RESUMO
Objetivo: analisar o atendimento pela telemedicina em Vitória/ES de abril/2020 a mar/2021.
Método: estudo de caso ancorado na categoria acesso de Thiede et al. e em dados secundários. Utilizaram-se relatórios das consultas de telemedicina da Rede Bem Estar. Incluíram-se todas as 29 Unidades Básicas de Saúde do município.
Resultados: no período foram atendidos 15.548 usuários, 64% do sexo feminino (9.953) e 36% do masculino (5.595), em 21.481 consultas. O grupo etário mais atendido foi o de 30-39 anos (19,5%). O número por 10.000 hab. para todas as causas oscilou entre 35,86/10.000 hab. de out-dez/2020 e 65,75 de abr-jun/2020. Destes atendimentos, 56% (11.946) foram coronavírus (causas B342 e B972), sendo, 22,54 consultas por 10.000 hab. de out-dez/2020 e 31,96 de abr-jun/2020.
Conclusões: Os resultados refletem o impacto transformador da Covid-19 nos cuidados à saúde por telemedicina como parte da resposta de primeira linha à pandemia no município de Vitória/ES. As desigualdades no acesso presencial se reproduzem na telemedicina, o que torna imprescindível manter um relacionamento forte entre o sistema de saúde, as equipes de saúde e os usuários na implantação da telemedicina. As duas formas permanecem interdependentes e complementares na busca de garantia do acesso equitativo em saúde.
PALAVRAS-CHAVE: Telemedicina, Covid-19, Acesso aos serviços de saúde, Atenção Primária à Saúde, Sistemas de informação em saúde.
ABSTRACT
Objective: to analyze telemedicine care in Vitória, Espírito Santo, Brazil, from April 2020 to March 2021.
Method: based on Thied et al.’s dimensions of access, a case study was conducted using secondary data collected from the Bem Estar Network’s telemedicine reports. All 29 Basic Health Units of the municipality were included.
Results: a total of 15,548 users were assisted in 21,481 consultations, 64% female (9,953) and 36% male (5,595). The most attended age group was 30-39 years old (19.5%). The number per 10,000 inhabitants for all causes ranged between 35.86/10,000 inhabitants from Oct-Dec/2020 and 65.75 from Apr-Jun/2020. Of these calls, 56% (11,946) targeted coronavirus (causes B342 and B972), ranging from 22.54 consultations per 10,000 inhabitants in Oct-Dec/2020 to 31.96 in Apr-Jun/2020.
Conclusions: Results reflect the transformative impact COVID-19 had on telemedicine care as part of the first-line response to the pandemic in Vitória, Brazil. Inequalities in face-to-face access are reproduced in telemedicine, making it essential to maintain a strong relationship between the health system, health teams, and users when implementing telemedicine. Both forms of health care remain interdependent and complementary in the search to ensure equitable access to health.
KEYWORDS: Telemedicine, COVID-19, Health services accessibility, Primary Health Care, Health information systems.
ARTIGO ORIGINAL
A telemedicina no combate à Covid-19: velhos e novos desafios no acesso à saúde no município de Vitória/ES, Brasil
Telemedicine in the fight against COVID-19: old and new challenges in access to health in Vitória/ES, Brazil
Recepção: 24 Setembro 2021
Aprovação: 23 Junho 2022
A Covid-19 foi declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 20201. Desde então a doença tem provocado uma urgência na saúde global, com uma rápida evolução2 e consequências gravíssimas sem precedentes3-5. As principais medidas utilizadas pelos países para mitigar sua propagação e reduzir a sobrecarga dos sistemas de saúde foram: higiene das mãos, distanciamento social, isolamento dos casos e quarentena dos contatos, restrições em viagens não essenciais, medidas de proteção social que abrangem políticas de proteção econômica, de segurança alimentar e de fechamento de escolas, entre outras6-9.
