Resumo: Neste artigo, sustento que o essencialismo disposicional (ED) pode fornecer uma metafísica adequada para as leis da natureza. Os defensores do ed sustentam duas teses principais, a saber: que (i) as propriedades fundamentais da natureza possuem essências disposicionais, e que (ii) as leis da natureza são metafisicamente necessárias. Meu objetivo é argumentar que as reivindicações centrais do ED são sólidas. Também forneço linhas de resposta a três objeções que geralmente são direcionadas à metafísica disposicionalista. Primeiro, abordo o dilema central proposto por Stephen Mumford, que coloca dúvidas sobre o papel de governança das leis, tanto no disposicionalismo como em outras concepções. Segundo, discuto a acusação de que a ontologia disposicionalista acarreta regresso infinito. A terceira objeção desafia o discurso disposicionalista a provarse explicativo e não redundante. Defendo que uma ontologia de poderes puros e uma concepção de leis como proposições podem lidar adequadamente com essas objeções.
Palavras-chave:essencialismoessencialismo,disposiçõesdisposições,leis da naturezaleis da natureza,poderespoderes,ontologiaontologia.
Abstract: In this paper, I will hold that dispositional essentialism (DE) can provide an adequate metaphysics for laws of nature. The defenders of DE maintain two fundamental claims, namely that (i) the fundamental properties of nature have dispositional essences and that (ii) the laws of nature are metaphysically necessary. In this paper, I will hold that DE central claims are sound. I will also try to provide lines of response to three objections that are usually directed towards dispositionalist metaphysics. First, I will address the central dilemma proposed by Stephen Mumford, that casts doubt on the governing role of dispositionalist laws and laws on other interpretations. Second, I will discuss the charge that dispositionalist ontology entails infinite regress. The third objection challenges dispositionalist talk to prove itself explanatorily relevant and not redundant. I will hold that an ontology of pure powers and an account of laws as propositions can handle these objections properly.
Keywords: essentialism, dispositions, laws of nature, powers, ontology.
Entre poderes e leis: três objeções ao disposicionalismo*
Between Powers And Laws: Three Objections To Dispositionalism

Recepción: 19 Febrero 2020
Aprobación: 19 Marzo 2020
Neste artigo, sustento que o essencialismo disposicional (ED) pode fornecer uma metafísica adequada para as leis da natureza. De maneira geral, as propriedades disposicionais têm sido caracterizadas como propriedades dependentes de uma base categórica. Nesse sentido, Armstrong (1983;1997) defende que a atribuição de disposições a objetos pode ser reduzida a propriedades categóricas acrescidas das leis da natureza. Assim, ao atribuirmos a algum sal a solubilidade (disposição para ser dissolvido pela água), essa disposição não é interpretada como uma qualidade ontologicamente primitiva, mas derivada da estrutura interna (cristalina) do sal acrescida das leis da natureza que governam os fenômenos de dissolução. Na concepção necessitarista de Armstrong, bem como em outras abordagens, o caráter modal se encontra nas leis (externas aos objetos), e não nas coisas mesmas.
