Resenha
Capitalismo, guerra e violência: emergência de um agenciamento emancipatório e revolucionário
Capitalismo, guerra e violência: emergência de um agenciamento emancipatório e revolucionário
Trabalho, Educação e Saúde, vol. 19, e00324156, 2021
Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
| LAZZARATO Maurizio. Fascismo ou revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. 2019. São Paulo. N-1 Edições. 208pp. | 
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Recepção: 07 Julho 2021
Aprovação: 09 Julho 2021
Maurizio Lazzarato é um sociólogo italiano que tem se dedicado a pensar temas como capitalismo contemporâneo, trabalho imaterial e biopolítica. Em seu mais recente livro, Fascismo ou revolução?, afirma a necessidade de se ‘pensar no limite’1 (os possíveis não realizados) para a superação do capitalismo e de sua máquina de guerra, que opera sob o signo da violência, marca indelével dos processos de acumulação.
A alternativa ‘fascismo ou revolução?’ que dá título à obra é assimétrica, pois já estamos inseridos em uma sequência de ‘rupturas políticas’ praticadas por forças fascistas, sexistas e racistas (FSR). Hoje, a ideia de revolução não passa de mera hipótese, estabelecida pela urgência de pautar o que o neoliberalismo conseguiu apagar da memória e da ação coletiva. O presente nos faz ver que neofascismo é, sobretudo, a outra face do neoliberalismo.
O livro está estruturado em três partes. Na primeira, “A máquina do capital e os novos fascismos”, o autor aborda uma multiplicidade de aspectos que atravessam o tema dos fascismos contemporâneos e da Máquina de Guerra do Capital (MGC). Na segunda, o grande tema será um esforço de definição acerca da máquina técnica e da máquina de guerra (MG). Na terceira parte, o autor apresenta algumas hipóteses. Busca um novo olhar sobre a derrota de 1960 e o desaparecimento da palavra revolução, mediante a mobilização de quatro autores: Fanon, Tronti, Carla Lonzi e Hans-Junger Krahl.
Na primeira parte, Lazzarato inclui uma discussão a respeito do caso brasileiro como marca da recente onda FSR, presente em vários países e que remete ao nascimento do neoliberalismo no Chile. Nesse sentido, a obra explicita a possibilidade latente de compatibilização entre ditadura e neoliberalismo.
O autor analisa como a MGC opera transformando o adversário político em vencido, disciplina os governados e, com as subjetividades devastadas, o neoliberalismo pode livremente se impor. É somente após promover a ‘tábula rasa subjetiva’ que se edifica o aparato neoliberal, cuja exemplificação operativa é a governança financeirizada (via crédito) dos governos petistas no Brasil, que transformou os pobres e assalariados em homens endividados e acabou servindo à MGC por meio da mobilização dos sentimentos de tristeza.
Considerando que o capital quer se tornar independente da classe trabalhadora, o neoliberalismo rompe com o pacto do emprego e da universalidade de direitos. No contexto norte-americano, i.e, Trump mobiliza o medo e a angústia do homem endividado, tornando-o disponível às aventuras neofascistas para proporcionar o gozo da volta do poder que as camadas brancas proprietárias perderam (Brown, 2019). O neofascismo seria, portanto, uma forma de se resgatar a democracia dos proprietários, fissurada pelas revoluções sociais que conquistaram direitos para todos.
É neste panorama que o autor realiza uma crítica às teorias do pós-68, enfatizando que estes movimentos teriam deixado de problematizar a guerra e a revolução. Quando os ‘vencidos’ abandonam a ideia de guerra e quando reduzem a revolução a termos tecnológicos, perdem de vista os meios pelos quais certas conquistas foram possíveis e permitiram a captura de direitos já alcançados.
Em contrapartida, a matriz do capitalismo contemporâneo tem sua origem na mundialização da guerra e na mobilização das forças sociais para a produção da destruição. Ao contrário da posição tomada no pós-68, o argumento do livro é que a relação inseparável entre capital e guerra suprime qualquer suposição de paz.
A ampliação da produção pela circulação encontra, entretanto, resistências nas lutas coletivas e individuais, de modo que a noção de governamentalidade implica uma relação com o imprevisível. No entanto, no capitalismo essa relação com a aleatoriedade do evento passa necessariamente pelas técnicas de guerra (contra a população).
É na derrota da revolução onde é essencial buscar as razões das transformações da guerra que levaram às duas guerras totais. Uma das mudanças fundamentais aconteceu depois desses conflitos: o Estado e a guerra se tornando funções da MGC. O Estado perde o monopólio da violência e a ideia de ‘conquista’ deixa de ser prerrogativa sua para se tornar do capital.
Outra crítica diz respeito à transformação da guerra civil mundial em biopolítica, criando uma guerra sem ‘inimigo’. Com a dissolução da classe no conceito biopolítico de população, o poder enxerga por todo lado como perigo o terrorista, e não mais a revolução. Não há mais inimigos a vencer, apenas vencidos a governar e terroristas a anular.
Desse modo, o poder como “produção” (Foucault, 1976, p. 167) não corresponde à experiência do neoliberalismo. Desde o fim do último século, a guerra, os fascismos, o racismo e o sexismo manifestaram a natureza ‘negativa’ e destrutiva do poder. Guerra e governamentalidade são técnicas que funcionam concomitantemente, sem passar pela paz. Não passamos historicamente de um poder soberano ao biopoder, pois, da perspectiva do ‘mercado mundial’, o poder de morte nunca deixou de se exercer.
Na segunda parte do livro, o grande tema será um esforço de definição acerca da máquina técnica e da máquina de guerra (MG). Para que tal seja possível, é crucial abandonar as utopias tecnocibers, que enxergam a ruptura a partir das máquinas e não da política. Imperioso é entender a máquina técnica como submetida à estratégia colocada em prática pela MGC.
