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Os Sentidos em Campo: notas de uma Etnomusicologia Urbana
Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, vol. 23, núm. 1, pp. 113-132, 2021
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Artigos


Recepção: 01 Maio 2020

Aprovação: 01 Abril 2021

DOI: https://doi.org/10.12957/irei.2021.60649

Resumo: O presente artigo apresenta uma reflexão sobre os costumes dos neófitos da música erudita em formação universitária, constituindo-se em uma etnografia da música. Tal pesquisa pode auxiliar trabalhos que investiguem mundos sonoros – ao relativizar a prevalência da escuta em relação a outras percepções sensoriais. O campo teve duração de quase dois anos e foi realizado em uma escola de Música de uma universidade federal, no Rio de Janeiro, onde acompanhei o processo de formação profissional de um maestro de orquestra. As aulas de regência e os ensaios da orquestra dos alunos foram as principais atividades observadas. Reflito sobre as faculdades do ver e do ouvir, intensamente discutidas pela Antropologia e comparo às peculiaridades observadas in loco. O campo acaba sendo um reduto de pessoas que primam por uma relação diferenciada com a vida e no contato com seus pares, dando destaque para a capacidade auditiva, mas essa “escuta”, antes de se sobrepor aos demais sentidos, incorporaria, integraria e se perfaria numa junção que conclama também visão, gesto, héxis corporal e respiração, exigindo técnicas expressivas do corpo como condição de reconhecimento entre pares. A gramática interacional dos nativos, portanto, é analisada, e a ação de escutar só se tornar uma categoria social à medida em que é partilhada, confrontada, testada nas interações entre os agentes e só se completa por meio de técnicas que sinalizam uma performance musical e que são percebidas como códigos e linguagem pelos interagentes. A escuta dos integrantes do mundo orquestral, portanto, é ativa e técnica, envolvendo uma dimensão imaginativa, que só pode ocorrer em função do preparo técnico dos nativos.

Palavras-chave: Etnografia, sentidos, audição, música.

Abstract: This paper presents a reflection on the customs of classical music neophytes in university, constituting an ethnography of music. This research can assist works which investigate sound worlds – by relativizing the prevalence of listening in relation to other sensory perceptions. The field work lasted for almost two years, and it was held at a music school in a federal university in Rio de Janeiro, where I followed the professional training process of an orchestra conductor. The conducting classes and rehearsals of the students' orchestra were the main activities observed. I reflect on the faculties of seeing and hearing, intensively discussed by anthropology and comparing them to the peculiarities observed in loco. The field work ends up being a stronghold of people who excel in a differentiated relationship with life and in contact with their peers, emphasizing the hearing capacity, but this "listening", before overcoming the other senses, would incorporate, integrate and it would perform at a junction that also calls for vision, gesture, body hexis and breathing, demanding expressive techniques of the body as a condition of recognition among peers. The interactional grammar of the natives, therefore, is analyzed, and the action of listening only becomes a social category as it is shared, confronted, tested in the interactions between agents and is only completed through techniques that signal a musical performance and that are perceived as codes and language by the interactants. The listening of the members of the orchestral world, therefore, is active and technical, involving an imaginative dimension, which can only occur due to the technical preparation of the natives.

Keywords: Ethnography, senses, hearing, music.

Introdução: conhecendo o campo musical

A Escola de Música abrigava nativos que viviam em um universo no qual se dedicavam a um “objeto diferenciado entre os objetos concretos que povoam o nosso imaginário”, [...] pois, por mais que percebamos o som, ele é “invisível e impalpável. O senso comum identifica a materialidade dos corpos físicos pela visão e pelo tato. Estamos acostumados a basear a realidade nesses sentidos” (WISNIK, 2011, p.28). Isso torna investigações cujo enfoque residem nos sentidos culturais do som bastante desafiadoras.

Este artigo toma como ponto de partida a pesquisa de doutoramento, cujo objetivo era o de investigar o processo de formação de um regente de orquestra e compreender a construção do ethos desse profissional, por meio de uma visão êmica dos atores implicados nessa formação, a saber os estudantes de música e regência e os respectivos professores. O corpus que integra este artigo, portanto, advém das observações em campo e foram registradas em arquivos de áudio (celular), vídeos e anotações no diário de campo.

O campo foi desenvolvido de setembro de 2013 a abril de 2015. De forma a preservar a identidades dos colaboradores de pesquisa, em atendimento a Resolução CNS 196/96, sempre que me referir ao maestro será pelo pseudônimo Samuel. Nomeio o aluno de regência de Rodrigo.

Na impossibilidade de acompanhar integralmente a rotina do aluno em formação, optei por assistir às aulas de Prática de Orquestra, na qual Samuel regia a orquestra da qual participavam todos os alunos de bacharelados em instrumentos musicais da universidade. Rodrigo era um espectador desses ensaios e tinha a oportunidade, nas ocasiões, de conversar com ele, pois também ficava assistindo da plateia, já que a aula acontecia em um auditório. As práticas de orquestra de alunos funcionavam como laboratório para Rodrigo, pois o maestro, geralmente, exigia do discente a regência das mesmas peças nas aulas de Regência I, II e III, que ocorriam logo após os ensaios. Participavam das aulas de regência apenas o professor, Rodrigo e eu, sendo o principal objetivo o estudo corporal das técnicas de regência, a partir da leitura de partituras previamente estudadas pelo aluno. Samuel dava um feedback constante da performance do discente ao longo das aulas. Durante essas aulas de regência, algumas situações decorridas no ensaio da orquestra de alunos acabam sendo tematizadas, o que tornou o campo rico e contribuiu com a reflexão da performance musical.

