Resumo: Os múltiplos impactos da Covid-19 nos territórios de vinculação das equipes da Estratégia Saúde da Família requerem reorganizar o processo de trabalho. Neste estudo, propõe-se analisar as recomendações da Secretaria de Saúde da cidade do Recife (Pernambuco) direcionadas às mudanças no processo de trabalho da Estratégia durante a pandemia de Covid-19, relacionando-as com as singularidades socioespaciais dos territórios de vinculação das equipes. Trata-se de estudo de caso desenvolvido mediante pesquisa documental (N=14). Os resultados indicam que os componentes do processo de trabalho (objeto, instrumentos, ações e finalidades) estão centralizados na doença, pressupondo um trabalho com abordagem individual e clínica. As ações coletivas de promoção e vigilância são direcionadas quase que exclusivamente ao agente comunitário de saúde. Em geral, as recomendações não consideram a magnitude das necessidades de saúde decorrentes das repercussões da Covid-19 e contemplam de forma incipiente as singularidades socioespaciais dos territórios. No entanto, os resultados obtidos retratam apenas a perspectiva das recomendações, evidenciando a necessidade de se checar a operacionalização, na busca de compreender a direcionalidade e a amplitude do processo de trabalho reorganizado em virtude da pandemia de Covid-19 e sua relação com as singularidades socioespaciais.
Palavras-chave: Covid-19Covid-19,Atenção Primária à SaúdeAtenção Primária à Saúde,Estratégia Saúde da FamíliaEstratégia Saúde da Família,processo de trabalhoprocesso de trabalho,território socioculturalterritório sociocultural.
Abstract: The multiple impacts of COVID-19 on the territories where the teams of the Family Health Strategy are linked require reorganizing the work process. In this study, it is proposed to analyze the recommendations of the Health Department of the city of Recife (Pernambuco) aimed at changes in the work process of the Strategy during the COVID-19 pandemic, relating them to the socio-spatial singularities of the territories where the teams are linked. This is a case study developed through documentary research with 14 documents. The results indicate that the components of the work process (object, instruments, actions and purposes) are centered on the disease, presupposing work with an individual and clinical approach. The collective actions of promotion and surveillance are directed almost exclusively at the community health agent. In general, the recommendations do not consider the magnitude of the health needs arising from the repercussions of COVID-19 and incipiently contemplate the socio-spatial singularities of the territories. However, the results obtained only portray the perspective of the recommendations, highlighting the need to check the operationalization, in the search to understand the directionality and width of the reorganized work process due to the COVID-19 pandemic and its relationship with the socio-spatial singularities.
Keywords: COVID-19, Primary Health Care, Family Health Strategy, work process, sociocultural territory.
Resumen: Los múltiples impactos de la Covid-19 en los territorios donde se vinculan los equipos de la Estrategia Salud de la Familia exigen reorganizar el proceso de trabajo. En este estudio, se propone analizar las recomendaciones de la Secretaria de Salud de la ciudad de Recife (Pernambuco) dirigidas a cambios en el proceso de trabajo de la Estrategia durante la pandemia de Covid-19, relacionándolas con las singularidades socioespaciales de los territorios donde se vinculan los equipos. Se trata de un estudio de caso desarrollado mediante una investigación documental con 14 documentos. Los resultados indican que los componentes del proceso de trabajo (objeto, instrumentos, acciones y finalidades) están centrados en la enfermedad, suponiendo un trabajo con abordaje individual y clínico. Las acciones colectivas de promoción y vigilancia están dirigidas casi exclusivamente al agente comunitario de salud. En general, las recomendaciones no consideran la magnitud de las necesidades de salud derivadas de las repercusiones de la Covid-19 y contemplan de manera incipiente las singularidades socioespaciales de los territorios. Sin embargo, los resultados obtenidos solo retratan la perspectiva de las recomendaciones, destacando la necesidad de verificar si dicho proceso está operable, con la intención de comprender la direccionalidad y amplitud del proceso de trabajo reorganizado en virtud de la pandemia de Covid-19 y su relación con las singularidades socioespaciales.
Palabras clave: Covid-19, Atención Primaria de Salud, Estrategia Salud de la Familia, proceso de trabajo, territorio sociocultural.
Artigo
Processo de trabalho da Estratégia Saúde da Família na pandemia no Recife-PE: singularidades socioespaciais
Work process of the Family Health Strategy during the pandemic in Recife, Brazil: socio-spatial singularities
Proceso de trabajo de la Estrategia Salud de la Familia durante la pandemia en Recife, Brasil: singularidades socioespaciales
Recepção: 14 Setembro 2021
Aprovação: 15 Dezembro 2021
A pandemia da Covid-19 constitui um dos maiores desafios da atualidade no campo da saúde pública. Surgida na China no final de 2019, tem impactado, do ponto de vista global e local, as dinâmicas epidemiológicas, econômicas, sociais, políticas e culturais, requerendo do setor saúde a adoção de estratégias rápidas de reorganização da rede de saúde para o enfrentamento dos seus múltiplos impactos (Sarti et al., 2020; Giovanella et al., 2021).
As evidências teóricas e práticas sinalizam que a disseminação da Covid-19 tem importante relação com a vulnerabilidade socioeconômica em que se encontram determinados grupos, ou seja, vai além do processo puramente biomédico (Minayo e Freire, 2020; Estrela et al., 2020; Gondim, 2020; Khalidi, 2020). Estudo que avaliou o comportamento da doença nos seis primeiros meses confirmou que o perfil epidemiológico é resultante de uma combinação de fatores envolvendo o nível de desenvolvimento socioeconômico, o acesso ao apoio-diagnóstico (incluindo testes) e a assistência aos sintomáticos, bem como a capacidade de prevenção e controle da transmissão do vírus e da doença por meio de um conjunto de medidas não farmacológicas (Fiocruz, 2020).