As restrições à mobilidade impostas no enfrentamento da Covid-19 impulsionaram importantes transformações nas formas de organização e prestação dos serviços nos sistemas de saúde no mundo, sendo a saúde digital a principal propulsora destas mudanças10-14. A saúde digital refere-se ao uso de tecnologias (digitais, móveis e sem fio) para apoiar a execução dos objetivos de saúde15. Também é definida como o uso de tecnologias da informação e comunicação para contribuir na melhoria da saúde humana, na prestação dos serviços de atenção à saúde e no bem-estar de indivíduos e populações16.
Para a OMS a saúde digital é descrita como uso geral das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e abrange: a saúde eletrônica ou e-Saúde (eHealth em inglês, também conhecida como cibersaúde)17 definida como o uso custo-eficaz e seguro das TIC no setor de saúde15,18; e, ainda, a saúde móvel ou m-Saúde (mHealth em inglês) para descrever a utilização das tecnologias móveis e sem fio, na saúde pública15,19. O termo e-Saúde constitui um marco de referência importante neste campo18-20, mas a tendência predominante é o uso do termo saúde digital15,21-24 (OMS. Digital health. https://www.who.int/health-topics/digital-health#tab=tab_1). Neste artigo os termos e-Saúde e saúde digital serão utilizados como sinônimos para nos referirmos ao uso das TIC no setor de saúde17,21.
Dentre os principais componentes de e-Saúde destacam-se: o registro médico eletrônico ou prontuário clínico eletrônico; telessaúde (incluída a telemedicina); a estratégia m-Saúde ou saúde por dispositivos móveis; eLearning (incluída a formação à distância); educação continuada em TIC; estandardização e interoperabilidade, entre outros17,20.
Destes componentes, a telessaúde ou prestação de serviços para o tratamento, diagnóstico e processamento de imagens através do uso das TIC25,26, mais especificamente a telemedicina ou comunicação síncrona, audiovisual e à distância entre um paciente e um profissional de saúde, estão sendo utilizadas em vários países para organizar respostas na Atenção Primária à Saúde (APS) durante a pandemia12,13,27-31.
Embora a telemedicina não seja uma solução perfeita para todos os cenários29, no combate à pandemia tem apresentado potencialidades inestimáveis para a APS porque permite: a) identificar casos e fazer rastreamento dos contatos, apoiando a detecção antecipada de casos através dos sistemas de vigilância existentes; b) melhorar significativamente a triagem, a coordenação do atendimento para pacientes com Covid-19 confirmado13,28 através do seguimento dos casos leves e moderados e o encaminhamento dos casos graves, especialmente nas áreas mais vulneráveis28; c) atender as urgências decorrentes da Covid-1912; d) melhorar o acesso aos serviços regulares, respondendo às necessidades de cuidados contínuos de saúde de pacientes não Covid com outras comorbidades (por exemplo, doenças crônicas)29,30; e) proteger os pacientes de alto risco (idosos e aqueles com outras comorbidades), ao reduzir sua exposição nas unidades de saúde que podem ser frequentadas por pessoas com infecção aguda por Covid-1927; f) proteger ativamente os profissionais de saúde ao diminuir as interações entre paciente e provedor, minimizando o risco de transmissão de Covid-19 entre indivíduos infectados27,31; g) evitar a superlotação das unidades de saúde e diminuir o risco de transmissão ao reduzir as visitas presenciais29,30, entre outras.
No Brasil foram desenvolvidas, através do Sistema Único de Saúde (SUS), várias iniciativas baseadas na telessaúde e na telemedicina para melhorar a resposta à Covid-19, tanto no Ministério de Saúde como em várias secretarias estaduais e municipais de saúde26. A Lei nº 696/2020 de 15 de abril de 202032 trouxe uma inovação na aplicação da telemedicina no País ao autorizar, enquanto durar a crise da pandemia, o uso da telemedicina nas diferentes atividades da área de saúde do Brasil, incluindo a teleconsulta.
