Resumo: O artigo teve como objetivo investigar de que modo os municípios brasileiros desenvolveram medidas para enfrentar a pandemia de Covid-19. Para isso, foi conduzido um estudo com dados da Confederação Nacional dos Municípios, coletados no segundo semestre de 2020. Os resultados apontaram que houve, inicialmente, a adoção de medidas como a implementação de barreiras sanitárias, isolamento social e promoção do uso de máscara; contudo, a maioria dos municípios flexibilizou essas ações ao longo do tempo. Além disso, observou-se que os entes municipais desenvolveram ações de resposta à pandemia de forma heterogênea e descoordenada. Concluiu-se que esse fenômeno se deve ao fato de que o governo federal e os estados da federação desenvolveram precários mecanismos de incentivo à cooperação interfederativa e pouco estimularam a coordenação de atividades no território brasileiro.
Palavras-chave: pandemiapandemia,Covid-19Covid-19,coordenação federativacoordenação federativa,políticas públicaspolíticas públicas,saúde públicasaúde pública.
Abstract: The article aimed to investigate how Brazilian municipalities developed measures to face the COVID-19 pandemic. To this end, a survey was conducted with data from the National Confederation of Municipalities collected in the second semester of 2020. The results showed that measures were initially adopted, such as the implementation of sanitary barriers, social isolation and the rise of the mask use; however, most municipalities have made these actions more flexible over time. In addition, it was observed that municipal entities developed actions to respond to the pandemic in a heterogeneous and uncoordinated way. It is concluded that this phenomenon is due to the fact that the federal government and the states of the federation developed precarious mechanisms to encourage inter-federative cooperation and little stimulated the coordination of activities in order to guarantee uniformity of the actions developed in the Brazilian territory.
Keywords: pandemic, COVID-19, federative coordination, public policy, healthcare.
Resumen: El artículo tuvo como objetivo investigar cómo los municipios brasileños han desarrollado medidas para hacer frente a la pandemia de Covid-19. Para ello, se ha realizado un estudio con datos de la Confederación Nacional de Municipios en el segundo semestre de 2020. Los resultados indicaron que, inicialmente, se adoptaron medidas como la implantación de barreras sanitarias, el aislamiento social y la promoción del uso de mascarillas; sin embargo, la mayoría de los municipios relajaron estas acciones con el tiempo. Además, se observó que los municipios desarrollan acciones de respuesta a la pandemia de forma heterogénea y desordenada. Se concluyó que ese fenómeno se debe a que el gobierno federal y los estados de la federación desarrollaron mecanismos precarios para incentivar la cooperación interfederativa e hicieron poco para estimular la coordinación de actividades para garantizar la uniformidad de las acciones desarrolladas en el territorio brasileño.
Palabras clave: pandemia, Covid-19, coordinación federativa, políticas púlicas, salud.
ARTIGO
Disparidades e heterogeneidades das medidas adotadas pelos municípios brasileiros no enfrentamento à pandemia de Covid-19
Disparities and heterogeneities in the measures adopted by Brazilian municipalities when dealing with the COVID-19 pandemic
Disparidad y heterogeneidad de las medidas adoptadas por los municipios brasileños en el enfrentamiento a la pandemia de Covid-19
Recepção: 11 Novembro 2020
Aprovação: 19 Janeiro 2021
Em 26 de fevereiro de 2020, foi confirmado no Brasil o primeiro diagnóstico de infecção pela síndrome respiratória aguda grave em decorrência do coronavírus 2 (Sars-Cov-2), o qual desencadeou a doença Covid-19 dois meses após o primeiro caso ter sido documentado em Wuhan, na China, ainda em dezembro de 2019 ( Wu et al., 2020). O primeiro caso brasileiro foi relatado no estado de São Paulo apenas um mês depois da notificação de casos na União Europeia e no Reino Unido ( Croda e Garcia, 2020). Com a comprovação da infecção, associada à declaração de pandemia e Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no início de março de 2020, a União, os estados e os municípios se valeram da autonomia política e administrativa prevista na Constituição Federal para conduzirem medidas de enfrentamento da pandemia em seus territórios ( Sodré, 2020).