Países como Uruguai e Cuba, em que a Atenção Primária à Saúde (APS) foi ativada precocemente e cujos modelos de organização dos serviços têm no território a base para planificação das práticas em saúde, apresentaram resultados mais eficazes com a integração das ações de vigilância em saúde e as de promoção, prevenção e cura (Giovanella et al., 2021). No entanto, a pandemia chega ao Brasil em contexto de múltiplas crises - política, econômica e sanitária -, em que a Atenção Primária vem vivenciando uma sequência de retrocessos que teve início no final de 2016 com a aprovação do projeto de emenda constitucional n. 95 (PEC/95), que congelou os gastos da União com as despesas primárias por vinte anos, incluindo a saúde (Anderson, 2019).
As mudanças instituídas em 2017 com a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) vão tomando contornos mais concretos em 2019, principalmente quando o Ministério da Saúde adota a nomenclatura de Atenção Primária à Saúde nas novas normativas para AB. A opção pela denominação de Atenção Básica, desde o início da implantação da política, surge em contraposição político-ideológica à Atenção Primária Seletiva destinada às populações mais pobres, firmando o compromisso da AB com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Também foi modificada a lógica de financiamento da Atenção Primária (AP) com a instituição do Programa Previne Brasil, que passou a ser por meio de cadastro, comprometendo o princípio da universalidade. Em 2020, entra em vigor a Carteira de Serviços para a APS (CaSAPS), que estabelece um elenco de serviços a ser oferecido pela AP (Morosini, Fonseca e Lima, 2018; Morosini, Fonseca e Batista, 2020).
Essas mudanças estruturais na Atenção Básica adotadas pelo Ministério da Saúde nos últimos três anos vêm tornando mais concreta a disputa político-ideológica que sempre cercou o processo de implementação do SUS e da AB, no sentido de assegurar um sistema de saúde com princípios que garantam o acesso universal e a integralidade no cuidado com equidade. Segundo Morosini, Fonseca e Batista (2020), Giovanella et al. (2020) e Anderson (2019), tais mudanças representam ameaças concretas aos pressupostos do SUS e do modelo de vigilância em saúde, destacando-se a opção pelo modelo biomédico, com ênfase quase que exclusiva ao cuidado individual e curativo, denotando uma concepção restrita de APS.
Entretanto, a Política Nacional de Atenção Básica de 2017, mesmo com toda a controvérsia que a cerca, mantém em seu texto que a Estratégia Saúde da Família (ESF) é a porta de entrada preferencial do sistema de saúde (Brasil, 2017) - embora flexibilize e financie a implantação das equipes de APS (Morosini, Fonseca e Lima, 2018). Tal postura difere das dimensões político-institucional, organizativa e técnico-assistencial que regem o modo de organizar as ações e dispor os meios técnico-científicos para intervir sobre os problemas e as necessidades de saúde propostas para a ESF.
Desde a sua implantação no início da década de 1990, ainda na condição de Programa Saúde da Família (PSF), posteriormente ESF, foi estruturada pela lógica do modelo de vigilância em saúde, trazendo entre seus pilares o território como base de organização dos serviços e ações de saúde, com foco na identificação dos problemas de saúde, riscos, vulnerabilidades e necessidades de saúde para o desenvolvimento de práticas intersetoriais (Teixeira e Solla, 2006).
Os territórios são diferentes, têm particularidades materiais e simbólicas, de modo que a compreensão dos contextos territoriais permite aos profissionais de saúde reconhecerem dinâmicas sociais, econômicas, políticas e identitárias que possibilitam a identificação dos múltiplos saberes e o estabelecimento de parcerias para o enfrentamento dos problemas e das necessidades da população, visando potencializar a capacidade operacional do sistema de saúde local (Gondim e Monken, 2017).
Segundo Gondim e Monken (2017), Haesbaert (2014) e Santos (1999), o território usado produz singularidades socioespaciais que resultam da relação entre a ordem local e forças externas e da interação social no cotidiano, que se materializam concretamente nos diferenciais das condições de moradia, trabalho e acesso a bens e serviços. Simbolicamente, isso acontece por meio da emoção, da cooperação, da copresença, da vizinhança e da intimidade, produzindo normas culturais e identitárias capazes de fortalecer ou enfraquecer o suporte e a coesão social.
No contexto das múltiplas repercussões da pandemia de Covid-19 nos territórios de vinculação da ESF, torna-se imprescindível o reconhecimento das singularidades do território. Na perspectiva da dimensão técnico-assistencial que fundamenta a prática na ESF, considera-se que a identificação das singularidades permite a relação (processo de trabalho) dos profissionais (sujeitos da ação) com os objetos de trabalho (as necessidades de saúde) que, mediados pelo saber e pela tecnologia (os instrumentos), vão realizar a ação em vários campos de competência (promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos, vigilância, recuperação e reabilitação), no sentido de alcançar a finalidade (responder às necessidades de saúde individuais e ou coletivas que se expressam no território) (Teixeira e Solla, 2006).
