Resenha
Mulher negra na Encruzilhada: a ‘não ser’ que é e fala
| PASSOS Rachel G. Na mira do fuzil: a saúde mental das mulheres negras em questão. 2023. São Paulo. HUCITEC |
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Recepção: 17 Setembro 2023
Aprovação: 23 Outubro 2023
Tava durumindo, Cangoma me chamou
Tava durumindo, Cangoma me chamou
Disse: levanta povo, cativeiro já acabou
Disse: levanta povo, cativeiro já acabou
Clementina de Jesus
O livro de Rachel Gouveia é para ser lido por todas as pessoas interessadas em construir bases antirracistas e antissexistas de cuidado na atenção psicossocial, mas sendo eu uma mulher negra, compreendo a sua leitura como uma estratégia aquilombada de saúde mental.
É uma obra ‘nós por nós’. Não apenas por se tratar de uma intelectual negra revisitando criticamente a construção racista da psiquiatria e os motivos socioeconômicos para continuidade de sua hegemonia na atualidade, mas porque aponta que sim, nós somos capazes de desvendar para nós mesmas que o sofrimento que nos atormenta diuturnamente não é castigo, nem constituinte obrigatório de nossa existência. Ele tem origem histórica e funcionalidade para a manutenção do sistema exploratório e opressivo em que vivemos e, portanto, relaciona-se com as condições concretas das vidas negras, especialmente aquelas que estão sob o terror constante da ‘guerra às drogas’; indicando, portanto, a possibilidade de um importante enfrentamento subjetivo contra as internalizações da branquitude acerca do que somos e de quem podemos ser.
A violência histórico-estrutural exposta pela autora está sistematizada numa perspectiva que interpretamos como totalidade interseccional crítica, em que as dimensões teórico-metodológicas abordadas através de categorias como racismo, gênero, cuidado, trabalho, colonialidade não diluem a concretude dos processos de perda e luto relatadas pelas mulheres negras moradoras de favelas do município do Rio de Janeiro, cujos filhos foram assassinados pelo Estado. Isso porque o luto e a perda são, ao mesmo tempo, manifestações singulares da existência de cada sujeita entrevistada e expressões concretas da Diáspora Negra, um acontecimento histórico de magnitude mundial cuja reverberação silenciada nos livros é banalizada cotidianamente na mídia.
Colônia, Império, senhores, capitães do mato, República, polícia, tráfico, milícia... Antes e agora o que está sendo roubado de nós é o nosso tempo de vida, tudo de nós fica para o trabalho explorado e para o sofrimento gerado pela condição de escravização objetiva e simbólica, nos colocando em permanente estado de desespero pela vívida sensação de que não nos pertencemos, de que não teremos nunca o direito de nos pertencer. Mas que ao mesmo tempo convoca para a raiva contra a naturalização da violência, nos termos de Audre Lorde. “Mulheres que reagem ao racismo são mulheres que reagem à raiva; a raiva da exclusão, do privilégio que não é questionado, das distorções raciais, do silêncio, dos maus-tratos, dos estereótipos, da postura defensiva, do mau julgamento, da traição e da cooptação” (Lorde, 2019, p.155).
Nós, sendo mulheres negras estamos na encruzilhada, lugar em que encontramos com nós mesmas e com todas as outras/mesmas singulares. Romper raivosamente com a ideia moderna de outra/outro é parte do processo de ultrapassar o desespero individual, sem perder a singularidade do sofrimento, na compreensão da diversidade do que nos é comum. Algo possível no cuidado coletivo, compartilhado, que subverte a prescrição de isolamento como resposta de saúde. “Pessoas são o remédio para as pessoas” (Vieira, 2022, p. 84).
A sociedade brasileira nunca foi cordial. A sua origem provém do conflito criado no sistema colonial de desumanização das pessoas negras, como justificativa para a sua mercadorização e exploração do seu trabalho como escravizadas. Uma ideologia bem construída para fins práticos. No Brasil contemporâneo a ideia de propriedade das coisas estendida às pessoas não existe mais como uma forma jurídica e legalizada, porém a forma simbólica de coisificação persiste na ultra precarização do trabalho, que submete trabalhadoras/es negras/es/os à superexploração. É nas piores condições de trabalho que majoritariamente estão submetidas as mulheres negras. Nessa direção, é a realidade concreta o que impele às reflexões que articulam o gênero e, mais precisamente, a subalternização da mulher negra na sociedade capitalista.
