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Processos de saúde e doença no campo sagrado e as narrativas de ressignificação corpórea: o caso das cirurgias espirituais no Hospital Espiritual Casa de Hansen
Processos de saúde e doença no campo sagrado e as narrativas de ressignificação corpórea: o caso das cirurgias espirituais no Hospital Espiritual Casa de Hansen
Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, vol. 23, núm. 1, pp. 64-91, 2021
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Recepção: 01 Julho 2020
Aprovação: 01 Março 2021
Resumo: O objetivo deste artigo é discutir os processos de saúde e doença, tendo como principal foco da análise as narrativas de ressignificação do corpo de sujeitos submetidos às práticas de cura no campo do sagrado, as chamadas cirurgias espirituais. O lócus da pesquisa é o Lar Espiritual Sagrado Coração de Jesus – Casa de Hansen (também conhecido como Hospital Espiritual Casa de Hansen), situado na cidade do Rio de Janeiro. Argumentamos que as práticas terapêuticas populares intermediadas pelas religiões constituem dispositivo para a construção dos sentidos sobre a doença, funcionando de forma complementar ao modelo biomédico. Assim, na contemporaneidade, observa-se a religiosidade de forma desinstitucionalizada, privilegiando a autonomia dos indivíduos, destacando a categoria “espiritualidade” como o principal intermediário entre o sujeito e Deus. Metodologicamente, este trabalho alicerça-se na pesquisa qualitativa, exploratória e etnográfica, chamando a atenção para a análise das entrevistas realizadas no Hospital Espiritual Casa de Hansen.
Palavras-chave: Corporeidade, processos de cura, doença, sagrado, saúde.
Abstract: The aim of this article is to discuss the health and disease processes, having as main focus of the analysis the narratives of resignification of the body coming from subjects who underwent healing practices in the bleeding field, the so-called spiritual surgeries. The research locus is the Sacred Heart of Jesus Spiritual Home - Hansen's House (also known as Hansen's Spiritual House), located in the city of Rio de Janeiro. We argue that popular therapeutic practices mediated by religions are a device for the construction of meanings about the disease, functioning in a complementary way to the biomedical model. Thus, in contemporary times, religiosity is observed in a deinstitutionalized way, privileging the autonomy of individuals, highlighting the category “spirituality” as the main intermediary between God and the subject. Methodologically, this work is based on bibliographical, qualitative, exploratory and ethnographic research, drawing attention to the analysis of the interviews conducted at the Casa de Hansen Spiritual Hospital.
Keywords: Corporeality, healing processes, disease, sacred, health.
Considerações iniciais
Esse artigo é resultado da dissertação de mestrado intitulada “O corpo como sujeito de experiências em espaço sagrado nos processos de saúde-doença: cirurgias espirituais” (2016). Trata-se de uma pesquisa etnográfica de cunho exploratório e teve como objetivo compreender a relação entre práticas de cura (no campo sagrado) e os processos de ressignificação corpórea dos sujeitos que vivenciaram a experiência denominada cirurgia espiritual. A proposta do estudo foi identificar como essas experiências configuraram-se na reorientação do sujeito às práticas de autocuidado, com foco nos hábitos e costumes em torno da saúde. Tais elementos estão inseridos na lógica e nos procedimentos observados no espaço sui generis denominado Hospital Espiritual. Essas dimensões estão devidamente explicitadas na segunda parte do artigo, intitulada Caminhos metodológicos para pesquisa em saúde e religiosidade.
A resolução aprovada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), por ocasião da assembleia de 1984, desvincula a noção de saúde da ideia de “ausência de doenças” e, em 22 de janeiro de 1998, saúde passa a ser definida como “um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade”. Desde então, a relação entre espiritualidade e saúde tem se consolidado como um tópico cada vez mais frequente em discussões tanto no campo das humanidades quanto das ciências médicas. Nesse sentido, este artigo apresenta uma discussão sobre os processos de saúde e de doença, tendo como ponto de reflexão a interseção entre o campo do sagrado e o aspecto da ressignificação do corpo, a partir de práticas e experiências espiritualistas vivenciadas pelos sujeitos submetidos às chamadas cirurgias espirituais.
Entre os referenciais bibliográficos utilizados, enfatiza-se a literatura do ponto de vista da interdisciplinaridade, optando-se por autores cujas abordagens transitam entre a antropologia e a área de saúde, destacando-se autores cujas temáticas dialogam com o sagrado, as questões em torno de doenças e os processos de cura, como Rodrigo Toniol (2017), Giglio-Jacquemont (2006), FrançoisLaplantine (1986), Esther Langdon (2006) e Aldo Natale Terrin (1996, 1998).
No contexto das terapias religiosas, as cirurgias espirituais não são novidade no Brasil, tornando-se populares com o médium José Pedro de Freitas (1921-1971), mineiro de Congonhas do Campo, conhecido como Zé Arigó, o primeiro médium a supostamente incorporar o espírito de Dr. Fritz, que teria sido um alemão, de nome Adolf Fritz, nascido em Munique, em 1876, segundo relatos do próprio espírito. Na atualidade, dentre os “cirurgiões espirituais” no Brasil, destacou-se, na cidade do Rio de Janeiro, o médium José Couto4, que incorporava o espírito de Dr. Hansen, um médico alemão que afirmava ter atuado durante a Primeira Guerra Mundial. Dr. Hansen, por intermédio da mediunidade do sr. José, realizou cirurgias espirituais ao longo de duas décadas, no Lar Espiritual Sagrado Coração de Jesus – Casa de Hansen, conhecido por seus frequentadores como Hospital Espiritual – Casa de Hansen (CNPJ: 08.892.944/0001-05), que se localiza na Estrada do Cantagalo, 882 – casa 13, no bairro de Campo Grande, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, Brasil, e é um espaço religioso destinado aos cuidados da saúde física, mental e espiritual.
Nesse contexto, este artigo apresenta uma discussão acerca dos resultados obtidos na pesquisa de campo com os sujeitos que participaram de experiências nos processos saúde-doença em espaço sagrado, curados ou não por intervenção de cirurgias espirituais realizadas por Dr. Hansen, no Hospital Espiritual – Casa de Hansen, no período entre 2014 e 2016. A proposta desta pesquisa foi entender como o corpo é concebido e ressignificado após experiências que envolvem o processo saúde-doença no espaço sagrado, independentemente de suas entradas no espaço biomédico, com o intuito de abrir caminho para a compreensão da relação do sujeito com o sagrado e as práticas de saúde, antes e depois de experiências de cura por meio de cirurgias espirituais. Além disso, procurou-se investigar se essa experiência é capaz de fornecer ao sujeito uma releitura de seu mundo simbólico, de representações e relação com o corpo, de modo a ressignificar seu imaginário, seu sistema de crenças e práticas próprias de cuidado com a saúde.
O artigo está dividido em três partes. A primeira parte, O estado da arte das pesquisas interdisciplinares em antropologia e saúde: do sagrado às práticas de cura, diz respeito aos estudos cuja abordagem perpassa pela espiritualidade e saúde. Na segunda parte, Caminhos metodológicos para pesquisa em saúde e religiosidade, apresentamos os processos metodológicos que permearam a pesquisa. A terceira parte, a relação entre o sagrado, as curas espirituais e as práticas biomédicas: análise das narrativas dos participantes da Casa de Hansen, baseia-se nas análises das narrativas obtidas ao longo do trabalho de campo, entrelaçando com a discussão teórica.
