EDITORIAL
Transparência no setor farmacêutico: uma nova dimensão do debate internacional sobre acesso a medicamentos?
Transparency in the Pharmaceutical Industry: A New Dimension in the International Debate Regarding the Access to Medicines?
Transparencia en el sector farmacéutico: ¿una nueva dimensión del debate internacional sobre acceso a medicamentos?
Transparência no setor farmacêutico: uma nova dimensão do debate internacional sobre acesso a medicamentos?
Trabalho, Educação e Saúde, vol. 17, núm. 3, e0022656, 2019
Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
A última Assembleia Mundial da Saúde, instância deliberativa máxima da Organização Mundial da Saúde (OMS), ocorrida em maio de 2019 em Genebra, aprovou uma resolução inédita sobre transparência dos custos de medicamentos, vacinas e outros produtos médicos (World Health Organization, 2019)1 . O texto reconhece a necessidade de ampliar a transparência do setor farmacêutico e o papel dos Estados em monitorar e promover cooperação institucional, relacionando a ausência de informação sobre preços e custos diretamente com o problema dos altos preços de produtos essenciais à saúde.
De modo geral, maior transparência quanto a preços e custos permite dar clareza a governos, consumidores e demais atores quanto a que valores são (e deveriam) ser cobrados por medicamentos. Aumenta-se não apenas o controle social sobre o funcionamento das indústrias farmacêuticas, como igualmente a capacidade de negociação de compras públicas, sob preços diferenciados, para países com menor orçamento disponível2. A transparência sobre a situação patentária, a situação sobre a aprovação regulatória de medicamentos e os resultados de testes clínicos permitem facilitar a criação de genéricos e aumentar a competição nos mercados - portanto, reduzindo preços. Permitem também possibilitar uma análise e investigação precisa sobre o potencial caráter anticompetitivo de determinadas práticas. E assim por diante. Em um contexto no qual os gastos com medicamentos aumentam no mundo todo, incluindo países industrializados, trata-se do mais recente desdobramento dos longos (e atuais) debates internacionais sobre o acesso a medicamentos e o direito humano à saúde3, e acena para a possibilidade de intensificação deste âmbito de discussão no futuro próximo.
Acompanhar a negociação da resolução permite afirmar que se tratou de processo longo, difícil e que poderia não ter chegado a resultado algum. Por ‘inaugurar’ o tema, seu valor simbólico é inegável. A aprovação contou com forte pressão da sociedade civil, que atuou ativamente junto aos respectivos governos - em alguns casos, até mudando o posicionamento original dos países -, e com a liderança antes improvável da Itália em um grupo de países composto, em sua maioria, por países em desenvolvimento4. Enfrentou igualmente grande relutância de representantes e associações ligadas às indústrias farmacêuticas, que consideravam se tratar de tema fora do escopo de atuação da OMS. Delegados de países-membros reuniram-se por horas a fio em reuniões ‘informais’ - mas altamente restritivas - ao longo de toda a semana para debater e finalmente chegar a um consenso. Como consequência, se comparada ao texto original, que contemplava medidas de transparência em todos os momentos da cadeia de produção, incluindo estágios preliminares de pesquisa e desenvolvimento (P&D) até o preço para o consumidor final, a resolução aprovada é bastante limitada. Em particular, não contempla instrumentos vinculantes que imponham obrigações e estabeleçam sanções aos Estados, por meio de cortes internacionais ou mecanismos análogos. Também não cria um novo mandato de atuação para a OMS - embora preveja um conjunto de atividades a serem realizadas pela instituição.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que o texto atende em boa medida aos anseios dos países industrializados. Embora algumas destas nações possam aceitar comprometimentos internacionais na área da saúde e reconhecer a seriedade do problema geral de acesso, muitas, simultaneamente, defendem, a todo custo, o atual sistema global de inovação. Isto é, um modelo baseado em direitos de propriedade intelectual como o grande incentivo catalisador da criação de novos fármacos por meio de empresas privadas (ainda que muitas vezes, direta e indiretamente, com enorme financiamento público). Isto justificaria - ao menos em tese - preços elevados, a despeito de importantes críticas ao funcionamento atual do modelo. Não há bases de dados com informação clara e consistente sobre quanto efetivamente se gasta em P&D para se obter um novo medicamento, o que impede que haja verdadeira análise da tensão ali presente5. No entanto, embora mencionado na resolução, o tema dos custos de P&D ficou de fora das medidas a serem tomadas por Estados e pelo Secretariado da OMS.