Na sucessão do escravismo para o capitalismo dependente a racionalização sobre as mulheres negras foi reinterpretada conformando novos mecanismos de barragem social. Isso porque se na sociedade escravista elas serviam como trabalhadoras produtivas, objetos de uso sexual e reprodutoras de novos trabalhadores escravizados, no pós-abolição a exploração sexual e a prole miscigenada foram apresentadas como provas da democracia racial brasileira. No entanto, essa é uma parte da história, a outra parte, é a própria resistência, que podemos chamar de audácia, nos termos de Carolina Maria de Jesus. Audácia das mulheres negras que, além de existirem, insistem em perpetuar-se através de seus filhos negros e suas filhas negras. E foi na perspectiva de totalidade interseccional crítica que resenhamos o livro, Na mira do fuzil: a saúde mental das mulheres negras em questão, entrelaçando-com pensamentos africanos e amefricanos.
“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. O primeiro capítulo, Fábrica de marginais, remete ao jogo dialético entre consciência e memória que configura uma disputa permanente pela primazia da verdade histórica. Refletimos então, nos termos de Lelia Gonzalez (1984), que a contradição apontada no texto entre as noções de humanidade universalizada branca e o ‘não ser’ negro está encoberta no “lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber” (p. 226). Uma estratégia do discurso ideológico que subvertemos pelas pedras que jogamos no passado, no recurso à memória considerada como “o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção” (Gonzalez, 1984, p. 226).
“Consciência exclui o que memória inclui” (Gonzalez, 1984, p. 226). Assim, situamos a banalização dos números e das informações sobre a violência contra as populações negras como um produto do racismo e este tendo origens e efeitos materiais e simbólicos. A compreensão da conexão dialética entre as dimensões objetivas e subjetivas que organizam as relações sociais no Brasil aponta a violência colonial como um elemento da sociabilidade burguesa, e a contínua produção de sofrimento negro como uma estratégia de perenidade da subalternização. Nesse sentido, a ruptura com essa forma social exige a crítica ao pensamento eurocentrado e a incorporação de epistemologias das Encruzilhadas, das favelas, das quebradas e das matas.
“Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias das caçadas continuarão glorificando o caçador” (Vieira, 2022, p. 19). O segundo capítulo, Crimes da paz resgata a origem da psiquiatria em sua gênese que é tanto moderna quanto colonial e racista. E a perspectiva ‘antimanicolonial’ defendida pela autora, nos faz questionar, se após uma suspensão radical dessas dimensões constitutivas, o que exatamente sobraria dessa especialidade médica? Isso porque nos processos históricos descritos somos apresentadas à “noção de estado permanente de guerra como produtor do trauma colonial e que aciona a máscara manicolonial como resposta” (Passos, 2023, p.24). A medicina como instituição é colonizadora. O saber/poder médico é colonizador. Essas não são afirmações aleatórias, pois têm um público específico a ser permanentemente mantido sob jugo. Para as mulheres negras, por exemplo, isto está posto na imposição do processo de branqueamento colocado em curso pelo estado republicano brasileiro, especialmente o incentivo às relações interraciais com os imigrantes brancos, no intuito de extirpar o mais rápido da sociedade um elemento específico em gênero e cor: homens negros.
O cuidado em saúde mental e a Atenção psicossocial são muito mais do que psiquiatria, assim como o normal e o patológico são invenções/hierarquizações sociais. No entanto, o que aprendemos nesse campo ainda se restringe ao que está nos seus compêndios, que ocultam, estigmatizam e medicalizam a multiplicidade das formas de existir no mundo. Até quando a negação da diversidade e a manutenção da ordem social vigente continuarão sendo a fundamentação da atenção à saúde mental, especialmente das populações negras?
“Mesmo se um olho estiver quebrado ou cego, ainda há sonhos nele” (Vieira, 2022, p. 116). O terceiro capítulo, Mães de bandidos, é uma leitura que promove a escuta, o que entendemos como um primeiro momento da clínica da delicadeza, “noção construída a partir de diferentes experiências práticas desenvolvidas em territórios de favela” (Passos, 2023, p. 25). As vozes das mulheres negras com filhos assassinados pelo Estado ressoam nos relatos em que expõem a indignação com a injustiça, as dores físicas e emocionais causadas pelo sofrimento da perda e questionam a irracionalidade da violência letal perpetrada contra seus filhos, justificada pela ‘guerra às drogas’. É importante lembrar da tautologia do termo, porque é uma guerra que tem como lema a defesa do bem-estar social e a promessa de que as prisões e as mortes de traficantes, supostamente, garantirão ao mesmo tempo, a paz e a saúde pública. As pessoas negras, especificamente os jovens negros, têm sido então massivamente lançadas no sistema prisional, encarceradas ou mortas para o ‘bem da coletividade’.