O estado da arte das pesquisas interdisciplinares em antropologia, religiosidade e saúde: do sagrado às práticas de cura
Rodrigo Toniol (2017) chama a atenção para duas apropriações da categoria espiritualidade que convivem e entrelaçam-se sem demonstrarem limites conscientes para os indivíduos. A primeira indica uma modalidade de relação com o sagrado estabelecida a partir de contornos desinstitucionalizados e subjetivos, caracterizados por práticas menos dogmáticas, individuais, subjetivas, intuitivas e emocionais, que privilegiam a autonomia do sujeito na busca da relação com o sagrado. A outra destaca a apropriação da categoria tomada pelo sentido que o autor nomeia como “espiritualidade institucionalizada”, correspondente aos seus usos oficiais por intermédio de instituições seculares com instruções promulgadas pela OMS e dirigidas à saúde, com a finalidade de estabelecer normatizações sobre os vínculos entre espiritualidade e saúde e transformá-las em práticas.
Segundo o autor, foi a partir da legitimação da medicina tradicional que “espiritualidade” passou ser uma categoria mais frequente nos documentos da OMS. A prática das medicinas tradicionais prescinde de técnicas que incluem “tratamento espiritual” e destina-se a populações que concebem a saúde como uma totalidade que integra “corpo, mente e espírito”, acrescenta o autor. Entretanto, essa distinção apontada por Toniol (2017) não parece clara na prática cotidiana dos indivíduos. Parece não haver limites entre as terapias complementares e alternativas e as terapias religiosas, pois elas se intercambiam, sendo apropriadas pelos espaços religiosos sem nenhuma oposição entre elas.
Se, por um lado, a incorporação da categoria espiritualidade à definição de saúde pela OMS proporcionou o surgimento do viés institucionalizado e oficial da espiritualidade (TONIOL, 2017), por outro, observa-se maior ênfase dada à face terapêutica da religião, que mescla, na atualidade, as mais diversas práticas alternativas e complementares às religiosas, ampliando-se a oferta de tratamentos disponibilizados àqueles que sofrem e buscam em práticas não oficiais alívio para o sofrimento. Nessa perspectiva, lança-se a urgência da abordagem multidimensional sobre o tema, abrindo espaço para a abordagem de práticas não biomédicas de cuidado e de interpretação dos processos saúde-doença. A esse respeito, Terrin (1998, p. 192), aparentemente, manifesta-se aliviado: “Até que enfim chegamos ao ponto em que se estão redescobrindo que uma oração pode contribuir para a cura mais do que uma injeção ou a ingestão de pílulas com certa composição química”.
No Brasil, é muito comum a procura por sistemas não oficiais de cuidado com a saúde e auxílio contra as doenças, e, em muitos casos, a primeira opção não é o sistema biomédico, mas a medicina popular, os sistemas médico-religiosos e vários outros sistemas que abrangem o processo de doença e cura.
A sociedade brasileira desenvolveu uma relação intrínseca entre religião e saúde, compondo formas alternativas de terapias calcadas no senso comum, que coexistem com a biomedicina em meio a constantes embates (MONTERO, 1985; MALUF, 2005). Nesses termos, evidencia-se que religião e práticas terapêuticas se aproximam na busca da superação do sofrimento:
O campo religioso contemporâneo [...] se apresenta com uma significativa e ampla circulação e competição, cujos resultados são zonas de transição entre sistemas religiosos […] e a mobilidade e a diversificação religiosas são mais acentuadas nos grandes centros urbanos.
(ALMEIDA, 2004, p. 20).As práticas mágico-religiosas de combate ao mal e à doença têm em seu repertório a prática da mediunidade, que faz parte de um sistema de crenças de religiões distintas, permeando o imaginário da população com história de fantasmas e de espíritos, transitando entre o mundo dos mortos e dos vivos. Nesse contexto, torna-se fundamental a percepção do significado desse conjunto de diferentes experiências e crenças e de sua importância para as construções sociais da realidade do sistema cultural brasileiro (VELHO, 1994, 2003).
As terapias religiosas alternativas intermediadas pela prática da mediunidade fazem parte de uma combinação de modelos terapêuticos bastante conhecida pelos brasileiros. Nesse contexto, destaca-se a pesquisa de Waleska Aureliano (2011), que investigou em sua tese intitulada Espiritualidade, saúde e as artes de cura no contemporâneo: indefinição de margens e busca de fronteiras em um centro terapêutico espírita no sul do Brasil, o uso de terapias complementares e espirituais por pacientes oncológicos. Segundo a pesquisadora, a lógica de cuidado perpassa o aspecto integral do ser, e as dicotomias mente/corpo, biomedicina/terapias complementares não estavam presentes no espaço, sendo os serviços utilizados por pessoas de diferentes classes sociais e filiações religiosas, em diversos estágios do câncer, paralelamente ao tratamento biomédico, e não como a “última opção”, corroborando a noção de complementaridade dos serviços.
As cirurgias espirituais integram o repertório de modelos terapêuticos disponíveis e são um tema polêmico no Brasil, despertando desconfiança sobre a possibilidade de fraude e aparecendo frequentemente em notáveis escândalos. Um dos primeiros pesquisadores a se dedicar ao estudo das cirurgias espirituais no Brasil foi o antropólogo norte-americano Sidney Greenfield (1999, p. 205). Segundo sua tese, os médiuns-curadores no Brasil suprem carências de pobres desamparados e marginalizados, formando um sistema social que recria a estrutura social tradicional com trocas de serviços atendendo ao que ele chama “rede de patronagem e dependência”.
Gustavo Chiesa (2016) também se dedicou à temática em sua pesquisa de tese intitulada Além do que se vê: magnetismos, ectoplasmas e paracirurgias. O autor investigou o fenômeno das cirurgias espirituais, que denomina paracirurgias, e as classificou como um procedimento puramente energético ou espiritual que ocorre pela comunicação de duas consciências, a intrafísica e a extrafísica, e que se processa a partir da manipulação de um fluido espiritual chamado ectoplasma. O pesquisador questiona a marginalidade dos processos de cura não hegemônicos e a centralidade dos modelos biomédicos.
Outro pesquisador que se destaca nos estudos do tema é o psiquiatra Alexander Moreira-Almeida, diretor do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde da UFJF. O médico investigou 30 operações do médium João de Deus. Em seis delas, recolheu tecidos extraídos e os analisou em laboratório. Todos eram compatíveis com as regiões do corpo operadas. Sobre o assunto, Almeida observa:
Alguns pesquisadores relatam que seriam totalmente inúteis as curas espirituais ou que apenas os pacientes com transtornos somatoformes obteriam resultado positivo, enquanto outros estudiosos registraram curas obtidas mesmo em sérias condições orgânicas. Há relatos de que algumas vezes os curadores realizavam diagnósticos antes de estes terem sido obtidos pelos métodos convencionais. Outro ponto obscuro com relação às curas espirituais é quanto à necessidade de fé do paciente para que a controversa “cura” possa ocorrer. Há predominância dos que a julgam necessária, mas certos autores afirmam que a “cura” ocorreria independentemente da fé.
(ALMEIDA A.M; ALMEIDA T. M; GOLLNER, 2000, p. 195).A perspectiva biomédica do cuidado foi estruturada a partir dos modelos de cientificidade que orientam a racionalidade médica ocidental mais conhecida como biomedicina e que se vincula a um “imaginário científico” (CAMARGO, 2005). De acordo com o modelo biomédico, o diagnóstico e o conhecimento sobre doença e saúde se dão de forma objetiva por meio dos métodos positivistas de acesso à verdade, desconsiderando contribuições e implicações do relativismo antropológico acessadas por meio de subjetividades e especificidades culturais. A terapêutica e o cuidado na relação saúde-doença no modelo biomédico se fundamenta na lógica positivista e na concepção dualista de corporeidade baseada na relação corpo-máquina e no controle social dos corpos, da mente e das emoções. A fragmentação do indivíduo, a superioridade dos aspectos racionais, a intervenção na natureza, a repressão do corpo e dos afetos são os pressupostos do modelo biocêntrico da medicina ocidental, para a qual o corpo é um todo orgânico autossuficiente e isolado do mundo social, cultural e espiritual.
