EDITORIAL

Programa de Formação Técnica em Enfermagem para Agentes de Saúde: quando uma formação profissional se torna mais uma ameaça ao SUS

Programa de Formação Técnica em Enfermagem para Agentes de Saúde: when a professional trainning becomes another threat to SUS

Programa de Formação Técnica em Enfermagem para Agentes de Saúde: cuando la formación profesional se vuelve otra amenaza para el SUS

Mariana Lima Nogueira
Fundação Oswaldo Cruz, Brasil
Ieda da Costa Barbosa
Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Programa de Formação Técnica em Enfermagem para Agentes de Saúde: quando uma formação profissional se torna mais uma ameaça ao SUS

Trabalho, Educação e Saúde, vol. 16, núm. 2, pp. 393-396, 2018

Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

Em janeiro o Ministério da Saúde (MS) publicou a portaria n. 83/2018 (Brasil, 2018), cujo objeto é a formação profissional dos agentes comunitários de saúde (ACSs) e dos agentes de combate a endemias (ACEs) e cria o Programa de Formação Técnica em Enfermagem para Agentes de Saúde, o PROFAGS. Em síntese, incide sobre as atribuições destes trabalhadores e institui financiamento federal às instituições de ensino, incluindo as privadas. O PROFAGS será executado no biênio 2018-2019 e o processo de formulação de tal Programa apoia-se em reunião realizada no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite em dezembro de 2017.

A qualificação profissional dos ACSs vem sendo objeto de disputa desde a institucionalização deste trabalho no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Estas disputas integram a dinâmica da produção da política de saúde que, sendo produto da luta de classes, não é isenta dos interesses dos trabalhadores, que reivindicam a universalidade do direito à saúde e à educação; e dos interesses empresariais, que historicamente usufruem do fundo público e tratam a saúde e a educação como mercadorias (Nogueira, 2017).

A publicação do referencial curricular do Curso Técnico em ACS (CTACS), em 2004 (Brasil, 2004), pode ser considerada, em dois sentidos, um avanço para a formação profissional desses trabalhadores. Representa a tentativa de aliar formação profissionalizante à elevação de escolaridade e foi formulado em um processo democrático que incluiu instituições de ensino, representações dos trabalhadores ACSs e setores do MS.

Na contramão do processo de elaboração da proposta do CTACS, a proposição do PROFAGS ocorreu entre gestores, sem a participação dos demais atores com expertise e representatividade histórica na atuação e na formulação de políticas de educação profissional em saúde, como as Escolas Técnicas do SUS (ETSUS). A formação técnica em enfermagem para agentes reedita a proposta de fusão de categorias profissionais contida no relatório do 7º Fórum Nacional de Gestão da Atenção Básica. Essa fusão se traduz no acirramento da precarização do trabalho e dos riscos de redução dos postos de trabalho, agravada pela proposta da nova Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), que fortalece práticas biomédicas curativas e a focalização da Estratégia Saúde da Família (ESF).

Outra potencial repercussão do PROFAGS é a iminente descaracterização profissional que a formação em enfermagem produzirá no processo de trabalho dos agentes. O trabalho do ACS é constituído por práticas que incluem mobilização social, interlocução entre os saberes biomédicos e os saberes populares, reivindicação por direitos sociais, mapeamento e acompanhamento das condições sociossanitárias dos territórios que são determinantes no processo de saúde e doença, na produção de informações, na construção de redes de apoio social, no planejamento e execução de ações educativas em saúde. Estas práticas vêm sendo atravessadas pela racionalidade gerencialista, processo que se aprofunda com a implantação de sistemas de avaliação do trabalho em saúde subsidiados por critérios de desempenho individual, competitividade entre as equipes, remuneração por desempenho e orientação do trabalho baseado em metas quantitativas centradas em procedimentos biomédicos (Nogueira, 2017). Não por acaso, as portarias n. 958 e 959 publicadas em 2016 pelo MS, e revogadas devido à forte mobilização dos ACSs, foram construídas com a mesma argumentação retomada no PROFAGS, qual seja: a substituição de ACSs por técnicos de enfermagem com vistas à ampliação do escopo de práticas na Atenção Básica (AB) e o suposto aumento da sua resolutividade. O PROFAGS acirrará tanto a burocratização do trabalho dos ACSs quanto a secundarização do trabalho de educação popular em saúde e de acompanhamento dos usuários no território. Este processo tende, inclusive, a aumentar o risco epidemiológico da população pelo desvio de finalidade do trabalho dos ACSs e ACEs, o que se produzirá com a sobreposição de atribuições destes trabalhadores, descaracterizando suas atribuições primordiais.

O trabalho dos ACEs, orientado pela perspectiva de integração das áreas de vigilância em saúde (epidemiológica, sanitária, ambiental e saúde do trabalhador), antecipa-se ao adoecimento, visando, sobretudo, promover a saúde, diferentemente das atividades previstas para o técnico de enfermagem, que atua em procedimentos de intervenção nas situações de doenças instaladas. Trata-se de processos de trabalho complementares e indispensáveis à AB e sua integração não pode ser confundida com fusão, o que prejudicará as práticas de promoção e de vigilância em saúde.