Entretanto, Medina et al. (2020), Fernandez, Lotta e Correa (2021) e Giovanella et al. (2021) assinalam tendência mundial em priorizar as estruturas de cuidado de alta complexidade com respostas hospitalares, centradas em ações curativas, seguindo a lógica biomédica e hospitalocêntrica, em detrimento da atenção integral de enfoque promocional e preventivo como primeira medida de abordagem - embora, historicamente, a ESF tenha desempenhado um papel fundamental no enfrentamento de epidemias, a exemplo de sua atuação eficaz, recentemente, no combate a situações adversas de saúde provocadas pelo zika vírus, no Recife (Fernandes et al., 2018).
No Recife, capital de Pernambuco, na região Nordeste do Brasil, os primeiros casos de Covid-19 ocorreram em pessoas de classe economicamente mais favorecida, após retorno de viagens internacionais. Em meados de março de 2020, a pandemia alcançou a transmissão comunitária, atingindo a periferia da cidade. No curso de um ano de pandemia, a população recifense vivenciou dois momentos mais críticos, culminando na adoção de medidas restritivas mais severas, em maio de 2020 e março de 2021, repercutindo na suspensão temporária das atividades sociais e econômicas (Recife, Prefeitura, 2020a, 2021b).
As autoridades sanitárias do Recife também recorreram a medidas de organização da rede de atenção à saúde, construindo, em parceria com a Secretaria estadual de Saúde, sete hospitais de campanha, com ampliação de leitos destinados ao tratamento de pacientes suspeitos e confirmados com Covid-19, além de investimentos na compra de equipamentos médico-hospitalares e incremento significativo na contratação temporária de profissionais de saúde. Houve também mudanças na organização do processo de trabalho das equipes da Estratégia Saúde da Família (Recife, Prefeitura, 2020a, 2021b).
Parte-se do pressuposto teórico de que as ações propostas para enfrentamento da Covid-19 na APS têm direcionalidade individual e curativa, com a garantia do primeiro atendimento e o monitoramento de casos leves da nova doença (Gonçalves, 2020). Presume-se também que a vivência no cotidiano da rede APS Recife aponta para evidências de reorganização do processo de trabalho, mas que não contempla os impactos da Covid-19 em sua amplitude. Existe uma distância entre as recomendações e as necessidades reais das populações no sentido das ações de promoção, proteção, controle de riscos e soluções das vulnerabilidades provocadas ou acentuadas pelo contexto pandêmico.
Neste artigo, propõe-se analisar as recomendações da Secretaria de Saúde da cidade do Recife direcionadas às mudanças no processo de trabalho da Estratégia Saúde da Família durante a pandemia de Covid-19, relacionando-as com as singularidades socioespaciais dos territórios de vinculação.
Este estudo compõe a pesquisa intitulada Territórios e singularidades socioespaciais na Estratégia Saúde da Família no Recife-PE: uma análise do processo de trabalho na pandemia da Covid-19, classificada como estudo de caso (Yin, 2010). Dentre os métodos de procedimentos encontra-se essa etapa de pesquisa documental, com o uso de análise de conteúdo e técnica de condensação de significados (Kripka, Scheller e Bonotto, 2015; Bardin, 2011; Kvale, 1996).
Analisaram-se os documentos de domínio público publicados pela Secretaria de Saúde da cidade do Recife no período de março de 2020 a março de 2021, no endereço eletrônico: http://www.susrecife.com.br/2020/05/documentos-normativos-organizacao-da.html. Foram selecionados: protocolos, notas técnicas, documentos informativos e circulares, além daqueles direcionados às ações dos agentes comunitários de saúde (ACSs) sobre a atuação da APS ante a pandemia de Covid-19. A pesquisa resultou em um acervo constituído por 14 documentos técnicos (Quadro 1). Observa-se que os documentos analisados seguem as recomendações estabelecidas nos âmbitos nacional e estadual, cuja ênfase está no estabelecimento de fluxos de assistências voltadas ao controle da transmissão da doença. A análise dos documentos seguiu as etapas de pré-análise, exploração e tratamento do conteúdo recomendadas por Bardin (2011). Para interpretação e classificação dos temas, utilizou-se a matriz de condensação dos significados do conteúdo (Kvale, 1996), que conta com uma coluna como tema central, auxiliando a condensação das unidades naturais de análise. A definição dos temas centrais foi pautada em conformidade com o referencial teórico, que discute os componentes do processo de trabalho; o arcabouço teórico e normativo, que define as ações de competência da APS; e a base conceitual, que define seus atributos com enfoque territorial, o que resultou na elaboração de duas categorias. A primeira reflete três componentes (objetos, instrumentos e finalidade) do processo de trabalho, implícitos nas recomendações propostas para a APS no Recife ante a Covid-19; a segunda categoria contempla as ações recomendadas, relacionando-as com as singularidades socioespaciais dos territórios de vinculação da ESF. O estudo obedeceu aos preceitos éticos, conforme o parecer de número 4.799.872, emitido em 23 de junho de 2021 pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco (IAM/Fiocruz-PE).

A confirmação da transmissão comunitária da pandemia de Covid-19 em março de 2020, no Recife, gerou a necessidade de se definir o papel da APS no enfrentamento e no controle da pandemia, levando a gestão do SUS-Recife a adotar medidas de reorganização do processo de trabalho na APS/ESF.
Parte-se dos fundamentos teóricos que consideram o processo de trabalho como resultante da interação dos quatros elementos: o objeto do trabalho, os instrumentos, a finalidade e as ações dos agentes, entendendo que os componentes precisam ser analisados de forma articulada (Mendes-Gonçalves, 2017).