O tratamento médico hegemônico e oficial, conforme destaca Terrin (1996, 1998), limita-se exclusivamente ao ataque às doenças, desconsiderando que o corpo é uno, como um organismo vivo em um mundo e que a doença, nessa perspectiva, diz respeito a um desequilíbrio que acontece entre natureza e homem, entre fatores sociais e pessoais, entre a visão espiritual universal e aquela particular e pessoal. Nas medicinas religiosas, por sua vez, o homem é observado em sua totalidade, considerando-se sua subjetividade, a natureza e a cultura em oposição à tendência dissociadora do secularismo médico (LAPLANTINE, 1986).
O doente brasileiro, em geral, combina várias formas de tratamento e alterna continuamente entre elas, muitas vezes, de maneira simultânea e não linear (RABELO, 1993). Muitas pessoas transitam entre vários sistemas religiosos, sem resultar na adesão ou no abandono de algum deles e, dessa forma, o indivíduo doente ou aflito pode recorrer a várias possibilidades de solução ou de ressignificação para o seu problema, perfazendo, portanto, o seu próprio itinerário terapêutico, configurando-se a “cura”, assim, como um processo de busca contínua, e não um processo de adesão (BARROS, 2016).
A religiosidade da contemporaneidade destaca uma imbricação entre terapêutica e espiritualidade, privilegiando experiências múltiplas e híbridas, definindo, segundo Guerriero (2009), verdadeiros itinerários peregrinatórios em busca de experiências místicas, o que se torna cada vez mais evidente a partir de meados do século XX, quando, segundo Phillip Rieff (1990), a ascensão da “cultura terapêutica” inaugurada pela Nova Era coloca a emoção e a subjetividade como elementos primordiais para a compreensão de questões relativas a todos os aspectos da vida humana.
A importância da relação entre as terapias religiosas e sua articulação com a noção de espiritualidade e de cuidado com o self, difundida pela cultura da Nova Era, vem sendo amplamente debatida na academia. A noção de espiritualidade ganha destaque no cenário religioso contemporâneo e, nesse novo contexto, destaca-se a ascensão da lógica da subjetividade ancorada na ideia do autocuidado, cuidado com o corpo, com a mente e com o espírito, na perspectiva da autoatenção, na busca da superação do sofrimento por meio da experiência religiosa. Nessa sequência, as mais diversas terapias espirituais compõem na contemporaneidade o leque de cuidados complementares à saúde (GIGLIO-JACQUEMOT, 2006; MONTERO, 1985).
A crescente busca por tratamentos de saúde alternativos e/ou complementares e seus aparentes sinais de êxito parecem evidenciar um alargamento das fronteiras do domínio biomédico e um possível recrudescimento da lógica epistemológica pós-moderna (SANTOS, 1998) e do paradigma ecológico (INGOLD, 2012). Inaugura-se, assim, um “novo-velho” olhar para o homem: o olhar sistêmico. Segundo essa lógica, o homem é um ser que existe, mas diferente do “homem-cogito” cartesiano. O homem sistêmico é aquele “que existe-com” outros seres (humanos e não humanos) e “que existe-em” algum lugar; um homem que afeta e é afetado por sua existência e por seu modo relacional; um homem que caminha pelas malhas da vida (INGOLD, 2012) em um imenso rizoma5 (DELEUZE; GUATTARI, 2000).
Entende-se que saberes e práticas de qualquer sistema médico são construções socioculturais que incluem valores, símbolos, normas e práticas. Essa visão oferece uma noção particular sobre o mundo, isto é, uma explicação sobre como o mundo é organizado. Nesse sentido, o conceito de cultura é tomado como um conjunto de elementos que medeiam e qualificam qualquer atividade física ou mental que não seja determinada pela biologia e que seja compartilhada por diferentes membros de um grupo social, tratando-se, assim, de elementos sobre os quais os atores sociais constroem significados para as ações e interações sociais concretas e temporais, assim como sustentam as formas sociais vigentes, as instituições e seus modelos operativos (LANGDON, 2006). Dessa forma, para fins deste estudo, considera-se que os aspectos culturais são instrumentos de acesso relevantes para a compreensão dos processos de adoecimento e de cura no contexto das terapias religiosas, uma vez que os modos de adoecer-sarar fazem parte de um processo sociocultural que ressalta a dimensão simbólica da saúde e da doença e sua percepção.
A articulação entre religião e os processos saúde-doença foi tomada a partir da compreensão da categoria religião conforme a definição de Geertz (2015), que define religiões como sistemas simbólicos que formulam conceitos de uma ordem de existência e geram motivações através de uma concepção que se reveste de uma aura de factualidade, fazendo com que tais disposições pareçam realistas, possuindo tanto uma dimensão mental quanto sentimental. Segundo o autor, entre o sentido e o símbolo ocorrem processos contínuos de articulação de códigos e informações que conformam a realidade existencial à lógica dos mitos. E, para além do interpretante individual, há o sistema de crenças que reúne e aloja em torno de si a estrutura simbólica que funciona como norte ideológico, conferindo sentidos de vida e existência no mundo objetivo.
A reconfiguração religiosa da contemporaneidade recoloca a experiência na transcendência, privilegiando a sobreposição da experiência espiritual às sensações corporais, em detrimento de um comportamento confessional, situando-a mais no nível do cotidiano (CSORDAS, 2008). Observa-se uma imbricação entre terapêutica e espiritualidade, em que a verdade última é construída pelo próprio sujeito, experimentador por excelência. Elas teriam, na atualidade, características bastante terrestres, na medida em que se situariam sobretudo no nível da superação de sofrimentos ou na realização pessoal, extrapolando a noção salvacionista das religiões tradicionais. Tais experiências são notadamente múltiplas e híbridas, definindo um verdadeiro itinerário em busca de experiências místicas, característica fundacional do Movimento Nova Era no Brasil (GUERRIERO, 2009).
As novas religiosidades, menos institucionalizadas e mais marcadas pelo secular, parecem impregnar a sociedade atual e competir com as versões tradicionais de religião. Observa-se, nessas novas religiosidades, a preeminência de alguns valores laicos, não confessionais, estruturantes, como a “liberdade” individual (escolha, subjetividade, autonomia), que seriam cruciais para a definição de um “ethos religioso privado” e que não prescinde da adesão religiosa dos sujeitos sociais, mas de vivência. Uma característica marcante das experiências propostas pelos novos movimentos religiosos é a possibilidade de vivenciar a experiência com o sagrado de modo particular, sem o intermédio de um líder religioso ou facilitador (tradicionalmente conhecidos, como o zelador de santo, o padre, o pastor ou o rabino), considerando a experiência com o sagrado parte da constituição do ser humano e, por isso, podendo ser acessada, a qualquer momento, em qualquer lugar, de maneira solo. As crenças e as práticas religiosas passam a ser cada vez mais transitórias, provisórias e fluidas, não respondendo mais às diretrizes de uma instituição religiosa (TERRIN, 1998).
