Artigos Originais
Recepção: 15 Fevereiro 2017
Revised: 15 Setembro 2017
Aprovação: 13 Novembro 2017
DOI: https://doi.org/10.5020/18061230.2018.6524
Resumo: Objetivo: Descrever e comparar a influência da espiritualidade/religiosidade e do HumanizaSUS na prática clínica de profissionais de saúde de Unidades de Saúde da Família. Métodos: Estudo descritivo e transversal, em que se entrevistaram todos os 10 profissionais de saúde de nível superior das Unidades de Saúde da Família do município de Jiquiriçá, Bahia, Brasil, no período de janeiro a julho de 2016. As entrevistas ocorreram por meio de questionário adaptado do estudo Multicêntrico SEBRAME (Spirituality and Brazilian Medical Education) e de questionário específico desenvolvido para a abordagem do HumanizaSUS. Resultados: Dos entrevistados, 40% (n=4) disseram que não possuem nenhuma religião, mas acreditam em Deus; 30% (n=3) são evangélicos/protestantes; 20% (n=2) são católicos e 10% (n=1) responderam não ter religião/não acreditar em Deus. A maioria dos profissionais (n=6; 60%) relatou haver intensidade moderada da influência da religiosidade/espiritualidade na prática clínica. A maior parte dos profissionais (n=9; 90%) conhecem o HumanizaSUS, e 50% (n=5) afirmaram aplicar as orientações e diretrizes do programa. Conclusão: A espiritualidade/religiosidade influenciou mais o comportamento clínico do profissional investigado do que o HumanizaSUS.
Palavras-chave: Humanização da Assistência, Estratégia Saúde da Família, Espiritualidade, Acolhimento, Saúde Holística.
Abstract: Objective: To describe and compare the influence of spirituality/religiosity and HumanizaSUS on the clinical practice of health professionals working in Family Health Units. Methods: A descriptive, cross-sectional study, in which all 10 graduate health professionals of the Family Health Units of Jiquiriçá, Bahia, were interviewed. The interviews were carried out by means of a questionnaire adapted from the multicenter study SEBRAME (Spirituality and Brazilian Medical Education), in addition to a questionnaire specifically developed to approach HumanizaSUS. Results: Of the interviewees, 40% (n=4) said they do not have any religion but believe in God; 30% (n=3) are Evangelical/Protestant, 20% (n=2) are Catholic, and 10% (n=1) say they have no religion and do not believe in God. Most professionals (n=6; 60%) reported moderate intensity of influence of religiosity/spirituality on the clinical practice. Most (n=9; 90%) of the professionals know HumanizaSUS, and 50% (n=5) declared they apply the orientations and guidelines of the program. Conclusion: The spirituality/religiosity was more influential in the clinical behavior of the professionals interviewed than HumanizaSUS.
Keywords: Humanization of Assistance, Family Health Strategy, Spirituality, User Embracement, Holistic Health.
Resumen: Objetivo: Describir y comparar la influencia de la espiritualidad/religiosidad y del HumanizaSUS en la práctica clínica de profesionales sanitarios de Unidades de Salud de la Familia. Métodos: Estudio descriptivo y transversal en el cual se ha entrevistado a todos los 10 profesionales sanitarios de nivel superior de las Unidades de Salud de la Familia del municipio de Jiquiriçá, Bahía, Brasil, en el periodo entre enero y julio de 2016. Las entrevistas se dieron a través de un cuestionario adaptado del estudio Multicéntrico SEBRAME (Spirituality and Brazilian Medical Education) y de un cuestionario especifico desarrollado para el abordaje del HumanizaSUS. Resultados: De entre los entrevistados, el 40% (n=4) dijeron que no tienen religión pero creen en Dios; el 30% (n=3) son evangélicos/protestantes; el 20% (n=2) son católicos y el 10% (n=1) contestaron que no tenían religión/no creen en Dios. La mayoría de los profesionales (n=6; 60%) relató una intensidad moderada de la influencia de la religiosidad/espiritualidad en la práctica clínica. La mayor parte de los profesionales (n=9; 90%) conocen el HumanizaSUS y el 50% (n=5) afirmaron que aplican las orientaciones y directrices del programa. Conclusión: La espiritualidad/religiosidad ha influenciado más la conducta clínica del profesional investigado que el HumanizaSUS.
