.
Resumen: Con el objetivo de elaborar un estado del arte sobre la Decolonialidad en el contexto de los centros brasileños de producción del conocimiento, se presenta un estudio bibliométrico basado en un levantamiento de artículos publicados en revistas científicas brasileñas entre 2018 y 2022. El levantamiento arrojó una muestra de 283 artículos, los cuales fueron analizados cuantitativa y cualitativamente, permitiendo además la elaboración de un ranking de las referencias teóricas más utilizadas sobre el tema. Se observó que el reciente período analizado promovió un debate latente en los centros de investigación brasileños, incorporando, entre otros, autores y autoras latinoamericanos en sus abordajes y alterando la hegemonía europea en las producciones científicas. Este significativo avance en la perspectiva decolonial posibilita la inclusión de temáticas periféricas en el escenario científico mundial, dando lugar a problematizaciones y teorizaciones secularmente invisibilizadas.
Palabras clave: Decolonialidad, Decolonial, Colonialidad, Estudio bibliométrico.
ARTIGO
Decolonialidade: um estudo bibliométrico em artigos científicos (2018–2022)
Decolonization: a bibliometric study of scientific articles (2018–2022)
Decolonialidad: un estudio bibliométrico en artículos científicos (2018–2022)
Recepción: 08 Mayo 2024
Aprobación: 27 Enero 2025
Os estudos decoloniais produziram desconforto na tradição do conhecimento científico, pois sua perspectiva nasceu na contramão da hegemonia epistemológica europeia, provocando a necessidade de rupturas com o hegemônico e continuidades em relação à produção do conhecimento.
Quando falamos de decolonialidade, estamos dialogando e refletindo com saberes/conhecimento que tem como referência temporal o fim da II Guerra Mundial, em 1945, e que se consolida enquanto alternativa epistemológica em meados das décadas de 1970 e 1980, fazendo uso da raça1 e da cultura como eixo de discussão central. Nesse sentido, analisar a perspectiva decolonial do conhecimento requer uma breve compreensão da história, ou seja, compreender que tais estudos se estruturaram a partir de três momentos históricos.
Em um primeiro momento, marcado pelo fim da II Guerra Mundial, iniciaram-se na Ásia e na África diversos movimentos de libertação nacional e independência. Esses movimentos tiveram como lastro as lutas pela descolonização europeia. Isto é, no continente asiático, países como Índia, Paquistão, Vietnã, China, Indonésia, Camboja e Malásia lutaram por independência política, social, econômica e cultural (Ballestrin, 2017). No continente africano, diferentes movimentos tomaram países como Angola, Guiné e África do Sul, e tinham entre seus objetivos libertar estas nações da colonização europeia, o que implicava a luta por independência.
Vale ressaltar que, nesse momento, nomes como de Frantz Fanon (1925–1962), Che Guevara (1928–1967), Amílcar Cabral (1924–1973), Albert Memmi (1920–2020) e José Carlos Mariategui (1894–1930) passaram a fazer parte do debate intelectual e dos movimentos sociais que propunham uma descolonização da Europa. Nascem daí as primeiras ideias do pensamento decolonial.
O segundo momento, conforme Ballestrin (2017), é classificado por parte da academia como pós-colonialismo canônico ou pós-estrutural e tem como um dos principais percussores Edward Said (1935–2003), com a obra “Orientalismo”, publicada em 1978. A obra de Said pontuava o caráter colonizador do ocidente sobre o oriente, uma colonização que tinha como estratégia narrativas de estereotipação do oriente. Este segundo momento foi marcado pelo declínio dos estudos voltados para a categoria marxista de classe, ou seja, um momento em que somente falar de classe não era suficiente para compreender outras demandas que surgiram no mundo, tendo em vista as novas identidades, o debate sobre gênero e as diversidades culturais. Nomes como Stuart Hall (1932–2014), Homi Bhabha (1949) e Gayatri Chakravorty Spivak (1942) representaram as reflexões com perspectivas de decolonialidade.