Contudo, esta inovação surge em um cenário pouco alentador, devido a que o Brasil tem apresentado uma das piores respostas à Covid-1933, caraterizado pela ausência de ações articuladas e de coordenação; o negacionismo da ciência; a simplificação da pandemia e seus impactos; a promoção do uso de tratamentos sem quaisquer evidências científicas; a recusa de alguns segmentos à instituição das intervenções não farmacológicas internacionalmente recomendadas, entre outras33-36. Em 24/08/2021, o Brasil ocupava a terceira posição entre os países com maior número de casos, 20.570.891, e a segunda em mortalidade, com 574.527 (OMS. WHO Coronavirus - COVID-19 - Dashboard. https://covid19.who.int).
O município de Vitória no Espírito Santo (Vitória/ES) foi pioneiro na implantação da saúde digital com a Rede Bem Estar (RBE), software de gestão de saúde desenvolvido pelos servidores municipais da Subsecretaria de Tecnologia da Informação (Sub-TI). Desde 2009 a RBE interliga em um único sistema os equipamentos da rede municipal de saúde: Unidades Básicas de Saúde (UBS), pronto-atendimentos, laboratórios de análises clínicas, farmácias, consultórios odontológicos, centros de especialidades e centros de referência.
Dentre as estratégias para o enfrentamento à Covid-19, a Secretaria Municipal de Saúde (Semus) de Vitória/ES implantou em março de 2020 a telemedicina através da central 156 visando garantir o acesso da população aos serviços de saúde, assim como facilitar o isolamento populacional e a otimização da infraestrutura da assistência presencial para casos prioritários37. A estratégia foi regulamentada através da Nota Técnica nº 0007/2020 de 24 de março de 202037.
O presente artigo tem como objetivo analisar o atendimento através da estratégia de telemedicina no contexto de Vitória/ES durante o período de abril/2020 a março/2021 e discutir aspectos da experiência que subsidiem a reflexão sobre as potencialidades e desafios emergentes no combate à Covid-19.
Trata-se de um estudo de caso ancorado na categoria acesso de Thiede et al.38, nas orientações sobre saúde digital, telessaúde e telemedicina propostos pela OMS e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas)15,17,18,21,23,39 e em estudos similares desenvolvidos em outros países12,13,27-31. A partir destas fontes documentais e dados secundários procurou-se compreender o processo de atendimento através da estratégia da telemedicina implantada nas UBS do município de Vitória/ES para o enfrentamento à Covid-19. A seleção de Vitória se deu pelo seu diferencial com a implantação da RBE e pela disponibilização dos bancos de dados quando da aprovação da pesquisa pela Semus. O trabalho presencial foi substituído por reuniões on-line.
Utilizaram-se os registros referentes aos atendimentos de telemedicina realizados à população residente no município de Vitória, através da central 156. As variáveis analisadas foram: data do atendimento; hora do atendimento; tipo de profissional; idade; sexo; raça/cor; UBS de origem do paciente; código e descrição da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10); classificação de risco; classificação, encaminhamentos e documentos gerados no último monitoramento.
O estudo incluiu as 29 UBS do município e considerou o período de 1º abril de 2020 a 31 de março de 2021, utilizando dados do relatório ‘Telemedicina - Atendimentos Realizados’ da RBE40. Também foram utilizados documentos oficiais sobre o processo de implantação da telemedicina no município no ano 202032,37,41,42, consultas à Sub-TI, discussões nas oficinas virtuais (por Zoom, Meet ou WhatsApp) e mensagens em correio eletrônico trocadas com as equipes das instâncias de gestão ou indicadas por terem maior conhecimento do processo.