O ver e o ouvir nas etnografias e regimes de sensorialidades

A tarefa de entender o mundo do outro e os sujeitos que o povoam exige que recorramos a todos os sentidos – uns mais, outros menos, dependendo da natureza do local. Uma premissa básica da pesquisa etnográfica é a de que o pesquisador precisa ocupar uma posição no campo que estuda, precisa situar-se. O neófito na antropologia aprende desde cedo que o uso dos cinco sentidos é fundamental no trabalho de campo. Visão, olfato, paladar, tato, audição são ativados e convocados, e o etnógrafo deve ter a sensibilidade para perceber esse “chamado dos sentidos” e utilizá-los sempre que possível na compreensão da realidade analisada, pois “observação é o ato de perceber as atividades e os inter-relacionamentos das pessoas no cenário de campo através dos cinco sentidos do pesquisador”. (Angrosino, 2009, p. 56).

A subjetividade, no entanto, está sempre presente no trabalho etnográfico, por mais que o pesquisador se esforce para apresentar uma realidade “objetiva”. Portanto, a “interpretação está sendo constantemente testada, revista e confrontada, especialmente em pesquisas urbanas, que se diferenciam de estudos em comunidades distantes ou exóticas, pois as últimas dificilmente permitem diferentes pontos de vista” (Velho, 1978). As considerações dos pesquisadores das humanidades são uma versão dos fatos, uma interpretação e memória acerca do objeto que o pesquisador ajuda a construir. O trabalho de Silva (2005) é representativo neste ponto, pois também oferece uma mirada acerca dos estudantes de música da mesma universidade na qual se desenrolara meu campo.

Roberto Cardoso de Oliveira pensa o “ver, o ouvir e o escrever” como constituintes da pesquisa antropológica, pois “estão previamente comprometidos com o próprio horizonte da disciplina, [...] desde sempre sintonizados com o sistema de ideias e valores [...]” da própria Antropologia (Oliveira, 2000, p.32). O autor pensa o método etnográfico a partir de Geertz, em etapas distintas: 1) o “estando lá” (no sítio da pesquisa) e 2) o “estando aqui” (ibidem, p.25) (no local de origem do antropólogo, retomando a vida normal e contato com pares). Importante ressaltar que ouvir e ver estão constantemente inter-relacionados, quando o pesquisador levanta documentos, vídeos e trabalhos que gerem elementos para aprimorar os conhecimentos acerca do campo, bem como o exercício da observação participante, respaldado pela preparação para o campo, que ajudou a “conformar” um determinado olhar.

Tal lógica se aplica ao ouvir, faculdade bastante estimulada durante todo o trabalho de campo, mas exercitada também na fase de preparação para imersão, que envolveu escutar obras sinfônicas, assistir a vídeos que ensinavam a técnica de reger, a entrevista-piloto, realizada com um maestro, com duração aproximada de 60 minutos, na qual eu procurei compreender melhor a área da regência, para sanar algumas dúvidas antes do ingressar no campo. Nesses exemplos, ocorre a conjugação do binômio visão-audição.

Os indivíduos acionam ordinariamente os cinco sentidos, mas o etnógrafo precisa discipliná-los, pois, por mais que não queiramos olhar com lentes etnocêntricas, ao termos contato com o objeto, lembramo-nos de leituras que exploraram e descreveram a temática, e inúmeras referências que influem na orientação de nosso olhar, ou seja, é um olhar que deve ser “devidamente sensibilizado pela teoria disponível (Oliveira, 2000, p. 19). Isso é necessário, caso contrário, não refletiríamos mais profundamente, e sim apenas olharíamos por olhar. É notória a distinção entre olhar e ver, pois “ver, sendo diferente de olhar pura e simplesmente, implica uma organização do que foi olhado, espiado, espionado, entrevisto, reparado, notado, percebido ao longo do percurso etnográfico” (Silva, 2009, p.181).

Tomemos como exemplo o relato de Roberto Cardoso de Oliveira, ao propor que imaginemos que um jovem antropólogo comece uma pesquisa com os índios Tükúna, no Alto do Rio Solimões, no Amazonas. Tendo o pesquisador lido relatos antigos sobre esse grupamento, não olharia para o objeto de maneira ingênua e se daria conta, por exemplo, de que as malocas observadas por ele naquele momento “diferenciavam-se radicalmente daquelas descritas pelos cronistas ou viajantes [...]” (Oliveira, 2000, p.20).

Na observação participante há uma prevalência da visão, o que pode ser parcialmente explicado pelo fato de a antropologia física e a filosofia, desde o século XIX, primarem pela visão, sentido geralmente valorizado em atividades intelectuais (LE BRETON, 2016). Além disso, a disciplina antropológica foi validada enquanto ciência que olha e retrata o outro. A própria expressão “olhar etnográfico” sinaliza essa predileção, assim como “observação participante”; que, apesar de não excluir os outros sentidos, imediatamente remete à faculdade da visão.

Durante muitos séculos a realidade social dos grupamentos orais privilegiou a audição, mas, pouco a pouco, a partir da tipografia e da prensa, o Ocidente enfatizou a visão (LE BRETON, 2016, p. 39), cada vez mais acentuada com o desenvolvimento da urbanização e de novas tecnologias, que ajudavam a promover uma superexposição às imagens.

Dessa forma, o pesquisador que lide com etnografia deve fazer um esforço para acionar e interpretar o mundo do outro a partir dos cinco sentidos “produzidas por múltiplos canais, pelos cruzamentos áudio-táteis, palato-visuais, as sensações produzidas pela mistura ‘daquela música’ com aquele cheiro” (SILVA, 2009, p.183). Há uma sempre regime de sensorialidades existentes que devem ser traduzidas e analisadas na escrita.

Assim, Silva (2009) enfatiza a importância dos sentidos no trabalho antropológico e a articulação entre os mesmos, já que não nos despimos de algum de nossos sentidos.

Então, embora haja uma tradição antropológica que pressuponha um privilégio da visão frentes aos demais sentidos, Pinto (2001, p.222) vai ao encontro de Silva (2009), ao afirmar que os discursos analíticos no campo antropológico são centrados no imagético.

