RESUMO
Objetivo: Sintetizar os achados sobre a quemerina e os fatores relacionados ao risco cardiovascular em crianças e adolescentes.
Fontes de dados: Realizou-se uma revisão sistemática de acordo com os itens propostos pela diretriz PRISMA nas bases de dados PubMed, Science Direct e Lilacs. Utilizaram-se os descritores chemerin de forma associada a children e adolescent, sem limite de tempo. A pesquisa limitou-se a artigos originais realizados com seres humanos, em língua inglesa, excluindo-se a população adulta e idosa, assim como os artigos de revisão, comunicação breve, cartas e editoriais.
Síntese dos dados: Após análise dos estudos por dois revisores, de forma independente, segundo os critérios de elegibilidade, permaneceram na revisão sete artigos, publicados entre 2012 e 2016. Foram incluídos estudos de delineamento transversal, prospectivo, coorte e caso-controle. A importância da adipocina quemerina nos fatores de risco para doenças cardiovasculares é demonstrada por meio de sua associação com obesidade e diabetes melito, assim como com parâmetros clínicos, antropométricos e bioquímicos. Entretanto, a força da evidência dos estudos é relativamente baixa, em função da heterogeneidade das publicações, destacando-se como limitações o número reduzido das amostras e sua ausência de representatividade, a falta de padronização dos métodos de dosagem, o delineamento transversal de grande parte dos estudos e a impossibilidade de extrapolação dos resultados.
Conclusões: A desregulação da quemerina provocada pelo aumento de tecido adiposo pode contribuir para o aparecimento de doenças cardiovasculares, sugerindo que tal adipocina tem papel relevante na identificação precoce de indivíduos em risco.
Palavras-chave: Adipocinas, Doenças cardíacas, Criança, Adolescente, Fatores de risco.
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QUEMERINA E FATORES RELACIONADOS AO RISCO CARDIOVASCULAR EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UMA REVISÃO SISTEMÁTICA
Recepção: 23 Novembro 2016
Aprovação: 14 Abril 2017
As doenças cardiovasculares lideram as causas de morte no Brasil desde a década de 1960, respondendo, nos dias atuais, por dois terços do total de óbitos.1,2 Fatores de risco cardiovascular como excesso de peso, diabetes, hipertensão arterial sistêmica e dislipidemias, que antes eram mais prevalentes em adultos e idosos, hoje também são encontrados em indivíduos mais jovens.3
É importante ressaltar que o processo aterosclerótico se inicia ainda na infância, e sua gravidade é proporcional ao número de fatores de risco agregados, progredindo com o avanço da idade.4 A disfunção endotelial que precede o desenvolvimento da aterosclerose está associada a níveis elevados de colesterol total, lipoproteína de baixa densidade (LDL) e triglicerídeos, resistência à insulina, presença de inflamação e distúrbios na secreção de adipocinas.5,6
As adipocinas são moléculas sinalizadoras secretadas pelo tecido adiposo7 e funcionam como hormônios circulantes que se comunicam com outros órgãos, tais como fígado, cérebro, sistema imune, assim como o próprio tecido adiposo.8,9 Algumas das adipocinas são consideradas marcadores de risco cardiovascular, sendo bons métodos de complementação diagnóstica. Sua associação com obesidade, dislipidemia, hipertensão arterial e resistência à insulina vem sendo observada em crianças e adolescentes.10,11
Uma das novas adipocinas identificadas, a quemerina, é uma proteína quimioatrativa, com papel na diferenciação dos adipócitos e no metabolismo da glicose.12 Ela apresenta associação com a obesidade, a inflamação e a aterosclerose,13,14 podendo ter função na relação entre o aumento da massa de gordura e o risco aterogênico precoce em crianças obesas.13
Os estudos com a adipocina quemerina em crianças e adolescentes são atuais, todavia demonstram que suas concentrações podem estar alteradas em diferentes enfermidades, mesmo em indivíduos jovens. Por ser uma descoberta recente e se apresentar como um provável marcador de risco cardiovascular, o presente estudo propôs, por meio de revisão sistemática da literatura, sintetizar os achados sobre a quemerina e os fatores relacionados ao risco cardiovascular em crianças e adolescentes.