Os atendimentos por 10.000 hab. foram calculados para o município e regiões de saúde tendo como numerador as médias trimestrais dos atendimentos por telemedicina segundo a UBS de origem do usuário e como denominador o número de habitantes residentes por bairros/setores para 2020 segundo as projeções mais recentes do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 201043. Dessa forma, foram minimizadas eventuais flutuações aleatórias que podem acontecer nas regiões de saúde com pequenos denominadores, como possíveis erros de notificação. No cálculo dos atendimentos por Covid-19 por 10.000 hab., o numerador se constitui pelas médias trimestrais dos atendimentos classificados com os códigos da CID-10: B342 (Infecção por coronavírus de localização não especificada) e B972 (Coronavírus, como causa de doenças classificadas em outros capítulos) e como denominador, o número de habitantes residentes por bairros/setores para 2019, segundo projeções do censo do IBGE 201043. Realizou-se a análise descritiva dos dados a partir das variáveis selecionadas representadas em tabelas e gráficos desenvolvidos nos programas Microsoft Excel® 2020 e Microsoft Word® 2020.
Os resultados foram analisados a partir das orientações sobre saúde digital, telessaúde e telemedicina da OMS/Opas15,18,21,23,39 (descritos na introdução do artigo); em estudos similares desenvolvidos em outros países12,13,27-31; e no arcabouço teórico sobre o acesso38. Estes autores consideram a multidimensionalidade do acesso, através do uso de três dimensões (disponibilidade, viabilidade financeira e aceitabilidade). Os fatores que influenciam o acesso são agrupados e explorados em cada dimensão de forma sistemática nos diferentes níveis (do sistema de saúde e dos indivíduos ou famílias).
As três dimensões (disponibilidade, viabilidade financeira e aceitabilidade) são interdependentes e ao mesmo tempo separáveis conceitualmente, porque cada uma delas está delimitada e concentra fatores estreitamente associados entre si. Os autores definem o acesso como o ‘grau de adequação’ entre o sistema de saúde e seus usuários, ou seja, o acesso se dá na interação comunicativa entre os fatores do sistema de saúde e os fatores individuais ou familiares em cada dimensão38.
A dimensão disponibilidade inclui serviços de saúde apropriados à disposição dos usuários, no local e no momento em que são requeridos pelos usuários. Abrange a relação entre a localização dos serviços de saúde e seus usuários (distância), as opções de transporte; o grau de adequação dos horários; o tipo, a quantidade e qualidade de serviços de saúde prestados; a composição de cada equipe; disponibilidade de equipamentos e suprimentos38.
A viabilidade financeira se refere ao grau de adequação entre o custo da utilização dos serviços de saúde e a capacidade de pagamento dos indivíduos. Um ponto fundamental desta dimensão é conhecer como se dá a interação dos custos dos serviços de saúde e a capacidade de pagamento das famílias, com a finalidade de evitar a geração de custos sociais com efeitos catastróficos nos grupos populacionais mais vulneráveis38.
A dimensão aceitabilidade, entendida como “a distância social e cultural entre os sistemas de saúde e seus usuários”44(163), abrange três componentes: a adequação entre as convicções de usuários e profissionais sobre a saúde; o compromisso e diálogo entre prestador e usuário; e a influência dos arranjos organizacionais na decisão dos usuários sobre buscar ou não atendimento e em que lugar. Deste modo, as melhorias no acesso dependem da interação comunicativa entre os atores envolvidos38. Esse processo dinâmico representa o potencial de interagir e fazer ajustes que possibilitem um melhor funcionamento do sistema de saúde, além de ser o eixo norteador da promoção do acesso equitativo38.
Os resultados do estudo estão limitados ao município de Vitória/ES e as análises consideram os atendimentos feitos pela central 156.
Este estudo faz parte de uma pesquisa financiada pelo Inova-Fiocruz e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Ensp-Fiocruz (CAAE 28140619.0.1001.5240) e pela Comissão Técnica de Pesquisa da Prefeitura Municipal e da Semus Saúde MV/Semus.
Vitória, junto com outros 19 municípios integra a Região Metropolitana de Saúde do estado de Espírito Santo (ES), é a capital e a quarta cidade mais populosa dos 78 municípios do estado, com 365.855 habitantes e uma densidade demográfica de 3.766,92 hab./km (IBGE, 2020 https://cidades.ibge.gov.br/brasil/es/vitoria/panorama). A organização da atenção à saúde abrange seis regiões de saúde (Santo Antônio; Maruípe; Forte de São João; Continental e Centro); vinte e nove Territórios de Saúde/UBS (TS/UBS) e setenta e nove bairros.
