Resumo: Objetivo: Descrever a experiência da aplicação de ferramentas de abordagem familiar após diagnóstico de câncer de boca em um de seus membros. Síntese dos dados: Estudo de caso descritivo, desenvolvido com abordagem qualitativa, realizado no primeiro semestre de 2014, em uma Estratégia Saúde da Família, em Montes Claros, Minas Gerais, Brasil. Para o reconhecimento da estrutura familiar e da capacidade de enfrentamento da doença, foram aplicadas ferramentas de abordagem familiar. Essa abordagem permitiu conhecer a família, acompanhar o tratamento da paciente portadora de câncer de boca e estabelecer uma relação de confiança entre a família e a equipe de saúde, constatando sua importância no apoio às famílias com enfermidades de difícil manejo. Conclusão: A utilização das ferramentas de abordagem familiar permitiu conhecer o contexto de vida dos envolvidos, acompanhar os resultados do tratamento da paciente enferma, criar vínculo e estabelecer uma relação de confiança entre família e equipe de saúde.
Palavras-chave:Atenção Primária à SaúdeAtenção Primária à Saúde,Estratégia Saúde da FamíliaEstratégia Saúde da Família,Estudos de CasosEstudos de Casos.
Abstract: Objective: To describe the experience of the use of family approach tools after diagnosis of mouth cancer in one of its members. Data synthesis: Qualitative descriptive case study carried out in the first half of 2014 in a Family Health Strategy in Montes Claros, Minas Gerais, Brazil. Family approach tools were used to identify family structure and the ability to cope with the disease. This approach allowed us to know the family, monitor the treatment of the patient with mouth cancer and establish a trustful relationship between the family and the healthcare team, highlighting its importance in supporting families with diseases that are difficult to manage. Conclusion: The use of family approach tools allowed us to know the life context of the people involved, monitor the results of the sick patient and establish a bond and a trustful relationship between the family and the healthcare team.
Keywords: Primary Health Care, Family Health Strategy, Case Studies.
Resumen: Objetivo: Describir la experiencia de la aplicación de herramientas de abordaje familiar después del diagnóstico de cáncer de boca y uno de los miembros de la familia. Síntesis de los datos: Estudio de caso descriptivo desarrollado con un abordaje cualitativo en el primero período de 2014 en una Estrategia de Salud de la Familia de Montes Claros, Minas Gerais, Brasil. Para el reconocimiento de la estructura familiar y de la capacidad de afrontamiento de la enfermedad fueron aplicadas herramientas de abordaje familiar. Ese abordaje ha permitido conocer la familia, hacer el seguimiento del tratamiento de la paciente portadora de cáncer de boca y establecer una relación de confianza entre la familia y el equipo de salud señalando su importancia para el apoyo de las familias con enfermedades de manejo difícil. Conclusión: La utilización de las herramientas de abordaje familiar ha permitido el conocimiento del contexto de la vida de los involucrados, hacer el seguimiento de los resultados del tratamiento de la paciente enferma, crear vínculos y establecer una relación de confianza entre la familia y el equipo de salud.
Palabras clave: Atención Primaria de Salud, Estrategia de Salud Familiar, Estudios de Casos.
Descrição ou avaliação de experiências
APLICAÇÃO DE FERRAMENTAS DE ABORDAGEM FAMILIAR NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA
Use of family approach tools in the Family Health Strategy
Aplicación de herramientas del abordaje familiar de la estrategia de Salud de la Familia
Recepção: 29 Junho 2017
Aprovação: 05 Outubro 2017
A abordagem familiar é considerada uma importante estratégia de cuidado utilizada na atenção primária. É essencial para o conhecimento da estrutura da família, identificação de fragilidades e limitações, bem como é útil para entender como se organiza diante do enfrentamento de problemas, enfermidades e situações de difícil manejo.(1).
O atendimento da família depende de uma compreensão suficiente dos aspectos biopsicossociais de seus membros. Nesse contexto, a família é considerada a dimensão mais importante do ambiente social dos pacientes(1,2).