Observou-se nas cinco versões do Protocolo de assistência e manejo clínico na Atenção Primária à Saúde do Recife (D1, D2, D5, D9, D13 - ver Quadro 1) que os componentes do processo de trabalho das equipes da ESF foram direcionados para assegurar a manutenção do cuidado às demandas prioritárias da APS, o que tem se revelado uma estratégia importante, pois a suspensão do atendimento a esses grupos específicos pode aumentar o risco de agravamento dos quadros clínicos e, consequentemente, da mortalidade por outras causas (Giovanella et al., 2020). E no tocante à pandemia, a reorganização proposta tem centralidade no controle da infecção, cuja finalidade foi mitigar a transmissão sustentada no território.
A pandemia da Covid-19 vem se mostrando um desafio em todos os âmbitos da saúde pública [...] sendo necessário organizar a rede de serviços da Atenção Básica do Recife para atuar na identificação precoce e no manejo oportuno dos casos suspeitos de infecção humana por SARS-CoV-2, tendo como finalidade mitigar a transmissão sustentada no território. (D13, p. 6, ver Quadro 1)
A opção em direcionar os componentes do processo de trabalho para mitigação da doença indica um enfoque sanitário pautado no modelo biomédico, centrado na doença, com ênfase no manejo médico individual (Giovanella et al., 2021). Isso não reflete o contexto da pandemia em sua totalidade, uma vez que as evidências teóricas e empíricas apontam que a pandemia da Covid-19 altera os contextos global e local, gerando ou acentuando problemas de ordem social e econômica, e por fazer interface com vários campos da vida das pessoas, impacta de forma mais acentuada territórios vulnerabilizados (Ahmed et al., 2020), que são o cenário de trabalho das equipes que compõem a ESF.
Vale ressaltar que Recife é uma capital marcada por grandes desigualdades sociais, onde 53% da população é considerada Comunidade de Interesse Social (CIS), residente de territórios precarizados, cujos indicadores apontam baixa escolaridade; ocupação informal; baixa renda; condições de moradia inadequadas e falta de acesso à água, por exemplo. Esses territórios são denominados pelas autoridades municipais de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) (Recife, Prefeitura, 2016, 2020b, 2020c). No que se refere aos impactos da pandemia em Recife, um estudo realizado por Bitoun et al. (2020), que analisou o comportamento da epidemia em diferentes estratos populacionais com população CIS, confirmou que houve menor resposta do sistema de saúde para as pessoas que residem em áreas de precariedade habitacional. O estudo de Moura de Castilho e Silva (2020) chega a evidências semelhantes, afirmando que existe injustiça visível - e concreta - relativa aos impactos da pandemia em territórios precarizados em Recife.
Observou-se que mesmo diante das evidências impostas pelo contexto pandêmico, com repercussão diferenciada em territórios vulnerabilizados da cidade do Recife, as recomendações publicadas no período de 13 meses de pandemia mantêm a organização dos serviços com a finalidade de mitigar a transmissão, como é possível se observar no documento publicado em março de 2021:
Ao longo desse processo, a rede de AB do Recife foi reorganizada de modo a centralizar o atendimento de usuários com sintomas suspeitos em unidades de referência denominadas Unidade Provisória Centralizada de Atenção Básica - Covid-19 (UPC-AB) [...] foi desenvolvido um sistema eletrônico próprio, o ‘Atende APS’, para organização de fluxo, classificação de risco e registro de atendimento dos pacientes sintomáticos e monitoramento dos casos suspeitos ou confirmados. (D13, p. 6, ver Quadro 1).
Percebe-se também que os instrumentais recomendados apresentam ênfase nas tecnologias leve-duras, por meio da adoção de protocolos para organização do fluxo e classificação do risco, e trazem um conhecimento já estruturado quanto ao objeto. Tecnologias duras, como a implantação das UPC AB, mesmo sendo provisórias, representam uma mudança organizacional na APS Recife (Costa et al., 2020; Merhy, 2007). As normas de funcionamento das equipes de saúde, vinculadas aos protocolos e descontextualizadas das singularidades do território, são características do trabalho morto, minimizando o uso de tecnologias leves (Merhy, 2007).
Ao se considerar a dimensão operativa da ESF, o modus operandi das equipes deve ter como centro o trabalho vivo, operacionalizado predominantemente por meio das tecnologias leves e complementado pelas leve-duras e duras, conforme as necessidades singulares das populações assistidas nos territórios de vinculação (Merhy, 2007). A adoção de tecnologias leves favorece a interseção dos saberes e a articulação dos atores sociais, com participação popular e suporte à população vulnerabilizada, em relação às dimensões política, econômica, cultural, física e técnica do território (Abreu, Amendola e Trovo, 2017; Giovanella et al., 2020; Mendes-Gonçalves, 2017).
As tecnologias leves permitem espaço relacional entre os integrantes das equipes e a população local; pautam-se em uma comunicação dialógica, empática e ética, capaz de estimular a autonomia, a cooperação e a corresponsabilização da população, contribuindo, na prática, para a mudança institucional nos serviços de saúde, de modo a possibilitar o enfrentamento das situações provocadas ou agudizadas pela pandemia de Covid-19 mediante planejamento participativo (Abreu, Amendola e Trovo, 2017; Brasil, 2012).
Para se cumprir o propósito de reduzir a transmissão sustentada nos territórios, que orientou as recomendações previstas para a condução do processo de trabalho na APS Recife, foi importante e necessário diminuir os níveis de transmissão em grupos com maior risco de evolução das formas graves (Werneck e Carvalho, 2020). Contudo, essas medidas devem ser adotadas de forma estratégica para otimizar o tempo e agilizar medidas complementares mais sustentáveis, relacionadas à estruturação da rede de saúde, somadas às ações de mobilização e participação popular, que visam prevenir, controlar a infecção e abordar seus efeitos em sua magnitude de forma a garantir o retorno das atividades econômicas (WHO, 2020).