No entanto, os conhecidos problemas enfrentados pela concepção necessitarista de Armstrong (ver Van Fraassen 1989;Mumford 2004;Cani 2018) fizeram com que alguns filósofos buscassem reconceber as leis da natureza e repensar a suposta redutibilidade das propriedades disposicionais. Dessa forma, o essencialismo disposicional sustenta que as propriedades fundamentais da natureza (pelo menos algumas delas) possuem essências disposicionais, o que significa dizer que suas identidades dependem não de sua constituição interna, mas de suas relações com outras propriedades. As disposições, portanto, são poderes puros, uma vez que não precisam de uma base categórica para fixar sua identidade. Reinterpretando o exemplo acima na abordagem disposicionalista, a solubilidade do sal não é uma propriedade derivada, mas uma propriedade intrínseca que compõe a identidade deste sal. De forma mais geral, podemos dizer: um objeto x tem a disposição D(S, M) se, e somente se, ao ser submetido ao estímulo S nas condições C, x necessariamente exibe a manifestação M. Segundo a análise condicional apresentada por Bird (2007a 36-37), temos:

Assim, o essencialista disposicional sustenta que propriedades como ‘ser negativamente carregado’ possuem essências disposicionais. Caso admitamos que elétrons instanciam essa propriedade no mundo atual e que seja verdadeira a lei segundo a qual cargas opostas se atraem, então a suposição do ed implica que não pode haver um mundo possível no qual haja elétrons que não atraiam partículas de carga oposta. De acordo com seus proponentes, o ED fornece uma descrição do caráter metafisicamente necessário e a posteriori das leis da natureza. Uma vez que as leis da natureza são supervenientes das propriedades disposicionais – que são conhecidas apenas por meio de investigação empírica – as leis são metafisicamente necessárias. Assim como as leis de Armstrong (1983), o ed concebe leis como relações entre propriedades. No entanto, ao contrário de Armstrong, não há necessidade de postular um tipo especial de relação para explicar a necessidade envolvida nas leis:
[…] a própria natureza de uma potência fornece o que queremos de uma lei, pois sua essência é uma relação disposicional entre uma propriedade-estímulo e uma propriedade-manifestação. O caráter modal da essência significa que temos uma explicação da necessidade que naturalmente pensamos caracterizar as leis da natureza; necessariamente, se a potência é instanciada e recebe seu estímulo, então a manifestação ocorrerá (Bird 2007a 64).
Meu objetivo é argumentar que as reivindicações centrais do ed são sólidas. Além disso, tento fornecer linhas de resposta a três objeções que geralmente são direcionadas à metafísica disposicionalista. Analisando essas objeções, apresento algumas alterações relativas a aspectos imprecisos das ontologias de Bird e Ellis.
Primeiro, abordo o dilema central proposto por Stephen Mumford (2004). Esse argumento visa demonstrar a implausibilidade de qualquer tentativa de postular leis como categorias ontológicas reais, tanto na concepção necessitarista de Armstrong quanto no essencialismo disposicional de Ellis. Quanto a este último, Mumford sustenta que seria contraditório imaginar que as leis são internas aos fenômenos e, ainda assim, determinam (ou governam) o curso dos acontecimentos. Em segundo lugar, discuto a objeção de Armstrong (2002) contra a alegação de que disposições são propriedades irredutíveis. Ele também formula um dilema: se aceitarmos que existem propriedades disposicionais irredutíveis, então ou (i) existem apenas propriedades disposicionais ou (ii) existem propriedades categóricas e disposicionais. Para Armstrong, assumir a tese (i) leva a um regresso infinito, enquanto apoiar a tese (ii) torna impossível afirmar que as leis são metafisicamente necessárias. Finalmente, a terceira objeção se opõe à relevância e ao poder explicativo do discurso disposicionalista. Segundo Mackie (1977) e Psillos (2006), a alegação de que um determinado processo causal ocorreu devido à instanciação de uma determinada disposição D não explica a força modal envolvida em tal evento. Esse tipo de discurso apenas recapitularia o mesmo processo em outras palavras. Isso é o que Mackie denomina “dupla visão metafísica” (Mackie 1977 366).
Cada uma das objeções apresentadas acima se dirige a diferentes aspectos da metafísica disposicionalista, a saber: o papel de governança das leis (seção 2); a necessidade metafísica das leis (seção 3) e o poder explicativo das disposições (seção 4). Portanto, se conseguirmos fornecer respostas satisfatórias a essas objeções, encontra-remos boas razões para adotar o disposicionalismo como uma metafísica para as leis da natureza. Agora, passemos à primeira objeção: o dilema central.