O rápido crescimento do número e da diversidade de grupos religiosos, de doutrinas, de filosofias, de novas religiões e de novas religiosidades, nas últimas décadas, tem sido um fenômeno bastante significativo. Elementos culturais diversos articulam-se em fronteiras fluidas que conduzem a uma reinterpretação de práticas religiosas tradicionais, num processo de recriação e ressignificação dos sentidos do sagrado e de suas manifestações, ganhando, assim, significado próprio (BAUMAN, 1998, 1999, 2001, 2009). Para Steil (2007), ao questionar as versões institucionais da experiência religiosa, sem, no entanto, negar o religioso em si, o movimento Nova Era teria permitido um alargamento das fronteiras entre o religioso e outros campos sociais, especialmente na relação com a psicologia e com a saúde, assim como teria colocado em questão a própria definição de religião com a qual as ciências sociais vinham operando, centrada na instituição e na comunidade religiosa.
Considerando-se que a noção de experiência com o sagrado na contemporaneidade se dá no corpo, ele é, nesse sentido, a última instância de produção de sentido do sagrado. Le Breton (2010) destaca que o corpo está no centro da vida cotidiana. É o corpo que permite ao homem ver, ouvir, saborear, sentir, tocar e colocar significações precisas no mundo que o cerca.
Moldado pelo contexto social e cultural em que o ator se insere, o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída: atividades perceptivas, mas também expressão dos sentimentos, cerimoniais dos ritos de interação, conjunto de gestos e mímicas, produção da aparência, jogos sutis da sedução, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a dor, com o sofrimento etc. Antes de qualquer coisa, a existência é corporal
(LE BRETON, 2010, p. 7).O autor acrescenta que é do corpo que “nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva” da humanidade e que “o corpo é o eixo da nossa relação com o mundo”. O autor prossegue destacando que “o corpo produz sentidos continuamente, e assim insere o homem, de forma ativa, no interior de determinado espaço social e cultural” (LE BRETON, 2010, p. 8). Assim, o corpo é tomado como instância última de produção de sentido do sagrado, pois, uma vez envolvido no processo da experiência espiritual, é por intermédio do corpo que são apreendidas as sensações que dão sentido à vivência com o sagrado; o corpo captura os modos de percepção e vivência do sagrado. Dessa forma, aponta-se a configuração de uma nova tendência no modo de produção de sentido da experiência religiosa contemporânea em que o corpo expressa as novas formas de subjetivação (de criação de modos de existência) e de relação com o sagrado – o corpo como instância última de produção de sentido do sagrado.
Caminhos metodológicos para pesquisa em religiosidade e saúde
Trata-se de um estudo com abordagem qualitativa, etnográfica e caráter exploratório que teve como objetivo geral compreender a relação das práticas de cura em espaço sagrado e os processos de ressignificação do sujeito e de seu corpo através da promoção de práticas de autocuidado e atenção, considerando a lógica de um espaço sui generis denominado Hospital Espiritual.
Os objetivos específicos dessa pesquisa foram: a) analisar como o sujeito se orienta diante do processo de ressignificação do corpo, de reinterpretação de mundo e da religiosidade, a partir de uma experiência em espaço sagrado na relação saúde-doença; b) verificar, através das narrativas dos entrevistados, se a adesão ao tratamento espiritual é determinada por uma disposição internalizada a priori, em função da tradição atribuída à formação cultural brasileira profundamente marcada pela religiosidade e sincretismos, ou se é amparada pela ideia de carência econômica e assistencial, como indicam algumas análises antropológicas; c) identificar se os indivíduos que procuram a assistência das cirurgias espirituais alteram suas noções particulares sobre saúde e terapêutica, a fim de perceber se os contextos socioculturais em que estão inseridos determinam sua maneira de pensar as questões em relação à saúde e à doença. A pesquisa seguiu as exigências da Resolução 196/19966, incluindo o consentimento informado das pessoas entrevistadas, e o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade do Grande Rio-Unigranrio.
Inicialmente, a pesquisa contou com a observação participante, apenas na condição de frequentadora do espaço Casa de Hansen, quando se observaram as situações, prolongada e minuciosamente, com a finalidade de revelar os significados dessas vivências para os indivíduos. Nessa etapa, buscaram-se como referência os dois momentos que constituem a prática etnográfica: a “experiência próxima” e a “experiência distante” (GEERTZ, 2015). As observações foram registradas em caderno de campo, buscando-se transcrever a experiência da imersão, que corresponde a uma primeira elaboração, ainda vernacular, a ser retomada no momento da experiência distante. Mais do que coleta de dados, em um segundo momento, buscou-se registrar informações detalhadas do contexto em estudo de modo a possibilitar que o leitor tenha base para fazer julgamento da possibilidade de transferência para outro contexto.7 A pesquisa de observação participante iniciou-se na condição de frequentadora8 e posteriormente como voluntária da Casa de Hansen. O trabalho voluntário foi exercido diretamente em assistência ao Dr. Hansen e proporcionou uma visão privilegiada de todos os procedimentos, recebendo do próprio médico espiritual explicações sobre cada performance9 nos atendimentos, bem como longas explicações sobre o processo de adoecimento e cura, segundo a visão biomédica, na perspectiva espiritual.
A proximidade ao Dr. Hansen permitiu a observação dos eventos e dos rituais verificados nas cirurgias espirituais, além de permitir desvendar elementos ou aspectos referentes às regras do espaço e à cultura do grupo. Durante a atividade voluntária, as histórias dos pacientes foram ouvidas atentamente, suas aflições e esperanças foram registradas detalhadamente de forma a compreender os sentidos implícitos. Nesse ponto, foi possível perceber a estreita relação travada entre a medicina e a religião como fonte de busca pela cura e alívio das dores do corpo e da alma. Em conversas informais, constatou-se, por meio das narrativas dos pacientes, que a Casa de Hansen não funciona, em alguns casos, como um espaço complementar à saúde oficial, mas como substituto do sistema oficial. Segundo alguns relatos, a preferência pelo atendimento na Casa de Hansen, em detrimento do atendimento de saúde oficial, se dava em função daquilo que os frequentadores chamaram de “ineficácia do sistema de saúde oficial”10.
Após a observação participante, iniciou-se o processo de entrevistas semiestruturadas, sem estranhamento ou resistência por parte dos entrevistados colaboradores da pesquisa. Foram entrevistadas 11 (onze) mulheres e 09 (nove) homens. A análise das narrativas foi feita à luz das questões teóricas e dos objetivos da pesquisa, buscando identificar categorias de análise, conforme os pressupostos de Bardin (2011). Os resultados foram organizados a partir de eixos temáticos, entre os quais se sobressaíram: a) insatisfação com o sistema biomédico de atenção à saúde; b) fracasso do tratamento biomédico; c) complementaridade ao tratamento biomédico; d) prevenção; e) causas emocionais; f) doença de ordem espiritual.
É importante destacar que, como espaço religioso destinado aos cuidados com a saúde física, mental e espiritual, o Lar Espiritual Sagrado Coração de Jesus é frequentado por religiosos de distintas crenças e, até mesmo, por não religiosos, inclusive ateus autodeclarados, configurando expressivamente o caráter médico atribuído ao espaço. Os atendimentos ao público eram feitos aos sábados e reuniam cerca de 500 pessoas. Nessa instituição, além de um odor que caracteriza qualquer hospital geral – e que faz lembrar éter ou álcool –, eram encontrados livros (espíritas, católicos, esotéricos etc.), imagens de santos católicos, quadros de personalidades espíritas desencarnadas (mortas), mandalas esotéricas, cristais de rocha, um ervanário, espaços destinados a “guardiões” de Umbanda (entidades conhecidas por Exus [masculinos] e Pombagiras [femininas]), que conviviam e dialogavam com macas, bisturis, pinças, tesouras, materiais hospitalares descartáveis e medicamentos, além do famoso líquido denominado “Azulzinho”, cuja fórmula era propriedade do Dr. Hansen, e que, segundo ele, seria um antisséptico capaz de destruir “larvas” do mundo espiritual.