O objetivo do artigo é analisar as medidas não farmacológicas conduzidas pelos municípios brasileiros para lidar com a pandemia de Covid-19, na perspectiva de elucidar o que explicaria as disparidades e a heterogeneidade das ações adotadas pelos municípios brasileiros no enfrentamento dessa emergência sanitária.
Nos primeiros meses da epidemia, dada a inexistência de vacina ou tratamento eficaz para conter os efeitos do patógeno no organismo humano, as medidas adotadas se calcaram principalmente na prevenção, classificadas como intervenções não farmacológicas. Tais condutas abrangem o aspecto individual, incluindo lavagem de mãos e uso de máscara; o ambiental, que diz respeito à limpeza e à desinfecção de superfícies, objetos e lugares; e o comunitário, referente ao funcionamento de estabelecimentos e locais de aglomerações que não oferecem serviços essenciais (Conticini, Frediani e Caro, 2020; Qualls et al., 2017).
Dessa maneira, alguns conceitos passaram a ser úteis na tarefa de compreender as ações dos governos em prol da saúde pública. O isolamento de pessoas diagnosticadas com o patógeno passou a ser uma das opções adotadas. Contudo, como no caso de Covid-19 existe um período de incubação, alta transmissibilidade por assintomáticos e baixa capacidade de realização de testes em grande escala, esse recurso adotado de maneira isolada se mostrou insuficiente para conter a disseminação da pandemia. Em relação à quarentena, esta é definida como a restrição de circulação de uma pessoa exposta ao vírus que se encontra potencialmente infectada, entretanto, ainda assintomática. Por fim, existe o distanciamento social; este, por sua vez, determina que deve ocorrer o mínimo de interações possíveis entre pessoas com o intuito de não permitir a disseminação do vírus por indivíduos infectados assintomáticos não diagnosticados. A medida mais radical em relação ao distanciamento é a contenção comunitária, também conhecida no Brasil como lockdown , em que a nenhuma pessoa é permitido circular, a menos que necessite realizar atividade essencial, medida essa adotada na China no início da pandemia ( Wilder-Smith e Freedman, 2020).
No que tange à adoção de medidas não farmacológicas para enfrentar a pandemia, o Supremo Tribunal Federal reforçou o princípio da autonomia dos entes federados já presente na Constituição Federal, considerando que os estados e os municípios têm competência concorrente para atuar em questões sanitárias e podem estabelecer medidas restritivas para combater a pandemia sem aval do governo federal ( Abrucio et al., 2020). Contudo, a tomada de ação feita de forma descoordenada e autônoma pelos governos subnacionais pode ensejar desigualdade no acesso a insumos de prevenção por parte dos cidadãos, sobreposição de atividades e vazios assistenciais. Nesse sentido, é importante recuperar brevemente o histórico institucional relativo à gestão das políticas de saúde mantido nos últimos trinta anos. A lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990 – Lei Orgânica da Saúde –, dispõe acerca das condições para promoção, proteção da saúde, organização e funcionamento dos serviços. Ela também elenca os objetivos do Sistema Único de Saúde (SUS), quais são suas competências, assim como as funções da União, dos estados e dos municípios no processo de desenvolvimento das políticas de saúde. Embora percalços tenham surgido ao longo do tempo, principalmente no que se refere à estratégia de regionalização da saúde (Lui, Schabbach e Nora, 2020; Santos e Giovanella, 2014), de financiamento do SUS ( Soares, 2019) e ao aprimoramento dos canais participativos e de controle social ( Côrtes, 2009), entre outros, um sistema de formulação, implementação e monitoramento das políticas públicas de saúde baseado nos princípios de cooperação e coordenação interfederativa foi construído no país. Contudo, a forma como o governo federal conduziu a gestão da pandemia de Covid-19 foi de encontro a esses princípios.