O presente estudo foi baseado na análise de publicações referentes à associação da adipocina quemerina com fatores relacionados ao risco cardiovascular em crianças e adolescentes, conduzido de acordo com os itens da diretriz Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA).15 Os artigos foram selecionados por meio de busca eletrônica nas bases de dados MedLine/PubMed (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/), Science Direct (http://www.sciencedirect.com/) e Lilacs (http://lilacs.bvsalud.org/), com o emprego do descritor em inglês chemerin, de forma associada a children ou adolescent, indexados pelo Medical Subject Headings.
A busca foi realizada em março de 2016 por dois revisores simultaneamente, de forma independente, de acordo com as bases de dados e os critérios de busca predefinidos. A pesquisa foi limitada a artigos publicados em inglês, por não constarem nas bases de dados artigos em português. Não houve delimitação quanto ao ano de publicação, considerando que a descoberta dessa adipocina é recente e os trabalhos que a relacionam com a faixa etária pesquisada são escassos na literatura.
Adotaram-se como critérios de inclusão:
Trabalhos originais.
Realizados em seres humanos.
Conduzidos com crianças e/ou adolescentes.
Artigos em inglês.
Com conteúdo relativo à quemerina e aos fatores relacionados ao risco cardiovascular.
Os critérios de exclusão foram:
Trabalhos não originais, como revisão, comunicação breve, cartas e editoriais.
Conduzidos em adultos e idosos.
Realizados com modelos animais.
Estudos in vitro.
Artigos em idioma diferente do inglês.
Não relacionados ao tema em questão.
Após as pesquisas nas bases de dados, foram identificados 180 trabalhos sobre o tema. Inicialmente, realizou-se uma análise por títulos relacionados ao tópico para a eliminação dos artigos repetidos ou que não preenchessem os critérios de inclusão. Em seguida, procedeu-se à leitura detalhada dos resumos dos artigos selecionados, excluindo as publicações que não atendessem aos objetivos definidos, o que resultou em 11 estudos para leitura integral, após a pré-seleção.
Posteriormente, os textos selecionados foram lidos na íntegra e fichados. Os fichamentos foram analisados por dois avaliadores, de modo independente, para verificar se obedeciam aos critérios de inclusão na revisão. Os resultados discrepantes foram reavaliados pelos examinadores. Dessa forma, permaneceram na revisão sete artigos originais, publicados entre 2012 e 2016 (Figura 1), os quais foram sintetizados e organizados nos Quadros 1 e 2 para melhor compreensão.



Encontram-se resumidas, no Quadro 1, as informações referentes ao local do estudo, ao desenho e à composição da amostra e, no Quadro 2, os dados relacionados ao método de diagnóstico, aos valores da quemerina encontrados e aos principais achados dos sete estudos incluídos, em ordem de publicação.
Das publicações inseridas nesta revisão, três apresentam delineamento transversal,9,16,17 dois são casos-controle,18,19 um é estudo prospectivo20 e um, de coorte.13 Os estudos foram publicados em diversos países, sendo todos compostos de amostras internacionais, provenientes da Holanda,9,16 do Irã,18,19 da Alemanha,13 do Egito17 e dos Estados Unidos.20 Após a busca pelos descritores, nenhuma publicação nacional que contemplasse o tema pretendido foi identificada nos bancos de dados. Entre os trabalhos incluídos, quatro se referiam ao fator de risco obesidade13,16,18,19 e três ao fator de risco diabetes melito tipo 1;9,17,20 quatro incluíam crianças e adolescentes9,13,16,20e três, somente adolescentes,17,18,19com idades variando entre 2 e 19 anos.