Os médiuns e os voluntários da casa vestiam o uniforme branco e obrigatoriamente luvas descartáveis no manejo dos objetos e no trato com os pacientes dentro e fora das salas de cirurgia. Cada sala de cirurgia comportava entre 3 e 4 macas hospitalares, forradas devidamente com lençóis brancos e um travesseiro. Para subir na maca existiam escadas hospitalares de dois degraus, e aqueles que não podiam deitar-se nas macas eram atendidos em cadeiras de rodas. No atendimento aos pacientes, eram utilizados instrumentos cirúrgicos e materiais hospitalares descartáveis, como algodão, gaze, álcool, álcool iodado, esparadrapo, luvas descartáveis, soro fisiológico, entre outros. A organização das atividades, o registro dos pacientes em prontuários, os procedimentos pós-cirúrgicos, assim como toda a performance da cirurgia espiritual, eram pautados no modelo biomédico, conferindo à Casa de Hansen aspectos de um hospital geral.
A estética hospitalar biomédica que marcava a Casa de Hansen é verificada em outros espaços semelhantes no Brasil e reflete a relação histórica estabelecida entre medicina e espiritismo no país, demonstrando a preocupação evidente com um ambiente austero pautado em modelos disciplinares e burocráticos, à semelhança de hospitais convencionais, podendo-se inferir a busca não só de legitimidade por parte de tais espaços, mas também de interação com os pacientes e de adesão por meio de toda a simbologia inscrita neles que negocia os sentidos de suas experiências. O que destaca a Casa de Hansen de outros espaços semelhantes é que, diferentemente de outros espaços religiosos destinados a tratamentos terapêuticos, ela atua exclusivamente com terapias visando à saúde, não havendo nenhuma prática religiosa padrão. Não existiam estudos, livros, doutrinas, cultos ou reuniões, apenas uma prece na abertura do trabalho e as orientações de Dr. Hansen, que transitam entre as fronteiras marcadamente da religião e da medicina, do sagrado e do profano.
A relação entre o sagrado, as curas espirituais e as práticas biomédicas: análise das narrativas dos participantes da Casa de Hansen
As cirurgias espirituais eram realizadas pelo espírito de Dr. Hansen Klaus incorporado em seu médium, o sr. José Couto. Não havia a utilização de objetos cortantes, muito embora eles participassem da performance cirúrgica. As incisões verificadas foram as perfurantes apenas, ou seja, feitas com a incisão de agulhas descartáveis (próprias para coleta de sangue em exames) em joelhos, ombros, colunas, mamas, edemas e, também, em variados tipos de câncer, sem qualquer tipo de corte. Em algumas ocasiões, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, dentistas, entre outras especialidades da área biomédica, acompanhavam tais cirurgias e trocavam impressões com o Dr. Hansen acerca dos procedimentos realizados. Ao entrevistar alguns desses profissionais, eles afirmaram estarem convencidos de que se tratava de uma personalidade dotada de raciocínio clínico e possuidora de conhecimentos muito avançados para a época em que supostamente se formara em seu curso de medicina, na suposta encarnação indicada pelo espírito. É importante ressaltar que grande parte dos profissionais da área biomédica entrevistados eram desprovidos de qualquer confissão de fé religiosa. Não foram verificados nos casos observados durante a etnografia quaisquer problemas no instante das incisões ou posteriormente; ao contrário, presenciamos casos de pessoas que chegavam à Casa de Hansen apresentando casos graves de cirurgias malsucedidas realizadas por médicos-cirurgiões em hospitais do Estado do Rio de Janeiro e, até mesmo de outros Estados, e que foram “concertadas” na cirurgia espiritual realizada por Dr. Hansen.
No que se refere à religiosidade, foram identificadas duas características. A face terapêutica da religiosidade, característica das novas práticas religiosas contemporâneas, e a face do encontro com o sagrado, prioritariamente intermediado pelas sensações corpóreas. Na face terapêutica, os indivíduos buscavam uma vertente religiosa que oferece, por meio de práticas diversas, o “tratamento” para os males do corpo e da alma, assim como se procura um remédio num balcão de farmácia. Na face do encontro com o sagrado, a vivência espiritual era buscada por intermédio de sensações corporais, sua expressão máxima, viabilizada pelo corpo. O processo de busca pelo sagrado calcado na experiência corpórea e na busca de sensações tem no corpo o lócus privilegiado de produção de sentidos para a experiência religiosa. Nesse sentido, pode-se inferir que a experiência religiosa vivenciada pelos médiuns e frequentadores do Lar Espiritual Casa de Hansen nasce e prolonga-se como tecido complexo de influências e experiências (impedindo qualquer tentativa de monocausalidade absoluta) e que são múltiplas as formas discursivas presentes em suas narrativas, notadamente sem sobrepor ou subjugar, mas com-vivendo, recriando significados e sentidos por meio de um processo que intercambia saberes e práticas sem hierarquizá-los, inovando através das associações de sentidos diversos.
Ao iniciar a pesquisa de campo, percebeu-se, logo de imediato, que a Casa de Hansen incitava flagrantes discussões sobre pertencimento em torno de seu enquadramento doutrinário como espaço religioso. Embora goze de legitimidade social inquestionável verificada nas entrevistas feitas com seus frequentadores, a Casa de Hansen não é considerada um centro espírita, segundo as normativas da Federação Espírita Brasileira (FEB), instituição que determina as diretrizes de funcionamento dos centros espíritas, não sendo, por esse motivo, filiada a tal instituição. A preocupação da FEB quanto à legitimação da prática das cirurgias espirituais parece fundamentar-se no estigma de curandeirismo e de charlatanismo que marcou o espiritismo desde o século XIX. Em função de suas práticas apresentarem-se como uma atividade de cura e de terapia, o espiritismo sofreu grande perseguição, sendo enquadrado no Código Penal de 1890, em seus artigos 156 a 158, sob pena de punição às práticas consideradas como curandeirismo, charlatanismo, superstições e misticismo (GIUMBELLI, 1997).
Por esse motivo, com a finalidade de se distanciar de quaisquer possibilidades persecutórias, a FEB, como entidade normativa das atividades realizadas nos centros espíritas, desenvolveu um roteiro norteador de suas atividades que se encontra na publicação Orientação ao centro espírita, texto aprovado pelo Conselho Federativo Nacional da Federação (CFN), órgão da Federação Espírita Brasileira (FEB), criado, em 5 de outubro de 1949, com a assinatura do Pacto Áureo por representantes da FEB e de Entidades Federativas Espíritas Estaduais, que têm como objetivo promover a união dos espíritas e das instituições espíritas do Brasil e trabalhar pela unificação do Movimento Espírita, a fim de fortalecer a tarefa de difusão do espiritismo, entendendo-se unificação, nesses termos, como padronização e homogeneização de suas práticas como forma de controle e coerção daqueles que fugirem ao formato estabelecido pela entidade.