A postura do governo federal, mais especificamente do Ministério da Saúde, diante da pandemia estimulou a descoordenação de ações e o envio de mensagens contraditórias relativas às ações de controle do patógeno ( Abrucio et al., 2020; Pereira, Oliveira e Sampaio, 2020; Sodré, 2020). Dessa forma, apesar de não haver protocolos claros para lidar com o problema, estratégias foram elaboradas pelos estados e municípios com base na experiência de países asiáticos e europeus, reforçando a importância do distanciamento social com o intuito de atenuar possível crise na saúde pública ( Aquino et al., 2020; Sodré, 2020). Contudo, um conjunto de atores inseridos na esfera federal de governo questionou e desqualificou constantemente tais medidas, ao mesmo tempo que recomendava ações e medicamentos sem eficácia comprovada cientificamente para prevenir ou tratar a infecção ( Abrucio et al., 2020). Conforme apontam Candido e colaboradores (2020), as evidências decorrentes das análises epidemiológicas confirmam que as intervenções realizadas pelo governo federal permanecem insuficientes para manter a transmissão do vírus sob controle no Brasil.
Os principais aeroportos do país, localizados nas maiores cidades e áreas urbanas, foram a porta de entrada da Covid-19, e estas têm sido afetadas mais que outras porções do território ( Candido et al., 2020; Fortaleza et al., 2020). Quando se observa a disseminação da pandemia, a perspectiva territorial ganha importância estratégica na medida em que há reconhecimento da relação entre a taxa de contaminação, a disponibilidade da infraestrutura urbana e a densidade demográfica (Connolly, Keil e Ali, 2020). É preciso ressaltar que, à medida que a epidemia se alastrava em direção às cidades de pequeno porte, coube aos municípios a tarefa de desenvolver medidas de controle e tratamento dos infectados.
O estudo de Costa e colaboradores (2020) apontou que a distribuição do Covid-19 não vem ocorrendo de forma homogênea nas regiões brasileiras ou mesmo dentro da escala intraurbana. No mesmo sentido, o estudo de Fortaleza e colaboradores (2020) indica que houve dois padrões de disseminação geográfica do Covid-19 no estado de São Paulo: o primeiro, começa da área metropolitana para o interior do estado, e o segundo ligado a uma ideia de hierarquia de cidades, com impacto primeiramente nos centros urbanos de maior relevância regional e, em seguida, atingindo os municípios menores e interioranos. O presente artigo contribui para a discussão dessa segunda linha de investigação, observando o desenvolvimento de ações de enfrentamento da pandemia mediante um olhar voltado à influência do município na rede de cidades. Além disso, verifica-se a carência de estudos mais abrangentes, que analisem de que forma os municípios brasileiros responderam à pandemia, tomando como premissa o fato de que esses entes são heterogêneos e de que há pesos e consequências distintas nas ações adotadas em cada um deles, principalmente aqueles que ocupam função de capital regional ou metrópole na rede de cidades. Nesse sentido, o presente artigo investiga de que forma os municípios brasileiros responderam à pandemia, do ponto de vista regional e da influência do município na rede de cidades brasileiras.
Dentre as instituições que passaram a ter postura ativa no enfrentamento da pandemia, está a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). A CNM é uma instituição nacional que tem, dentre os seus objetivos, a tarefa de auxiliar e dar assistência técnica e administrativa aos municípios brasileiros. Desde o início da pandemia, a CNM atua em prol dos municípios, defendendo seus interesses junto ao Ministério da Saúde e auxiliando no desenvolvimento de medidas de enfrentamento da pandemia.
Trata-se de um estudo quantitativo, descritivo, transversal, com componente retroanalítico e de base nacional ( Turi et al., 2015; Creswell, 2010; Lima-Costa e Barreto, 2003). Os dados foram coletados pela Confederação Nacional de Municípios e cedidos aos pesquisadores. O percurso metodológico passou por dois momentos: a aplicação de um questionário nos 5.569 municípios (menos o Distrito Federal), do qual resultou uma série de dados primários; e a análise dos dados cedidos pela CNM aos pesquisadores.