A objeção de Mumford à concepção disposicionalista das leis precisa ser compreendida no contexto de seu argumento geral contra o realismo nomológico. Primeiro, analiso alguns pressupostos do argumento de Mumford e, em seguida, discuto suas críticas ao ED. No livro Laws in Nature (2004), Mumford define sua própria teoria como realismo sem leis (realist lawlessness). De acordo com essa visão, a inexistência de leis não implica a inexistência de conexões necessárias na natureza. Nesse sentido, Mumford sustenta que muitos filósofos confundem realismo modal com realismo nomológico, pois acreditam que um mundo sem leis da natureza (negando o realismo nomológico) é igual a um mundo sem conexões necessárias entre objetos (negando o realismo modal). Por exemplo, o anti-realismo de Van Fraassen (1989) nega tanto o realismo modal como o realismo nomológico, enquanto o realismo defendido por Bird e Ellis apoia ambos. Mumford, no entanto, propõe uma terceira via. Para ele, uma ontologia de poderes causais descarta a necessidade de postular leis, ao mesmo tempo em que preserva os fundamentos metafísicos das conexões necessárias na natureza. Em outras palavras, se admitirmos a existência de disposições na natureza, postular leis acaba sendo redundante e até prejudicial, já que Mumford (2004 127) classifica as leis como uma metáfora obscura e vaga. A obscuridade e a frouxidão do conceito de lei são evidenciadas pelo fato de que não há consenso quanto ao significado do conceito de lei entre os filósofos realistas.
A crítica de Mumford ao realismo nomológico é sintetizada por seu dilema central. Para ele, o realismo nomológico admite que identificar as leis da natureza como fatos sobre o mundo consiste na melhor explicação para a ocorrência das regularidades observadas pelos cientistas. Esse raciocínio é chamado de argumento nomológico (AN) por Mumford. Certamente, o AN consiste em uma simplificação dos argumentos efetivamente empregados pelos defensores das leis, mesmo que não seja difícil encontrar casos em que filósofos realistas mantêm suas posições por meio de argumentos muito semelhantes ao AN. De fato, esse argumento é de caráter fundamentalmente metafísico, de modo que “as leis são consideradas os fundamentos ontológicos da regularidade, necessidade e previsibilidade” (Mumford 2004 70). Nesse sentido, o dilema central explora a suposição realista de que as leis denotam fatos sobre o mundo. Segundo ele, se as leis são reais, elas devem cumprir um papel ontologicamente relevante. Em outras palavras, se houver leis, elas governam os objetos ou propriedades que se enquadram em seu escopo. Assim, a visão realista atribui um tipo de papel de governança às leis. Embora poucos filósofos realistas se sintam confortáveis com o uso do termo governo para se referir às leis, Mumford justifica o uso dessa palavra como uma metáfora que deve ser tomada em um sentido amplo:
Portanto, deve haver algum sentido, que o realista nomológico teria que explicar, no qual a história do mundo, ou a conexão entre propriedades, foi determinada pelas leis e não vice-versa. Para que uma coisa realmente exista, como o realista nomológico reivindica ser o caso das leis, essa coisa deve fazer algo; deve fazer alguma diferença. E o que quer que as leis façam é o que estou chamando de papel de governança (Mumford 2004 146).
Se o realista toma as leis como relações, propriedades essenciais ou outra categoria ontológica, o desafio proposto por Mumford consiste em esclarecer a maneira como essas categorias podem determinar ou governar o curso dos eventos. Nesse sentido, Mumford (2004 158s) apresenta o dilema central nos seguintes termos: ou as leis [1] exercem algum papel de governo ou [2] não o fazem. Aceitar a tese [1] consiste em subscrever o realismo nomológico, enquanto assentir a tese [2] implica a rejeição de leis. Considerando [1] como sendo o caso, existem duas alternativas para explicar o papel de governança exercido pelas leis: ou [A] as leis são externas aos objetos ou eventos por eles governados; ou [B] as leis são internas a esses objetos ou eventos. Para Mumford, a hipótese [A] implica uma concepção de leis semelhantes à visão de Armstrong (1983), em que as leis são relações de necessitação entre universais com a forma N(F,G). Trata-se, naturalmente, de uma relação externa aos objetos. O papel de governança é exercido, portanto, pela relação N, e é justamente o seu caráter obscuro que faz com que essa teoria sucumba diante do dilema central. O argumento de Mumford (2004 94) é que a relação N é capaz apenas de conectar os universais F e G, porém, diante de um objeto que instancia F, não há nada na teoria de Armstrong capaz de explicar por que esse objeto também instancia G. Isso ocorre porque N é externa às propriedades F e G, de modo que a força modal dos universais F e G é completamente esvaziada no necessitarismo. No fundo, N não governa os fenômenos, o que é suficiente para rejeitar a hipótese [A] do dilema central.