A família é um modelo universal para o viver, e pode ser compreendida como espaço em que se experimenta o primeiro senso de pertencimento, identidade e conexão. É apreciada ainda como unidade dinâmica, na qual ocorre a reunião de pessoas que convivem, ou não, no mesmo domicílio e se unem por laços consanguíneos, de afetividade ou de interesse(3,4).
Embora haja muitas variações possíveis na definição, funcionamento e configuração das famílias ao longo do tempo, continuam a ser o meio relacional básico que o sujeito estabelece no mundo e deve ser considerada como dimensão investigativa para compreensão da forma como o sujeito convive com seu real contexto de vida(5).
O conhecimento da família propicia o contexto para avaliação dos problemas de saúde dos pacientes e ajuda a isolar a probabilidade de diversos diagnósticos, favorecendo a decisão a respeito de uma intervenção apropriada(6).
Nesse sentido, o Ministério da Saúde recomenda ferramentas de abordagem familiar que são estratégias específicas e básicas para serem utilizadas na atenção primária. Para tanto, faz-se necessária a apropriação das ferramentas pelos profissionais de saúde. Dentre eles destacam-se a entrevista familiar, o genograma, o FIRO (Fundamental Interpersonal Relations Orientations) e o PRACTICE, que representa o acróstico dos seguintes termos em inglês: presenting problem (problema apresentado), roles and structure (papéis e estrutura), affect (afeto), comunication (comunicação), time of life cycle (fase do ciclo de vida), illness in family (doença na família), coping with stress (enfrentamento do estresse) e ecology (meio ambiente, rede de apoio)(4,5).
O olhar centralizado na família requer mudança na prática das equipes de saúde e tem sido implementado a partir da Estratégia Saúde da Família (ESF) desde 1994, promovendo intervenções personalizadas ao longo do tempo a partir da compreensão da estrutura familiar(7).
Nesse contexto, a Atenção Primária em Saúde (APS) tem como característica a atenção centrada na família, sendo necessário conhecer sua dinâmica, interação e assisti-la em suas necessidades(8), considerando-a como lócus básico de atuação, que representa o ponto de atenção à saúde mais apropriado para atuar na abordagem à família com enfrentamento de situações ou enfermidades complexas e de difícil manejo(9). A equipe multiprofissional de saúde é levada a conhecer a realidade das famílias pelas quais é responsável por meio do cadastramento, acompanhamento e da identificação de suas características, e então criar um vínculo importante, que representa o ponto essencial para a abordagem e para possíveis intervenções e negociações necessárias(2,9).
Na prática profissional, a família assume o centro do cuidado, sendo apreendida a partir de seu ambiente físico e social, o que possibilita às equipes de saúde uma compreensão ampliada do processo saúde/doença. Portanto, ao focar a abordagem na família como um todo, e não apenas no familiar doente, amplia-se a visão para um atendimento integral da saúde, sendo as ações estendidas para o coletivo, com a organização de práticas preventivas em grupo.
Diante desse contexto, o presente trabalho objetiva descrever a experiência da aplicação de ferramentas de abordagem familiar após diagnóstico de câncer de boca em um de seus membros.
Trata-se da experiência na qual realizou-se um estudo de caso descritivo desenvolvido com abordagem qualitativa.(10) no primeiro semestre de 2014, executado em uma Estratégia Saúde da Família de Montes Claros, cidade do estado de Minas Gerais, na região Sudeste do Brasil. A referida Unidade de Saúde comporta três equipes de saúde da família (II, III e IV), sendo que a III é responsável pelo acompanhamento de cerca de 600 famílias e foi escolhida por ser a equipe que faz o acompanhamento mensal da situação de saúde da família em estudo(11).
