Resumo: A pandemia de Covid-19 teve início no Brasil em março de 2020. Desde então, há diversas divergências e disputas, entre profissionais de saúde, pesquisadores e entidades regulamentadoras, sobre tratamentos prescritos para essa infecção. Diante desse cenário, esta nota se propõe a discutir a autonomia médica na conjuntura descrita, com base em documentos oficiais do Conselho Federal de Medicina brasileiro, produzidos entre 2020 e 2021, considerando as possibilidades terapêuticas mencionadas. Como resultado, foram obtidos três documentos oficiais que evidenciam como única forma de ‘autonomia’ a ‘autonomia médica’, enquanto a ‘autonomia do paciente’ não é evidenciada no que tange à adoção de terapêuticas. Não observamos discussões nos documentos sobre o princípio bioético da não maleficência e o da própria autonomia. Desta forma, percebe-se que a valorização da ‘autonomia médica’, sem considerar os saberes/fazeres dos pacientes e, tampouco, os achados científicos, pode promover equívocos e ferir princípios do fazer médico.
Palavras-chave: autonomia profissional, autonomia pessoal, conselho de saúde, Covid-19, medicina.
Abstract : The COVID-19 pandemic began in Brazil in March 2020. Since then, there have been several disagreements and disputes between health professionals, researchers and regulatory bodies about prescribed treatments for this infection. Given this scenario, this note proposes to discuss medical autonomy in the described context, based on official documents of the Brazilian Federal Council of Medicine, produced between 2020 and 2021, considering the mentioned therapeutic possibilities. As a result, three official documents were obtained that show that the only form of ‘autonomy’ is ‘medical autonomy’, while the ‘patient autonomy’ is not evidenced in terms of the adoption of therapies. We did not observe discussions in the documents about the bioethical principle of non-maleficence and that of autonomy itself. In this way, it can be seen that the appreciation of ‘medical autonomy’, without considering the knowledge/doings of patients, nor the scientific findings, can promote misunderstandings and harm the principles of medical practice.
Keywords: professional autonomy, personal autonomy, health council, Covid-19, medicine.
Resumen : La pandemia de Covid-19 comenzó en Brasil en marzo de 2020. Desde entonces, ha habido varios desacuerdos y disputas - entre profesionales de la salud, investigadores y organismos reguladores - sobre los tratamientos prescritos para esta infección. Ante ese escenario, esta nota se propone discutir la autonomía médica en el contexto descrito, a partir de documentos oficiales del Consejo Federal de Medicina de Brasil, producidos entre 2020 y 2021, considerando las posibilidades terapéuticas mencionadas. Como resultado, se obtuvieron tres documentos oficiales que muestran que la única forma de ‘autonomía’ es la ‘autonomía médica’, mientras que la ‘autonomía del paciente’ no se evidencia en cuanto a la adopción de terapias. No observamos discusiones en los documentos sobre el principio bioético de no maleficencia y el de la propia autonomía. De esta forma, se ve que la apreciación de la ‘autonomía médica’, sin considerar los saberes/haceres de los pacientes y, tampoco, los hallazgos científicos, puede promover malentendidos y herir los principios del hacer médico.
Palabras clave: autonomía profesional, autonomía personal, consejo de salud, Covid-19, medicina.
Nota de Conjuntura
“O médico brasileiro sabe como tratar a Covid-19”: sentidos de autonomia médica na pandemia
“The Brazilian doctor knows how to treat Covid-19”: meanings of medical autonomy in the pandemic
“El médico brasileño sabe cómo tratar el Covid-19”: sentidos de la autonomía médica en la pandemia
Recepção: 24 Março 2022
Aprovação: 16 Maio 2022
Na pandemia de Covid-19, ainda em março de 2020, a categoria médica foi bastante questionada sobre a sua atuação e prescrições. Medicamentos dos mais variados tipos passaram, mesmo sem evidências científicas robustas, a ser prescritos para tratamentos dessa doença.