A dosagem da quemerina foi realizada por meio de soro, utilizando-se duas técnicas diferentes: Imunoensaio Multiplex9,16 e ELISA.13,17,18,19,20 Como as concentrações da quemerina foram descritas em unidades de medida diferentes, realizaram-se conversões para facilitar o processo de comparação entre os trabalhos. Desse modo, adotou-se a medida ng/mL para este estudo, e as concentrações da quemerina variaram de 89,8±16,1 ng/mL a 2.800±400 ng/mL nos eutróficos; de 117,8±26,4 ng/mL a 3.000±500 ng/mL nos obesos; e de 125,1 ng/mL (105,8-141,2) a 274,44±64,58 ng/mL nos diabéticos, refletindo valores bem discrepantes. Acredita-se que a utilização de diferentes métodos e kits de diagnóstico para a dosagem justifique a divergência de valores. Todavia, os níveis de quemerina foram maiores entre os jovens com obesidade e diabetes do que entre os controles.
A maioria dos trabalhos encontrados avaliou o perfil inflamatório, incluindo, além da quemerina, outras adipocinas e citocinas pró-inflamatórias.9,16,17,20 Os estudos utilizaram variáveis antropométricas, clínicas e bioquímicas para identificar e categorizar o estado nutricional e de saúde dos indivíduos. As variáveis mais investigadas nas publicações foram: índice de massa corpórea (IMC) por idade, perímetro de cintura, relação cintura-quadril, proteína C reativa-ultrassensível (PCR-US), colesterol total e frações.
A importância da adipocina quemerina nos fatores de risco para doenças cardiovasculares é demonstrada por meio de sua associação com a obesidade e o diabetes, assim como com os parâmetros clínicos, antropométricos e bioquímicos. Entretanto, a força da evidência dos estudos é relativamente baixa, em função da variação metodológica das publicações.
Os estudos inseridos demonstraram, além de maiores valores da adipocina entre as crianças e os adolescentes com obesidade e diabetes, associação entre a quemerina e a relação cintura-quadril, as dobras cutâneas, o perímetro de cintura e de quadril, o percentual de gordura corporal, a massa de gordura corporal, a PCR-US, a leptina, a vaspina e o número de glóbulos brancos. Tal associação foi positiva e também encontrada com os componentes do perfil lipídico: colesterol total, triglicerídeos, LDL e lipoproteína de baixa densidade oxidada (LDL-ox). Em contrapartida, observou-se associação negativa com lipoproteína de alta densidade (HDL) e adiponectina.9,13,16,17,18,19,20
Apesar de ter sido identificada pela primeira vez em 1997,21 a quemerina só foi reconhecida como adipocina em 2007.22 Desse modo, poucos são os estudos que abordam a adipocina em crianças e adolescentes. A maioria das publicações é conduzida na população adulta, em modelos animais ou se refere a estudos realizados em culturas in vitro de células. As pesquisas em adultos evidenciam seu papel na síndrome metabólica, na obesidade, no diabetes, nas doenças cardiovasculares, na doença de Crohn, na artrite, na síndrome do ovário policístico, nas hepatopatias, na doença renal crônica e no câncer.22,23,24,25,26,27 De acordo com os nossos conhecimentos, esta é a primeira revisão em português que relaciona a adipocina quemerina aos fatores associados ao risco cardiovascular em crianças e adolescentes.