Não reconhecidas como práticas terapêuticas espíritas, as cirurgias espirituais realizadas na Casa de Hansen transitam, assim, entre os limites de definições que demarcam as fronteiras entre o que seria uma prática espírita e outra, espiritualista, evidenciando uma clara disputa de poder entre os campos em questão. Como prática espiritualista, o leque de possibilidades da experiência religiosa-terapêutica se alarga, participando de uma categoria mais abrangente que não deixa de incluir também o espiritismo e os livros de Allan Kardec, seu codificador. Entretanto, a distinção entre aquilo que é uma prática propriamente espírita e outra do que é espiritualista nem sempre é aceita pelos adeptos da Casa de Hansen; em geral, porque, para eles, ela advém de uma imposição daqueles que se julgam os detentores do autêntico espiritismo kardequiano, nesse caso, a FEB. Esse fato se evidencia na fala do dirigente da Casa de Hansen, Sr. José, que, quando perguntado a respeito da orientação doutrinária do espaço, responde:
Sim, nós somos espíritas, mas não podemos dizer que aqui é só espiritismo, porque não somos só espíritas, não ficamos limitados a isso, nossa tarefa é fazer o trabalho pra Jesus.
Assim, enquanto para alguns a preferência pelo termo “espiritualista” se dá por seu caráter mais abrangente e inclusivo, sendo o espiritismo tomado como uma das possibilidades espiritualistas; para outros, fica evidente o descontentamento quanto à disputa de poder por parte da FEB por aquilo que pertenceria ou não exclusivamente ao espiritismo kardequiano. Entretanto, apesar de a marginalização da prática das cirurgias espirituais como prática terapêutica no rol de terapias oferecidas pelo espiritismo, para Dr. Hansen, as implicações acerca das margens e tensões que questões doutrinárias e de pertencimento que a configuração de sua casa podem evocar não parecem ser uma preocupação, evidenciando em todas as suas falas, durante nossas conversas, que sua real preocupação é com a saúde e o bem-estar daqueles que o procuram em busca de alívio para suas dores e sofrimentos.
Embora Dr. Hansen não dê destaque a nenhuma religião específica, dialogando respeitosamente com todas as vertentes, ele concebe o indivíduo como um ser integral, composto por corpo, alma e espírito.11 Esta questão pode ser observada a partir da narrativa do médico espiritual:
P.: [...] E como é sua relação com os pacientes? Pergunto porque aqui o senhor recebe pacientes de todos os jeitos, com problemas espirituais, com problemas físicos, em estado terminal... é uma diversidade enorme de doenças, do espírito e do corpo... Como é o trabalho do Dr. Hansen quanto a isso?
Dr. Hansen: Existem duas faces, a doença física e a doença espiritual. Uma doença destrói o corpo, destrói a vida, a vivência humana fica sem sentido e, quando isso acontece, o nosso trabalho é em evolução ao corpo físico ou ao corpo perispírito e espírito, entendemos, é de uma evolução bastante grande e o sucesso é sempre à frente do esperado pelo próprio doente, entende?
O tratamento religioso implica um trânsito entre espiritualidade e materialidade e visa agir sobre o indivíduo como um todo, permitindo enfocar o corpo em sua dupla dimensão ontológica (material e espiritual), reinserindo-o como sujeito em um novo contexto. A terapêutica de Dr. Hansen não exclui os tratamentos biomédicos; ao contrário, ele considera importante para o paciente que as terapias espiritual e biomédica ocorram paralelamente, introduzindo a noção de complementaridade, conforme destacado na narrativa a seguir.
P.: Além dessa relação com os doentes e suas doenças, o senhor acredita que seu trabalho aqui é um trabalho complementar ao médico da Terra (como Dr. Hansen chama os médicos encarnados[vivos])?
Dr. Hansen: Paralelos. Por que paralelos? Porque médico humano tem sua postura diante daquela doença e sempre acontece errados, porque o médico humano imagina uma doença e pode ser uma coisa completamente diferente. Eu estou atuando na causa da doença, no perispírito, espírito e corpo, o médico humano paralelo faz acompanhar, e ele dá alta quando assim entender que não há mais necessidade de fazer o que vinha fazendo com o corpo humano. O sofrimento é uma coisa bastante grave, porque ele atinge o seu eu, a sua maneira de entender “eu estou doente, eu estou sofrendo”. Quando nós atuamos no perispírito, espírito e corpo temos o sucesso, que o médico humano entender que ele não ter mais aquela doença, entende, filha?
Dr. Hansen, dessa forma, parece negociar tensões nas fronteiras entre a medicina e a religião, conjugando práticas de médico e de curandeiro, sob o prisma dos conhecimentos e das atuações sobre o corpo. Verificou-se uma junção de elementos de tradições culturais distintas, podendo a atuação dele, como curador, ser considerada uma síntese das medicinas oficial, de práticas religiosas específicas e de práticas populares brasileiras de cura. Nessa perspectiva, a Casa de Hansen, em que pese a insistente definição de fronteiras que os sistemas terapêuticos procuram impor a si ou entre si, parece ser um demonstrativo de que há mais relação entre eles do que as separações conseguem expor, indicando um diálogo que negocia constantemente fronteiras e pertencimento, evidenciando como os pares de categorias religião e ciência, espiritualidade e saúde são constituídos contemporaneamente, considerando não apenas os discursos, poderes e saberes oficiais (sejam eles religiosos ou científicos), mas também as práticas dos atores envolvidos nesses sistemas, sejam eles médicos, doentes ou religiosos.
Os pacientes12, por sua vez, não evidenciaram em suas narrativas nenhum tipo de tensão em relação às práticas de Hansen; ao contrário, enfatizaram o caráter complementar de sua terapêutica, destacando que ele tratava das pessoas de forma integral, considerando todos os aspectos da condição humana. Nesse sentido, para muitos pacientes a cirurgia espiritual era compreendida como uma intervenção espiritual de preparo do corpo para a realização da cirurgia convencional, e não uma forma de evitá-la, o que se evidencia no destaque abaixo.
[...] eu vim aqui hoje porque essa semana eu vou operar catarata, aí eu vim pro Dr. [Hansen] dar uma olhada pra mim e já deixar tudo preparado pro médico humano e não dar nada errado.
(E13, 67 anos, 30/07/2016).Do mesmo modo, para os que já passaram pela cirurgia convencional, a cirurgia espiritual era encarada como uma forma de “reforçar” a “cirurgia do médico da Terra” e evitar o ressurgimento da doença ou outras complicações. O trecho que segue reflete tal preocupação:
[...] Bom, eu operei, tirei uns projéteis que ficaram no meu corpo em um assalto a minha casa e vim aqui pro Dr. [Hansen] reforçar a cirurgia porque teve um que não pôde ser retirado porque ficou num lugar perigoso.
(E16, 43 anos, 30/07/2016).A lógica “preventiva” também motivava os pacientes a buscarem as cirurgias espirituais. Em geral eram pacientes com alguma orientação religiosa espírita que acreditavam na origem espiritual das doenças, o que se pode observar nos trechos abaixo:
[...] eu sempre tinha dor de estômago, depois que o Dr. Hansen me operou, nunca mais eu senti nada, agora eu venho sempre que posso para não voltar o problema.
(E3, 55 anos, 30/07/2016).
[...] É importante vir pelo menos uma vez por mês, porque nós que somos espíritas sabemos que a doença não começa no corpo e, se estivermos sempre vigilantes, podemos curar qualquer mal antes mesmo que ele se manifeste no copo físico.