A CNM realizou consulta nos 5.569 municípios do país, via central telefônica de pesquisa, tendo por base os cadastros de gestoras e gestores mantidos nos sistemas da instituição. A elaboração das perguntas, assim como o processo de respostas de cada município, foi coordenada por uma das autoras do artigo, que pertence ao quadro técnico da entidade municipalista. Nesse sentido, os sujeitos da pesquisa foram os gestores municipais; e a unidade de análise, os municípios brasileiros.
Os entrevistados – prefeitas, prefeitos ou responsáveis pelas ações das políticas específicas, tais como secretários de saúde – foram informados de que se tratava de uma pesquisa da entidade municipalista e que os dados seriam usados para a produção de estudos. A consulta iniciou-se em 1 de agosto de 2020 e estendeu-se até o dia 29 daquele mês. A primeira fase da coleta, realizada em agosto de 2020, caracterizou-se pela aplicação de questionário fechado, com perguntas dicotômicas e outras de múltipla escolha. As perguntas gerais e específicas tinham ‘sim’ ou ‘não’ como escolha do respondente, com alguns desdobramentos específicos.
Dada a capilaridade da CNM, foi possível acessar informações a respeito de como cada um desses entes desenvolveu políticas para enfrentar a pandemia, além de explorar quais as medidas tomadas pelos respectivos entes municipais. Também se indagou pelo questionário se os municípios fizeram ou não alguma flexibilização nas medidas tomadas anteriormente. Para essa variável, fez-se uma análise nas datas, calculando o tempo empregado para que os municípios tomassem essa medida de flexibilização.
Observaram-se e respeitaram-se os aspectos da integridade em pesquisa, ou seja, esta publicação pressupõe a veracidade e a idoneidade dos dados apresentados. Ao todo, 71% dos municípios brasileiros (3.976) responderam ao questionário.
Na segunda fase deste estudo, de posse das respostas dos 3.976 municípios, como forma de preservar os sujeitos da pesquisa, os dados foram organizados e cedidos pela CNM aos autores externos sem o nome da cidade. Para tanto, a disposição das respostas foi realizada e agrupada por: região do país e tipologia de município com base na classificação realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Argumenta-se que a análise de como os municípios brasileiros desenvolveram ações de controle da pandemia deve considerar, antes de tudo, as características dos municípios e as regiões onde estão situados. Por isso, cruzamos os dados coletados com a classificação da Região de Influência das Cidades (Regic), realizada pelo IBGE e publicada em 2018. A Regic capta relações municipais em diversos âmbitos, tais como movimentos pendulares de trabalho, estudo, trocas comerciais e ocorrência de eventos culturais, entre outros. Entende-se que por meio dessas relações e fluxos ocorrem os deslocamentos humanos – o que, numa situação de pandemia, facilita a circulação do patógeno.
Com base na mensuração dessa capacidade de influência de um município em uma dada região e no país, a classificação é construída pelo IBGE em ordem hierárquica de influência: metrópoles, correspondentes aos principais centros urbanos, com vasta influência sobre o território nacional; capitais regionais, com menor alcance de influência comparadas com as metrópoles, mas com alta concentração de atividades de gestão; centros sub-regionais, com atividades de gestão menos complexas, menor região de influência e porte populacional; centros de zona, já com menores níveis de atividades de gestão e relações comerciais e de serviços baseadas na proximidade com outras regiões; e centros locais, cidades que exercem influência restrita a seus próprios limites territoriais, podendo atrair populações de outros territórios mas não sendo o seu destino principal. A pesquisa Regic/IBGE (IBGE, 2018) indica que a maior parte dos municípios brasileiros é de pequeno porte (menos de 20 mil habitantes), isto é, são considerados centros locais. Contudo, a maior parte da população está concentrada nas metrópoles e nas capitais regionais, cujas ações durante a pandemia precisam ser observadas detalhadamente.