Palabras clave: Humanización de la Atención, Estrategia de Salud Familiar, Espiritualidad, Acogimiento, Salud Holística.
INTRODUÇÃO
É com a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 198, que a nova institucionalidade da saúde tem seus fundamentos, a partir de onde é definido o Sistema Único de Saúde (SUS). Ao longo dos anos, o SUS vem se aperfeiçoando e desenvolvendo novas maneiras de se aproximar da população e melhor atendê-la, além de conhecer melhor a realidade das comunidades. Na contínua melhoria e avanço do SUS, surge, no ano de 1994, o Programa de Saúde da Família (PSF), numa perspectiva estruturante e com foco na Atenção Básica (AB)(1).
No andamento do percurso de construção do SUS, foi criado, em 2000, o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) e, em 2003, surge a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão em Saúde no SUS, que pode também ser chamada de Política Nacional de Humanização (PNH), ou HumanizaSUS, com a proposta de expandir a humanização para além dos ambientes hospitalares(2).
Em resposta à crise do modelo médico-clínico e assistencial que ainda predomina no país, surge a Estratégia Saúde da Família (ESF), que visa propor uma mudança mais efetiva na forma de pensar a saúde. Na ESF, cabe à equipe de saúde da família atuar na promoção, prevenção, recuperação e na manutenção da saúde da população, produzindo ações que busquem uma atenção integral à saúde e estabelecendo respeito e vínculo com a comunidade(3).
A ESF deve se caracterizar segundo a atual Política da AB, pois propõe que a atenção à saúde centre-se na família, entendida e percebida a partir de seu ambiente físico e social, o que leva os profissionais de saúde a entrarem em contato com as condições de vida e saúde das populações, permitindo-lhes uma compreensão ampliada do processo saúde-doença e da necessidade de intervenções que vão além das práticas curativas, prevalecendo o estabelecimento de vínculos entre os profissionais e a população para garantir que a Atenção Primária seja efetivada adequadamente(4).
Ao direcionar estratégias e métodos de articulação de ações, saberes e sujeitos, pode-se, efetivamente, potencializar a garantia de atenção integral, resolutiva e humanizada. Nessa perspectiva, a PNH faz-se extremamente importante, pois se caracteriza por um conjunto de princípios e diretrizes que se traduzem em ações nas diversas práticas de saúde e, através do HumanizaSUS, lança mão de ferramentas e dispositivos para consolidar redes, vínculos e a corresponsabilização entre usuários, trabalhadores e gestores. Na PNH, pode-se atribuir ao termo humanização aos seguintes aspectos: valorização dos sujeitos participantes do processo de produção de saúde (usuários, gestores e trabalhadores); fomento da autonomia, do protagonismo, de corresponsabilidade na produção de saúde e de sujeitos; e melhoria e aproximação na relação profissional-usuário, com a consequente efetivação do humanizar(3).
A humanização faz-se necessária em toda e qualquer relação humana, servindo de canal para efetivação do cuidar holístico e sensível de cada pessoa. Dessa maneira, o humanizar reflete-se sobre o agir do cuidador, o qual passa a ser percebido como uma presença importante e dinâmica, capaz de acolher, refletir, reconhecer e desempenhar, com sensibilidade e competência, uma assistência voltada às necessidades daqueles que recebem os cuidados(5). O agir do cuidador sobre o usuário vai além da saúde por si só, deve-se também considerar sua dimensão espiritual e/ou religiosa. Essa dimensão ocupa um lugar de destaque na vida das pessoas e mostra também que é imprescindível conhecer a espiritualidade dos usuários de saúde ao planejar o cuidado(6), já que a valorização da dimensão espiritual e religiosa na prestação de cuidados em saúde influencia positivamente o bem-estar das pessoas, permitindo aos profissionais a visão integral da saúde(7).