No caso do Recife, com o avanço da pandemia e a materialidade de suas múltiplas repercussões nos territórios de atuação das equipes, as recomendações restritas às ações individuais e com abordagem predominantemente clínica foram se tornando insuficientes. Segundo Giovanella et al. (2021), para o enfrentamento e o controle da pandemia em sistemas de saúde pautados na integralidade do cuidado com enfoque territorial e comunitário, como no caso do Brasil, a reorganização do processo de trabalho na APS deve ser orientada conforme as singularidades do contexto de vida das pessoas, em suas dimensões materiais e simbólicas - contemplando os impactos clínicos e epidemiológicos socioeconômicos, na perspectiva da determinação social da Covid-19, e integrando as ações de vigilância à saúde com as de promoção, prevenção e cura.
Os fundamentos teóricos refletem as práticas na ESF segundo a concepção de modelo de atenção ampliado e sistêmico com base territorial (Teixeira e Solla, 2006). É possível afirmar que os componentes dos processos de trabalho propostos nas recomendações emitidas pela Secretaria de Saúde do Recife reforçam o papel da ESF como porta de entrada e ordenadora de rede de atenção, mas desconsideram a dimensão técnica implícita na lógica territorial, à medida que não levam em conta a amplitude das necessidades de saúde provocadas ou agudizadas pelo contexto pandêmico e a participação social.
Ações relacionadas ao enfrentamento e controle da pandemia de Covid-19 nos territórios de vinculação das equipes da ESF no Recife: qual o lugar das singularidades socioespaciais?
Toma-se como referência os pressupostos teóricos que orientam a condução do processo de trabalho na ESF em consonância com princípios de universalidade, equidade e integralidade, condizentes com os pressupostos internacionais que orientam a APS abrangente e integral, a qual prevê para esse nível de atenção as seguintes ações de competência: promoção da saúde, prevenção de riscos e agravos, vigilância, recuperação e reabilitação. Dessa forma, elaboramos um quadro que sintetiza as ações recomendadas pela gestão do SUS-Recife para a reorganização do processo de trabalho das equipes da ESF no decorrer do primeiro ano de pandemia de Covid-19 (Quadro 2).

A análise das ações recomendadas para a reorganização do processo de trabalho da APS no Recife durante a pandemia (Quadro 2) aponta a opção por subdivisão das equipes como estratégia para organização do fluxo assistencial, no sentido de garantir a finalidade de mitigar a transmissão da Covid-19. As ações dirigidas à eSF, à eSB e à eNasf enfatizam abordagens individuais e curativas, com pequena exceção da equipe eNasf, e somente aos ACSs coube a incumbência de atuar em todos os campos de competência da ESF.
Esses resultados demonstram um problema estrutural na condução do processo de trabalho na ESF, cujo foco ainda está centrado numa lógica individual e curativa, pautada no modelo biomédico, centrado em mitigar demandas de cuidados hospitalares (Giovanella et al., 2021). Chamam a atenção para o distanciamento da dimensão técnico-assistencial que ancora e fundamenta a operacionalização do processo de trabalho na ESF, pois a aproximação dos serviços de saúde com a realidade local permite o conhecimento sistemático das condições de vida e saúde da população, com a identificação de singularidades espaciais, dinâmicas sociais, econômicas e políticas para nortear as ações dos profissionais com base nas necessidades de saúde da população (Gondim e Monken, 2017).
As singularidades socioespaciais de um território são resultantes de processos de longa permanência de relações sociais marcadas no espaço-tempo, compreendidas como as particularidades de cada lugar, associadas ao modo como as pessoas utilizam a terra, como se organizam no espaço e como dão significado e identidade a cada lugar (Sack, 1986). São expressas, do ponto de vista material, pelos tipos e pela estrutura das moradias, formas de inserção no mercado de trabalho, renda para sobrevivência, acesso a bens e serviços etc., numa perspectiva imaterial, subjetiva, que permeia o cotidiano dos lugares com regras, valores e condutas criando comportamentos sociais, culturais e identitários. A apropriação dessas singularidades é fundamental para o alcance de resultados positivos nos processos de trabalho (Gondim e Monken, 2017).
Por se tratar de contexto de vida, é importante destacar que Recife figura como uma das capitais brasileiras mais afetadas pelas desigualdades sociais. Paradoxalmente, registra a maior concentração de renda entre as capitais brasileiras e possui o terceiro maior percentual de habitantes vivendo abaixo da linha da pobreza, correspondendo a 31% de sua população (Instituto Cidades Sustentáveis, 2020). Do ponto de vista epidemiológico, o perfil de mortalidade pela Covid-19 evidencia relação com a vulnerabilidade socioeconômica (Recife, Secretaria de Saúde, 2020b; Recife, Prefeitura, 2021a). Constata-se que as ações recomendadas apresentam dissonância com a amplitude do contexto decorrente da pandemia. Segundo Giovanella et al. (2020), o enfrentamento da situação decorrente da pandemia exige a associação de intervenções individuais e coletivas, com enfoque curativo e protetivo, centrado nas singularidades da comunidade.