A identificação precoce dos fatores de risco é de grande valia na prevenção do aparecimento de doenças cardiovasculares na vida adulta, pois, apesar de as manifestações clínicas dessas doenças, como o acidente vascular encefálico e o infarto do miocárdio, serem comuns a partir da meia idade,28 há indícios de que o processo aterosclerótico se inicia ainda na infância, progredindo gradualmente.4
A aterosclerose vem sendo reconhecida como doença inflamatória, em que se observa a presença de células características do sistema imune, tais como leucócitos, monócitos e macrófagos, na lesão esclerótica.28 É interessante observar que a inflamação crônica pode ser considerada a ligação entre o processo aterosclerótico e a obesidade, visto que o tecido adiposo está intrinsecamente envolvido na gênese inflamatória. Estudos atuais demonstram que esse tecido não é responsável somente pelo armazenamento de energia, sendo um órgão metabolicamente ativo, com atividades endócrinas e parácrinas, que produz inúmeras substâncias, dentre elas as adipocinas com funções pró ou anti-inflamatórias.7,11,29,30
A literatura ressalta que a tríade inflamação/obesidade/resistência à insulina se manifesta em conjunto, contribuindo para o desenvolvimento das doenças cardiovasculares, e que a manutenção da obesidade por períodos prolongados está associada ao aparecimento dos marcadores inflamatórios.31 No entanto, outro achado indica que os mecanismos inflamatórios que ligam a obesidade a complicações metabólicas e cardiovasculares já se encontram ativados na obesidade infanto-juvenil, devido à presença de concentrações mais elevadas das adipocinas pró-inflamatórias nessa população, quando comparada a crianças e adolescentes eutróficos.16
Nesse contexto, destacam-se, nos últimos anos, os estudos sobre a quemerina, uma adipocina envolvida na resposta imune inata e adaptativa, codificada primeiramente em sua forma precursora, com baixa atividade biológica32,33,34,35 e que, ao ser ativada, desencadeia defesas rápidas no corpo por meio do direcionamento de células dendríticas e macrófagos para o tecido lesionado e os locais de inflamação.36 Em adultos, a quemerina vem sendo associada à síndrome metabólica, à obesidade, ao diabetes e às doenças cardiovasculares.23,24,25,26,27 Já em crianças e adolescentes, os estudos inseridos nesta revisão demonstram que as concentrações séricas da adipocina estão associadas à obesidade, ao diabetes, aos componentes do perfil lipídico e à inflamação vascular prematura.9,13,16,17,18,20
A quemerina e seu receptor CMKLR1 formam uma rede complexa envolvida na regulação da resposta imunológica, podendo contribuir tanto para o início quanto para a cessação da inflamação aguda.37 Diversos mecanismos, que incluem expressão, secreção e processamento, regulam a sinalização da quemerina, e sua coordenação é essencial para determinar os níveis, a localização e a atividade da adipocina.38 Os receptores da quemerina - CMKLR1, GPR1 e CCRL2 - apresentam-se bem distribuídos nos tecidos, e a diversidade dessa localização pode contribuir com os mecanismos de sinalização comuns e independentes para a quemerina bioativa e, consequentemente, suas funções biológicas.38
No tecido inflamado ou lesado, a quemerina apresenta ação localizada. A elevação de seus níveis nos tecidos pode favorecer diretamente a inflamação por meio do recrutamento de células do sistema imune. Adicionalmente, a quemerina aumenta a expressão e a secreção de mediadores inflamatórios para o local inflamado.38 Entretanto, ainda não há consenso se a quemerina está envolvida no início ou na manutenção do processo inflamatório.
Além das funções no sistema imune, a quemerina participa da regulação do metabolismo e da diferenciação dos adipócitos, aumentando a massa corporal, o que pode explicar suas concentrações mais elevadas em indivíduos obesos e sua associação com os parâmetros relacionados à obesidade.9,34,39,40 A sinalização da quemerina é essencial durante a fase de hiperplasia - diferenciação de pré-adipócitos em adipócitos.38 Ademais, a elevação das concentrações dessa adipocina no tecido adiposo contribui para o recrutamento de células imunes, consequentemente aumentando a expressão de mediadores inflamatórios como PCR-US, interleucina 6 (IL-6) e fator de necrose tumoral alfa (TNF-α).25 O tecido adiposo branco ativo, em termos de número de células, capacidade de armazenamento de gordura e função endócrina, é constituído, em grande parte, nos estágios iniciais da vida, o que é fundamental para moldar seu comportamento pró-inflamatório.41
Nas pesquisas revisadas, jovens obesos apresentaram maiores níveis séricos da adipocina quando comparados aos eutróficos.13,16,18,19 Landgraf et al.13 encontraram concentrações em torno de 30% maiores da adipocina em jovens obesos. As concentrações da quemerina se correlacionaram positivamente com diferentes parâmetros relativos à obesidade, como IMC por idade, relação cintura-quadril, leptina e dobras cutâneas, tanto em crianças quanto em adolescentes.13,16 Tais correlações podem ser explicadas pelo aumento do tecido adiposo abdominal/visceral, apontado por diversos autores como o maior contribuinte para a variação dos níveis séricos da quemerina.23,42
Em estudos conduzidos somente com adolescentes do sexo feminino no estágio pós-púbere, Maghsoudi et al.18,19 constataram que aquelas com aumento de gordura abdominal mostravam maiores níveis séricos da adipocina. Além disso, foram verificadas associações entre as concentrações da quemerina e os índices de obesidade geral e abdominal (perímetro de cintura, perímetro de quadril, relação cintura-quadril, massa de gordura corporal e percentual de gordura corporal)18 e os componentes do perfil lipídico (triglicerídeos, LDL e colesterol total).19 Apesar de não serem observadas diferenças entre os sexos com relação aos níveis da quemerina na literatura,13,16,17 o fato de adolescentes do sexo masculino não serem incluídos na amostra constitui uma limitação do estudo.