A espiritualidade pode ser definida como um recurso individual e subjetivo de conexão consigo mesmo, com o outro, Deus ou outra divindade(8); uma busca pessoal para entender questões relacionadas ao fim da vida, ao seu sentido, sobre as relações com o sagrado e que pode, ou não, levar ao desenvolvimento de práticas religiosas ou formações de comunidades religiosas(9). Já religiosidade pode ser entendida como o exercício de um sistema organizado de crenças e práticas (religião), que envolve a presença de hierarquias, líderes/sacerdotes e dogmas a serem seguidos; é o quanto um indivíduo acredita, segue e pratica essa religião(8).
Assim, a relação que existe entre o processo saúde-doença e a religiosidade/espiritualidade remete ao período medieval, quando as licenças para a prática médica eram dadas por autoridades religiosas, bem como à história grega, quando se ouvia relatos de deuses que promoviam o aparecimento de doenças(10).
Na busca pela visão holística do homem e com o “rompimento” do modelo biomédico, a promoção da saúde passa a ser considerada a nova lei. Mas o corpo mortal ainda é visto como sagrado e a única fonte de doença e de cura. Em contrapartida, nunca se falou tanto em doenças espirituais e mentais como atualmente. A prevenção e o tratamento para tais problemas surgem com o advento das novas descobertas da Neurociência e de outras áreas das ciências, uma vez que não se pode mais negar a existência do “transcendental” e do “divino” na mente humana, sobretudo a sua atuação na existência do ser humano. Além do mais, encontrar um sentido na vida também pode ser considerado como uma promoção de saúde via espiritualidade, sendo que o sentido é uma realidade que está voltada para o futuro(11).
Dessa maneira, a espiritualidade/religiosidade tem despertado crescente interesse entre pesquisadores e acadêmicos na área de saúde, bem como da população em geral. Este tema tem sido objeto de estudo de muitas pesquisas, e, além disso, nos dias de hoje, tem surgido literatura relatando a influência para a qualidade de vida dos indivíduos, bem como o enfrentamento de doenças e a promoção da saúde(6).
Nos Estados Unidos da América, uma pesquisa pelo Instituto Gallup encontrou que 80% dos americanos (87% para os maiores de 65 anos) consideravam a frase “eu recebo bastante conforto e apoio de minhas crenças religiosas” verdadeira. 90% dos pacientes afirmam que prática de crenças religiosas são formas importantes para o enfrentamento e o aceite das doenças físicas e, além disso, a religião é o fator mais importante que os ajuda nessas horas para mais de 40% dos entrevistados(12). Segundo a literatura, a espiritualidade/religiosidade tem sido reconhecida como um recurso que pode auxiliar as pessoas no enfretamento das adversidades do dia a dia, bem como nos eventos relacionados aos processos de adoecimento(13), por isso a articulação com profissionais religiosos é essencial no acompanhamento de pacientes, especialmente daqueles que se encontram em cuidados paliativos(14).
É possível ainda afirmar que a religiosidade/espiritualidade do profissional de saúde representa um aspecto de extrema importância e que deveria ser estudado, já que influencia positivamente sobre o paciente. Tal influência pode beneficiar a assistência prestada e, ao mesmo tempo, trazer melhorias para sua qualidade de vida e saúde(15).
Diante do exposto, o presente estudo tem por objetivo descrever e comparar a influência da espiritualidade/religiosidade e do HumanizaSUS na prática clínica de profissionais de saúde de Unidades de Saúde da Família.
MÉTODOS
Trata-se de pesquisa descritiva e transversal realizada no município de Jiquiriçá, Bahia, Brasil, que tem uma população estimada em 15.106 habitantes, dos quais: 70,3% pertencem à religião Católica Apostólica Romana, 19,5% pertencem à religião Evangélica, 4,2% pertencem à religião Espírita e 6% não possuem religião(16). O município possui gestão básica em saúde, portando um hospital municipal que realiza atendimento de urgência, emergência e ambulatorial, e também possui 03 Unidades de Saúde da Família (USF), que realizam atendimentos ambulatoriais de toda sua população(17). Essas USF do município representam o cenário da presente pesquisa.