No terceiro momento, mais contemporâneo, inicia-se uma ruptura com a tradição europeia na crítica ao colonialismo, em especial, quando nos referimos à descolonização da América do Sul (Ballestrin, 2017). Essa fase é marcada pelo debate modernidade/colonialidade, em 1998, e diz respeito ao movimento de cunho acadêmico, que tem como eixo de reflexão o reconhecimento e a valorização de uma epistemologia latino-americana, dando início a uma proposta radical de superação, mas não de negação, de epistemologias europeias.
O projeto modernidade/colonialidade impulsionado por intelectuais e acadêmicos colocou no centro de discussão a chegada da modernidade como álibi para a colonialidade. A ideia de modernidade produzida na Europa como padrão universal, econômico e cultural serviu de instrumento para consolidar o colonialismo, isto é, a colonialidade foi instrumentalizada pela ideia de modernidade implementada nas Américas, Ásia e África (Lugones, 2014; Mignolo, 2005; Quijano, 2005). Dito de outro modo, quando abordamos a categoria colonialidade estamos falando de uma fase superada do colonialismo, ou seja, a colonialidade é entendida como uma consolidação imposta pelo colonialismo. Em termos práticos, a colonialidade expressa uma ressignificação do colonialismo, com um novo modus operandi. Trata-se de uma maneira atualizada de controle do poder, do saber e do ser (Quijano, 2005; Walsh, 2009).
Conforme Bernadino-Costa, Maldonado Torres e Grosfoguel (2018, apudWynter, 2003, p. 9) ainda que a colonização tenha se encerrado, a América Latina “continua reproduzindo as lógicas econômicas, políticas, cognitivas, da existência, da relação com a natureza, que foram forjadas no período colonial”. Essa reprodução é o que pontuamos como colonialidade.
Nesse contexto, os estudos decoloniais são representados por nomes como Enrique Dussel (1934-2023), Walter Mignolo (1941-), Anibal Quijano (1928–2018), Maldonado Torres (1971-), Catarine Walsh (1967-), María Lugones (1944–2020) entre outros, que passaram a desenvolver reflexões que dão conta de uma decolonização do conhecimento, dos saberes, das tradições, do poder e do ser, tendo como elemento central para esse processo a compreensão da categoria raça na formação e estrutura do mundo moderno/colonial.
No Brasil, a obra de Ramos (1996) pode ser considerada um marco fundamental da decolonialidade nas ciências sociais. Ao subverter o eurocentrismo inerente às teorias sociais tradicionais, o autor defende a necessidade de uma sociologia nacional que reconheça e valorize as especificidades culturais e históricas das sociedades periféricas, contribuindo para a construção de um campo científico mais justo e equânime, capaz de desnaturalizar as hierarquias epistemológicas e oferecer uma compreensão profunda das realidades sociais complexas e diversas.
A decolonialidade é uma perspectiva teórico epistemológica que dialoga com saberes, conhecimentos, tradição e o pensamento ancestral, que se articula nas Américas, a partir de um olhar crítico, com as perspectivas multicultural e intercultural (Candau; Ivenicki, 2024). Trata-se de uma proposta epistemológica que supera a colonialidade do poder, do ser e do saber. Nas palavras de Santos e Meneses (2009, p. 9), “toda experiência social produz e reproduz conhecimento e, ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias epistemologias”. Desse ponto vista, quando refletimos sobre o conhecimento humano, precisamos refletir também sobre suas fontes e apreensões que impulsionam outros questionamentos, nem sempre respondidos e compreendidos. Mas, como se comportam as epistemologias? Quando devemos considerá-las? Em quais contextos se aplicam? Como é possível defini-las?
O conceito de epistemologia está relacionado ao ato de conhecer e de como esse conhecimento se estabelece (método) em forma de aprendizagem. A epistemologia é relacional, como concebe Santos e Meneses (2009, p. 9), “é toda a noção ou ideia, reflectida ou não, que conta como conhecimento válido. É por via do conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional ou inteligível”. A partir dessa concepção, as relações sociais são fonte de produção do conhecimento, ao mesmo tempo que as valida, essa validação, por sua vez, indica uma epistemologia própria daquela relação, configurada nos contornos do espaço-tempo em que foi estabelecida.