A Semus de Vitória mediante a Nota Técnica nº 0007/2020, de 24 de março de 202037, instituiu a telemedicina através da central 156 como uma das estratégias para o enfrentamento à Covid-19. Foi disponibilizado o serviço de teleconsulta, telemedicina, teleorientação e telemonitoramento com foco na ampliação da assistência e do acesso da população à saúde para a estratificação de risco, identificação precoce e direcionamento adequado dos casos graves37.
A central 156 oferece informações para orientar os usuários e permitir acesso à avaliação médica de forma segura e qualificada37,41. O atendimento (figura 1) é iniciado pelo enfermeiro com o auxílio de um formulário específico de perguntas e respostas fechadas e autorreferidas pelo usuário (cheklist) com o intuito de identificar possíveis síndromes gripais, vínculo epidemiológico, orientações gerais e específicas, entre outros. Se for identificada uma demanda clínica, a ligação é transferida para avaliação médica. Os profissionais também podem, através da central 156, transferir ligações para avaliação clínica pelos médicos.

No período analisado o atendimento clínico da telemedicina foi realizado exclusivamente por médicos em home office. Para responder à demanda foram incluídos médicos de toda a rede de saúde com diferentes especialidades. Em abril de 2020 foi criado na RBE o ‘Escritório na Casa’ (Home Office) para registrar todos os atendimentos feitos pela central 156. Dentro da RBE os médicos que já pertenciam a uma UBS utilizavam o mesmo perfil de usuário para ingressar ao sistema. Os médicos da atenção especializada, foram lotados virtualmente dentro da RBE, em sua grande maioria, na UBS Forte São João.
Todos os atendimentos da telemedicina eram inseridos na RBE com os códigos de procedimentos 03.01.01.007-2 (Consulta Médica em Atenção Especializada) e 03.01.01.TELE (Consulta de Teleatendimento) e o respectivo código da CID-10. No prontuário eletrônico o médico poderia preencher uma ou várias das seguintes fichas/formulários: registro do atendimento do sintomático respiratório; notificação dos casos suspeitos de Coronavírus (Covid-19); solicitação de exame RT-PCR Covid-19; emissão de atestados, laudos, receitas e requisição de exames; envio de documentos com assinatura digital por e-mail; encaminhamento para avaliação presencial nas UBS ou Pronto Atendimentos (PAs).
Para receber as ligações transferidas pela central 156, os médicos utilizavam seus telefones pessoais nos quais deveriam ter a linha telefônica cadastrada no Serviço ‘Fala Vitória’ 156. Outro recurso para garantir o ambiente de trabalho virtual foi a disponibilização de um computador conectado à internet e com acesso remoto à RBE instalado. Cada médico utilizou seu computador pessoal e teve o apoio de uma equipe técnica quando necessário para a instalação e o acesso remoto à RBE.
De abril/2020 a março/2021 em Vitória/ES, através da telemedicina, foram atendidos 15.548 usuários (tabela 1) dos quais 64% eram mulheres (9.953) e 36% homens (5.595). O grupo de idade que mais consultou foi o de 30-39 anos (19,5%), seguido pelo de 40-49 anos (17,8%); a média de idade dos consultantes foi de 41 anos. Em relação à variável raça/cor, 38,6% dos usuários atendidos se autodeclararam brancos e 33,5% pardos. As populações preta/negra e indígena foram as que menos consultaram com 7,7% e 0,1% respectivamente. A variável raça/cor estava sem informação no registro de 3.084 usuários, com melhor preenchimento nos dois últimos trimestres analisados.