Ainda sobre a síntese das recomendações apresentadas no Quadro 2, tornam-se necessárias algumas reflexões acerca do trabalho em equipe e quanto à aproximação e ao distanciamento entre as ações recomendadas com relação às singularidades socioespaciais dos territórios de vinculação das equipes. Estes, em sua maioria, são contextos nos quais a população vive em precárias condições de existência, espaços intradomiciliares insalubres e com sobrelotação de moradores, altos índices de pessoas inseridas no trabalho informal, sem acesso às tecnologias da informação (Moura de Castilho e Silva, 2020).
A primeira reflexão diz respeito ao trabalho em equipe, um requisito estruturador para operacionalização das atividades práticas na ESF, o que requer interação contínua e sistemática entre os atores envolvidos, na perspectiva do entendimento e do reconhecimento recíproco de autoridades e saberes e da autonomia técnica (Ribeiro, Pires e Blank, 2007). Observa-se que a subdivisão das atividades práticas propostas nas recomendações traz elementos da dimensão cooperativa do trabalho, responsável por integralizar e complementar a ação direcionada à finalidade (Souza e Santos, 1991). No entanto, no que diz respeito à complementaridade das ações, apresenta fragilidades, principalmente com relação às ações de promoção da saúde designadas aos ACSs.
O componente mais coletivo do processo de trabalho, destacado nas ações de promoção e vigilância, foi predominantemente direcionado aos ACSs, embora o desenvolvimento das ações de promoção, prevenção, vigilância, cuidado e recuperação seja uma atribuição comum a todos os trabalhadores da ESF (Brasil, 2017). O elenco de ações de promoção da saúde direcionadas quase que exclusivamente aos ACSs sinaliza aproximação com os atributos de orientação familiar e comunitária, quando se dá destaque às ações que devem apoiar as famílias em vulnerabilidade social e à articulação dos recursos comunitários existentes no território (Starfield, 2004). Entretanto, em comparação com o instrumental estabelecido para o cuidado individual, os documentos não apresentam nenhum fluxo para guiar as ações dos ACSs diante de situações de vulnerabilidade social. Nesse sentido, o documento direcionado ao ACS traz a seguinte observação:
O Governo Federal implantou o Auxílio Emergencial, que é um benefício financeiro destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados, e tem por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia da COVID-19. Procurar saber quais são os órgãos de assistência social do município, o endereço físico e eletrônico (quando houver) e o telefone de contato para informar às pessoas, agilizando o acesso em caso de necessidade. (D11, p. 8, ver Quadro 1)
O documento deixa claro que ao ACS compete a responsabilidade de identificar os órgãos municipais de suporte de assistência social e evidencia a ausência de fluxo de apoio às famílias em vulnerabilidade social. Como evidência científica que respalda os achados, a linha de cuidado da Covid-19 na Rede de Atenção à Saúde prevê a utilização de instrumentos de avaliação da vulnerabilidade e o estabelecimento de fluxos e articulações com serviços de assistência e proteção social locais (Portela, Grabois e Travassos, 2020).
A pandemia repercute em vários campos da vida. Segundo a World Health Organization (WHO, 2010), a maioria das doenças está diretamente relacionada às condições nas quais as pessoas nascem, vivem, trabalham e envelhecem. Essas condições são resultantes da confluência do contexto econômico, político, cultural, ambiental, históricos e sociais que definem a posição social que os indivíduos ocupam na sociedade. Configura-se, assim, a determinação social delineada pelos modos de vida em iniquidade, fruto da assimetria de distribuição de recursos e poder, inerente a uma sociedade injusta, geradora de desigualdades, o que torna os territórios singulares (Breilh, 2010).
Observa-se a ausência de recomendações de ações voltadas à promoção da saúde direcionada a todos os integrantes das equipes. Estas são consideradas ações estratégicas desenvolvidas nos âmbitos individual e coletivo, com articulação e cooperação intra e intersetorial, contando com a Rede de Atenção à Saúde (RAS) e as demais redes de proteção social, sobretudo com ampla participação popular. Pode-se destacar que a pouca ênfase às ações de promoção da saúde compromete na prática o exercício dos princípios da equidade e das integralidades, do trabalho em equipe e da intervenção na determinação social, além de sinalizar um vasto afastamento dos pressupostos teóricos e normativos que regulam as ações de competência da ESF de forma abrangente e integral.
No que se refere às ações de prevenção de riscos e agravos, pode-se observar no Quadro 2 que as recomendações designam atividades para todos os componentes das equipes, com centralidade em orientações padronizadas quanto a higienização pessoal e do domicílio, uso de máscaras e distanciamento social. Segundo Czeresnia e Freitas (2009), as ações preventivas têm o objetivo de evitar o surgimento ou propagação de doenças específicas, de modo a reduzir sua incidência e prevalência nas populações. Para tanto, recorre à divulgação de informações científicas e a recomendações normativas de mudanças de hábitos.
Por mais que se reconheçam a importância e a necessidade de se incorporarem as medidas protetivas na rotina das pessoas, a adesão a essas práticas não ocorre do mesmo modo para todas (Latgé, Araújo e Silva-Júnior, 2020), principalmente para aquelas que não possuem condições materiais de subsistência e acesso a serviços de infraestrutura, como é a realidade de parte significativa da população recifense. No tocante à moradia precária, a cidade ocupa a segunda posição entre as capitais brasileiras, com alta proporção de habitantes vivendo em moradias desse tipo, totalizando 25% da população (Instituto Cidades Sustentáveis, 2020).
Diante de tal contexto, cabe indagar: como ficar em casa, se a casa oferece tanto ou mais risco que o de estar na rua? Como lavar as mãos e fazer a higienização da casa e de produtos chegados da rua, se não há água nas torneiras? Como ficar em casa, se a fome perturba o estômago e fragiliza os sentimentos? Como ficar em casa, sem auxílio para a sobrevivência? (Santos, 2020).