Uma provável explicação para a associação da quemerina com os níveis dos componentes do perfil lipídico reside em sua ação no metabolismo de lipídios no fígado, no músculo esquelético e no tecido adiposo e na estimulação da lipólise nos adipócitos.19,43 Sugere-se que a quemerina tenha participação na regulação das enzimas responsáveis pelo metabolismo lipídico, por meio da redução da acumulação de monofosfato cíclico de adenosina (AMP cíclico) e da estimulação da liberação de cálcio em adipócitos.19 Diversos estudos associam os componentes do perfil lipídico com as doenças cardiovasculares.21,44 Particularmente, o produto de peroxidação lipídica, LDL-ox, encontra-se presente nos estágios iniciais da aterosclerose.17 Tais partículas estimulam o aparecimento de moléculas de adesão no endotélio, as quais iniciam o processo inflamatório que origina a aterosclerose.42 Em contrapartida, o HDL apresenta efeito protetor no endotélio, devido a sua função no transporte reverso do colesterol, prevenindo a oxidação da LDL e, consequentemente, reduzindo seu potencial aterogênico.24,44,45
Juntamente com os níveis elevados de lipídios séricos, as alterações evolvidas no diabetes, como hiperglicemia e resistência à insulina, exercem importante papel na gênese das doenças cardiovasculares. As publicações encontradas demonstraram níveis de quemerina mais elevados em jovens com diabetes tipo 1 em comparação com os controles saudáveis. Em indivíduos com diabetes de início recente, as concentrações da adipocina também são mais elevadas.9,17,20 Curiosamente, observa-se associação da quemerina com a resistência à insulina tanto em jovens eutróficos quanto em obesos.16
Redondo et al.20 demonstraram que crianças e adolescentes obesos com diabetes tipo 1, mesmo de início recente, apresentam um perfil de adipocinas e citocinas circulantes pró-inflamatórias que pode contribuir para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares e de complicações diabéticas. Os autores encontraram níveis circulantes de quemerina mais elevados nas crianças com diabetes tipo I obesas, nas maiores de 10 anos e naquelas com maiores níveis de hemoglobina glicada.20 Apesar de os mecanismos de ação da adipocina no metabolismo da glicose ainda não terem sido completamente elucidados, parece haver duas hipóteses para explicar sua atuação:
O aumento do nível de quemerina em jovens diabéticos pode ser resultado de uma resposta compensatória à resistência à insulina ou também o fator causal de tal resistência. A presença precoce de baixo grau de inflamação e do estresse oxidativo modulado pela quemerina predispõe à aceleração da aterosclerose.17 Sabe-se que essa adipocina possui ação no metabolismo da glicose no fígado, no músculo esquelético e no tecido adiposo, promovendo a regulação da absorção de glicose e modulando a secreção e a sensibilidade à insulina.6,9,34 Ademais, tem sido destacado seu papel na homeostase das células beta-pancreáticas.22,46
Outra associação encontrada nos estudos foi com a PCR-US, indicando relação da quemerina não só com a obesidade, mas, principalmente, com a inflamação sistêmica.13 As citocinas inflamatórias liberadas pelo tecido adiposo estimulam a síntese de proteína C reativa no fígado,47 observada em tecidos inflamados, assim como em vasos ateroscleróticos e no miocárdio após infarto.28 Adicionalmente, a proteína C reativa participa de forma direta no processo de aterogênese e modula a função endotelial.11
Apesar de o papel da quemerina na inflamação ser consenso, ainda não há indícios de sua real influência no processo, principalmente pela falta de dados sobre suas diferentes isoformas, que assumem distintas funções.48 Após sua secreção, a pró-quemerina passa por processamento proteolítico, o que determinará sua ativação ou desativação.49 Dependendo da classe da protease ou do local da clivagem, podem ser produzidos fragmentos de quemerina inativos ou com ação pró ou anti-inflamatória.37 A maior parte da quemerina circulante encontra-se em forma inativa, como pró-quemerina, convertida à forma ativa quando necessário.50 A proporção entre as isoformas ativa e inativa é determinante para a bioatividade da quemerina.38
Independentemente de diversos estudos trazerem descobertas recentes sobre a quemerina, muitas delas ainda são inconclusivas, o que dificulta o entendimento das suas ações e funções no organismo. Poucas publicações abordam a associação dos níveis séricos da quemerina com os fatores relacionados ao risco cardiovascular em crianças e adolescentes. Essa limitação pode ser resultado da dificuldade em conduzir um trabalho com esse público. No entanto, pode-se observar que crianças e adolescentes não apresentam interferência de alguns fatores observados em adultos, como tabagismo, etilismo e doenças crônicas já instaladas.