Construiu-se um amálgama entre o debate científico sobre as implicações do uso de drogas e a ilicitude, ou seja, o entrelaçamento dos discursos da saúde e da segurança pública tornando a ‘guerra às drogas’ uma explicação em si mesma (Silva e Marques Jr., 2020). Por outro lado, faz emergir uma imagem de controle poderosa que arranca das mulheres negras o direito de expor publicamente a sua dor. ‘Mãe de bandido’ tem que sofrer calada. Esse é um rebaixamento do caráter político do seu sofrimento materno. Conforme Patrícia Hill Collins (2019), as imagens de controle constituem “imagens estereotipadas da condição de mulher negra” [e atuam] “como parte de uma ideologia generalizada de dominação”. “Dado que a autoridade para definir valores sociais é um importante instrumento de poder, grupos de elite no exercício do poder manipulam ideias sobre a condição de mulher negra” (p. 135). A luta contra essas imagens é um desafio que envolve confrontar a vivência singular do seu sofrimento com a impossibilidade de ser uma ‘mãe como qualquer outra’ e com a imperiosa necessidade de posicionamento político pelo reconhecimento do seu direito ao luto e de reparação por parte do Estado pelo assassinato de seus filhos.
“A vida começa onde o medo termina” (Vieira, 2022, p. 60). No capítulo quatro, A favela não é abatedouro, percebemos que a composição majoritariamente negra dos territórios que são literalmente o alvo das ações violentas da segurança pública barra para as/os moradoras/es os direitos civis previstos na Constituição Federal. O pé na porta, a violação das casas e dos corpos não foram coibidos nesses 35 anos de constituição cidadã. E nessa conta precisamos incluir os 135 de abolição inconclusa. Nessa direção, o debate sobre os direitos humanos se impõe como um debate para além da racialização, mas do necessário enegrecimento acerca das origens das violações de direitos no Brasil e suas resistências. Isso porque o fim da escravidão legalizada formalizou uma condição abstrata de cidadania que impôs para as populações negras o lugar de pauperismo materializado nas precárias condições de vida.
[...] Os diferentes índices de dominação das diferentes formas de produção econômica existentes no Brasil parecem coincidir num mesmo ponto: a reinterpretação da teoria do ‘lugar natural’ de Aristóteles. Desde a época colonial aos dias de hoje, percebe-se uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes formas de policiamento que vão desde os feitores, capitães de mato, capangas etc., até à polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado até aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos ‘habitacionais’ (...) dos dias de hoje, o critério tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço (...) No caso do grupo dominado o que se constata são famílias inteiras amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as mais precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial; só que não é para proteger, mas para reprimir, violentar e amedrontar. É por aí que se entende por que o outro lugar natural do negro sejam as prisões. A sistemática repressão policial, dado o seu caráter racista, tem por objetivo próximo a instauração da submissão (Gonzalez, 1988, p. 232)
Daí a recriação como uma característica amefricana importante de [re]existência, que sintetiza e transcende as vivências ancestrais africanas e originárias no contato com a brutalidade do colonialismo e da colonialidade que o sucedeu.
A amefricanidade ladina é a própria manifestação da humanidade expressa nas revoltas, na elaboração de estratégias de re-existência, nas tecnologias de organização social dos quilombos, cimarrones, cumbes, rochelas, palenques, marronages e maroons societies, denominações das resistências negras em diferentes países. Movimentos e formações sociais que são o fundamento histórico e a potência dinâmica das lutas antirracistas contemporâneas no interior da racionalidade capitalista (Silva, 2022, p. 13).
“Quem dança não é aquele que levanta poeira. Quem dança é aquele que inventa seu próprio chão” (Vieira, 2022, p. 16). O quinto capítulo parte da indagação: Somos todos órfãos? Uma pergunta que inferimos ter a síntese das múltiplas determinações da realidade como eixo central para a resposta. Contudo, esse eixo para o bem de sua precisão teórico-metodológica, demanda como premissa histórica a amefricanidade, uma categoria que contém historicidade. Porque é uma construção das pessoas africanas trazidas pelo tráfico negreiro e daquelas/es que já estavam aqui antes dos colonizadores, mas que ao mesmo tempo é histórica porque as experiências comuns nos obrigam, na atualidade, a resistir contra um sistema de dominação que tem o racismo e o imperialismo como fundamentos para a perpetuação da alienação e expropriação (Silva, 2022, p.14).
“Viver é ajudarmos uns aos outros a viver” (Vieira, 2022, p. 66). A ressignificação de mundos destruídos ‘lá e cá’, tem ocorrido por meio das resistências e criatividades nas lutas contra a escravidão, contra o extermínio, a exploração e a desumanização. Na perspectiva de construção da práxis negra de resistência e enfrentamento, a apreensão de conhecimento não é acúmulo individual de conteúdo, mas aglutinação coletiva de forças, porque, se a exploração e a opressão são permanentes, o aquilombamento também precisa ser! Vamos acordar e ouvir o chamado de Cangoma!