A visão aqui adotada seria a da música enquanto um processo, e não enquanto produto, ou seja, não são as estruturas musicais em si a grande preocupação, e sim a música como fenômeno cultural, que envolve uma determinada performatização dos sujeitos.

Ademais, no que diz respeito ao som, ocorreu “uma grande divisão entre a percepção visual, de um lado, e as percepções auditiva e a tátil, de outro – e, com isto, há uma divisão entre sociedades ocidentais, nas quais se supõe que as primeiras dominam, e sociedades não ocidentais, das quais se diz que se entregaram às últimas (INGOLD, 2008, p.60). A distinção hoje entre ver e ouvir não é universal ou natural, mas sim fruto de um desenrolar histórico, especialmente no contexto ocidental. No caso dos nativos do campo, essas três capacidades – audição, visão e tato – são indissociáveis e compõem um quadro de sensorialidade partilhado entre os músicos.

Dimensão tátil da Música

Minhas experiências na escola de música costumavam instigar mais o ouvido que a visão. Mas isso não significa que o ato de olhar não fosse importante ou que eu tenha me fechado para outros sentidos – estes apenas não dialogaram tanto com a natureza do campo, pois não eram tão manifestos quanto o ouvir. Pelo menos foi a conclusão a que cheguei no início do trabalho de campo. Eram tantas notas, tantos sons e cantorias que parecia não haver espaço para outras sensorialidades. Mas elas estavam lá, seja no cheiro de mofo que exalava da sala-auditório, excepcionalmente forte quando o ar-condicionado não funcionava a contento, no cheiro do cachorro-quente, que ficava em uma das entradas da universidade, sendo lanche usual do aluno de regência. Aliás, normalmente, não seria minha escolha de lanche, pois não o aprecio em termos de paladar, mas era uma oportunidade para conversar mais com Rodrigo, sem ficar constrangida em fazer barulho durante a prática de orquestra.

A dimensão tátil esteve presente quando segurei, pela primeira vez, a batuta e instrumentos, como fagote, clarineta e violino; quando brinquei, discretamente, de reger durante as aulas. Esteve presente também em alguns gestos, como o de fechar o punho e fazer “o corte” junto com Rodrigo ou Samuel. Tal dimensão tátil era fulcral na vida dos nativos, especialmente para o regente.

Diversas situações no campo apontavam para a importância da capacidade auditiva para os nativos, tanto Samuel e Rodrigo quanto os alunos da orquestra. Universidades costumam ser espaços silenciosos, em especial próximo às salas de aula.  A realidade da faculdade de música era singular: diferentes sonoridades povoam as imediações do prédio, o pátio, os corredores e as salas de aula. Na realidade, quanto mais perto das salas, mais música havia. Escutava distintas melodias, muitas vezes se sobrepondo umas às outras, o tempo todo. As conversas eram embaladas por um músico ensaiando em um canto do pátio, os sons emitidos de uma sala de aula e conversas nas quais os nativos utilizavam o cantarolar como recurso no diálogo.  

O cantarolar era uma ferramenta legítima não só em conversas informais, mas dentro da sala de aula e nas práticas de orquestra. A típica explicação verbal apoiada no quadro negro cedia espaço ao solfejo como estratégia elucidativa. Além disso, era como o estalar dos dedos para marcação de tempo. As estaladas funcionavam como um metrônomo, enfatizando o ritmo, ao passo que o solfejo correspondia à parte harmônica, ressaltando a melodia.

Músicos também cantarolam para o maestro checar se estava correto. No entanto, nunca vivenciei uma situação em que os músicos solfejassem e estalassem os dedos ao mesmo tempo. Um dia, no campo, por meio de uma explicação do maestro, consegui compreender esse fato, pois o regente afirmou que “músico não estuda com metrônomo”. Lembrou, inclusive, sua experiência durante o Mestrado na Alemanha, em que seus colegas o chamavam de “o latino”, por estudar sem o metrônomo, já que na Europa e nos EUA os músicos de orquestra costumam adotar o aparelho na rotina de estudo individual. Teria sido a partir desse momento que o maestro, na época um flautista, começara a usar o equipamento em seus estudos. O próprio aluno de regência, quando era um trombonista, confessou que não usava metrônomo e que começara a adotá-lo após as recomendações de Samuel, alegando estar “muito mais preocupado agora com a questão rítmica” (Rodrigo. Notas de campo, abril de 2014).

Os problemas gerados pela questão rítmica não estavam relacionados apenas ao fato de os músicos não utilizarem o metrônomo, mas também, de acordo com uma reclamação constante do maestro, de eles não se escutarem e não ouvirem uns aos outros.

A leitura que os músicos da orquestra de alunos fazem é errada, mesmo eles tendo experiência. Eles não entendem a importância de se ouvir e de enxergar o maestro. Não existe música fácil. A chave é o tempo, mas eles não se ouvem. Porque eles ficam grudados na parte dele e o que o outro está tocando ele não liga. Eles precisam aprender a ouvir. O cara chega com a parte dele, não abre o ouvido. Aí não vai ficar 100% integrado, né?

(Nota de campo. Abril de 2014).

A orquestra é uma espécie de microcosmos social. Há uma atuação do indivíduo, mas também uma articulação do mesmo com o todo. Para o músico garantir uma execução correta, não basta que ele domine a sua parte ou se valha da boa leitura da partitura, que opera como um suporte de memória. Fazer parte de uma orquestra é um trabalho interacional intenso, de monitoramento de si, dos demais instrumentistas e do maestro, da plateia e contexto como um todo. A voz de um instrumento pode ser a deixa para outro músico entrar, parecido com a fala no teatro. Em outras ocasiões, os músicos precisam tocar em uníssono com o colega de instrumento, o que exige sincronia e volume adequados. Ou seja, são muitas as situações que envolvem diferentes posicionamentos, ou “alinhamentos” (GOFFMAN, 2002), para utilizar categorias da Sociolinguística Interacional que nos ajudam a elucidar a questão performática. A execução musical, vale lembrar, não é equivalente a interações cotidianas, pois possui uma estrutura de participação na qual a plateia só tem direito ao turno de fala ao final do ato, geralmente aplausos ou gritos de “bravo” e “bravíssimo”. No entanto, não deixa de ser uma forma de comunicação, embora tenha uma estrutura mais rígida que a as conversas corriqueiras.