Diante das divergências sobre o tema e da falta de direcionamento do Ministério da Saúde, surge um conjunto de medicamentos conhecido como ‘kit-Covid’, que passa a compor, inclusive, protocolos municipais de saúde (Santos-Pinto, Miranda e Osório-de-Castro, 2021). O uso de tais medicamentos foi investigado por meio de ensaios clínicos randomizados, que comprovaram que eles eram ineficazes e apresentavam riscos de efeitos adversos graves (Welte et al., 2021).
Contudo, a Associação Médica Brasileira (AMB), em julho de 2020, orienta que o/as médico/as prescrevam os tratamentos que julgarem adequados e se coloca com “o compromisso de defender a preservação da autonomia do médico” (Associação Médica Brasileira, 2020). Em março do ano seguinte, após mudança da sua diretoria, a AMB passa a não mais defender o uso desses fármacos (G1, 2021).
Já o Conselho Federal de Medicina (CFM) brasileiro - com atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica - lança, em março de 2021, uma campanha destacando a ‘autonomia’ médica, com os seguintes slogans: “o médico brasileiro é competente: respeitem sua autonomia”; “o médico brasileiro sabe como tratar a Covid-19” e “o Conselho Federal de Medicina respeita a autonomia do médico” (Conselho Federal de Medicina, 2021a).
A autonomia é um tema relevante nos estudos clássicos da Saúde Coletiva sobre o trabalho médico. Schraiber (1995), partindo da sociologia do trabalho, conceitua autonomia médica como a capacidade subjetiva do/a profissional decidir entre alternativas, equilibrando conhecimentos técnicos e experiências pessoais. Ela ressalta que, com o avanço das forças produtivas, a medicina perde parte da posse dos seus instrumentos de trabalho, como por exemplo o local e acesso a uma clientela, que passam a ser mediados por operadoras de planos de saúde ou pelo Estado (Schraiber, 1993). Tal fato faz com que o processo decisório sobre a prática médica seja regulado por outras instâncias e que as condutas decorrentes necessitem seguir protocolos clínico-administrativos, que, por sua vez, são produzidos mediante disputas macro e micropolíticas (Merhy et al., 2019), como os protocolos para tratamento da Covid-19.
Por outro lado, o conceito de autonomia também é trabalhado para discutir a capacidade decisória do/a paciente frente às intervenções sobre seu corpo. Essa dimensão do conceito de autonomia está intimamente relacionada e em disputa com a de autonomia médica, produzindo tensões na gestão do cuidado em saúde.
A autonomia do/a paciente é um dos princípios da bioética pós-moderna (Kottow, 2016) que critica as raízes cientificistas desse campo e o seu discurso racionalista e universalizante, colocando em análise as tensões entre as diversas discursividades em disputa, como as presentes nas propagandas da autarquia federal médica, acima citadas.
Diante disso, este texto pretende examinar documentos do CFM produzidos durante os anos de 2020 e 2021, no contexto da pandemia da Covid-19, analisando os usos do termo ‘autonomia’. Essa escolha visa a evidenciar o posicionamento de tal entidade frente à Covid-19, marcado pelo caráter negacionista da ciência.
A metodologia foi dividida em três passos. O primeiro foi o uso, no mês de julho de 2021, da ferramenta de busca do endereço eletrônico do CFM de documentos sobre a Covid-19, com os seguintes termos: “Covid-19”, “novo coronavírus” e “Covid”, com o descritor booleano “or”; e a delimitação dos resultados no período entre 2020 e 2021. Ao excluir as duplicatas, foram encontrados 32 documentos: 22 despachos, 5 pareceres, 4 resoluções e 1 recomendação.