O estudo dessa família se iniciou com uma demanda gerada a partir de uma visita domiciliar solicitada pelo agente de saúde para uma família que apresentava dinâmica familiar alterada devido a um de seus membros estar doente, com lesão na cavidade oral, dificuldades para andar e perda de memória. A coleta de dados foi realizada por ocasião das visitas domiciliares na residência do paciente índice (que desenvolveu a demanda), com o objetivo de conhecer a família, acompanhar o tratamento e verificar como a família estava se organizando e lidando com as atuais condições de saúde.
Para compreender a estrutura familiar, entendida como a quantidade de pessoas que moram na casa e suas respectivas funções (por exemplo, o fato dos progenitores estarem vivos ou não, serem divorciados, separados ou estarem dividindo moradia com outros parceiros, dentre outras características, como sua capacidade de enfrentamento diante dessa situação) (12), foram utilizadas ferramentas da abordagem familiar para fornecer suporte à família na incorporação da autonomia. Fator preponderante que se revelou indispensável no modelo de abordagem utilizado pelos profissionais de saúde na prestação do cuidado domiciliar.
A autonomia e a identidade da família precisam ser respeitadas, do contrário, o cuidado tornar-se-á inautêntico. Os profissionais têm de estar muito prevenidos para conflitos, interações e disfunções que fazem parte do universo da família(3). Devem, portanto, adquirir a confiança da família e mais ouvir do que falar.
É relevante que o profissional de saúde conheça cada integrante da família, para identificar as funções e papéis de cada um, tornando o cuidado integral e, muitas vezes, resgatando a funcionalidade da família e extraindo a doença. Na prática do trabalhador de saúde, a comunicação se apresenta como a principal ferramenta de trabalho, sendo necessário, portanto, estar atento se a mensagem passada ou recebida está sendo adequadamente entendida. Também, deve ser considerada a transgeracionalidade, isto é, deve-se observar a família nuclear e a trigeracional (avós, pais e filhos), avaliando padrões de repetição, segredos e rituais que possam estar enraizados entre as gerações(12). Outro aspecto importante é lembrar que o cuidado individual inclui acolher e respeitar a família, os seus valores e suas crenças.
Assim, foram utilizados os instrumentos de abordagem familiar que mais se aplicavam ao estudo, que se complementam e se sobrepõe, em alguns momentos, sendo estes: a entrevista familiar, o genograma, o FIRO e o PRACTICE(4,5).
Para realização da entrevista familiar, os profissionais necessitam inicialmente correlacionar o estágio do ciclo de vida familiar ao problema da pessoa e da família e, ao mesmo tempo, identificar os estágios de desenvolvimento da família e as tarefas a serem desempenhadas de acordo com cada estágio(7). Portanto, é nesse momento que se avalia a repercussão do diagnóstico da doença em todos os aspectos de vida do paciente. Em seguida, é relevante identificar o conhecimento do paciente sobre a doença e as expectativas das circunstâncias, além de diagnosticar o tipo de família que se apresenta mediante o problema, assim como a dinâmica de funcionamento(3). As etapas do ciclo de vida familiar são permeadas por crises, que podem ser previsíveis, ou não, e que podem acontecer em qualquer fase do desenvolvimento.
A classificação para as etapas do ciclo de vida utilizada é composta de seis fases(13): jovem solteiro, família sem filhos, família com crianças, família com adolescentes, família no meio da vida, família no estágio tardio/envelhecimento. Uma vez que a família é composta por diversos membros, em diferentes fases do seu desenvolvimento individual, as fases não são vividas de forma isolada. Há justaposição de etapas, originando conflitos expressivos para a passagem de uma fase para outra.
O genograma é uma ferramenta de representação gráfica da família. Nele são disponibilizados os membros da família, os tipos de relacionamento entre eles e as suas principais morbidades. Podem ser adicionados dados como ocupação, hábitos, grau de escolaridade, entre outros, de acordo com o objetivo do profissional e dados importantes da família. É, portanto, um diagrama em que está representada a estrutura familiar(14).