Com base em Lewis Mumford, o autor de Fascismo ou revolução? aponta que a própria sociedade é uma megamáquina que agencia humanos e máquinas técnicas. Contudo, é preciso ir além e perceber, como fizeram Deleuze e Guattari, que a máquina social é uma máquina de guerra.
Lazzarato defende a necessidade de abandonar a definição de máquina social porque esta produz de maneira impessoal as normas e os habitus; e adotar a máquina de guerra, que implica dominante/dominado, relações de força para a produção normativa, do fazer morrer e da violência. É a MG a produtora das técnicas e das subjetividades humanas a ela adequadas.
As grandes empresas de tecnologia, criadoras das condições para a instauração da máquina supremacista trumpista, não são detentoras de tanto poder quando confrontadas pelos afetos organizados pela MG midiática do ressentimento nos Estados Unidos. O Vale do Silício dobrou-se aos novos arcaísmos da extrema-direita, o que desencadeou batalhas políticas no interior das elites, que optaram pelo jogo do neofascismo.
Nesse sentido, para o enfrentamento político é essencial desenvolver uma máquina de guerra revolucionária, o que exige enfrentar a maior vitória do neoliberalismo: a inscrição no cérebro coletivo de uma amnésia quanto às sucessivas revoluções anticapitalistas do século XX.
Quem apagou a revolução da memória foi a máquina social e não a técnica, pois quem impõe a relação credor/devedor e a sujeição do endividado é a MG, por meio da técnica, assim como submete o humano à ‘civilização do rendimento’.
A relação humano-máquina no seio da MGC necessita de órgãos sociais de decisão, chamados de tecnocracia e burocracia. Em tempos de crise, a gestão não se dá por dispositivo automático, mas pela ação desses órgãos decisórios. Tais crises, não apenas econômicas, criam a chance de guerra civil, cujas intervenções estão abertas à tecnocracia e à burocracia, mas também aos fascistas.
A MGC nunca tem funcionamento impessoal, são relações de poder. Elas instauram e reinstauram os grandes fluxos de moedas, tecnologias, capitais, bem como as hierarquias de raça, sexo e classe (RSC). As subjetividades até escolhem, mas estão ‘destinadas’ a restabelecerem o funcionamento desta máquina.
A MG revolucionária, por sua vez, tem como desafio suspender a distribuição do possível e do impossível na ordem da MGC. Ou seja, para que se realize a conversão da subjetividade e a superação do capitalismo, essa máquina deve promover a ‘guerra’ contra o capital.
Em “Devir revolucionário e revolução”, terceira e última parte, o autor apresenta algumas hipóteses, partindo da crítica da separação realizada no pós-68 entre revolução social e revolução política. O ‘devir revolucionário’ (crítica das sujeições, produção diferencial de subjetividade etc.) que determinadas transformações subjetivas instauram não pode ser dissociado da ‘revolução’, sob o alto pedágio não apenas de se converter em um componente do capital, mas precisamente de servir à (auto)destruição, manifestada atualmente na forma do neofascismo.
Seguindo neste raciocínio, mesmo com o fracasso da Revolução de 1917, a guerra civil mundial prosseguiu, mas tal guerra pode ser vista de duas maneiras: pelo Estado (biopolítica) ou pela revolução, sendo a última a única capaz de enxergar a subordinação do Estado e suas instituições ao capital. Não há autonomia e a MGC é um soberano sui generis.
As estratégias revolucionárias da ‘socialização’ e ‘comunicação’ são inconciliáveis, porque a emergência dos movimentos das mulheres e colonizados deslocaram os processos revolucionários, pois os enfrentamentos destes são outros, não apenas tomada e gestão de poder.
Lazzarato introduz, partindo de Lonzi e Fanon, uma crítica à dialética, sob o argumento de que ela só funcionaria no contexto de conflitos que se dão no interior do “modelo majoritário” (p. 190) (branco, masculino, adulto). O processo revolucionário é ruptura não dialética da história que deve ser aberta para a invenção e a descoberta do inusitado. No entanto, o sujeito revolucionário não pode ser antecipado por imaginação e projeto.
Nesse sentido, a classe operária não incorpora mais a universalidade do sujeito revolucionário. A partir do pós-guerra, nem todos os explorados e dominados vão se identificar com o operariado, os pontos de resistência são muitos e eles afirmam ‘verdades’ heterogêneas e frequentemente incompatíveis.
O que Lazzarato reivindica, em suma, é uma reconciliação com a ideia de revolução. A ruptura é urgente e algumas teorias, como os estudos pós-coloniais, suprimem a atualização necessária desta forma precisa de insurreição. O ponto de vista pós-colonial seria o de dominados enclausurados na dominação, que deixaram de observar o que os colonizados do século XX, partindo de sua ‘escravidão’, afirmavam reiteradamente: a revolução.
Enfim, é necessário integrar os possíveis não realizados da revolução dos anos 1960 para então pensá-los em sua realização prática. Tais possíveis, segundo o autor, bem como a série de sublevações efervescentes desde a derrocada financeira de 2008, têm eclodido em um vazio político sem a dimensão da revolução e correm o risco de serem capturados pelos novos fascismos.
Referências
ALTHUSSER, Louis. L’unique tradition matérialiste. Lignes, n. 8, p. 72-119, 1993. Paris: Editions Hazan. Directeurs: Michel Surya.
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo. Editora Politéia, 2019.
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I. Paris: Gallimard, 1976, p. 167. [Ed. bras.: História da Sexualidade 1: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
Notas