Desse modo, cruzaram-se os dados coletados pelo questionário com a Regic, e uma análise foi feita sobre as medidas tomadas pelos municípios. Para isso, utilizou-se o software R (R: The R Project for Statistical Computing, 2020) para fazer uma análise descritiva das medidas coletadas pelo questionário. Os municípios foram agregados por grande região (Sul, Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste) e por classificação na Regic para cada uma das variáveis.
Defende-se a ideia de que a análise das intervenções não farmacológicas realizadas pelos municípios brasileiros precisa levar em consideração a importância deles na rede de cidades. Consideramos as medidas tomadas pelos entes municipais na pandemia de Covid-19, que neste estudo são descritas como variáveis, como resultado de um processo político de construção de resposta à crise sanitária.
Conforme apontado, a pesquisa conseguiu respostas de 3.976 municípios, e todos eles adotaram alguma das medidas oferecidas como resposta de combate à pandemia. Sobre os municípios que realizaram medidas de diminuição de aglomerações, identificou-se que aqueles classificados como metrópoles foram os que menos implementaram medidas desse tipo (47%), comparativamente às outras tipologias de cidades. Em relação às demais, 56% das capitais regionais adotaram medidas de restrição às aglomerações, e 69% dos municípios considerados centros sub-regionais aderiram a essa providência. Além disso, 70% dos municípios classificados como centros de zona e centros locais adotaram medidas semelhantes ( Quadro 1).

Esses dados mostram que as cidades com maior influência foram as que, comparativamente, relataram ter adotado menos medidas de diminuição de aglomerações. Por outro lado, um percentual maior de municípios de menor influência na rede de cidades implementou medidas desse tipo.
No que concerne aos municípios que adotaram medidas de promoção ao isolamento social, 40% daqueles considerados metrópoles e 43% dos considerados capitais regionais tomaram tais medidas. Em relação aos centros sub-regionais e aos centros de zona, esse valor aumenta para 49% em ambos. É interessante apontar que dos municípios considerados centros locais, ou seja, os municípios pequenos e com pouquíssima influência na rede de cidades, 56% adotaram medidas de isolamento social, demonstrando, assim, maior sensibilidade ao tema. É importante ressaltar também que, nos centros locais, a relação entre os agentes públicos e os munícipes é mais próxima, dada a dinâmica social existente nesses pequenos aglomerados urbanos, e esse é um fator que pode ter tido algum efeito na forma como as respostas à pandemia foram conduzidas.
Sobre os municípios que reduziram a oferta de transporte público, apenas 27% dos considerados metrópoles relataram que aderiram a tal medida. Em relação aos municípios que ocupam a função de capitais regionais, esse valor foi de 48%, percentual muito próximo daquelas cidades consideradas centros sub-regionais, em que 46% adotaram a medida. Quanto aos municípios considerados centros locais e centros de zona, de menor porte populacional e menor influência na rede de cidades, 32% e 30%, respectivamente, implementaram medidas de redução do transporte público.
Em relação às medidas relativas ao uso de máscara, os municípios classificados como centros locais, centros sub-regionais e centros de zona apresentam percentuais semelhantes de implementação, em torno de 69%. Contudo, verifica-se percentual menor nos municípios de maior influência na rede de cidades, visto que apenas 47% das metrópoles e 56% das capitais regionais implementaram tal medida.
Sobre os municípios que flexibilizaram qualquer uma das medidas adotadas, as metrópoles apresentaram percentual mais alto (86%). Nesse sentido, todos os percentuais são altos para todas as tipologias de municípios. Destaque principalmente para as capitais regionais (70%) e os centros sub-regionais (77%). Observou-se que mesmo havendo relativa adesão às medidas de contenção da pandemia, elas foram flexibilizadas posteriormente.