O FIRO(7) permite a identificação de três categorias (inclusão, controle e intimidade), possibilitando avaliar os sentimento de cada membro da família nas vivências do cotidiano. A inclusão (“dentro ou fora”) refere-se à interação dentro da família, sua organização e vinculação. Permite conhecer quem está dentro e quem está fora do contexto familiar. O controle (“topo ou base”) refere-se ao poder dentro da própria família. Identifica quem exerce o controle dominante, o poder reativo (que é desenvolvido pelo que apresenta reações contrárias ao dominante) e o poder colaborativo (que é representado por aquele que divide as influências entre os familiares). A intimidade (“perto ou distante”) refere-se à maneira como são compartilhados os sentimentos e as trocas interpessoais, as vulnerabilidades e as fortalezas(7).
O modelo PRACTICE que pode ser empregado em situações complexas em que se necessita avaliar o funcionamento da família e apreender o problema, permitindo traçar intervenções eficazes e resolutivas(5).
Por meio das informações obtidas com a coleta de dados, através das estratégias de abordagem familiar, foi possível estudar o caso de uma família e elaborar um plano de cuidados com as intervenções possíveis e necessárias para auxiliá-la.
A presente investigação recebeu aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), sob parecer de número 572.244 e todos os familiares que assentiram em participar do mesmo receberam explicação detalhada sobre sua finalidade e objetivo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para Participação em Estudo Científico. Os participantes receberam nomes fictícios para resguardar seus nomes, mantendo o anonimato.
Através da entrevista familiar, pode-se identificar que a família em estudo é composta de três membros: a paciente índice, Salete, uma senhora que apresenta câncer de boca; sua irmã, Sílvia, e sua sobrinha Margarida.
Salete, 63 anos de idade, sexo feminino, cor parda, solteira, mora em casa própria com a irmã Sílvia (64 anos), viúva, e a sobrinha Margarida (46 anos), também solteira.
A irmã de Salete relatou que ela, antes de adoecer, trabalhava em casa como artesã na produção de bordados, pinturas em tecido e crochê. Com a instalação das alterações sistêmicas, ela manteve suas atividades, porém não mais com a mesma quantidade e qualidade anteriores.
Quanto à história pregressa de Salete, a família relatou que a paciente tinha uma vida ativa, era tabagista e etilista e, em decorrência de um desajuste amoroso, intensificou esses hábitos de vida. Após o falecimento da mãe, ocorrido hà quatro anos, ela passou a residir com Sílvia e Margarida. No período em que recebeu a visita domiciliar, Salete já apresentava déficit cognitivo e dependência total para as atividades básicas de vida diária (ABVD) e atividades instrumentais da vida diária (AIVD) .
Segundo familiares, e a avaliação do neurologista, esse déficit cognitivo apresentado por Salete ocorreu em consequência do uso abusivo do álcool. Dentre os fatores comportamentais favoráveis à saúde e funcionalidade, autores revelam o incremento de atividades físicas adequadas, uso de alimentação saudável, abstinência do fumo e do álcool e o uso adequado de medicamentos(15).
A independência do individuo é compreendida como a capacidade de executar atividades relativas à vida diária e de viver em comunidade com alguma ou nenhuma ajuda de outros. Ela abrange capacidade funcional e contribui para a autonomia. A independência possibilita ao indivíduo cultivar ações concernentes a suas disposições sobre como se deve viver, de acordo com seus princípios e prioridades(16).
Em pesquisa realizada com idosos, do total de participantes, 15,2% demandavam auxílio para, pelo menos, uma ABVD, e 35,2% idosos necessitavam de ajuda para, pelo menos, uma AIVD. A quase totalidade de idosos adaptava-se exclusivamente a fatores intrínsecos para suas dificuldades nas ABVD(17).
Manter a autonomia e independência durante o processo de envelhecimento é essencial para indivíduos. À medida que um indivíduo envelhece, sua qualidade de vida é seguramente determinada por sua habilidade de manter autonomia e independência(16). Autonomia é a capacidade de tomar decisões pessoais sobre como se deve viver diariamente, dependendo de suas prioridades. Independência é a habilidade de desempenhar funções relacionadas à vida diária com alguma ou nenhuma ajuda de outros(16,17).