No que tange à formação profissional dos ACEs, o curso técnico em Enfermagem e o curso técnico em Vigilância possuem bases curriculares distintas. A formação em Vigilância, cujas diretrizes foram publicadas em 2011, é uma proposta do MS iniciada no final dos anos 1990 e fundamenta-se em conhecimentos oriundos da integração das vigilâncias. Estas diretrizes fortalecem a AB na perspectiva de intervenção nos determinantes sociais e têm como parâmetro os princípios do SUS, assumindo a participação social como estratégica. A proposta do PROFAGS desconsidera ainda o processo de trabalho dos ACEs, profissionais que atuam ‘na ponta’, por exemplo, enfrentando as arboviroses nos territórios.

No referencial curricular dos cursos técnicos em ACSs e em Vigilância em Saúde o estímulo à participação das ETSUS na oferta dos cursos implica concebê-los como um direito, ofertados de forma gratuita e realizados por instituições públicas, para agentes inseridos no SUS. No caso do CTACS, os temas sugeridos como base do currículo enfatizam o trabalho na AB e a educação em saúde como centrais (Brasil, 2004). Ainda que os conteúdos do Referencial Curricular do Curso Técnico em ACS necessitem de atualização, já que foram elaborados há 14 anos, registra-se que a formação técnica em ACS contempla vários âmbitos de atuação que informam sobre as atribuições desta categoria profissional, como o trabalho em equipe multiprofissional, a promoção da saúde e prevenção de doenças em indivíduos e grupos e as ações voltadas para questões ambientais. A formação técnica em Enfermagem possui competências e conteúdos teóricos que priorizam a atuação em instituições que não são, predominantemente, componentes do nível de atenção primário.

Com a publicação do edital do PROFAGS, confirma-se que não há intenção de se priorizarem as instituições públicas de ensino na captação dos recursos do MS, embora na Classificação Funcional Programática, os recursos financeiros para a execução do Programa onerem a rubrica de “Formação de profissionais técnicos de saúde e fortalecimento das escolas técnicas e centros formadores do SUS”. Identifica-se assim o movimento de deslocar recursos que deveriam ser destinados a instituições públicas para a rede privada, que tradicionalmente oferta a Formação Técnica em Enfermagem.

Dentre outras graves inadequações do PROFAGS, está a possibilidade de realização dessa formação na modalidade semipresencial e, conforme publicado na portaria, ser preferencialmente noturno. Isto acarreta a responsabilização dos trabalhadores pela precária formação profissional que o Estado historicamente ofertou além de onerar trabalhadores sabidamente sobrecarregados pela tripla jornada de trabalho, como é o caso dos ACSs, categoria profissional majoritariamente composta por mulheres. Ademais, no PROFAGS pune-se o trabalhador que não conseguir cumprir a frequência mínima no curso, fazendo-o devolver integralmente ao governo o valor em reais, compromisso que será assumido pelo trabalhador no momento em que assinar um termo de matrícula que prevê tal responsabilização.

A portaria n. 83/208 é mais uma medida do governo federal de focalização da AB e retirada de direitos e foi promulgada após os vetos ao Projeto de Lei da Câmara (PLC) n. 56/17, que se tornou a lei n. 13.595/18. Estes vetos se referiam a demandas caras aos trabalhadores: formação técnica em ACS e ACE no horário de trabalho e a presença obrigatória dos ACSs na estrutura da AB.

É notório que os interesses privatistas e mercantis que hegemonizam o governo federal tensionaram para a elaboração do PROFAGS. No entanto, as ETSUS, representações sindicais organizadas por ACSs, a Associação Brasileira de Enfermagem e outras entidades estão se posicionando contrariamente ao Programa. A efetivação do direito à formação profissional dos trabalhadores ACSs e ACEs é fundamental para a defesa do SUS, pois eles compõem categorias instituídas e existentes exclusivamente no âmbito da política pública. Constitui-se dever do Estado prover o acesso à formação profissionalizante destes trabalhadores, comprometendo-se com uma política de formação que não impulsione a privatização e o desmonte do SUS. Ao contrário, cabe-nos afirmar a necessidade de prover uma formação profissional específica, voltada para a AB, para o SUS e que se dê, prioritariamente, pelas instituições públicas de ensino.

A não adesão das ETSUS e dos trabalhadores agentes ao Programa deve fortalecer a defesa pela efetivação de uma política de Educação Profissional que consolide o âmbito de atuação e as atribuições destes trabalhadores. Estas forças políticas devem manter sua articulação em defesa do SUS público e universal, com vistas à efetivação de uma política de formação profissional fomentada pela análise crítica das determinações sociais do processo saúde e doença, pelas ações de promoção da saúde, mobilização social, educação popular e vigilância em saúde.

Mariana Lima NogueiraProfessora e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/FiocruzIeda da Costa BarbosaProfessora e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Referencial curricular para o curso técnico de agente comunitário de saúde: área profissional saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004. (Série A. Normas e Manuais Técnicos).

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 83, de 10 de janeiro de 2018. Institui o Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde (PROFAGS), para oferta de curso de formação técnica em enfermagem para agentes comunitários de saúde (ACS) e agentes de combate às endemias (ACE) no âmbito do SUS, para o biênio de 2018-2019. Brasília, DF, 2018. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2018/prt0083_12_01_2018.html>. Acesso em: 13 jan. 2018.

NOGUEIRA, Mariana L. O processo histórico da Confederação Nacional dos agentes comunitários de saúde: trabalho, educação e consciência política coletiva. 2017. 541f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

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