No período analisado, foram realizados 21.481 atendimentos (tabela 2) entre 15.548 usuários através da central 156. Destes, 55,2% correspondem a usuários com uma consulta (11.862) e 44,8% (9.619) foram realizados em 3.686 usuários (24%) com mais de uma consulta. Os médicos clínicos e os pediatras realizaram 64% dos atendimentos. O maior número de usuários e atendimentos da telemedicina segundo a UBS de origem se concentrou nas regiões de saúde Continental e Maruípe; já as regiões Centro e São Pedro registraram o menor número (tabelas 1 e 2). No município, no trimestre de abril a junho/2020 foi realizado o maior número de atendimentos (7.216) e no trimestre de outubro/2020 a dezembro/2020 se registrou o menor volume (3.936 - tabela 2). O mês de junho/2020 apresentou o maior número de atendimentos pela telemedicina (3.074) e novembro, o menor (651).

Dos 21.481 atendimentos realizados, 56% (11.946) foram classificados como infecção por coronavírus de localização não especificada (B342) e coronavírus, como causa de doenças classificadas em outros capítulos (B972 - tabela 3)

A classificação do risco em 76% destes atendimentos (9.081) ocorreu sem sinais de alerta e 20,3% mostraram sinais de alerta (2.427). Os sinais de gravidade foram indicados em 33 atendimentos (0,3%). A hipertensão essencial (primária - I10) foi a segunda causa de consulta com 2,3% dos atendimentos. O código da CID-10 não foi preenchido em 1.444 atendimentos (6,7%). As regiões de saúde Continental e Maruípe concentraram o maior número de atendimentos pelas causas B342 e B972 com 31,2% e 24,4% respectivamente.
Foram realizados 34,6% dos atendimentos (4.133) em usuários com mais de uma consulta por estas causas; nestes, a classificação do último monitoramento mais reportada foi ‘melhor’ (34,5%). No entanto, esta variável não foi preenchida em 1.493 atendimentos (36,1%). O encaminhamento mais frequente do último monitoramento foi ‘manter acompanhamento em isolamento domiciliar’ (32,7%) e em 1.537 atendimentos (37,2%) esta variável estava sem informação. Os documentos mais frequentemente gerados no último monitoramento foram receitas e requerimentos de exame laboratorial para Covid-19 (34,6%). Porém, em quase 21% (847) esta variável estava sem informação.
No município de Vitória/ES, o número de atendimentos realizados por telemedicina por 10.000 hab. considerando todas as causas oscilou entre 35,86 consultas por 10.000 hab. no trimestre de outubro a dezembro/2020 e 65,75 no trimestre de abril a junho/2020 (tabela 4)

As diferenças entre as regiões de saúde oscilam entre 15,40 atendimentos realizados por telemedicina por 10.000 hab. em São Pedro no trimestre de outubro a dezembro/2020 e 114,28 em Santo Antônio no trimestre de julho a setembro/2020. O número de atendimentos realizados por telemedicina por 10.000 hab. considerando apenas as causas B342 e B972 flutuaram no município entre 22,54 consultas por 10.000 hab. no trimestre de outubro a dezembro/2020 e 31,96 no trimestre de abril a junho/2020. Entre as regiões de saúde a variação foi de 10,71 atendimentos realizados por telemedicina por 10.000 hab. em São Pedro no trimestre de outubro a dezembro/2020 e 47,66 em Maruípe no trimestre de abril a junho/2020.
Os resultados refletem o impacto transformador da Covid-19 nos cuidados à saúde orientados pela telemedicina12,14,25,28 como parte dos sistemas da resposta de primeira linha45 à pandemia no município de Vitória/ES. Como em outras experiências, a expansão destes serviços limitou-se à situação de Covid-19 e não ao seu uso mais abrangente dentro do sistema de saúde10,12,25, embora a abertura para esta expansão tenha se mostrado viável. A telemedicina e mais especificamente a teleconsulta foi um dos principais instrumentos privilegiados no município para manter a disponibilidade dos serviços de forma segura, possibilitando o atendimento dos usuários para a realização do diagnóstico, triagem, prescrição de tratamento e seguimento dos casos confirmados e suspeitos de Covid-19, entre outros10,25,26.