Após as visitas domiciliares dos profissionais de saúde da família (médica, enfermeira e cirurgiã-dentista), a paciente foi encaminhada para atendimento de referência e diagnosticada com carcinoma epidermoide, grau II de Broders,em cavidade oral. O exame tomográfico revelou lesão expansiva sólida na base da língua, com extensão pra região amigdaliana até faríngea, sendo proposta pelo cirurgião de cabeça e pescoço a intervenção cirúrgica com remoção total da lesão. No entanto, a excisão cirúrgica da lesão acarretaria perda da fala. A dúvida da família era se esse tratamento proposto seria realmente o mais coerente para a situação, já que a paciente apresentava déficit cognitivo e dependência total para as atividades básicas e instrumentais de vida diária, dificultandoainda mais a comunicação entre as cuidadoras e a paciente.
Após o planejamento do tratamento indicado pelo oncologista, uma das cuidadoras procurou informações sobre as vantagens e desvantagens de cada tratamento disponível, procurou auxílio da equipe de saúde para informações sobre cada modalidade proposta pelo cirurgião de cabeça e pescoço responsável pelo caso e, após esclarecimentos do oncologista, optou-se pelo tratamento alternativo, ou seja, quimioterapia e radioterapia, respeitando a autonomia da família.
Sabe-se que trabalhar com famílias exige a incorporação de uma tecnologia “relacional”, fundada na abordagem humanista e desenvolvida por meio da compreensão do funcionamento sistêmico da família e da aplicação do método clínico centrado no paciente(14,18). Isso requer dos profissionais uma atitude diferenciada, pautada no respeito, na ética e no compromisso com as famílias pelas quais são responsáveis(19).
Embora cada família demande da equipe de saúde uma atenção específica e uma abordagem de acordo com o problema enfrentado, baseado em peculiaridades do seu contexto de vida, estudos que trabalham técnicas de abordagem familiar preconizam recursos específicos e efetivos que norteiam a prática dos profissionais de saúde no trabalho com famílias(2,5,9).
Quanto ao ciclo de vida familiar(5,20) em que a família se encontrava, é o de membros em envelhecimento, e os profissionais de saúde envolvidos compreenderam a dinâmica da família e suas experiências frente a doenças e condições relacionadas ao processo de envelhecimento que exigem adaptações na rotina de vida.
Observa-se na Figura 1 uma visão ampliada da família em estudo por meio da representação gráfica do Genograma.
Nota: CA: câncer de boca; F: tabagismo; ALC: alcoolismo; HÁ: hipertensão arterial; D: diabetes; DC: doença cardíaca.
O pai (falecido) era cardiopata e a mãe apresentava várias patologias, falecendo por complicações cardíacas. Ainda sobre o histórico de saúde da família de Salete, identificou-se que teve um tio paterno morto por acometimento de um câncer de boca. Pode-se traçar um padrão de ocorrência e repetições dos principais agravos de saúde dos envolvidos. Nota-se que as principais patologias envolvidas foram: diabetes, hipertensão e cardiopatia. Além disso, é possível constatar a prevalência de indivíduos alcoolistas e tabagistas, cabendo ressaltar aqui também o histórico familiar de câncer de boca.
A irmã da paciente, Sílvia, era portadora de diabetes e a aceitava bem os tratamentos propostos pela equipe de saúde. Ela desenvolvia suas atividades básicas de vida diária normalmente, cuidava dos fazeres da casa e, como laser, cultivava plantas e confeccionava trabalhos de crochê. Em relação aos outros irmãos de Salete, ela tinha mais sete irmãos, sendo que apenas dois não ingeriam bebida alcoólica e não fumavam.