As USF de Jiquiriçá são compostas por um total de 10 profissionais de nível superior, sendo 5 enfermeiros, 3 médicos e 2 cirurgiões-dentistas. O estudo ocorreu com todos os profissionais de saúde de nível superior que atuam nas USF, assim escolhidos uma vez que o questionário possui perguntas que exigem dos profissionais terem passado por formação acadêmica, bem como sobre sua atuação no HumanizaSUS na ESF, já que se trata de questionários específicos para os profissionais de nível superior.
Utilizou-se como instrumento de coleta de dados um questionário adaptado do estudo Multicêntrico SEBRAME (Spirituality and Brazilian Medical Education) coordenado pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pela Associação Médico Espírita do Brasil(18). Esse questionário é composto por dados sóciodemográficos - gênero, idade, tempo de serviço, raça/etnia e renda familiar; prática clínica, o paciente e a espiritualidade - conhecimentos e opiniões acerca da relação entre espiritualidade e saúde na prática clínica; a formação acadêmica e o tema espiritualidade - como as escolas formadoras abordam o tema durante a formação e como poderiam ser oferecidos os conteúdos relacionados à saúde e à espiritualidade; dimensão de religiosidade - diferentes aspectos da religiosidade do participante através da afiliação religiosa e de perguntas que fazem parte da Escala de Religiosidade Duke Religious Index - DUREL, a qual foi validada para o Brasil e possui cinco questões que avaliam três dimensões de religiosidade que mais se relacionam com a saúde: organizacional, não organizacional e intrínseca. Nesse questionário, os entrevistados podem escolher apenas uma das alternativas(19).
Além do referido questionário adaptado, foi incluído no instrumento de coleta a Spirituality Self Rating Scale (SSRS), escala traduzida e adaptada para o Brasil, que avalia aspectos da espiritualidade do indivíduo. Seus itens refletem quanto o profissional considera importantes questões sobre sua dimensão espiritual e se as aplica em sua vida cotidiana(20).
Para os questionamentos relacionadas ao HumanizaSUS, desenvolveu-se um questionário específico, a que os participantes responderam de forma escrita, composto por 5 questões que abordavam se os profissionais tinham conhecimento sobre o HumanizaSUS: se já haviam lido a cartilha do HumanizaSUS, se já tinham recebido treinamento para o programa, se aplicam as orientações e diretrizes do HumanizaSUS e o que mudou com a implantação do HumanizaSUS. Cada profissional investigado recebeu um questionário, não poderia consultar nenhum meio que explicasse ou falasse sobre o programa, e dispuseram de uma hora para o preenchimento, acompanhado pelo entrevistador.
Os dados foram coletados no período de janeiro a junho de 2016, tabulados no programa Microsoft Office Excel e, posteriormente, enviados ao programa estatístico SPSS, versão 21.0, para a realização de análise descritiva dos dados, com distribuição de frequências absoluta e relativa.
A presente pesquisa ocorreu de acordo com a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde(21) e faz parte de um projeto do Núcleo de Pesquisa em Bioética do Programa de Pós-graduação em Enfermagem e Saúde da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), pesquisa intitulada “A influência da Espiritualidade e da Bioética na saúde”, que foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UESB com Parecer n.º 805380. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), a fim de lhes garantir o sigilo e anonimato, além de cederem os direitos de uso e divulgação do conteúdo, bem como autorização para publicação dos resultados da pesquisa em artigos, revistas e divulgação em eventos técnico-científicos nacionais e internacionais.
RESULTADOS
Participaram deste estudo profissionais com idade entre 23 e 71 anos, sendo a maioria do sexo feminino (n=7; 70%), com predominância de cor da pele autorreferida branca (n=4; 40%), enquanto negros e pardos eram 3 (30%) cada. A renda familiar mais predominante entre os entrevistados foi de 4 a 7 e 8 a 12 salários mínimos (n=4, 40%) cada . Em relação ao tempo de serviço, variou de 2 a 29 anos, com média de 11 anos.