Para garantir os elementos necessários da dimensão do acesso ‘disponibilidade’38, no município se desenhou uma estratégia de mobilização de uma equipe de médicos das diferentes áreas da rede para o atendimento home office, entre 8 e 22 horas. Isto possibilitou adequar a oferta dos serviços à realidade imposta pela pandemia; flexibilizar os horários de atenção; garantir que o serviço seria prestado por pessoal médico qualificado; incluir na escala de atendimento os profissionais que se encontravam no grupo de risco para Covid-19; manter a equipe necessária nas UBS para realizar o atendimento presencial para casos que o requeressem, incluindo os cuidados contínuos de pacientes não Covid e proteger os profissionais e usuários das UBS, entre outras.
Embora a distância física entre os serviços de saúde e os usuários nesta modalidade de atendimento não se constitua uma barreira, há outros elementos-chave para garantir a disponibilidade de fato, que podem ou não ser requeridos quando o atendimento é feito de forma presencial11,46: a alfabetização digital11,21,46 dos médicos para preencher os dados na RBE e ao mesmo tempo fazer o atendimento; contar com os recursos tecnológicos necessários (telefone, equipamento, conexão à internet); o treinamento da equipe de saúde para melhorar a sua capacidade de comunicação via telefônica; a coordenação entre a atenção primária e os serviços de encaminhamento dos usuários; a promoção do uso da central 156 nas populações mais vulneráveis, entre outros.
Há evidências de que na APS as intervenções baseadas na telemedicina são de baixo custo, viáveis e acessíveis para profissionais da saúde e usuários47. Geralmente podem resultar em economia de custos e acesso facilitado às informações relacionadas à saúde em tempo real (como no caso do município de Vitória/ES)45,47. O atendimento personalizado via telefônica dos casos com o seguimento destes, permite a contenção da disseminação do coronavírus, assim como um melhor aproveitamento dos recursos humanos, especialmente nas áreas com escassez de infraestrutura ou sob circunstâncias de forte estresse para a equipe de saúde27. Além disso, produz uma redução associada ao consumo de insumos, devido à menor necessidade de equipamento de proteção individual, o que pode representar uma economia substancial quando considerada em grandes escalas27.
Outros aspectos sobre a dimensão do acesso ‘viabilidade financeira’38 no uso da telemedicina são: a possibilidade de melhoria da acessibilidade à atenção médica, economizando tempo e dinheiro para os usuários (especialmente os que residem nos territórios sociais mais afastados e menos favorecidos) como para o sistema de saúde; a possibilidade de interconsulta e envio do diagnóstico pela internet ao médico assistente26,48,49.
Assim como na modalidade presencial, no atendimento realizado pela telemedicina a ‘aceitabilidade’ do usuário é fundamental para garantir o acesso. Porém, esta dimensão continua sendo a mais negligenciada44. As barreiras de aceitabilidade e confiança podem influenciar o comportamento e a interação de usuários e prestadores de serviços de saúde, afetando desproporcionalmente aos grupos socialmente desfavorecidos com menor alfabetização digital e menor acesso às TIC11,21,38,44,46. Vitória conta com um sistema de avaliação da satisfação do usuário, mas não existe a possibilidade de obter os dados por tipo de consulta. As avaliações realizadas pelos usuários da telemedicina ficam incluídas no total das respostas enviadas, o que dificultou a captura de dados na RBE sobre a aceitabilidade dos usuários da telemedicina.
Os sistemas de informação em saúde têm um papel central na produção de dados sobre conhecimentos, atitudes e comportamentos dos profissionais e usuários no atendimento, bem como sobre as demais dimensões do acesso na modalidade presencial e da telemedicina50. Para isto, a integração das diferentes fontes de dados é fundamental12,14, como a promoção de um ecossistema de dados mais abrangente, onde se incluam informações que permitam monitorar e avaliar o acesso e suas diferentes dimensões50. Embora haja alguns avanços, no Brasil a integração dos sistemas da estratégia e-SUS APS com os sistemas próprios existentes em vários municípios do País (como a RBE em Vitória/ES), continua a ser um desafio.