A partir dessa contextualização da perspectiva decolonial e seu impacto na produção do conhecimento científico, nos propomos a elaborar um estado da arte sobre o tema no contexto dos centros brasileiros de produção do conhecimento.
Com base no referencial apresentado na introdução deste artigo, realizamos um levantamento no portal da Scientific Electronic Library Online (SciELO Brasil) das publicações com temática na decolonialidade. Este levantamento foi realizado em junho de 2023, utilizando as palavras-chave “colonialidade”, “decolonial” e “decolonialidade”, com recorte temporal entre 2018, quando foi observada uma significativa ampliação da quantidade de publicações, e 2022, ano anterior ao levantamento. Este levantamento resultou em 454 artigos, após a exclusão dos repetidos, nossa amostra passou a contar com 283 artigos.
Com o objetivo de organizar e analisar quantitativa e qualitativamente o material levantado, recorremos à metodologia de análise bibliométrica, utilizada para a obtenção de informações essenciais do conjunto de publicações sobre determinado tema ou área científica (Hayashi; Gonçalves, 2018; Hayashi; Hayashi, 2019). Trata-se, portanto, de um estudo de natureza exploratória e descritiva, que visa a realização de um estado da arte sobre o tema “decolonialidade”.
Para organização dos dados, utilizamos um software de planilhas eletrônicas para a construção de uma matriz bibliométrica contendo variáveis quantitativas (revista, estado/local, ano, autor(es), autoria, título e área) e qualitativas (tema, questão norteadora, categoria discursiva, desafios e soluções). Para a apresentação das informações, os dados quantitativos serão apresentados em gráficos e quadros apresentados neste artigo. Em um segundo momento, procederemos a análise das informações qualitativas.
Além da construção de uma base de informações sobre os artigos cuja temática central é a decolonialidade, mostrou-se oportuno analisarmos quanti-qualitativamente quais autores e autoras serviram de fundamentação teórica para a elaboração dos 283 textos levantados.
A listagem dessas referências foi construída na medida em que as produções foram consultadas. Foram extraídas as referências bibliográficas de cada artigo e inseridas em uma planilha eletrônica. Em seguida, as referências (cerca de onze mil citações) foram organizadas em ordem alfabética e padronizadas de acordo com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
Este procedimento possibilitou a filtragem dos 112 autoras e autores mais mencionados, bem como a quantidade de vezes em que foram citados. Pela sua extensão, optamos por analisar as trinta autoras e autores mais citados, assegurando a presença de mulheres nas discussões sobre decolonialidade. Para definição da amostragem, utilizamos como critério o número de citações que correspondesse ao mínimo de 10% do quantitativo do autor mais citado (306) ou mais de trinta citações, apresentadas no Gráfico 4.
A partir da sistematização dos dados coletados no estudo bibliométrico, levantamos 283 artigos publicados com a temática da Decolonialidade no período de 2018 a 2022. No Gráfico 1 é traçada a evolução temporal dessas publicações.
O Gráfico 1 indica a evolução do número de publicações no período pesquisado. Em 2021, foram publicados 83 artigos, o que representa um aumento de 98% em relação ao ano anterior.
Os 283 artigos analisados foram publicados em 92 periódicos, conforme apresentado no Quadro 1.
Os cinco primeiros periódicos listados – Revista Estudos Feministas, Revista Direito e Práxis, Trabalhos em Linguística Aplicada, Educação & Realidade e Revista Brasileira de Linguística Aplicada – somam 82 artigos ou 29% da amostra; quarenta e oito periódicos apresentaram entre nove e duas publicações, totalizando 162 artigos (57%); e trinta e nove periódicos apresentaram uma única publicação (13%).
Em relação ao tipo de autoria, observou-se prevalência de autoria individual (40%), seguida por coautorias com dois autores (38%), três autores (15%), quatro autores (4%) e cinco ou mais autores (3%). Destaca-se que o número máximo de autores foi identificado no artigo “Vozes e fazeres do semiárido: convites à descolonização do campo científico, rumo a outras práxis”, escrito por oito pessoas e publicado na Revista Saúde em Debate. Das 581 autoras e autores envolvidas na escrita dos 283 artigos, 62% eram mulheres e 38% homens.