Os modos de vida produzem representações e subjetividades distintas, interferindo na adesão das informações, principalmente quando estas são dissociadas da realidade vivida e concebida pela população (Guimarães, 2020; Latgé, Araújo e Silva-Júnior, 2020). Portanto, não se trata apenas de disseminar informações corretas sobre o uso de máscaras e lavagem das mãos; elas não ressoam igualmente para todas as pessoas.
O alcance resolutivo das ações de prevenção requer dos profissionais de saúde a compreensão da dimensão cultural do território no qual se está inserido. Tal dimensão reflete as questões identitárias tecidas ao longo do tempo vinculando questões de pertencimento e vínculo, práticas culturais, hábitos e comportamentos imbricados nas relações sociais (Fernandes et al., 2018). Esses fatores estruturantes do território são fundamentais para se romper com a lógica de prevenção prescritiva e dissociada do contexto cultural do território.
Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2018), a adesão e a incorporação das ações educativas pressupõem interface com a realidade e as necessidades da população - o que requer a adoção de práticas dialógicas e participativas, colocando a população no lugar de sujeito dotado de saberes, capaz de refletir e propor alternativas que impactem e ressignifiquem sua realidade, de modo a propiciar o empoderamento e a corresponsabilidade sanitária (Brasil, 2018).
As ações de vigilância recomendadas e apresentadas no Quadro 2 estão associadas à consolidação das informações dos pacientes atendidos no aplicativo ‘Atende em Casa’: monitoramento dos sintomáticos respiratórios, identificação e acompanhamento do grupo de risco e em vulnerabilidade (não se detalha qual), busca ativa dos contatos e orientações. Vale registrar que nesse bloco de ações estão concentradas as recomendações mais relacionadas com as singularidades socioespaciais e associadas à realidade relativa ao impacto da Covid-19 nos territórios.
Embora o documento assinale que as situações encontradas pelos ACSs no território devem ser encaminhadas às eSFs e às eNasfs, ressaltando a orientação familiar prevista nos atributos derivados da APS (Starfield, 2004), vale salientar que elas são descritas como critérios de prioridade para o atendimento individual apenas nas recomendações para as eNasfs, o que não ocorre para as outras equipes. Algumas ações são propostas, como a identificação das vulnerabilidades e de domicílios sem condições para assegurar o distanciamento social para o isolamento domiciliar, mas não se instrumentaliza a ação necessária para sua realização, uma vez que não se propõem fluxos para as equipes agirem diante das repercussões não clínicas relacionadas à Covid-19.
No que se refere ao monitoramento do isolamento domiciliar, percebe-se também a ênfase voltada aos sinais e sintomas e seu agravamento, como pode ser visto no elenco de perguntas recomendadas para o ACS, para serem feitas preferencialmente por via remota (telefônica ou aplicativos web):
“Como você está se sentindo hoje?” “Surgiu algum sintoma novo?” “Você está fazendo uso de analgésico ou antitérmico?” “Teve febre maior que 37,9°C?” “Febre por mais de 3 dias seguidos?” “Falta de ar ou dificuldade de respirar?” “Retorno da febre após 48h afebril?” “Tontura?” “Desorientação?” (Sinais de alerta e/ou gravidade) Questionar sobre a condição crônica e sobre o uso regular de medicação para controle (hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, asma) “Quando foi a última vez que fez um acompanhamento presencial dos níveis de pressão e de glicose?” “Você está sem sair do interior do domicílio?” “Nesse período, teve alguma necessidade extrema de sair do domicílio?” “O seu domicílio possui mais de um quarto?” “Quantas pessoas moram com você”? “Além de você, algum outro morador está com sintomas?” (D11, p. 7, ver Quadro 1)
O conteúdo das perguntas recomendadas para o monitoramento reforça a lógica individual e clínica muito implicada com a possibilidade de transmissão da doença. O contexto social da família não é indicado como elemento para o monitoramento, deixando de lado questões relativas à estrutura do domicílio, como falta de água, instalação sanitária, alimentação, entre outros fatores sociais e econômicos que podem interferir no isolamento domiciliar e em situações de risco em territórios vulnerabilizados. Para Giovanella et al. (2021), as ações prioritárias propostas para a APS têm foco na prevenção do contágio e detecção precoce dos casos, na perspectiva de interromper a cadeia de transmissão e prestar atendimento às pessoas doentes isoladas, e não considera a determinação social do complexo processo saúde/doença.
É importante salientar que, conforme a Política Nacional de Vigilância em Saúde, as ações de vigilância, além de coletar, consolidam, analisam dados e disseminam informações relacionadas à saúde da população. Essa etapa deve instrumentalizar o planejamento das ações na perspectiva de “interferir nos condicionantes e determinantes da saúde, para a proteção e promoção da saúde da população, prevenção e controle de riscos, agravos e doenças” (Brasil, 2017, p. 3).
No eixo que consolida as atribuições referentes a assistência e recuperação, as recomendações são direcionadas para todas as equipes e relativas aos sinais, sintomas e classificação de risco dos pacientes. Em nenhum momento, nos protocolos de classificação de risco, são incluídas informações relativas às singularidades socioespaciais, como falta de espaço intradomiciliar para assegurar o isolamento, falta de água para lavar as mãos, falta de sanitários e fome, situações muito frequentes nos territórios de exclusão. Isso remete a alguns questionamentos quanto à finalidade da reorganização em mitigar a transmissão sustentada nos territórios. Por que a precariedade dos espaços intradomiciliares não é considerada para classificação de risco de transmissão e direcionamento de fluxo? Por que os casos leves são recomendados a voltar para seus lares mesmo diante da certeza de que suas condições de vida não lhes permitem ficar isolados? Será que o propósito da mitigação da transmissão tem direcionalidade mesmo para o território ou para os serviços de saúde?