Dos 3.976 municípios pesquisados que implementaram alguma medida não farmacológica de combate à pandemia, identificou-se que 2.114 optaram por alguma flexibilização e 1.862 afirmaram que não adotaram medidas de flexibilização. Os dados mostram que 516 (24%) deles flexibilizaram as medidas após dois meses ou mais, e 962 (46%) entre trinta e sessenta dias após o decreto. É interessante observar que 636 municípios (30%) suspenderam as medidas imediatamente, com menos de trinta dias após o decreto ( Quadro 2).

Em relação à análise das medidas por grande região, os municípios da Região Sudeste foram os que mais impuseram barreiras sanitárias em seus territórios, acompanhados dos municípios nordestinos. Sobre as medidas de diminuição de aglomerações, destaca-se a Região Sul, onde 93% dos municípios adotaram medidas desse tipo, acompanhados pelos municípios das regiões Sudeste, com adesão de 87%, e Nordeste, 49%. Nesse sentido, destaca-se que apenas 28% dos municípios da Região Norte adotaram ações de diminuição de aglomerações ( Quadro 3).

Quanto às medidas de diminuição das linhas de transporte público, identificou-se que apenas 9% dos municípios da Região Norte adotaram tal estratégia, acompanhados pelos municípios do Centro-Oeste (19%). Em relação a essa variável, os municípios das regiões Sul e Sudeste foram os que mais implementaram ações desse tipo – 44% e 41%, respectivamente.
No que concerne às medidas de isolamento social, os municípios das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste apresentam elevado percentual de implementação, com 71%, 69% e 47%, respectivamente. Apenas 21% dos municípios da Região Norte e 41% dos municípios nordestinos desenvolveram tais medidas.
Em relação ao uso de máscaras em público, destaca-se novamente a baixa adesão dos municípios da Região Norte, média adesão nas regiões Centro-Oeste e Nordeste e alta adesão nas regiões Sul e Sudeste.
Autonomia ou descoordenação: como interpretar a condução de políticas públicas de enfrentamento da pandemia de Covid-19 no contexto federativo brasileiro?
O estudo identificou disparidades e heterogeneidade entre as ações adotadas pelos municípios brasileiros no combate à pandemia da Covid-19. A trajetória brasileira de desenvolvimento das políticas de saúde, principalmente após a consolidação do SUS, apresenta tendência à concentração de autoridade legislativa sobre as políticas de saúde e recursos no governo federal, em regra dotado de mais capacidade para a formulação e o financiamento de políticas ( Arretche, 2003; Lima et al., 2020). Essa concentração de autoridade legislativa no Ministério da Saúde garantiu que políticas e programas (como as ações voltadas à Estratégia Saúde da Família e à atenção básica) fossem implementados de forma uniforme e coordenada pelo país nas últimas décadas. Observou-se, durante a pandemia, a falta de protocolos claros de ação e estratégias nacionais de enfrentamento do patógeno por parte do governo federal. Dessa forma, cada governo municipal implementou suas próprias políticas para lidar com a emergência sanitária, criando, assim, descompassos e vazios assistenciais ( Abrucio et al., 2020).
É consenso na literatura ( Grin et al., 2018; Lima et al., 2020) que os entes municipais são extremamente desiguais em termos sociais, econômicos e em relação às capacidades de desenvolvimento das políticas públicas em áreas como educação, saúde, financiamento etc. Isso torna o desenvolvimento de políticas de caráter universal um processo altamente complexo e que exige coordenação por parte da União para que todos os cidadãos sejam atendidos de forma equânime e universal, independentemente da unidade da federação em que vivem. Além disso, argumenta-se que os municípios desempenham distintas funções na rede de cidades, por isso requerem atenção especial dos formuladores de políticas de saúde. Nesse sentido, a pandemia de Covid-19 trouxe os municípios para o centro do debate nacional e, principalmente, colocou-os como protagonistas na condução das medidas de distanciamento social, testagem e tratamento dos pacientes infectados.