Há, portanto, um esquema de expectativas e obrigações que incidem sobre os músicos do universo orquestral, tais como: “estou soando conforme meus colegas de naipe?”, “toco no tempo indicado na partitura?”, “estou atendendo às indicações do maestro?”, “as notas estão soando bonitas?”, “atendo àquilo que o compositor idealizou ao criar a peça musical?”. No momento da apresentação, não há espaço para o discurso verbal, pois, obviamente, este rivalizaria com a própria música, objetivo-fim de um ensaio ou apresentação.

Devido a esse uso muito restrito do registro verbal, já que oralidade rivalizaria com o som dos instrumentos, no universo orquestral é valorizada também a linguagem corporal, sendo “o ideal é passar tudo pelo corpo e não falar muito. A batuta é aliada nesse processo” (Samuel. Notas de campo, julho de 2015).

Benjamim (1993, p.192-194) escreveu sobre o conceito de “recepção tátil”, útil ao contexto performático do universo orquestral. Ele diferencia dois tipos de recepção, a tátil, que se daria pelo hábito, pelo uso, e a recepção ótica, relacionada à atenção, à percepção. A arquitetura é explorada como exemplo para pensar nessa dupla forma de percepção, pois, além de notarmos o prédio em seus aspectos estéticos, também o usamos, o habitamos. O autor diz, ainda, que a recepção ótica pode ser uma etapa da recepção tátil, já que a nossa resposta, nosso uso e ação estão relacionados à nossa capacidade de perceber, pois “as tarefas impostas ao aparelho perceptivo do homem […] são insolúveis na perspectiva puramente ótica: pela contemplação. Elas se tornam realizáveis, gradualmente, pela recepção tátil, através do hábito” (Benjamin, 1993, p.193).

A música teria esse componente tátil, tanto no que diz respeito ao músico quanto ao público. O ouvinte não apenas escuta a apresentação, mas é também “invadido por ela”, já que a música tem esse poder de habitar o íntimo, ao passo que a performance tem mais potencial de envolvimento quando a plateia acompanha visualmente o espetáculo. “Enquanto a vista situa o observador fora do que ele vê, à distância, o som se derrama para dentro do ouvinte” [...] (INGOLD, 2008, p.16).

Sob o ponto de vista do músico, ela seria tátil por envolver o músico como ouvinte de sua própria performance e exigir o corpo do artista em sua totalidade, lógica também aplicável ao maestro, que precisa escutar todos os instrumentos e, ao mesmo tempo, dar comandos para fazer a música acontecer. O “ver”, dessa forma, também se torna importante no ensaio e em um espetáculo, que se configura numa fruição que conjuga o ouvir ao ver, pois o músico e o regente para fazerem “soar bonito”, como os agentes do campo costumam dizer, precisam de uma destreza motora ímpar, o que ajuda a compor a aura do espetáculo. Além disso, temos em jogo toda uma dimensão expressiva que transparece para a plateia e surge não só a partir do ouvir e tocar, mas também de expressões faciais, movimentos corporais e o jeito de olhar.

Na lógica exposta, percebemos uma consonância com Ingold (2008), que entende a capacidade de ver totalmente conjugada à de ouvir, como um espaço sensório que deve ser habitado. Também encontra eco em Pinto (2001, p.223), que apresenta a música como uma forma de comunicação, que envolve a relação entre som, imagem e movimento.

A música é uma linguagem que envolve códigos específicos e uma gramática própria, constantemente decodificada por músicos profissionais e maestros. Tal linguagem é lida, interpretada, convertida em som e subentende não apenas os símbolos nas partituras, mas uma dinâmica corpórea-gestual e de respiração complexa.

Disso decorre um trabalho interacional intenso e formas de performance, tanto nos ensaios quanto nos espetáculos, nos quais os atores precisam se reposicionar sonoramente e expressivamente de modo constante, a partir do monitoramento intenso de todas as variáveis contextuais inerentes ao espetáculo, considerando seu próprio som, os colegas, o maestro, reações do público, etc. – tudo isso em tempo real, no momento em que executa e reinterpreta uma obra que foi criada com um propósito artístico do compositor, à luz de seu tempo. Todos esses elementos fornecem, para o ensaio e/ou apresentação, um enquadre e geram uma determinada performance. No estudo etnomusicológico da performance, todas as atividades musicais e suas funções dentro de uma comunidade ou grupo social maior adotam “uma perspectiva processual do acontecimento cultural” (PINTO, 2001, p.228). Dessa forma, caso algum músico perceba que sua projeção não é adequada, por exemplo, ele pode se realinhar, alterando o modo como executa, desde o “andamento”, volume à intenção artística. 

A interpretação dos alinhamentos de um ensaio, portanto, é tarefa altamente complexa, pois é uma atividade muito dinâmica, exigindo que músicos e maestros alterem suas posições constantemente, sendo o maestro talvez o único capaz de entender cada mudança de posição. Como analista, não possuo o conhecimento musical exigido para entender todas essas sutilezas de (re)posicionamento dos instrumentistas e do maestro, que ocorrem a partir da execução musical que projetam. A orquestra envolve muitos componentes, como diferentes famílias de instrumento, que executam diferentes peças ao longo da apresentação, cada qual com um caráter próprio, sendo que muitas músicas apresentam mudança de caráter ao longo, começando mais romântica, por exemplo, sendo seguida por um motivo dramático e retornando ao tema romântico no encerramento – tudo isso apenas para sinalizar o alto grau de complexidade na encenação dramática de uma apresentação musical.