O levantamento apontou uma diversidade significativa das áreas do conhecimento dos periódicos (n = 23), conforme ilustrado no Gráfico 2.
Predominam os trabalhos oriundos do campo da Educação (54), seguido da área Interdisciplinar (33), Ciências Sociais (28), Linguística (27), Direito e Saúde (23 artigos em cada área). A diversidade de áreas identificadas demonstra que o tema da decolonialidade não está circunscrito ao campo da Educação ou das Ciências Sociais, uma hipótese inicialmente levantada pelo grupo que elaborou esta pesquisa.
Em relação a origem territorial dos periódicos, a região sudeste apresentou 64 revistas sediadas em três estados: São Paulo (36), Rio de Janeiro (23) e Minas Gerais (5). Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro concentraram a maior quantidade de periódicos que publicaram a temática decolonialidade (59) ou 64% da amostra..
No Gráfico 3 visualizamos a divisão dos periódicos entre os estados.
Com relação ao número de periódicos vinculados aos demais estados da amostra, Rio Grande do Sul e Distrito Federal sediam sete, Paraná cinco, Santa Catarina quatro, Bahia duas e Ceará, Paraíba e Pernambuco uma revista cada.
Para melhor analisar os artigos pesquisados e temas vinculados à decolonialidade, fez-se necessária uma síntese nas seguintes categorias discursivas: ações afirmativas, colonialidade, raça e classe, gênero, feminismos, ecologia de saberes, epistemologia, Educação, Ensino Superior, e outras.
Começamos a analisar pela categoria Ações Afirmativas presente em três artigos. No primeiro artigo (Sito, 2018), o autor aborda a necessidade de compreender práticas de letramento acadêmico entre estudantes afrodescendentes e indígenas que ingressaram no Ensino Superior com políticas de ações afirmativas.
Os dois artigos subsequentes (Borges; Bernardino-Costa, 2022; Carvalho, 2022) criticam a colonialidade do poder, perspectiva que denuncia o poder epistêmico como mecanismo de controle do conhecimento. Refletem sobre as cotas raciais para o acesso ao Ensino Superior e cotas epistêmicas nos currículos, como alternativa de descolonização do saber e prática antirracista.
As Ações Afirmativas configuram um mecanismo ou política pública que tende a atuar desde o ingresso à possibilidade de letramento, desde a compreensão de outros mundos ao entendimento de reparação política e social, o que na prática pode levar a uma ruptura epistemológica com o eurocentrismo e, assim, representar outras possibilidades de saberes.
Em artigos que tem como categoria a Colonialidade, foram tratados os desafios de superação da Colonialidade do Saber em curso de psicologia, o que constata que o emprego de uma grade curricular de matriz eurocêntrica implica em práticas racistas e sexistas. Nesse sentido, discute-se possibilidades de uma epistemologia decolonial, que supere a colonialidade do saber e supere aspectos de desigualdades sociais, raciais e de gênero, utilizando o que Mignolo (2008) denominou como “desobediência epistêmica”. Estes artigos, propõem uma compreensão histórica e espacial de mundo e, sobretudo, da América Latina, com o objetivo de superar o eurocentrismo como perspectiva universal do saber. Questões como ditadura militar/política, estudos antropológicos, temas ligados à branquitude, ao direito e a saúde estão presentes para se pensar a práxis da colonialidade como ferramenta de poder.
A categoria Raça e Classe aparece quatro vezes nos artigos pesquisados, em sua maioria, de modo interseccional com o gênero. As três categorias juntas formam um compilado de teorias que analisam e refletem sobre as desigualdades sociais, a exclusão, o racismo e o sexismo, reforçados como consequência da colonialidade patriarcal e capitalista.
Os artigos relacionados à categoria Gênero não fazem uma menção explícita ao feminismo, mas, em sua maioria, trabalham numa perspectiva interseccional, além de refletirem sobre as concepções de gênero, poder, multiplicidade e multiculturalismo.