O segundo passo foi a leitura integral de cada um desses 32 documentos e identificação da ocorrência, direta ou indireta, do termo ‘autonomia’ neles, o que resultou na seleção de três documentos:
Parecer CFM n. 4/2020, de 16/04/2020 (Conselho Federal de Medicina, 2020a), que dispõe sobre o tratamento de pacientes portadores de Covid-19 com cloroquina e hidroxicloroquina;
Despacho COJUR n. 293/2020, de 03/06/2020 (Conselho Federal de Medicina, 2020b), que trata de requerimento de autorização franca de uso da Ozonioterapia em virtude da pandemia de Covid-19; e
Resolução CFM n. 2.292/2021, de 13/05/2021 (Conselho Federal de Medicina, 2021b), que estabelece que a administração de hidroxicloroquina e cloroquina em apresentação inalatória é procedimento experimental, só podendo ser empregada por meio de protocolos de pesquisa aprovados pelo sistema CEP/CONEP (Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa).
Por fim, o terceiro passo foi a análise do discurso desses três documentos (Minayo, 2004), por meio de duas etapas distintas: leituras aprofundadas dos documentos; e observação dos elementos textuais e possíveis sentidos da autonomia que foram mais significativos.
Analisando o material com base nos referenciais da bioética, identifica-se que os posicionamentos do CFM colocaram em risco alguns de seus princípios. A bioética, como campo de estudo, se desenvolve em resposta às atrocidades da Segunda Guerra Mundial nos campos de concentração, em nome do desenvolvimento científico. Ela orienta condutas e pesquisas no campo das ciências da vida, com fundamento em quatro princípios: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça (Leutério et al., 2020).
A pandemia de Covid-19 pôs em pauta o debate da bioética, na medida em que foi cenário para a propagação de discursos negacionistas que sustentaram apostas na imunização de rebanho por contágio, fragilizando medidas de distanciamento e de vacinação, e a proposição de tratamentos como o kit-Covid (Santos-Pinto, Miranda e Osório-de-Castro, 2021).
A análise desses documentos aponta a centralidade da ‘autonomia médica’ nas decisões do CFM frente às terapêuticas para tratamento da Covid-19. Além disso, os referidos documentos se restringem a citar o termo autonomia, como se todos os leitores supostamente o compreendessem da mesma forma. Mesmo sendo documentos para orientar a prática médica, eles não deixam de ser públicos. Por ser uma temática de urgência, em contexto de pandemia, tais informações carecem de maior nitidez para os leitores, possibilitando o debate não apenas entre a categoria médica, mas também com a população em geral.
A autonomia médica não se restringe à conduta individual do/a médico/a, seu saber, sua prática e seu julgamento. Ela está sempre em disputa, seja com a autonomia do/a paciente, seja pelo controle de instâncias reguladoras ou outras que detenham o controle de seus instrumentos de trabalho.
Os documentos analisados defendem a autonomia médica, por pressuporem a autonomia do paciente na relação médico/a-paciente, considerando que, juntos, esses entes podem chegar à melhor decisão terapêutica, mesmo se tal decisão passar ao largo do que se apresenta como evidência científica. A autonomia do/a paciente pressupõe o seu direito de decidir sobre a sua vida e o seu corpo. Nos casos em que esse sujeito-paciente não tiver condições de decidir, aceitar ou compreender as intervenções às quais será submetido, a sua autonomia é transferida para familiares e responsáveis (Rocha et al., 2011).
O acesso aos conhecimentos técnicos da biomedicina e o domínio de parte do vocabulário médico, disseminados pelos atuais meios de comunicação, em especial pelas mídias digitais, têm permitido às/aos pacientes se (re)posicionarem nas relações com o/as médico/as, numa postura mais participativa e crítica de seus projetos terapêuticos, buscando maior compartilhamento das decisões para o cuidado de si e do outro (Knorst, Jesus e Menezes Junior, 2019).