(E11, 55 anos, 30/07/2016).Nessa perspectiva, percebeu-se que a lógica do cuidado do corpo físico estava diretamente relacionada à crença na existência de corpos mental, emocional e espiritual explicitados nas religiosidades espiritualistas, e os cuidados da saúde, tendo em perspectiva essa noção, teriam maior eficácia contra a instalação e o avanço das doenças. Esse aspecto permite avançar sobre a ação de Dr. Hansen no contexto das cirurgias espirituais que não circunscreviam apenas ao aspecto físico das doenças, mas ampliavam sua ação aos aspectos invisíveis da doença, à esfera emocional. Assumindo o papel de conselheiro, a escuta ativa e respeitosa fazia de Hansen um psicólogo especialista nos dramas humanos, sendo muito procurado por essa postura acolhedora e humana. Esse aspecto pode ser conferido no recorte que segue:
[...] eu conheci a casa através de um médium amigo nosso. A depressão me trouxe aqui. Eu cheguei no fundo do poço. Eu acredito que as doenças são espirituais, eu venho em busca da cura pra alma. Eu acho que meu problema é espiritual, porque médico nenhum nunca acertou comigo [...]
[...] eu estou em dúvidas sobre várias coisas da minha vida e aqui eu sei que eles vão me ajudar, vão me esclarecer, eles aqui são tudo, são médicos, psicólogos e conselheiros. É um hospital com muita energia boa. Eu chego aqui eles me dão um sacolejo e saio daqui querendo viver, me cuidar, emagrecer, caminhar, modificar meus hábitos alimentares. Aqui eu melhorei muito minha autoestima, minha vida familiar, conjugal, aprendi muito, me sinto outra pessoa. [...]
(E3, 55 anos, 13/08/2016).Outro aspecto que também se sobressaiu nas entrevistas foi a doença espiritual. As narrativas dos pacientes da Casa de Hansen também demonstraram uma frequente preocupação com a saúde espiritual, ou com doenças de ordem espiritual, causadas por obsessores, por feitiços, inveja, olho grande, configurando uma “etiologia espiritual” para a concepção de doença, encontrando ressonância no espiritismo, que crê em um sistema de representações etiológicas, estreitamente ligado às relações que o indivíduo mantém com o mundo dos espíritos, sem descuidar exatamente das doenças cuja origem é reputada como “natural” (LAPLANTINE; AUBRÉE, 2009). Ao atribuírem o adoecimento a fatores sobrenaturais, evidenciou-se uma linha tênue e tensa entre fatores biológicos e culturais. De acordo com Laplantine (1986), no universo da doença, o “contágio” espiritual prescinde o contato do indivíduo com o mundo dos espíritos, e a cura é possível a partir do poder mágico-religioso do médico espiritual que transita pelos dois espaços, o físico e o espiritual, podendo levar dessa dimensão para a outra dimensão todos os perseguidores espirituais causadores de moléstias (LAPLANTINE, 1986, p. 11). Esse ponto merece destaque porque, ao atribuírem seu adoecimento a fatores espirituais, os pacientes acreditam que somente um médico espiritual teria a expertise necessária para a cura, o que pode ser conferido abaixo:
[...] ah, eu acredito que aqui eles curam tudo, doença física, macumba, doença espiritual. A gente nunca sabe por que fica doente de repente, são umas coisas que aparecem. Por isso eu tô aqui, me apareceram umas dores estranhas, que médico nenhum sabe dizer o que é, sabe como é, né, os inimigos, invejosos estão por aí... eu, por exemplo, só nasci porque minha mãe procurou um centro espírita pra fazer cura espiritual, porque o médico dela disse que não tinha condições d’eu nascer, que ela tinha que fazer um aborto, pois ela corria risco de vida, ela sempre conta isso e hoje tô eu aqui [...].
[...] minha família me trouxe aqui, porque estão acontecendo umas coisas estranha lá em casa e eu tô com muita dor do nada, minhas costas doem muito, minha cabeça, já fui num médico, mas o remédio não resolveu, então minha mãe me trouxe aqui pra ver se tem a ver com santo. [...]
(E1, 16 anos, 13/08/2016).A crença nos poderes mágicos do médico espiritual também se encontra refletida em uma frase recorrentemente ouvida na Casa de Hansen: “Dr. Hansen não é qualquer médico” e que explicita o quanto, no imaginário de parte dos frequentadores do Hospital Espiritual, é compartilhada a crença de que Dr. Hansen é dotado de poderes para além do mundo material. Esse aspecto ficou refletido no trecho que segue
[...] olha, eu venho aqui sempre, porque como eu te falei, tem uma mulher no meu trabalho que me persegue, vive fazendo macumba pra ficar no meu lugar, por isso eu venho aqui, tudo que ela fizer pra mim o Dr. [Hansen] leva embora.
(E10, 56 anos, 30/07/2016).Algumas falas explicitaram descontentamento com o sistema de saúde oficial, o que se evidenciou pela desconfiança e a descredibilidade com que se referiram aos médicos, o que, inevitavelmente, culminou no abandono dos tratamentos, conforme pode-se observar no trecho que segue:
[...] eu vim aqui por causa da minha mãe, que já é bem idosa. Ela tem uns esquecimentos, mas nada muito grave. E idoso por mais que você vigie, sempre apronta... eu que tomo conta dela, se tá bebendo água, indo ao banheiro, eu que alimento, então eu sei tudo que acontece... E de repente ela começou a não querer ir ao banheiro, ela dizia que tinha medo do banheiro, por mais que eu insistisse, ela não entrava. Por isso ela começou a se urinar na cama e chorava muito. Levei ao médico humano e ele disse que era da idade e passou uns calmantes pra ela, mas não melhorou, ao contrário, estava saindo sangue da urina... Levamos a um médico particular e ele internou imediatamente, fizeram os exames e diagnosticaram infecção urinária, ela poderia ter morrido! Agora eu trago ela aqui no Dr. Hansen porque nele eu confio, ele escuta a gente e nem precisamos falar o que temos. Esses médicos poderiam ter matado minha mãe,
(E6, 45 anos, 30/07/2016).Os pacientes entrevistados na Casa de Hansen, em geral, eram indivíduos que apresentavam manifestações inespecíficas ou multimanifestações. Eram pacientes poliqueixosos, com diagnósticos tão imprecisos quanto suas queixas, o que gerava uma verdadeira peregrinação em busca de uma informação precisa e um medicamento eficaz, o que se evidencia no relato abaixo:
[...] Bom, minha filha, eu vim aqui no Dr. [Hansen] porque eu sinto umas dores que ninguém descobre. Dói tudo, os ombros, os pulsos, os calcanhares, o pescoço, eu não aguento nem lavar uma louça... já me disseram que tenho artrite, artrose, fibromialgia, reumatismo.
(E3, 55 anos, 30/07/2016).A frustração com a não resposta do tratamento biomédico esteve presente na maioria dos relatos, sendo o responsável pela procura por especialistas religiosos chamados para lidar com os casos em que a biomedicina não foi satisfatória. O trecho abaixo reflete esse tema:
[...] eu vim aqui atrás de uma amiga, que me contou que viu um caso de cura total de câncer de próstata, eu na condição de médico quis ver de perto, quis saber como era e me surpreendi. Eu tinha uma fibrose palmar, coisa que na medicina convencional eu sei que não tem cura. Fui apresentado ao Dr. Hansen que me explicou em termos médicos o que era o meu problema, mas eu não disse a ele que eu era médico, entende?! Ele fez uns procedimentos e em quinze dias eu não tinha mais nada. Com um agravante, eu não tinha que ir ao médico para confirmar a cura, porque eu já sou o médico [risos]. Bom, o que eu tenho a dizer é que aqui eles têm um método próprio, para nós é difícil entender [...].