Uma cena ocorrida no campo pode demonstrar melhor a intenção artística de uma obra, no caso a partir da leitura do maestro e como, apesar de não muito espaço para o discurso verbal, às vezes o mesmo se fazia necessário.  Samuel ensaiava com a orquestra de alunos, mas seus gestos, expressões faciais e dinâmica corporal não foram suficientes para os músicos compreenderem como deveriam executar um trecho de Pavane, de Gabriel Fauré, um compositor francês nascido em 1845. Samuel explicou então que “o segundo violino e a flautista precisam tocar claro, articulado. Precisam brilhar! Vocês são os pássaros, os primeiros violinos representam uma nuvem. O cenário é o paraíso” (Notas de campo, setembro de 2014). Na interpretação do maestro, portanto, os instrumentistas não estavam respeitando a natureza da composição, apesar da execução correta das notas e de estarem no tempo certo. O modo de tocar fazia, nesse caso, toda a diferença para respeitar a vontade do compositor que, no caso, seria a de retratar sonoramente o paraíso.

O monitoramento que o músico faz dos outros instrumentistas é auditivo, mas também há o componente visual, em especial na interação com o maestro, pautada no gestual e olhar. Ouvir, para os nativos, é pura ação; é performance, envolvendo as recepções tátil e ótica (Benjamin, 1993). Nesse ínterim, visão e audição [...] são virtualmente indistinguíveis: visão é um tipo de audição e vice-versa (INGOLD, 2008, p.6).

Imaginação e Escuta ativa musical

O grau de complexidade das obras musicais faz com que o músico seja um perito do ouvido. Essa escuta é característica dos músicos profissionais e “o lugar dessa lógica é a técnica; para aquele que também pensa com o ouvido [...] nas categorias técnicas se revela, essencialmente, a interconexão de sentido” (ADORNO, 2011, p.61). Os agentes do campo utilizam a escuta ativa musical, que se aproxima do sentido de ouvir com atenção, ou seja, é uma escuta diferenciada, que envolve práxis e um trabalho mental, tudo respaldado por teoria e técnica.

Vale trazer uma situação de campo que ajuda a entender melhor a escuta ativa praticada na Escola de Música. Em certa aula de regência, o aluno declarou estar inseguro para demonstração de sua regência de Pavane, de Fauré, passada como tarefa de casa. O maestro disse para Rodrigo, antes de ele iniciar: “Eu quero que você tente ouvir o máximo da orquestra” (Notas de campo, setembro de 2014).

Se recordarmos que nas aulas de regência não havia nenhum instrumentista, já que participavam da aula apenas Rodrigo, Samuel e eu, era um pedido inusitado. Mas se atentarmos que nas partituras dos maestros estão todas as pautas musicais, cada qual relativa a um instrumento, faz mais sentido.

Cabia ao aluno, portanto, além de dominar os movimentos com a batuta e o tempo, imaginar a música em sua cabeça e antever os trechos nos quais ele deveria ajudar mais os instrumentistas. É, assim, trabalho que envolve tanto análise musical do maestro quanto antecipação de problemas na interpretação/execução do músico. O regente deve buscar soluções no gestual para estabelecer uma comunicação com os músicos que permita a manutenção de uma posição ou re(alinhamento), de acordo com os microenquadres que compõem o enquadre maior de ensaio de orquestra ou apresentação. Os músicos estão sempre “presentes” nesse trabalho de imaginação musical do maestro, de forma virtualizada.

Samuel e Rodrigo consultavam a partitura de Pavane e conseguiam “ouvir a orquestra”, por meio de uma dimensão meramente mental, imaginativa. Maestro, aluno e vários músicos me explicaram que, ao lerem a partitura, podiam ouvir a música em suas cabeças. Certa vez, Samuel chegou a confessar que tinha parado de estudar até tarde da noite, pois “a música ficava na cabeça”, e ele não conseguia dormir (Notas de campo, novembro de 2013). Esse trabalho imaginativo é mais evidente no trabalho do maestro que no do músico, já que aquele não dispõe de instrumentistas que produzam os sons durante as aulas de regência. Uma fala de Samuel durante um exercício do aluno de regência é emblemática:

Rodrigo: eu tinha ensaiado de uma outra forma. Posso fazer do meu jeito? 

Professor: só dá para saber testando com a orquestra, pois tem que ver se os músicos entenderam. Infelizmente você não tem uma orquestra para praticar.

(Notas de campo, fevereiro de 2014).

O self profissional do maestro, no espaço de formação acadêmica no campo analisado, se constitui de uma maneira quase “especular”, apesar da valorização da prática como componente de suma importância no meio musical. Em contrapartida, pelo fato de o maestro dar as entradas, é um ser dotado de poder que convoca as vozes musicais a falar e “desfruta, assim, do poder sobre a vida e a morte dessas vozes” (Canetti, 1995, p.395). A imaginação sonora, necessária à preparação do regente em formação e também utilizada pelo músico, no caso do maestro, é incrivelmente complexa, pois ele precisa “escutar” todos os instrumentos, vários simultaneamente, tudo isso no pulso da música, levando em consideração entradas e dinâmicas. Nessa mesma aula em que trabalhavam a partir de Pavane, o aluno se queixou da dificuldade em reger uma obra, alegando que “sai som de tudo quanto é lugar”.

Um exemplo de trabalho imaginativo foi quando Samuel recomendou a Rodrigo “colocar o metrônomo dentro dele”, a fim de que não perdesse o pulso, já que o aluno tinha executado exercícios rítmicos e tinha apresentado certa dificuldade.