O núcleo familiar é representado por um tipo de família estendida com duas gerações(12), as quais mantêm uma relação próxima entre seus membros, que dispõem do serviço de saúde como principal rede de apoio.
A relação entre saúde individual e familiar é evidente: se por um lado as desordens e interações fazem parte do contexto da família, interferindo diretamente na saúde de seus membros, por outro, quando algum membro adoece, incide diretamente nos estágios do ciclo de vida familiar, havendo necessidade da família se organizar para cuidar do membro doente. As situações prolongadas/definitivas de doença podem levar os familiares a procurarem recursos fora para suportarem a situação(20) .
Assim, é relevante, a partir da estrutura familiar, identificar dados importantes para compreender a funcionalidade familiar, ou seja, quais os pontos “fortes” e “fracos” da família para o cuidado domiciliar, como a família pode cooperar e onde o profissional deverá auxiliar a família para uma melhor assistência(21). Assim, nessa família, foi identificado o sistema fraterno por parte da irmã Silvia, tido como “ponto forte”, sendo a irmã e também cuidadora. Ela relatou que sempre foi muito próxima à paciente e, naquele momento, devido ao atual estágio de saúde da mesma, sempre dormiam juntas, para atender suas necessidades em tempo hábil.
Em acréscimo às informações obtidas com o genograma, utilizou-se também o FIRO, que permite ao profissional conhecer a estrutura familiar, suas relações de poder e trocas de sentimentos, além de atuar como facilitador da interação entre os membros da família, esclarecer suas dúvidas sobre a patologia em questão e sua progressão, e informar sobre as alternativas de tratamento disponíveis(22).
A família envolvida no estudo era composta por uma irmã, que exercia o papel de controle dominante nas relações entre o núcleo familiar, porém que mantinha uma relação próxima e afetiva. A relação com os demais familiares era distante, com exceção de um membro que se apresenta bastante envolvido com o agravo que acometera a paciente índice.
Pôde-se notar que as cuidadoras Sílvia e Margarida ocupavam grande parte do tempo com Salete e demonstravam-se, no momento, organizadas no processo do cuidado, uma vez que dividiam as tarefas de casa. Apesar disso, Margarida deixara claro que buscaria ajuda dos irmãos da paciente a qualquer momento caso se sentissem sobrecarregadas.
Em relação à organização e divisão das tarefas, os resultados do presente estudo contradizem outras abordagens realizadas por outros autores em seus estudos(5,9), nos quais constata-se sobrecarga de trabalho e funções atribuídas apenas ao membro que exerce a relação de poder na família. Em trabalhos de outros autores, pôde-se verificar conflitos familiares e identificar relatos de sobrecarga de trabalho entre os envolvidos(8).
Segundo as cuidadoras, Salete não sabia que fazia tratamento para câncer. Ela não era incluída nas decisões da família e não participava das decisões quanto ao seu tratamento. Sílvia e Margarida julgavam que ela não entenderia devido ao déficit cognitivo que ela apresentava. Elas mencionaram ainda que a doença da paciente não interferia no desempenho de seus papeis, pois ambas cuidavam muito bem de Salete, oferecendo todo o suporte que precisava e sempre demonstrando carinho e proteção.
Identificou-se que as relações de poder eram representadas por Margarida, que, por sua vez, influenciava Sílvia. As duas sentiam-se envolvidas nas decisões relativas à doença e contribuíram para a decisão final no que se referiu ao tipo de tratamento que julgaram ser o mais conveniente, já que os irmãos de Salete não participavam das decisões sobre o caso, nem cumpriam com seus papeis de irmãos, pois não prestavam assistência à paciente nem davam apoio para a irmã e sobrinha.
Como já mencionado, apenas um irmão da paciente auxiliava no tratamento de Salete. Os outros irmãos apenas esclareciam que o fosse decidido por Sílvia e Margarida poderia ser realizado. Margarida relatou que compartilhava suas emoções com os demais, porém mencionou que relutava em demonstrar os sentimentos relacionados à insatisfação com os irmãos da paciente, no que se referia à falta de compromisso com que os mesmos lidavam com a situação. Esses relatos demonstram “pontos fracos” para a funcionalidade familiar. Acreditavam que, com a instalação da doença, esses familiares se afastaram mais. Segundo elas, com receio de serem procurados para dar assistência a elas e à paciente.