Assim, os documentos do CFM pressupõem que a relação médico/a-paciente é horizontal e que ambos/as têm igual poder e conhecimento para tomar as decisões que são necessárias. Contudo, essa relação é atravessada pelo poder biomédico, que se materializa na hierarquia de poder nas disputas de projetos de cuidado, autorizando o/a médico/a definir quais as melhores opções terapêuticas e de cuidado em saúde (Carvalho, 2009).
Desse modo, as prescrições médicas tendem a ser aceitas, com poucos questionamentos, pois esse/a profissional detém certo conhecimento técnico-científico e a sociedade lhe outorga esse poder (Merhy et al., 2019). Além disso, a não horizontalidade na relação médico/a-paciente, sustentada na valorização do saber biomédico sob o saber experiencial do/a paciente, torna socialmente aceitável que médicos/as, em situações-limite, intervenham com base em suas crenças e conhecimentos, considerando pouco, ou nada, os desejos e as necessidades das pessoas que atendem (Ribeiro e Ferla, 2016).
O CFM declara que, diante da excepcionalidade da pandemia, qualquer profissional médico/a que tenha prescrito cloroquina e/ou hidroxicloroquina não estaria cometendo infração ética perante a lei (Conselho Federal de Medicina, 2020b). Esse dispositivo legal poderia encorajar o uso de medicamentos com estudos que apontavam não apenas a não efetividade do seu uso, mas também a sua periculosidade (Welte et al., 2021), colocando em risco o princípio bioético da não maleficência (primeiro não causar danos).
O CFM ressalta, contudo, que, para a prescrição medicamentosa, o fármaco deve ter aprovação dos órgãos competentes e ser usado para os fins aos quais foi aprovado (Conselho Federal de Medicina, 2021b). Assim, realizamos uma busca no site da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que é responsável pelo controle sanitário tanto da criação como da comercialização de medicamentos, bem como por normatizar, fiscalizar e controlar seus usos no Brasil (Brasil, 1999). Em todos os registros dessa agência, a cloroquina e a hidroxicloroquina são apresentadas na classe terapêutica dos antimaláricos (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2021a; 2021b), ou seja, destinadas ao tratamento específico da malária, causada por um protozoário, e não de doenças virais, como a Covid-19.
Apesar do CFM sustentar que a prescrição de medicamentos necessita de autorização das agências reguladoras e de estudos que evidenciem a sua eficácia e segurança, a possibilidade de uma indicação terapêutica exclusivamente baseada na autonomia médica é defendida também, e isso é uma das manifestações do biopoder no discurso médico.
Além disso, a entidade deslegitima a Medicina Baseada em Evidências (MBE), deixando prevalecer a opinião de um especialista, vulnerável a influências de crenças, valores e ideologias. Ainda que estudos mais robustos, como ensaios clínicos randomizados, cegos ou não, não tenham sido feitos no início da pandemia, antes da opinião de especialistas, seguindo a pirâmide de evidências científicas, seria prudente considerar séries de casos, relatos de casos ou estudos em animais como evidências mais robustas (Mota e Kuchenbecker, 2020). A MBE é proposta exatamente para orientar as decisões médicas, para que elas não coloquem em risco o bem-estar e a segurança dos pacientes, ou seja, para assegurar os princípios da bioética na prática clínica.
Diante dos achados, verificamos que o/a médico/a, para além de seguir criteriosamente os pressupostos que regem a sua conduta profissional e ética, deve apoiar as suas escolhas terapêuticas nos estudos científicos, nas normas regulamentadoras e, fundamentalmente, em uma relação dialógica e horizontal com seus/suas pacientes, respeitando a bioética.
Portanto, a tomada de decisão terapêutica, sob a égide da autonomia médica, sem o fortalecimento e os cuidados aqui expostos para a decisão terapêutica, evidencia uma conduta que pode proporcionar equívocos e ferir princípios, como os da autonomia e da não maleficência. Uma conduta médica, mesmo que respaldada pelo CFM, se fere a bioética, o faz também com o Código de Ética Médica e seus pressupostos (Brasil, 2018).