Por conta desse trabalho de imaginação musical, eu ficava muitas vezes aflita e até entediada durante as aulas de regência, pois, apesar de perceber que com o avançar do tempo eu entendia algumas questões técnicas, assistir aos exercícios em que o aluno “regia” as notações da partitura me causava a sensação de estar assistindo a um filme mudo. Era um alívio quando o maestro decidia cantarolar junto para ajudar o aluno, o que me dava alguma concretude e me ajudava a entender um pouco do gestual e das expressões faciais dos atores. A impressão era de que o filme mudo ganhava legenda. Vale lembrar que há pelo menos duas grandes vertentes em trabalhos de etnomusicologia, segundo Lühning (1991, p.107): os mais próximos à musicologia, cujo interesse seria mais dos parâmetros da música em si, e os mais dentro do escopo antropológico, que encaram a música como expressão da cultura e comportamento humano. O trabalho aqui apresentado estaria em consonância com essa segunda visão, de viés mais marcadamente antropológico.

Os alunos de regência orquestral somente conduzem um concerto no último período, que deve ter, de acordo com a grade de regência, no mínimo 30 minutos de duração, sendo incumbência do formando providenciar também as notas do programa. O estudante de regência pode ensaiar com os alunos da disciplina de Prática de Orquestra, com supervisão do maestro responsável pela cadeira, somente para esse concerto. Ou seja, apesar de terem aulas práticas, o contato com uma orquestra só acontece no final da formação, fato que explicava o nome do principal livro da ementa de regência, intitulado O regente sem orquestra, organizado pelo maestro Roberto Tibiriçá. É um livro que enfatiza muito a questão rítmica e traz uma série de partituras e propostas de exercícios, fornecendo bases para o estudante de regência treinar, pois “o regente é também um instrumentista, e seu instrumento é a orquestra ou coro, porém não é lhe dado, com a frequência desejada, seu instrumento para o estudo e aprimoramento da técnica” (RINALDI; DE LUCA; NERY; VAZZOLER 2008, p.13). Nesse sentido, a preparação do regente, assim como dos músicos, é feita individualmente, mas o estudo do regente se difere no sentido de que o maestro não executa um instrumento de fato, pois sua função é a de coordenar todos os instrumentistas. Mas ambos, tanto músicos quanto maestro, recorrem à corporalidade, sendo que os músicos utilizam tanto o instrumento como uma extensão de seus próprios corpos, ao passo que os maestros utilizam integralmente seus corpos para comandar os músicos, além da batuta.             

A linguagem musical, no âmbito orquestral, recorre mais fortemente ao ouvido e aos olhos, utilizados para monitoramento dos atores envolvidos com a orquestra, mas o componente tátil também se faz presente. Boa parte desse monitoramento visual do músico para com o regente ocorre por meio da batuta, que deve estar sempre visível, pois “é um prolongamento do corpo”, como explicou o professor. Tal fala, muito similar à ideia dos “meios de comunicação como extensões do homem” (McLuhan, 1996), realmente se aplica à orquestra, pois a batuta funciona como um prolongamento do braço e das mãos do regente.

O objetivo ao usar a batuta, conforme explicou Samuel em uma aula de regência, é fazer a orquestra caminhar no mesmo tempo, “desde o início você impõe a seguinte questão: eu estou longe de você, mas estou no comando” (Notas de campo, dezembro de 2014). Ou seja, a batuta ajuda na comunicação maestro-músico, ao prolongar a extensão do braço e mãos do maestro e, consequentemente, auxilia a manter os músicos sob controle.

No ensaio a visão se faz presente, quando o músico olha para o maestro ou consulta a partitura. Vale lembrar que os músicos não tocam constantemente, entrando em trechos específicos, o que os obriga a acompanhar a partitura. O virtuosismo do tocar não é consolidado somente por meio da audição, mas também, ao nos lembrarmos de instrumento de cordas, em como o instrumentista se posiciona, a técnica e os golpes de arco que executa, sua expressividade e colorido, ou seja, toda a performatização (tocar, jeito de tocar, héxis corporal adotada, expressão facial e trejeitos).

O olho, dessa forma, é uma ferramenta de comunicação importante, tanto do regente e dos músicos para com a plateia, durante a execução de um espetáculo, quanto entre regente e músicos no espetáculo e nos ensaios. Isso fica nítido na fala do professor, quando discute o papel do maestro diante da orquestra durante uma aula de regência, trazendo à tona a questão do olhar, ao alegar que o papel do maestro seria o de “unificar o grupo através do olhar” [...] pois os músicos “acabam saindo um pouco da partitura” (Samuel. Notas de campo, maio de 2014). Para o maestro, quando os músicos estão desconcentrados, bastaria que eles percebessem que o mastro estava olhando para eles para que conseguissem se concentrar novamente.

É notório que o olhar subentende uma questão de vigilância, uma relação de autoridade, amparada por uma dupla hierarquia de professor e maestro. O próprio professor de regência parece reconhecer a função disciplinadora do olhar ao pedir a Rodrigo, antes de retomar a execução da partitura, “dar aquele olhar autoritário antes de começar a reger” (Notas de campo, 04 de setembro de 2014). O posicionamento diante da orquestra também é praxe, pois permite não só um monitoramento pelo olhar, mas também é considerado, como vimos a partir do campo, essencial na comunicação com os músicos, inclusive para sinalizar as entradas por meio dos olhos. A ideia é que, enquanto aponta a batuta para uns, dirige o olhar para outros. Sendo assim, o regente conseguiria dar as entradas para dois instrumentistas que, porventura, entrem juntos, cabendo a ele priorizar para quais ele sinalizará.

Os olhos vão além, servindo de encorajamento para um músico num trecho difícil, para transmitir o espírito da música adequado e deixar os músicos alertas para uma parte específica que possa ter sido problemática no ensaio. No que diz respeito aos gestos, apesar de determinados movimentos variarem de acordo com o regente, o uso dos braços e da batuta é algo universal.