A heterogeneidade das ações tomadas pelos municípios brasileiros também pode ser compreendida como um resultado do precário desenvolvimento do processo de regionalização da saúde no Brasil ( Duarte et al., 2015). A região de saúde é entendida como um território de referência para o planejamento e implementação das ações de saúde, e a regionalização é compreendida como uma alternativa para buscar o arrefecimento das desigualdades no acesso ao SUS, principalmente no que tange aos municípios de menor porte populacional e desprovidos de serviços de média e alta complexidades. Assim, a organização regional das demandas e estratégias de enfrentamento da crise sanitária integraria os serviços de saúde e os níveis de cuidado mediante uma lógica territorial. Uma vez que houve heterogeneidade regional e estadual na formulação e na implementação de medidas de prevenção e enfrentamento da pandemia, criou-se um cenário de fragilização do SUS e das políticas voltadas à contenção da pandemia.
O estudo de Fortaleza e colaboradores (2020) afirma que mais da metade dos casos de Covid-19 no estado de São Paulo ocorreram na região metropolitana da capital, onde há maior concentração populacional. Esse fenômeno, segundo os autores, criou uma falsa sensação de segurança nos municípios situados no interior do estado. Eles sugerem a hipótese de que a disseminação da pandemia obedeceu à hierarquia da rede de cidades paulistas, disseminando-se pelas cidades importantes do interior do estado e, de lá, para os pequenos centros urbanos. Nesse sentido, destaca-se o esforço feito neste estudo de observar como os municípios que têm maior influência na rede de cidades implementaram medidas de enfrentamento da pandemia. Estudos que observaram as relações intergovernamentais nesse período apontaram para a redução conjuntural do papel da União na coordenação da resposta à pandemia ( Abrucio et al., 2020; Pereira, Oliveira e Sampaio, 2020), o que aumentou a descoordenação intergovernamental e a desigualdade no acesso a recursos, informações e tecnologias entre estados e municípios. A literatura mostra que o papel errático da União no desenvolvimento de ações e na formalização de protocolos coesos fomentou conflito entre os entes federados, delegou responsabilidades e dificultou a tomada de decisões dos entes subnacionais. Essa falta de comunicação clara a respeito de quais seriam as normas de isolamento social e de que modo seria feita a distribuição de recursos e equipamentos médicos enfraqueceu o federalismo cooperativo no Brasil que há anos vinha sendo implementado. O próprio desenvolvimento do SUS e seus mecanismos de ação (como os repasses fundo a fundo, a programação pactuada integrada, o desenho das regiões de saúde e das coordenadorias intergestoras) podem ser entendidos como fruto do federalismo cooperativo em que os três entes federados compartilham responsabilidades e recursos.
Conforme apontou um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) ( Costa et al., 2020), a dinâmica de propagação da pandemia se associou a aspectos ligados à rede urbana brasileira. Assim, as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, altamente conectadas aos fluxos internacionais de circulação de pessoas, tornaram-se, no primeiro momento, o epicentro da pandemia. Contudo, a disseminação do vírus, iniciada no circuito das grandes metrópoles, passou a afetar as outras cidades do país, até atingir os municípios considerados mais isolados, considerados centros locais pela pesquisa Regic/IBGE.
Estudos internacionais afirmam que os territórios marcados por expressivas desigualdades socioespaciais e por diferentes condições demográficas, habitacionais e de infraestrutura urbana são mais vulneráveis à pandemia de Covid-19 ( Borjas, 2020; Connolly, Keil e Ali, 2020; Gupta, Dhamija e Gaur, 2020). Por essa razão, indicam ser imprescindível observar os territórios, tanto no que diz respeito à dinâmica de propagação da pandemia quanto no que toca às estratégias de seu enfrentamento.