De acordo com Silva e Vieira (2019), o poder opressivo e dominador que historicamente dominou o debate sobre as questões de gênero vem sendo transformado e rediscutido, demonstrando um caráter dinâmico aos novos saberes decoloniais. Todavia, é necessário reforçar o rompimento da lógica que caracteriza mulheres, negros, povos indígenas, pessoas LGBTQIA+ e outros sujeitos subalternizados, que possuem outras epistemologias, corporeidades e políticas, como primitivos, diabólicos e imorais (Favaro; Wedig; Corona, 2022; Hernándes García, 2019; Gomes, 2020; Mello, 2022).
Os artigos que têm a categoria discursiva central Feminismos constituem parte significativa do corpus desse estudo, com 48 artigos. A maioria apresenta críticas ao feminismo eurocêntrico e liberal, que não considera, no bojo de sua militância, a interseccionalidade entre raça, gênero e classe social. Assim, pensar no feminismo como política decolonial pressupõe a reflexão sobre a situação de mulheres racializadas e que vivem a colonialidade do poder, do ser e do saber sobre os seus corpos.
Destacamos a seção temática composta por oito artigos publicados na Revista Estudos Feministas sobre a obra de María Lugones (Bidaseca; Costa, 2022; Costa, 2022; Rodrigues, 2022; Silva, 2022; Veiga, 2022; Veiga; Bidaseca, 2022). Socióloga, professora e ativista feminista, Lugones é considerada uma das mais importantes representantes dos feminismos subalternos. Sua proposta pressupõe a construção de feminismos plurais e inclusivos, que considerem as especificidades das mulheres que vivem no Sul Global.
Nos artigos que abordam os Saberes Tradicionais ou Ecologia dos Saberes, foi possível constatar discussões que envolvem a saúde da mulher em consonância com os saberes dos povos tradicionais, haja visto, conceitos sobre menstruação e cura de patologias do cotidiano. Foram observadas a necessidade de resgatar práticas de saberes camponeses, africanos e indígenas sobre o trato com doenças e sintomas naturais do corpo feminino, uma vez que a chamada modernidade incumbiu-se de assumir esse lugar com outras práticas. Nesse sentido, discute-se o resgate de práticas cotidianas, como curar com plantas, usadas pelas mulheres camponesas de comunidades colombianas e o mapeamento de saberes e práticas comunitárias que envolvem comunidades tradicionais.
Constatamos discussões que propõem a inserção e legitimação de saberes tradicionais na academia, considerando que os encontros desses saberes subsidiam e sustentam a possibilidade de uma Educação decolonizadora.
Com exceção de um artigo publicado na área da linguística, todos os sete artigos que compõem a categoria discursiva Epistemologias foram publicados em revistas da área de Ciências Sociais, e abordam a tese da colonialidade do conhecimento. Enquanto a epistemologia define o que é considerado conhecimento válido, esses estudos questionam a imposição dos conhecimentos eurocêntricos, seguidos pelos estadunidenses, como o único quadro de referência válido a ser imposto mundialmente. Righetto e Karpinski (2021), ao discorrerem sobre a Ciência da Informação como disciplina pós-moderna que visa transcender os modelos dominantes de conhecimento, estabelecem uma conexão entre a epistemologia social e o pensamento decolonial. Darling (2020) ilustra essa perspectiva com o exemplo dos zapatistas, um grupo indígena revolucionário do estado de Chiapas, México, que possui perspectivas distintas sobre tempo, organização política e social, economia, entre outros aspectos, construindo uma outra epistemologia, denominada como “episteme zapatista”, que serve como lente para interpretar a realidade social.