Quanto à influência da espiritualidade/religiosidade na prática clínica dos profissionais para o entendimento do processo saúde/doença e na relação profissional/paciente, obteve-se os seguintes resultados dispostos na Tabela I.
No que diz respeito ao que descreve melhor a afiliação religiosa, foi possível obter as seguintes respostas: 4 (40%) entrevistados disseram que não possuem nenhuma religião e que acreditam em Deus, 3 (30%) são evangélicos/protestantes, 2 (20%) são católicos e 1 (10%) respondeu não ter religião e não acreditar em Deus.
Foram perguntados se “a sua espiritualidade/religiosidade modifica a forma com que você cuida dos seus pacientes”, sobre o que entendem por espiritualidade e com o que relacionam o assunto saúde e espiritualidade, e as respostas obtidas estão descritas na Tabela II a seguir:
Quando perguntados se “você conhece o programa HumanizaSUS”, se “você já leu a cartilha do HumanizaSUS”, “se já recebeu treinamento para o HumanizaSUS” e se “aplica as orientações e diretrizes prescritas pelo HumanizaSUS no seu atendimento”, as respostas foram as seguintes, conforme Tabela III:
DISCUSSÃO
O presente estudo teve sua amostra composta por médicos, cirurgiões-dentistas e enfermeiros, já que são os profissionais de nível superior que compõem a ESF do município analisado. Os enfermeiros representaram a maioria e o sexo feminino foi o predominante na amostra, informação que corrobora com dados de pesquisas do Conselho Federal de Odontologia (CFO)(22), que diz que 51,2% dos cirurgiões-dentistas no Brasil são do sexo feminino, e Conselho Federal de Medicina (CFM)(23) e Conselho Federal de Enfermagem (COFEN)(24) que apontam o sexo feminino como maioria entre profissionais de saúde, sobretudo entre as equipes médicas e de enfermagem.
Quanto à prática clínica e a espiritualidade, a maioria dos profissionais do atual estudo relatou que a sua religiosidade/espiritualidade possui influência moderada para o seu entendimento do processo saúde-doença e na sua relação com o paciente, convergindo com um estudo realizado em 2013, no interior do estado de São Paulo, com 120 estudantes do curso de graduação em Enfermagem, em que, ao avaliar a opinião dos estudantes, 42,4% deles acreditavam que a espiritualidade do profissional influenciava no entendimento do processo saúde-doença e na relação profissional paciente(25).
Pesquisas na literatura têm buscado estudar o reflexo da espiritualidade sobre a vida do profissional e suas relações, comprovando que a religiosidade/espiritualidade dos profissionais pode influenciar na relação com seus colegas de trabalho e na maneira como abordam e interagem com seus pacientes, o que pode ser considerado essencial para promover a empatia entre as pessoas, a harmonia e o equilíbrio entre as dimensões do ser humano, tendo impacto direto sobre a qualidade e a assistência que é prestada(26).
Além da influência sobre o profissional, estudos comprovam que a espiritualidade/religiosidade influencia na compreensão desse processo pelo próprio paciente. Uma pesquisa realizada em uma Unidade Básica de Saúde localizada na Paraíba encontrou benefícios da espiritualidade de usuários hipertensos e a importância da fé religiosa na melhora da condição de saúde(27).
Em outro estudo, observando os relatos descritos dos pacientes entrevistados, foi possível perceber que há uma forte ligação de sua fé com a recuperação da doença, mesmo em casos onde tinham sido desenganados pelos médicos e eles atribuem essa melhora à fé, possibilitando concluir que uma das formas de enfrentamento da morte e da doença está associada à força da fé e das crenças religiosas que são meios de expressar a espiritualidade(28) A espiritualidade pode ser considerada o propósito de vida de cada pessoa, bem como a expressão da identidade levando em conta a própria história, experiências e aspirações pessoais. Quando a fé permite que ocorram transformações na percepção pela qual o paciente e a comunidade entendem a doença, isso permite que ocorra gradativamente o alívio do sofrimento(15).