Uma explicação do professor durante uma aula de regência sobre a forma como Rodrigo deveria abrir o ensaio ajuda na compreensão da dimensão não verbal da comunicação maestro/músico. O professor brincou dizendo que uma fala comum entre os músicos é a de que “sabemos quem o regente só pela maneira como ele sobe ao pódio”. Ponderou que há uma lógica no início do ato da regência. Além de demonstrar certa autoconfiança no andar e no falar e no domínio da partitura, “o regente deve subir ao pódio, dispor a partitura na estante, olhar para os segundos, para as violas, ciellos e contrabaixos e se certificar ‘tá todo mundo me olhando’, e começa e deixa fluir”. Concluiu afirmando que o maestro “não marca apenas compassos. Interage também com a orquestra”. (Notas de campo, dezembro de 2014).               

Outro exemplo que demonstra a relação entre o olhar e o trabalho de monitoramento maestro/músico pode ser ilustrado a partir de uma situação de campo. Certa vez, durante uma aula de regência, o maestro criticou a maneira como o aluno projetava a batuta ao estender o braço, com a palma da mão virada para cima, em formato de concha e o braço arqueado, alegando que parecia que ele ia “se apresentar para alguém”.

Samuel disse não achar eficiente, explicando que poderia confundir os músicos. O professor alegou ser melhor apontar em direção ao músico, pois “o maestro bom é como um polvo, vai mostrando os tentáculos para a orquestra”. Outra metáfora que ele usou para explicar o movimento que ele esperava do aluno foi pedir para ele fingir que estava tirando uma ponta de cigarro ou ainda pintando um quadro. Mas outros elementos não sinalizados na fala do professor também estavam em jogo, como a expressão facial de Samuel, mais confiante que a de Rodrigo, sendo mais enfática e destacando os músicos que deveriam entrar, pois ele imaginava o posicionamento dos instrumentistas, cuja formação é fixa, com cada família de instrumento dividida, além de existir uma divisão por níveis (primeiros e segundos instrumentistas). O movimento de Rodrigo parecia convidar os músicos, sem direcionar muito bem quem seriam os convidados

Outro exemplo que denota a importância do olhar ocorreu na aula de Prática Orquestral, quando Samuel solicita a um instrumentista que olhe para ele, após o jovem errar o andamento da música: “Olha para mim, Vicente (pseudônimo). Preciso de contato visual com você nessa parte”. (Samuel. Notas de campo, novembro de 2013).         

O instrumentista, calouro na universidade, ainda estava muito preso em sua partitura, segundo Rodrigo, que assistiu comigo ao ensaio. Isso dificultava que o instrumentista acertasse o tempo, destoando dos demais colegas. Após o pedido do professor, o instrumentista insistiu em tocar sem olhar para o mestre, possivelmente por insegurança em se perder na partitura. Rodrigo comenta que ele ainda estava atrasado no tempo. O maestro pede para o aluno tocar novamente e, nessa terceira vez, ele olha para o regente, conseguindo executar a contento. Rodrigo comenta comigo: “Ah! Agora sim, né?!”

Em um dia de ensaio, Samuel pede, em tom de brincadeira, para o coro “exagerar em um trecho, tocar de maneira mais intensa, fazer 3D, porque agora é moda. Vocês devem deixar visível para a plateia”. Essa brincadeira, que arrancou alguns risos de instrumentistas e cantores, inclusive o meu, é uma analogia curiosa se pensarmos que uma realidade em três dimensões envolve mais a visão que qualquer outro sentido. Mas o que o maestro queria era mais força sonora. No entanto, essa força se faz visível para a plateia não só por meio do ouvido, mas pela própria postura corporal, expressões faciais e gestos. Ou seja, é possível perceber, nessa passagem, uma certa prevalência do ouvido, mas a articulação audição/visão é componente fundamental de ensaios e espetáculos.

Alguns exemplos dados demonstram que a prevalência da capacidade auditiva pode ser resultado de uma análise apressada, pois há uma sinergia entre ouvido, olhar e tato. O olhar do maestro em direção aos músicos associado aos gestos (tátil) influenciaria no uso correto do instrumento e na postura corporal certa do músico na execução (tátil), compondo uma paisagem sonora condizente com o desejado, o que gera a performance esperada. 

O regente idealiza a música como deseja ouvir e planeja estratégias para que o resultado almejado seja alcançado. Para tanto, deve prever a reação dos músicos aos comandos na partitura e ao gestual empregado, já que durante o ensaio não há muito tempo disponível para erros e testes. O professor de regência atuava como um especialista em treinamento, pois possuía “a complicada tarefa de ensinar ao ator como construir a impressão desejada, enquanto ao mesmo tempo assumem a função de futura plateia e ilustram, por meio de punições, as consequências das impropriedades” (GOFFMAN, 1985, p. 148)”. A dimensão do especialista em treinamento era visível quando o maestro propunha que o gestual não funcionaria, gerando incerteza, ou alertava sobre a necessidade de o regente adotar um gestual econômico, pois alegava que muitos maestros faziam “firula” para a plateia, sendo possível adotar uma regência clara e concisa e evitar confusão na comunicação com os instrumentistas. A clareza do gestual era defendida como uma das principais qualidades do maestro.

Segundo os agentes do campo, a clareza dos gestos teria relação com o entendimento do som da obra, a partir do estudo detalhado da partitura e obra. A solução para os problemas na definição da regência ocorreria por meio do ouvido, conforme explicou o maestro a Rodrigo, que recomendou ao aluno cantar para vencer a dificuldade em reger um trecho da partitura. “Está com um problema para reger? Esquece a batuta e canta. Precisa trabalhar mentalmente sempre” (Notas de campo, novembro de 2014).

O repertório gestual seria concebido a partir do estudo da partitura, de acordo com o que “a música pede”, como enfatizou o maestro. Era preciso primeiro entender com o ouvido para depois pensar em como iria ser estabelecido o contato com os músicos nos níveis visual/gestual. 