Os textos da categoria Educação analisam os efeitos da hegemonia cultural eurocentrista – racista, machista, homo e transfóbica – nas instituições escolares, e suas implicações no processo de Ensino-aprendizagem e na sociabilidade de estudantes nas diferentes etapas e modalidades de Ensino, o que demanda uma descolonização de práticas, teorias, instituições, perspectivas, emoções e conexões. Isso implica ampliar o conjunto de narrativas sociais e históricas, adotando perspectivas contra-hegemônicas ou que façam referência as especificidades do Sul Global (Franco, 2022; Munoz Gañan; López Bravo; Rincón Présiga, 2021; Martins; Araujo, 2021; Pfeil; Zamora, 2021).
Os artigos que compõem a categoria Ensino Superior apresentam problematizações sobre o acesso e permanência de jovens periféricos, bem como ao fenômeno da internacionalização. As publicações partem do princípio de que o Ensino Superior é um campo diretamente relacionado ao poder – ou à colonização do poder e do saber – e que, por isso, acentua as desigualdades estabelecidas entre o Norte e o Sul Global. O acesso e permanência passam pela construção de currículos que valorizem os conhecimentos produzidos por indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas, mulheres e outras vozes não-hegemônicas. A internacionalização do Ensino Superior é concebida como fenômeno imerso na matriz cultural do poder colonial e que atua alicerçado em um imaginário global dominante (Castro, 2021; Moraes; Leal, 2021; Souza; Romagnoli, 2022).
Na categoria Outros foram enquadrados artigos com temas diversos, como artes, literatura, cultura, direito, trabalho, pandemia da Covid-19, epidemia da febre amarela, antropologia, América Latina, cooperação internacional e biografias.
Considerando as principais referências, identificamos uma lista de teóricos que contribuíram com a produção sobre decolonialidade. No Gráfico 4, identificamos Aníbal Quijano como maior referência para os textos produzidos a partir da abordagem decolonial. Ao aprofundamos a análise, compreendemos os motivos deste autor ter sido apontado como precursor das discussões sobre decolonialidade. De acordo com Ballestrin (2013, p. 99),
[...] a colonialidade do poder é um conceito desenvolvido originalmente por Aníbal Quijano, em 1989 [...], ele exprime uma constatação simples, isto é, de que as relações de colonialidade nas esferas econômica e política não findaram com a destruição do colonialismo.
Destacados no Gráfico 4, os autores: Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Arthuro Escobar (1952) estiveram envolvidos em um movimento intelectual conhecido como “giro decolonial”2,
cujas origens advém do grupo “Modernidade/Colonialidade” e podem ser remontadas à década de 1990, nos Estados Unidos. Em 1992 - ano de reimpressão do texto hoje clássico de Aníbal Quijano “Colonialidad y modernidad-racionalidad” - um grupo de intelectuais latino-americanos e americanistas que lá viviam fundou o Grupo Latino-Americano dos Estudos Subalternos (Ballestrin, 2013).
Em meio às frustrações com a universalidade do pensamento europeu e a incapacidade radicalizadora dos críticos contemporâneos, os estudos subalternos foram desenvolvidos na busca pelo aprofundamento da crítica ao eurocentrismo e da promoção de alternativas epistemológicas à produção educacional e cultural, tendo como principal força orientadora, a reflexão sobre a realidade cultural e política latino-americana, considerando, nessa conjuntura, o conhecimento subalternizado dos grupos explorados e oprimidos (Ballestrin, 2013; Escobar, 2003).
Nesse movimento histórico da intelectualidade contemporânea, descrito por Ballestrin (2013), são citados autores como: Boaventura de Sousa Santos (1940), María Lugones, Catherine Walsh, Ramón Grosfoguel (1956), Nelson Maldonado-Torres, Santiago Castro-Gómes (1958-), Rita Segato (1951-), Lélia Gonzales (1935–1994), Arturo Escobar, Edgardo Lander (1942-) e Immanuel Wallerstein (1930–2019). Estes autores foram responsáveis por contribuir com a produção do conhecimento decolonial latino-americano. A variedade de autores indica a longevidade conceitual, o dinamismo e a renovação dos estudos decoloniais.
Além de Paulo Freire e Lélia Gonzales, outros autores brasileiros ou radicados, como Rita Laura Segato, Sueli Carneiro (1950-), José Jorge de Carvalho (?), Eduardo Viveiros de Castro (1951-), Ailton Krenak (1953-), Kabengele Munanga (1940-) e Nilma Lino Gomes (1961-) mostraram-se relevantes no levantamento bibliográfico realizado.