Muitas vezes, o enfretamento do processo saúde-doença vai além do corpo, passando pela mente, e estudos tem demonstrado maior relação entre espiritualidade e religiosidade com saúde mental, incluindo menor prevalência de depressão, menor tempo de remissão da depressão após tratamento, menor prevalência de ansiedade e menor taxa de suicídio(14). Da mesma forma, estudos demonstram uma relação da espiritualidade com melhor qualidade de vida e maior bem estar geral(29).
Quanto à afiliação religiosa, a maior parte dos entrevistados apontaram que não possuem nenhuma religião, mas acreditam em Deus, seguido da religião evangélica/protestante. Isso mostra que uma das características da religião no Brasil é a diversidade de credos e ou pluralidade de crenças, que vem se alargando nos últimos anos, segundo dados do IBGE(16). No último censo demográfico ocorreu o declínio da afiliação religiosa entre os católicos, ao mesmo passo em que ocorre o aumento do número de brasileiros que não possuem religião(16).
Foi possível perceber ainda que 90% dos entrevistados do estudo em questão acreditam em Deus e 50% frequentam alguma religião. Quando se trata da dimensão de religiosidade, os profissionais foram perguntados se “a sua espiritualidade/religiosidade modifica a forma com que você cuida dos seus pacientes” e 70% dos entrevistados relataram que sim. Dessa maneira, corrobora com a literatura quando se entende que a dimensão espiritual traz bem-estar, paz, tranquilidade, harmonia, compreensão e, sobretudo, valorização do ser humano que necessita de cuidados(26).
A importância da dimensão espiritual sobre o cuidado e a vida do paciente pode ainda ser observada em outro estudo, onde foi possível concluir que os pacientes, na busca de alívio e conforto, intensificaram a fé e as práticas religiosas após o diagnóstico da neoplasia(28).
Da mesma forma, mostra-se na literatura que os pacientes desejam receber esse tipo de suporte, variando de 33 a 94% nos estudos internacionais(9) e 79 a 87% nos estudos brasileiros(30) dependendo do tipo de atendimento, local de atuação e contexto clínico.
O cuidado em um amplo conceito pode ter diversos significados incorporado como: zelo, diligência e atenção que se concretiza na vida em sociedade ao mesmo tempo em que o cuidado é prioridade, representando uma atitude de preocupação, responsabilidade e envolvimento afetivo com o outro(31). Nessa perspectiva do cuidado e de relações interpessoais(32), a espiritualidade oferece crescimento nos diversos campos do relacionamento e no campo interpessoal, motiva a tolerância, a unidade e o senso de pertencer a um grupo.
Em relação à prática clínica, o paciente e a espiritualidade, quando os profissionais da atual pesquisa foram perguntados sobre o que eles entendiam por espiritualidade, sendo permitido marcar diversas opções, a mais citada foi a que dizia que a espiritualidade representa a busca de sentido e significado para a vida humana, citada por 80% dos entrevistados, corroborando com um estudo que afirma que as várias definições de espiritualidade, em sua maioria, contemplam a busca por significado e propósito de vida(15). Este entendimento da espiritualidade é de extrema importância, uma vez que certifica o que diz alguns autores em seus estudos, os quais explicitam que a espiritualidade é mais ampla e pessoal que a religiosidade, já que está relacionada a um conjunto de valores íntimos, completude interior, harmonia, conexão com os outros; estimula um interesse pelos outros e por si; e uma unidade com a vida, a natureza e o universo(15).
Quando os profissionais do atual estudo foram perguntados sobre relacionam ao assunto “saúde e espiritualidade”, as assertivas mais citadas foram qualidade de vida e interferência positiva, ou negativa, da religiosidade na saúde, ambas citadas por 50% dos entrevistados. Esses dados se confirmam com a afirmação de que a espiritualidade e a religiosidade têm sido reconhecidas como recursos que ajudam no enfrentamento das adversidades e eventos traumáticos do cotidiano, como nos casos de adoecimento e hospitalização(33). Além disso, pode-se considerar o reconhecimento da espiritualidade, pela Organização Mundial de Saúde(34), como componente do conceito de qualidade de vida, estando associada à melhor saúde física e mental, possibilitando perceber tal interferência positiva. Estando ainda de acordo com demonstração de relações entre maior espiritualidade/religiosidade e melhor saúde mental, desfechos clínicos, maior sobrevida, bem-estar geral e qualidade de vida, ou seja, corrobora com as respostas dos profissionais entrevistados na presente pesquisa(10).