Para avaliar a forma de organização da família diante de enfrentamento de doenças e agravos impactantes, alguns trabalhos utilizaram com sucesso a ferramenta PRACTICE(2,5,9). Essa ferramenta de abordagem familiar também foi aplicada à família, e o resultado obtido, assim como nos trabalhos pesquisados, permitiu assistir a família de acordo com suas peculiaridades no enfrentamento da doença, estreitando laços com a equipe de saúde e respeitando a opinião dos envolvidos na condução do tratamento. A saber:
P - Problem (problema): Dependência total para as atividades básicas e instrumentais. Mudança na dinâmica familiar devido ao tratamento e interrupção do lazer da família devido às restrições de Salete. R - Roles (papéis e estrutura): Sílvia cuidava de Salete, da casa e acompanhava Salete no tratamento. Margarida cuidava de Salete, das questões burocráticas e acompanhava Salete no tratamento. O irmão Gustavo transportava Salete sempre que precisava. Os outros irmãos não participavam. A - Affect(afeto): Não houve alteração na relação afetiva da família diante do problema apresentado. C - Communication (comunicação): A comunicação era satisfatória entre Salete, Sílvia, Margarida e o irmão Gustavo, que prestava assistência na resolução dos problemas entre eles, mas era insatisfatória entre os irmãos que preferiam ficar afastados. T - Time in life (tempo no ciclo de vida): Família envelhecendo e enfrentando a inclusão de uma doença séria que acometeu um dos seus componentes. Necessitam negociar papeis entre seus membros diante do enfrentamento da situação atual. I - Illness (doenças na família): A irmã relatou que nunca enfrentaram problemas parecidos e que necessitavam da mobilização da família para resolução. C - Coping with stress (lidando com o estresse): Sílvia e Margarida procuraram apoio entre si, com o irmão Gustavo e o apoio da Equipe Saúde da Família. Sílvia e Margarida preferiram não procurar o restante da família para evitar conflitos. E, por fim, E - Environment/ ecology (ecologia ou meio ambiente): A família residia em casa própria, com condições socioeconômicas favoráveis, apresentava boa relação com os vizinhos, porém raramente procurava auxílio quando precisava. Em caso de doenças, recorriam à Estratégia Saúde da Família por meio de marcação de consultas na própria unidade de saúde. Era uma família que frequentava a igreja católica assiduamente e contava com os recursos financeiros de uma aposentadoria, uma pensão e aluguel de imóveis.
O modelo PRACTICE(2,5) foi uma ferramenta complementar, que facilitou a “avaliação familiar” de Salete, fornecendo informações sobre como conduzir esse caso especificamente. Essa ferramenta permitiu entender toda a dinâmica da família frente ao problema apresentado pela paciente índice. Pôde-se perceber que, nesse contexto familiar, não houve alteração de papéis, porém houve alteração na dinâmica familiar em decorrência da atual dependência para a realização de atividades básicas de vida diária exigidas pela condição de saúde da paciente índice.
Os autores(2,5,9,21) que defendem a utilização desse recurso são unânimes em afirmar que, para interagir em contextos dessa natureza, os profissionais de saúde precisam ter um olhar direcionado para além do usuário, ou seja, voltado para a família, uma vez que essa é parte essencial do cuidado e está implicada na manutenção das relações familiares e na saúde de seus membros. Assim, os profissionais necessitam perceber a família como um elo entre o tratamento e o paciente(22).