(E4, 70 anos, 13/08/2016).Conforme se percebeu ao longo das narrativas, a insatisfação com o modelo biomédico e a incerteza encontraram conforto no tratamento religioso, que ofereceu um universo de possibilidades relacionais e interpretativas que acolheram o sujeito desacreditado, oferecendo-lhe explicações que conferiram confiança e aceitação. Segundo a perspectiva culturalista, os modos de adoecer e de tratar são produtos de percepções coletivas, na medida em que explicitam como determinada cultura de grupo ou subgrupo interpreta os fenômenos e transmite tais representações para seus membros. Assim, os modelos adotados pela sociedade são formatos, “normas” interpretativas que justificam e sancionam uma “ordem social” e cuja formulação, enquanto construto inconsciente, não é percebida pelos indivíduos; as explicações verbalizadas (“nativas”) seriam sempre repletas de vieses devido à crença de quem as expressa.
Repletas de simbolismo, as explicações culturais parecem fornecer razões para os processos saúde-doença que encontram eco na experiência dos sujeitos, possibilitando um arcabouço interpretativo capaz de ressignificar os eventos, dando novo sentido à vida. Nesse sentido, considera-se que o encontro satisfatório dos pacientes de Dr. Hansen com o tratamento religioso era resultado de uma prática discursiva afinada como o repertório vivencial dos sujeitos e que supria, de certa forma, suas carências emocionais e as lacunas deixadas pela assistência de saúde oficial.
Nessa medida, a eficácia da cura religiosa está relacionada à capacidade de o curador se conectar com o universo simbólico de seu paciente, produzindo, assim, a cura. Segundo Loyola (1984), Laplantine e Rabeyron, (1989), Rabelo (1993), Puttini (2008), as terapias religiosas curam ao ressignificarem e organizarem a experiência caótica do sofredor e daqueles diretamente envolvidos em sua cura ou responsáveis por ele, negociando símbolos e sistema de significados compartilhados em seus grupos de referência, seguindo a lógica do conceito de eficácia simbólica, tal como conceituado por Lévi-Strauss (1986).
Considerações finais
A intenção deste estudo, conforme salientamos ao longo do texto, foi discutir a relação entre cura e doença, tendo como ponto central os dispositivos religiosos. As cirurgias espirituais compõem um conjunto de possibilidades e, embora não excluam a importância do modelo biomédico, na pesquisa apresentada, demonstraram elementos positivos em relação aos sujeitos que passaram pela experiência da cura no campo sagrado.
Nesse sentido, na primeira parte do artigo, a interlocução entre antropologia, religiosidade e saúde foi fundamental para a compreensão do sagrado e sua relação com as práticas de cura. Após a inserção da categoria espiritualidade no contexto da definição de saúde pela OMS, a dimensão terapêutica da religião e as demais alternativas tornaram-se práticas que ampliaram a oferta de tratamentos àqueles que buscam conforto para a dor. Assim, as abordagens multidimensionais em torno das práticas não biomédicas de cuidado e dos processos de saúde-doença tornaram-se urgentes, conforme apontado por Terrin (1998).
Em relação ao Brasil, destacamos a busca historicamente conhecida por sistemas não oficiais de cuidados, como a medicina popular e os médico-religiosos. A prática mediúnica, por exemplo, faz parte do imaginário social como uma forma acessível de combate ao mal (espiritual) e à doença (física). Essas questões abriram espaço para a produção de inúmeros estudos cujas abordagens tenham como objeto a relação entre as terapias alternativas do campo religioso (pautado na prática mediúnica) e as chamadas cirurgias espirituais, conforme observado nos trabalhos de Sidney Greenfield (1999), Waleska Aureliano (2011), Gustavo Chiesa (2016), entre outros.
Outra questão a ser destacada neste artigo é a diversidade cultural e religiosa observada nas últimas décadas, e o movimento Nova Era é um exemplo importante, pois permitiu a expansão das dimensões entre a religião (o sagrado) e múltiplos campos sociais, tais como a psicologia e a saúde. Nesse ínterim, salientamos a importância do corpo e suas experiências com o sentido do sagrado. Para essa discussão, apresentamos, ainda na primeira parte do artigo, o autor Le Breton (2010) e sua perspectiva sobre o corpo, que, para o autor, é o principal lugar de produção de sentido e que aloca o homem na dinâmica social e cultural da sociedade à qual ele pertence. É de acordo com essa perspectiva que o presente estudo se alicerça: o corpo como principal espaço de produção de sentido do sagrado.
Do ponto de vista metodológico, conforme apontado na segunda parte do artigo, apresentamos a abordagem qualitativa, etnográfica e exploratória como os principais procedimentos utilizados para compreender a relação entre cura e espaço sagrado, bem como os processos de ressignificação corpórea do sujeito. Esses processos seriam pautados no autocuidado e atenção, advindos das experiências vivenciadas pelo sujeito submetido às cirurgias espirituais. As narrativas foram analisadas de acordo com a perspectiva de Bardin (2011), e observamos nas narrativas dos colaboradores da pesquisa a ação da eficácia simbólica dos tratamentos oferecidos pela Casa de Hansen. É importante salientar que nos trabalhos de cirurgias espirituais não há menção em abandonar ou não realizar os tratamentos médicos oficiais, mas, sim, uma tentativa de interação entre as duas práticas.
Na terceira e última parte do texto, destacamos a análise das narrativas de alguns dos 20 colaboradores, frequentadores da Casa de Hansen. O primeiro ponto a ser salientado foi a dinâmica terapêutica complementar da religiosidade, pois, para muitos colaboradores, a cirurgia espiritual seria um momento de preparo para possíveis intervenções da cirurgia convencional. A lógica preventiva também se destacou, e os participantes enfatizaram que buscavam tratamento para o corpo e a alma. A noção de prevenção, nesse caso, está associada à crença espírita de que o ser humano é constituído de um corpo físico, de um emocional e outro espiritual, podendo a doença se originar em lócus distintos. Para uma doença de origem espiritual ou emocional, a lógica da prevenção impediria que o mal se instalasse no corpo físico e, nesse sentido, a cirurgia espiritual seria capaz de eliminar a doença antes que ela se manifestasse fisicamente.
A doença espiritual também foi um ponto importante nas narrativas. Essas enfermidades, atreladas ao sobrenatural (pela ação de espíritos obsessores, por feitiços, inveja, olho grande), agem no corpo físico causando doenças ou desencadeando dificuldades na vida do sujeito. Nesse caso, observamos a interlocução entre fatores biológicos e culturais. Neste ponto, Laplantine (1986) foi o autor fundamental para a compreensão da questão da doença e do contágio espiritual, evidenciando que a cura pode ser alcançada, tendo como base o poder mágico-religioso do médico espiritual, que se qualifica por transitar pelo mundo dos vivos e dos mortos (espaço físico e espiritual), sendo capaz de afastar do sujeito os espíritos causadores dos males e doenças. Essa crença nos poderes do médico espiritual está presente nas narrativas. Nesse ponto, podemos conceber as práticas de cura da Casa de Hansen a partir de um conceito-chave na antropologia, que seria o da eficácia simbólica, tal como apontado por Lévi-Strauss (1996). No entanto, a leitura semântica dos ritos de cura presente em suas análises traz algumas limitações para pensar o modo como as pessoas de fato manipulam os símbolos durante a experiência da doença e como elas, ao mesmo tempo, transformam e são transformadas por esses símbolos.
Por fim, em algumas narrativas, também foi possível perceber descrença ou descontentamento com o sistema de saúde oficial. Em geral, as inúmeras queixas expressas pelos colaboradores eram em decorrência da frustração e da ineficácia dos tratamentos biomédicos. Entretanto, ao longo do contato com o tratamento espiritual, o conjunto de explicações e o acolhimento, repletos de simbolismo, promoveram ressignificações e novos sentidos à vida.
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Notas