Como poucos estudos elucidativos foram realizados a respeito dessa adipocina, algumas diferenças encontradas entre os níveis de quemerina nas publicações ainda não foram esclarecidas. Alguns autores sugerem que essa discrepância pode ser atribuída às diversidades étnicas e ambientais ou aos distintos métodos de coleta e armazenamento das amostras.39 Consequentemente, não foram propostos, até o momento, valores de referência que possam diagnosticar alterações da adipocina em crianças e adolescentes. A não existência de consenso na literatura a respeito dos valores de referência para a quemerina nessa faixa etária é um dos motivos que dificultam a comparabilidade entre os estudos. Entretanto, apesar das discrepâncias no método de dosagem e da ausência de valores de referência, todos os estudos mostraram valores mais elevados da quemerina entre obesos e diabéticos.
A despeito da dificuldade em comparar os trabalhos, alguns pontos merecem destaque. As publicações encontradas mostraram-se heterogêneas quanto à amostra, apresentando número amostral reduzido e baixa representatividade, variando de 50-174 indivíduos, o que impossibilita estabelecer generalizações e determinar conclusões consistentes. Alguns estudos avaliaram ampla faixa etária, incluindo tanto crianças quanto adolescentes, não considerando as diferenças relativas ao crescimento, ao desenvolvimento e à maturação característicos de tais fases e que podem influenciar na presença ou ausência de fatores de risco para doenças cardiovasculares. Além desses fatores, destacam-se as diferenças étnicas, uma vez que os estudos foram realizados em cinco países distintos, localizados em quatro continentes, cada qual com características populacionais próprias. Outro item discrepante diz respeito à falta de padronização do método de dosagem da adipocina e da unidade de medida utilizada. O uso de diferentes metodologias diagnósticas não permite adequada comparabilidade entre os trabalhos. Ademais, os kits comerciais disponíveis para análise da adipocina não conseguem distinguir entre as isoformas ativa e inativa da quemerina - o que representa uma limitação à pesquisa. O local de clivagem pelas diferentes classes de protease tem papel determinante nas concentrações sistêmicas e na atividade biológica da quemerina.51,52 O delineamento dos estudos também interfere na comparação entre eles. Pelo fato de a maioria das publicações ser transversal, não é possível estabelecer relação de causa e efeito entre as associações. Tais limitações impossibilitam a extrapolação e a generalização dos resultados para outras populações.
Os estudos sobre a quemerina e sua associação aos fatores de risco para doenças cardiovasculares ainda são limitados e escassos. Os resultados compilados nesta revisão permitem concluir que a desregulação da quemerina provocada pelo aumento de tecido adiposo pode contribuir para o aparecimento de doenças cardiovasculares, sugerindo que tal adipocina tem papel relevante na identificação precoce de indivíduos em risco.
*Autor correspondente. E-mail: vanessa.fontes@outlook.com (V.S. Fontes).