Mas qual o espaço para a emoção diante da escuta ativa musical, que pressupõe uma racionalidade amparada pela técnica? Vale lembrar que a emoção também era tematizada por Samuel e Rodrigo, mas o professor explicou que a ênfase primeira seria dominar a técnica, os andamentos e entradas, para depois eles pensarem em questões de ordem emotiva. No entanto, em algumas ocasiões o professor tecia algum comentário que sublinhava a emoção na música, dizendo, por exemplo, para Rodrigo desenhar mais o movimento e marcar menos, ao reger uma partitura cuja música, segundo Samuel, exigia mais “paixão”. Samuel, em um dia após uma apresentação da orquestra de alunos, conversava com um compositor cuja obra foi tocada pelo grupo. Samuel comentou com o colega que um renomado maestro brasileiro estaria num outro grau de relação com a música, e que, por isso, às vezes deixava as coisas um pouco soltas, e os músicos ficavam na mão. Alegou conhecer alguns músicos em São Paulo que sempre reclamavam disso (Notas de campo, maio de 2014).

De qualquer forma, tanto na dimensão mais racional quanto na mais emotiva da Música, os agentes do campo precisam exercer a escuta ativa, condição fulcral para participar do universo orquestral2, pois os músicos do campo são questionados de maneira recorrente sobre uma obra ou ária, além de precisar, obviamente, da capacidade auditiva para tocar. O nível da escuta dos nativos implica vasto conhecimento musical, teórico e técnico, que se tornam visíveis na performatização empreendida pelos demais agentes, seja no plano verbal, ao fazer alguma consideração sobre uma música, ou durante a execução de uma obra – aspecto que eles consideram mais importante. A escuta ativa é condição para os sujeitos serem capazes de decodificar a linguagem musical, que subentende uma gramática, composta por signos, como as notações musicais, que auxiliam na interpretação e na leitura da obra e na performance musical.

Conclusão

Le Breton afirmava que “entre a carne do homem, e a carne do mundo, nenhuma ruptura, mas uma continuidade sensorial sempre presente” (2016, p.11). Se em um primeiro momento minha imersão no campo levava a crer que a faculdade de ouvir era superior às demais, o avanço no campo e as análises evidenciavam que os sentidos da visão e tato também eram vitais aos músicos e maestro em formação, construindo um regime de sensorialidade que exigia técnica e destreza como condição sine qua non de partilha.

Lago (2008) utiliza as construções “perceber o som” e “consciência musical” também pensando nessa inter-relação ouvir/ver, afirmando que um músico profissional “apreende a música de um modo comparável ao que nos chega quando estamos num dado ambiente e podemos visualizar, simultaneamente, toda a pluralidade de realidades imediatas que nos cercam” (ibidem, p.187), englobando nesse jogo não apenas as mensagens sensoriais sonoras, mas também toda a ordem de mensagens não verbais provenientes dos gestos, do semblante do regente e do olhar.

Vivemos a partir do corpo, perpassado por fluxos de odores, sons, imagens e ambiências. Embora alguns sentidos se sobressaiam em determinadas situações, reivindicando soberania, os outros sentidos lá estão, mesmo que negligenciados. Trabalhos de etnomusicologia devem buscar reconhecer a riqueza das sensorialidades investigadas, sem reforçar o binarismo audição-visão. Todos os sentidos integram as pistas de contextualização a partir das quais podemos agir e interpretar o jogo interacional.

As pesquisas que enfoquem universos musicais estão lidando com um objeto que é invisível, impalpável, subjetivo, e que se constitui a partir de uma relação som/silêncio, sendo a música dinamogênica, com capacidade de nos invadir, maravilhar e aterrorizar - não à toa é tida por inúmeras culturas como algo mágico, fetichizado, um talismã e caminho de uma comunicação com deidades.

Essa memória da música como sagrada permanece presente na fala de vários nativos, embora a ênfase geral seja no treino e técnica. Os nativos, no campo investigado, no qual a música é atividade profissional dos sujeitos, é habitado e experenciado a partir de uma escuta ativa, mas tal escuta só atinge a plenitude se conjugada com tato e visão, o que possibilita uma performance magistral, já que visão ajuda na leitura da partitura, monitoramento de maestro e colegas, e o tato permite o virtuosismo com o instrumento. Ouvir, para esses profissionais, significa um tipo de ação/performance que mobiliza uma vasta bagagem teórica e técnica, diferentemente do significado normalmente atribuído no senso comum, que associa ouvir à passividade. A dimensão imaginativa também é fundamental, em especial para o maestro, que precisa antever potenciais problemas e escutar toda a orquestra mentalmente, mesmo que vitualmente, enquanto ensaia sua regência sem os músicos. A definição e o ajuste do gestual na regência, também dentro da dimensão tátil, são vitais à performance do maestro.

O discurso verbal, tanto em situações de ensaio como de apresentação, não é valorizado pelos nativos que, inclusive, afirmam que maestro que fala muito “não se fez claro”, ou seja, tem dificuldade de se fazer entender por meio da linguagem musical, das notações que são expressas via batuta e expressões faciais e movimentos corporais do regente, tendo o maestro o desafio de marcar o tempo, nuances, volume, entradas, entre outras formas de instrução/comunicação.

A capacidade auditiva, tátil e visual compõe o reportório que possibilita a performance de regente e músicos. Em geral, a performance é alguma coisa a que o público assiste. Aquele que pratica a performance se concentra em sua ação, ao passo que o público se concentra em assistir. No caso da performance do músico teríamos o instrumentista fazendo as duas coisas, se concentrando em ouvir, bem tocar e reajustar quando necessário. Os sentidos bem conjugados que permitem a ação performática. A ação e audição, no maestro, estão ligadas a uma forma de exame que nós costumamos associar à visão; ele escuta com atenção da mesma forma que dizemos para alguém olhar com atenção.

Referências

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Notas

2 Para fazer parte desse universo orquestral, são necessários conhecimentos e habilidades a priori, diferentemente de outros cursos da graduação. Todos os alunos de Música e os aspirantes ao curso de regência passam por um teste de Habilidades Específicas para inferir o nível musical, cuja natureza é eliminatória e classificatória. Os agentes do campo explicavam que a prova mais difícil era justamente a do regente.


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