Recorrendo os teóricos mais citados, conforme Gráfico 4, verificamos que, embora textualmente não apresente os conceitos decoloniais por suas fontes, trazem discursos indiscutivelmente ligados aos temas abordadas pelos autores dos artigos em estudo, como as norte-americanas: Kimberlé Williams Crenshaw (1959-), Patricia Hill Collins (1948-), Judite Butller (1956-) e bell hooks (1952–2021)3.
A pesquisa apresenta a utilização de referenciais teóricos, como é o caso do brasileiro Paulo Freire (1921–1997) e reforça a diversidade geográfica e epistemológica empregada nestes artigos, com a presença de intelectuais de países das Américas e de nações como Cameroon, com Achille Mbembe (1957-); Índia, com Gayatri Chakravorty Spivak; Martinica4, com Frantz Fanon; Portugal, Boaventura de Sousa Santos e França, com Michel Foucault (1926–1984).
O Quadro 2 apresenta os dez autores mais citados nos artigos analisados, o que indica importância na área da decolonialidade. A maioria é latino-americana, mostrando uma renovação na pesquisa, com foco em ideias subalternas, marginalizadas e historicamente ignoradas pela Europa.
A análise permitiu traçar um panorama das obras mais citadas nos artigos pesquisados. Assim, levantamos a nacionalidade, área do conhecimento e local de atuação dos intelectuais citados. Seguindo a classificação da Quadro 2, destacamos os textos mais citados. Em primeiro lugar, “Colonialidade de poder, eurocentrismo e América Latina” (2005), de Quijano, seguido por “Colonialidade – o lado mais escuro da modernidade” (2017) de Mignolo, “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes” (2009) de Santos e “1492 o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade” (1993), de Dussel.
Em quinto e sexto lugares, na ordem de citações, duas mulheres, Lugones (2014), com “Rumo a um feminismo descolonial” e Walsh (2009), com “Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver”. Por fim, são citados “Para descolonizar os estudos de economia política e “Estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global” de Grosfoguel (2008), “Pedagogia do Oprimido” de Freire (1987), “Em defesa da sociedade” de Foucault (2002) e “La descolonización e el giro des-colonial” de Maldonado-Torres (2008).
Na escrita deste artigo fomos surpreendidos pelo grande volume de artigos e a variedade temática que utilizaram o pensamento decolonial como referencial. Os dados demonstraram que o campo educacional é aquele que mais utiliza epistemologias distintas da ciência ocidental, compreendida como universal enquanto invisibilizou os saberes do sul global.
O estudo bibliométrico foi fundamental para evidenciar a dimensão e o alcance da decolonialidade em distintas áreas, como saúde, direito, línguas e linguagens, organizações, culturas, entre outras. Além disso, por não serem restritos a nações, países ou continentes, os estudos decoloniais possibilitam a produção de conhecimento a partir das escolhas e dos contextos sociais e culturais de seus pensadores e pesquisadores.
O levantamento bibliográfico evidenciou as bases teóricas que subsidiaram à produção científica com abordagem decolonial. Apesar de citar, nos resultados e discussões, as referências dos trabalhos com perspectiva na decolonialidade, dados os limites normatizadores de um artigo científico, não foi possível mencionar todos os teóricos citados, o que nos obrigou a manter autores e autoras na invisibilidade.
Não menos importante, é preciso considerar que a essência dos estudos decoloniais propicia uma base de discussão subalterna, àquelas temáticas que jamais teriam sido evidenciadas, não fosse o suporte teórico que mencionamos na discussão. Os estudos sobre os povos indígenas, raça, feminismos plurais e muitos outros, foram apagados por um discurso generalizante, sob o argumento de serem culturais e/ou identitários, camuflando uma pauta que não os incluíam, que não problematizava suas demandas e não propiciavam mudanças na realidade social, ficando fadados a indignidade humana e a “injustiça cognitiva”.