Os dados gerados na RBE permitem avaliar prioritariamente a dimensão disponibilidade. A viabilidade financeira só pode ser analisada com variáveis proxys que não estavam disponíveis nos relatórios da RBE. O município de Vitória conta com dados em tempo real e é possível fazer o preenchimento dos dados diretamente no prontuário. No entanto, para melhor usabilidade da RBE é necessário investir numa cultura de auditoria sistemática da qualidade dos dados, onde a completude dos dados é fundamental. A integração dos dados sobre os atendimentos realizados a um mesmo usuário nas diferentes modalidades ainda é limitada. Isto dificulta conhecer a rota do acesso seguida pelo usuário atendido através da central 156, assim como fazer o seguimento dos casos que não foram realizados pela telemedicina, mas encaminhados e cujos dados, preenchidos em outra ficha. Os países que têm avançado na produção de informação sobre o acesso aos serviços de saúde através da telemedicina e a telessaúde e seu impacto na pandemia mostram um esforço na integração dos dados14,51.
As estratégias de saúde digital inclusiva de longo prazo têm um alto potencial para acelerar a implantação de respostas eficazes de saúde pública a pandemias, assim como mudanças nos processos, necessárias para situações de emergências11,14,46. Com a Covid-19 se vislumbrou parte desse potencial, em alguns países10,12,27,45 e em vários estados e municípios do Brasil26, como Vitória/ES, onde experiências de inclusão da saúde digital nos serviços de atenção à saúde foram implantadas numa velocidade sem precedentes12.
No entanto, grande parte desse potencial ainda é pouco explorado11. Dentre as principais barreiras se destacam10,11: a limitada alfabetização nas tecnologias digitais da população (com maiores brechas nas populações mais vulneráveis) e de profissionais de saúde; a tendência a suprimir dados caso revelem deficiências; as limitações dos sistemas de informação em saúde para integrar dados de múltiplas fontes; certa resistência a novas formas de trabalho nos serviços de saúde e nos usuários; a segurança digital e os custos associados; as dificuldades no acesso à internet como a tecnologias digitais nas áreas menos favorecidas; a reprodução das desigualdades do acesso presencial, nos espaços virtuais; entre outras. O Projeto de Estratégia Mundial sobre saúde digital 2020-2025 da OMS21 e os oito princípios reitores da transformação digital do setor saúde propostos pela Opas46, orientam o desenho de políticas públicas inclusivas e sustentáveis no tempo para superar as barreiras antes mencionadas.
Dentre os desafios para melhoria do acesso aos cuidados de saúde através da telemedicina e a telessaúde está o desvendamento de obstáculos e facilitadores sob a ótica de profissionais de saúde, gestores e usuários25. São necessários investimentos na integração de dados de várias fontes; na sua usabilidade e na inclusão digital da população e de profissionais de saúde. As desigualdades no acesso presencial se reproduzem no acesso à telemedicina51, o que torna imprescindível manter um relacionamento forte entre o sistema de saúde, as equipes de saúde, e os usuários na implantação da telemedicina49. Embora esta última seja considerada uma inovação, as duas formas permanecem interdependentes e complementares na busca de garantia do acesso equitativo em saúde.
Agradecemos o apoio do Paulo César Barbosa Fernandes, da Subsecretaria de Tecnologia da Informação (Sub-TI) da Secretaria Municipal de Saúde (Semus) de Vitória/ES.
Heredia-Martínez HL (0000-0002-4609-0481)* e Artmann E (0000-0002-8690-5964)* contribuíram para concepção do artigo, coleta, análise e interpretação dos dados, redação e revisão final do artigo. Cruz SCS (0000-0002-5499-4405)* e Faria DCS (0000-0002-7408-1988)* contribuíram para coleta dos dados, discussão dos resultados e aprovação final da versão a ser publicada.