Portanto, a complexa inter-relação entre inovação tecnológica, instrumentos de recompensa e efetivo acesso a produtos novos e existentes é o pano de fundo principal do debate sobre transparência. O resultado no âmbito da resolução é uma situação paradoxal: por um lado, decorre do reconhecimento de que o atual modelo global de P&D é insuficiente e inadequado, ao menos no sentido de que não há suficiente inovação para as grandes questões de saúde global nem há adequado acesso aos produtos. Por outro, fornece uma apenas uma mudança incremental, por meio de maior transparência, sem propor alternativas estruturais e sem aumentar a informação existente sobre o modelo hegemônico de P&D6. Nesse quadro mais amplo, o debate sobre a transparência continua a ecoar a lógica da disputa geopolítica entre países nos quais grandes farmacêuticas estão sediadas e países em desenvolvimento, os mais afetados pelos altos preços de produtos médicos7.
Transparência não é um assunto exclusivo do setor farmacêutico. Pode até ser considerado um pressuposto para o bom funcionamento dos mercados, como preveem teorias econômicas contemporâneas que tratam sobre a assimetria de informações nos mercados como elemento que impossibilita seu bom funcionamento (Akerlof, 1970, p. 488-500). É igualmente um tema central para debates contemporâneos sobre governança do sistema internacional e sobre a saúde das democracias deliberativas. Em geral, costuma-se apenas aceitar que mais transparência é salutar, o que na maior parte das vezes é verdadeiro. O possível problema, no entanto, é a possibilidade de limitar o debate mais geral sobre acesso a medicamentos a uma questão puramente relacionada à competitividade de mercados e às estratégias de negociação de Estados.
Nesse sentido, se transparência é essencial, ela não é o único elemento a se ter em mente. Problemas ‘antigos’ permanecem tão atuais quanto antes, como o impacto de estratégias para ampliar prazos de patentes farmacêuticas e a ausência de produção local em muitos países. Ademais, diversas experiências concretas e propostas florescem. Por exemplo, a ideia de desassociar os custos de P&D do preço final de medicamentos (delinkage), o que poderia permitir preços mais baixos de modo mais contundente e que também tem sido debatida em negociações internacionais. A capacidade (financeira, institucional etc.) dos países de implementar tais medidas é outra preocupação premente.
É importante que, nos próximos debates, a transparência não se converta em uma cortina de fumaça para evitar tratar de problemas essenciais como os elevados preços de medicamentos e a relativa ausência de investimentos em, por exemplo, doenças negligenciadas. Mesmo que a transparência do setor farmacêutico aumente, e que governos deem passos para tal, o problema do acesso a medicamentos e outros produtos médicos precisa continuar a estar atrelado a considerações mais amplas, em especial a perspectiva do direito humano à saúde. Nesse sentido, também é necessário que esta agenda permita refletir, de modo mais amplo, sobre a persistência do conflito de interesses no âmbito da saúde, em especial no lobby indevido de determinados atores privados na determinação de políticas públicas e negociações internacionais.
Referências
AKERLOF, George A. The Market for ‘Lemons’: Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics. Oxford, v. 84, n. 3, p. 488 - 500, ago. 1970.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Improving the transparency of markets for medicines, vaccines, and other health products. Seventy-second World Health Assembly. 28 may, 2019. Available from: <https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA72/A72_R8-en.pdf>. Acessed on: 11 jul. 2019.
Notas