Neste estudo, considerou-se necessário observar como os municípios desenvolveram respostas à pandemia a partir do olhar regional, adotando os critérios estipulados pelo IBGE, na classificação da rede de influência das cidades. Verificou-se que os municípios oriundos das regiões Norte e Centro-Oeste foram os que, em média, tiveram menor capacidade de resposta à pandemia e, em decorrência, implementaram menos ações não farmacológicas de controle. Por sua vez, os municípios das regiões Sul, Nordeste e Sudeste foram os que se mostraram capazes de formular e implementar tais medidas.
No que toca à análise por tipologia de município, constata-se que houve baixo percentual de municípios que adotaram medidas de enfrentamento da pandemia de Covid-19, principalmente aqueles classificados como capitais regionais e metrópoles. Ressalta-se que a grande maioria da população brasileira vive nesses municípios, altamente conectados na rede de cidades e que apresentam intensas dinâmicas metropolitanas de circulação de pessoas. Dentre os municípios que tomaram alguma medida contra o Covid-19, tais como a implantação de barreiras sanitárias, medidas restritivas para diminuição da circulação/aglomeração de pessoas, medidas de isolamento social, permitindo apenas serviços essenciais, uso obrigatório de máscaras faciais e redução da oferta de transporte público, a maioria suspendeu as ações ao longo do tempo.
É interessante observar que os municípios com mais influência na rede de cidades, como as metrópoles e capitais regionais, e que, em consequência, concentram maior número de habitantes, foram os que mais flexibilizaram as medidas de contenção do vírus. Esse dado pode ser entendido como resposta às pressões oriundas de diversos setores pela abertura das atividades comerciais e produtivas e falta de incentivo por parte do governo federal para seguir com as medidas mais restritivas de controle da pandemia. Contudo, são necessários mais estudos para explicar essa questão.
Este artigo buscou analisar as medidas não farmacológicas tomadas pelos municípios na pandemia de Covid-19. Constatou-se que a autonomia dos municípios para desenvolver as ações de enfrentamento da pandemia resultou em heterogeneidade de ações implementadas tanto em nível macrorregional quanto mediante a análise das tipologias dos municípios. Nesse sentido, procurou-se observar de forma detalhada as ações tomadas pelos municípios com base na classificação de sua importância na rede de cidades e distribuição regional. Esse cruzamento permitiu conferir pesos e medidas distintas às ações dos municípios brasileiros, com base na influência que eles exercem na rede de cidades.
Verificou-se que os municípios situados nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste foram os que mais adotaram medidas de enfrentamento da pandemia, porém houve baixa adesão dos situados na Região Norte. Além disso, observou-se que os municípios classificados como capitais regionais e metrópoles, que concentram a maior parte da população brasileira, apresentaram baixos percentuais de adesão em relação aos entes com menor influência na rede de cidades, tais como os centros regionais, os centros de zona e os centros sub-regionais. No que concerne à flexibilização das ações, as metrópoles e capitais regionais foram as que, percentualmente, mais adotaram essas medidas.
A importância dos municípios no enfrentamento da pandemia de Covid-19 não vai se encerrar quando a disseminação do vírus for controlada. Também é preciso apontar que o período pós-pandemia deverá aprofundar inúmeras questões sociais, relativas ao aumento da vulnerabilidade social, à insegurança alimentar, ao desemprego e à recessão econômica. Nesse caso, serão demandados dos entes municipais serviços de assistência social, maior protagonismo das escolas e ações no sentido de segurança alimentar à população. Além disso, os municípios continuarão a ser os principais agentes no processo de implementação das políticas de saúde, principalmente no que tange à atenção básica.
Em relação às limitações da pesquisa, ressalta-se que 30% dos municípios não atenderam à solicitação da instituição para a coleta dos dados, o que prejudicou a montagem do quadro nacional sobre quais medidas os entes municipais tomaram em relação à pandemia, por quanto tempo essas medidas perduraram, se foram eficazes na redução de casos etc. Além disso, analisaram-se apenas as medidas tomadas pelos municípios, deixando de fora a análise dos governos estaduais.