Quando os entrevistados da atual pesquisa foram questionados a respeito do HumanizaSUS, foi possível perceber que 90% conhece o programa, porém, nenhum deles recebeu treinamento para o programa. A partir dos resultados obtidos acerca do HumanizaSUS, observa-se que existe uma grande diferença na percentagem entre aqueles que conhecem o programa e os que aplicam as diretrizes, possibilitando observar que conhecer o programa e ler sobre ele não é o suficiente para que ele seja praticado. Faz-se necessário considerar que a humanização visa superar o modelo biomédico, enfocando o usuário como protagonista do processo assistencial(35). Ao mesmo tempo, a humanização é um processo amplo, demorado e complexo, ao qual oferecem resistência, pois envolve mudanças de comportamento e ruptura com processo formativo de cada um, questões que sempre despertam insegurança(36).
Além disso, a falta de treinamento pode ser um grande contribuinte para a pouca prática do programa, já que o programa possui uma cartilha própria que deve ser repassada aos profissionais, e a inserção do programa deve vir acompanhado de treinamento e cursos que possibilitem ao profissional conhecer e consequentemente aplicar na prática clínica(1).
É notória a fragilidade na capacitação e nas políticas de inserção desse programa na AB, ainda que os dados da Cartilha do HumanizaSUS definam as seguintes estratégias de implementação do programa: no eixo das instituições do SUS, propõe-se que a PNH faça parte dos planos estaduais e municipais dos governos, como já faz do Plano Nacional de Saúde e dos Termos de Compromisso do Pacto Pela Saúde. No eixo da educação permanente em saúde, indica-se que a PNH seja incluída como conteúdo e/ou componentes curriculares de cursos de graduação, pós-graduação e extensão em saúde, vinculando-se às instituições de formação, e oriente processos de educação permanente em saúde de trabalhadores nos próprios serviços de saúde. No eixo da informação/comunicação, indica-se por meio de ação da mídia e discurso social amplo a inclusão da PNH no debate da saúde. A humanização depende da capacidade do profissional de saúde de falar e ouvir, de dialogar com seu semelhante, pois sem comunicação não há humanização(2).
Deve-se entender que a comunicação é um processo de compreensão e compartilhamento de mensagens enviadas e recebidas, em que as mensagens e o modo como se dão suas trocas influencia sobre o comportamento das pessoas(37). Isso torna possível comparar a influência da espiritualidade/religiosidade e/ou do HumanizaSUS sobre o comportamento clínico desses profissionais, de onde vem a maior influência, já que, em contrapartida ao HumanizaSUS, a espiritualidade/religiosidade influenciou no atendimento clínico de 70% dos entrevistados no estudo em questão.
O presente estudo apresentou limitação no que se refere ao tamanho da amostra. Apesar de ser 100% da população do município analisado, apresenta tamanho reduzido, permitindo considerar os resultados encontrados apenas para população em estudo. Os próximos passos, a curto e médio prazo, seriam a realização de novos estudos em nível local e regional, com amostras maiores, possibilitando estender os resultados para níveis mais extensos.
CONCLUSÃO
Foi possível concluir que há influência da espiritualidade/religiosidade sobre o comportamento clínico dos profissionais investigados, independentemente da crença em Deus ou vínculo religioso. Quanto ao HumanizaSUS, existe uma grande diferença na percentagem entre aqueles que conhecem o programa e os que aplicam suas diretrizes, possibilitando observar que conhecer o programa e ler sobre ele não é o suficiente para que seja praticado, indicando que a falta de treinamento pode ser contribuinte para a pouca prática do programa.
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Autor notes
Endereço para correspondência: Rafael Moura Oliveira Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB Rua Humberto de Campos, 184 Bairro: Centro CEP: 40150-130 - Jiquiriçá - BA - Brasil
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