Uma das principais técnicas de cuidado empregada na abordagem à família foi a observação da compreensão entre cuidadoras e equipe de saúde. Pôde-se perceber inicialmente que tanto Margarida quanto Sílvia eram bem esclarecidas e questionavam os profissionais envolvidos, permitindo uma comunicação efetiva no processo de abordagem. Além disso, identificou-se que cabia a elas, Margarida e Sílvia, os papéis de mantenedoras do lar e norteadoras das decisões a serem tomadas.
A família tinha como recurso auxiliar disponível a equipe de saúde, composta por profissionais que prestavam uma atenção multidisciplinar, de forma a oferecer maior apoio à paciente e à família. Durante as visitas realizadas para acompanhamento de Salete, uma questão levantada foi a ausência dos outros irmãos na assistência ao tratamento dela.
No presente estudo, a abordagem familiar possibilitou a criação de vínculo entre a equipe de saúde e a família. A aplicação das ferramentas disponíveis permitiu conhecer o contexto no qual os envolvidos estavam inseridos, bem como as relações familiares em seu cotidiano, facilitando o acesso e proporcionando maior assistência da equipe de saúde.
A partir dessa experiência, foi possível interagir com a família e propor sugestões sobre a distribuição de tarefas para cada membro familiar, bem como repassar orientações às cuidadoras sobre o manejo com a paciente doente. As cuidadoras optaram por não reunir toda a família para a negociação de papeis a serem desenvolvidos na estratégia de cuidados com a paciente, como fora proposto pela equipe. Nesse sentido, a equipe respeitou a opinião e limites apontados pelos envolvidos, pois quando se trabalha com abordagem familiar, um dos princípios para a criação de vínculo é estabelecer uma relação de confiança entre profissional e paciente, e o respeito às suas crenças, suas demandas e à autonomia dos envolvidos(16,23). Nesse aspecto, as cuidadoras mencionaram que sempre que enfrentavam problemas procuravam resolvê-los entre si, avaliando-se aqui padrões de repetição e rituais de costume da família frente a situações específicas.
A Estratégia Saúde da Família consiste num serviço de saúde capacitado para intervir em situações como a descrita no estudo de caso apresentado, pois é a assistência à saúde que está inserida no ambiente social, econômico e cultural do indivíduo, trabalha com os determinantes do processo saúde-doença e, ao mesmo tempo, estimula o vínculo entre equipe e família/comunidade. Nesse sentido, o estudo permitiu interagir com a família, identificar suas necessidades e oferecer um acompanhamento do desenvolvimento dessa família pelos profissionais da atenção primária, fortalecendo sua rede de apoio social. Essa criação de vínculo fez com que a equipe multiprofissional de saúde se tornasse a referência de cuidado para a família na iminência de agravos em saúde, contribuindo para o alcance da qualidade de vida e promoção à saúde dos envolvidos. Assistir um familiar doente representa um desafio e acarreta um grande impacto na família, que precisa se adequar e potencializar suas capacidades. Cabe, assim, à equipe de saúde multiprofissional reconhecer as dificuldades e auxiliar na organização dos papeis de cada membro, bem como na adoção de estratégias de enfrentamento.
A realização dessa experiência da aplicação de ferramentas de abordagem familiar permitiu constatar e reforçar que um membro de uma família, quando doente, altera a dinâmica familiar, e que o apoio da equipe de saúde para a família com enfermidade de difícil manejo pode minimizar essas alterações. Também permitiu conhecer o contexto de vida dos envolvidos, acompanhar os resultados do tratamento da paciente enferma, criar vínculo e estabelecer uma relação de confiança entre a família e a equipe de saúde. Ressalta-se a importância dos profissionais de saúde em respeitar a autonomia do paciente e/ou da família quanto ao tipo de tratamento a ser executado.
Av. Dr. Ruy Braga, s/n Bairro: Vila Mauriceia CEP: 39401-089 - Montes Claros - MG - Brasil E-mail: araújodonto@gmail.com
Nota: CA: câncer de boca; F: tabagismo; ALC: alcoolismo; HÁ: hipertensão arterial; D: diabetes; DC: doença cardíaca.