Quanto à reabilitação e à redução de danos, observou-se que as recomendações não apresentam complementaridade entre os membros das equipes. As questões relativas à identificação das sequelas da Covid-19 são destinadas apenas à eNasf. No entanto, há evidências científicas da ocorrência de várias sequelas apresentadas pelo adoecimento por essa pandemia, principalmente em pessoas que apresentaram manifestações graves da doença e foram submetidas a procedimento de intubação. O seguimento desses pacientes, de acordo com o grau de comprometimento encontrado, está previsto para as equipes da ESF, incluindo ações domiciliares ou em unidades de saúde (Portela, Grabois e Travassos, 2020).
É possível perceber que a pandemia repercute em vários campos da vida das pessoas, ampliando as desigualdades sociais (desemprego, fome, falta de acesso a bens e serviços) já presentes nos territórios de vinculação das equipes da ESF. Entretanto, as ações direcionadas ao controle da pandemia pela APS não contemplam a magnitude da repercussão da Covid-19 nos territórios, a integralidade do cuidado em todas as suas dimensões - o princípio da equidade, sobretudo, não foi considerado em sua amplitude. Os resultados encontrados sinalizam a necessidade de organização e luta de todos os segmentos da sociedade diante da urgência em fortalecer a APS no sentido de assegurar, para além do acesso, um cuidado integral e equânime, conforme as singularidades de cada território, de forma que não haja conflitos de dissonância entre as necessidades vividas e as ações ofertadas.
Neste artigo, analisaram-se as recomendações da Secretaria de Saúde da cidade do Recife direcionadas às mudanças no processo de trabalho da Estratégia Saúde da Família durante a pandemia de Covid-19, relacionando-as com as singularidades socioespaciais dos territórios de vinculação. Os resultados obtidos apresentam contradições estruturais importantes, visto que comprometem a lógica territorial prevista para organização do processo de trabalho na ESF, pois concentram a racionalidade da reorganização na ênfase da organização dos serviços de saúde.
Também verificou-se que o objeto, os instrumentos, ações e finalidades na reorganização do processo de trabalho proposto para esse contexto de pandemia, no Recife, têm ênfase individual e clínica que, ao longo do tempo, com o avanço da pandemia, foi se tornando insuficiente para responder às necessidades de reprodução social decorrentes dos impactos da pandemia em sua totalidade, considerando-se as singularidades socioespaciais. Isso reflete um distanciamento das prerrogativas teóricas e normativas pautadas no modelo de vigilância à saúde, que propõem um processo de trabalho capaz de gerar impacto nos condicionantes e determinantes da saúde das pessoas e coletividades dos territórios sob a responsabilidade sanitária das equipes.
Cabe ressaltar, mais uma vez, que o contexto imposto pela pandemia de Covid-19 evidencia as relações diretas entre o comportamento da doença e as condições sociais da população, o que requer, dos gestores e trabalhadores da ESF, reflexões sistemáticas quanto aos componentes do processo de trabalho recomendado, no sentido de avaliar se as ações desenvolvidas respondem às necessidades reais da população.
Pode-se confirmar os pressupostos iniciais deste artigo: as ações propostas para o enfrentamento da Covid-19, na APS, têm direcionalidade individual e curativa, a partir da garantia do primeiro atendimento e do monitoramento de casos leves da doença (Gonçalves, 2020). E ainda: a reorganização do processo de trabalho proposto não contempla os impactos da Covid-19 em sua amplitude, implicando um distanciamento entre as recomendações e as necessidades reais das populações no que concerne às ações de promoção, proteção, controle de riscos e soluções para as vulnerabilidades provocadas ou acentuadas pelo contexto da pandemia de Covid-19.
A reorganização do processo de trabalho deve estar pautada nos modos e características de vida dos habitantes dos territórios, com o emprego de tecnologias relacionais que assegurem a compreensão das singularidades socioespaciais, com a participação dos sujeitos envolvidos e da sociedade civil organizada. O objetivo é trazer a centralidade do processo de trabalho para os problemas e necessidades do contexto familiar e comunitário em sua amplitude, considerando-se sobretudo a capacidade de solidariedade, resiliência, luta e organização das populações vulnerabilizadas e, juntamente com elas, encontrar soluções para os problemas sensíveis ao setor saúde e organização política para o enfrentamento das desigualdades sociais de múltiplas naturezas.
A despeito dos achados, reconhecemos as limitações de um estudo realizado com base em documentos que contêm recomendações/proposições, o que indica a necessidade de outros estudos sobre as repercussões da pandemia de Covid-19 - pesquisas que elucidem como foi efetivada a operacionalização dessas recomendações no cotidiano das equipes da ESF no Recife, na busca de se compreenderem de fato as singularidades socioespaciais relativas aos atributos de orientação familiar, comunitária e cultura local que foram considerados nesse contexto. A escassa literatura sobre os impactos da Covid-19 e a reorganização do processo de trabalho na ESF tornam o estudo relevante, na medida em que busca trazer algum conhecimento, podendo assim contribuir para o enfrentamento desse evento sanitário de tamanha complexidade.