Além disso, essa visão enfrenta uma desvantagem adicional, independente do dilema central, a saber, o quiditismo. Trata-se da constatação de que, se o perfil causal das propriedades F e G dependem não da sua própria identidade, mas da relação N, então é concebível que, em outros mundos possíveis, F e G possuam perfis causais diferentes. Um exemplo seria pensar na estrutura molecular da água como representada pelo universal F e conceber um mundo possível em que objetos F não sejam capazes de dissolver os sais, tal como ocorre no mundo atual. Isso implica que “[...] podemos ter leis diferentes das atuais governando as propriedades atuais (ou as leis atuais governando um conjunto diferente de propriedades.” (Mumford 2004 150). Naturalmente, o quiditismo não é uma posição internamente incoerente, tanto que há autores que o endossam explicitamente (ver Schaffer 2005). Entretanto, ele pode ser inconveniente para quem deseja, como Armstrong, argumentar em favor da necessidade das leis. A grande questão envolvendo o quiditismo é que o nosso acesso à identidade das propriedades é mediado pelo seu papel causal, por exemplo, inferimos que um objeto é de determinada cor devido a processos causais envolvendo a propagação de ondas. Se admitimos que uma propriedade poderia permanecer a mesma ainda que tivesse um perfil causal distinto, é difícil visualizar de que maneira podemos fundar as alegações de que conhecemos determinadas propriedades. Isso parece indesejável para quem busca uma metafísica que seja capaz de explicar as leis da natureza, tão centrais à atividade científica.
Vamos passar agora para a análise da hipótese [B]. Nesse lado do dilema, as leis são internas aos objetos e propriedades por eles governados. Essa visão aparece claramen- te na enunciação do essencialismo disposicional feita por Brian Ellis (2002 1): “Sua tese básica é que as leis da natureza são imanentes nas coisas que existem na natureza, em vez de serem impostas a partir de fora.” Segundo Mumford, essa concepção de leis deve lidar com dois desafios principais: primeiro, como é possível que as leis sejam internalizadas nos eventos que descrevem? Em segundo lugar, como as leis poderiam governar tais eventos?
Para enfrentar a primeira pergunta, os disposicionalistas apelam para a noção de essência1: as leis são intrínsecas aos objetos precisamente porque se fundam nas essências disposicionais de certos tipos naturais (ver Ellis 2002 59). Assim, o comportamento regular exibido pelos objetos é explicado por suas disposições essenciais. Todavia, Mumford (2004 153) sustenta que essa caracterização torna impossível compreender como as leis poderiam exercer seu papel de governança, que é um aspecto fundamental da visão realista. Do ponto de vista metafísico, isso significa dizer que o essencialismo disposicional reduz as leis às disposições. Dessa forma, enunciados como ‘É uma lei da natureza que todos os Fs são Gs’ dependem ontologicamente das disposições essenciais de F e G. Portanto, a história do mundo tem seu curso determinado pelas propriedades disposicionais dos objetos na natureza; não pelas leis. A conclusão óbvia, para Mumford, é que o disposicionalismo torna as leis da natureza irrelevantes. Uma vez que abraçamos a crítica disposicionalista às visões nas quais a natureza é considerada inerte e passiva, não faz sentido considerar as leis como efetivamente existentes. Segue-se que, se as disposições governam o curso dos eventos – isto é, se o que acontece no mundo é determinado pela instanciação das disposições –, então não resta papel governança para as leis exercerem. Portanto, as leis não devem ser consideradas ontologicamente relevantes. Mumford conclui que a eliminação de leis é a posição mais razoável a ser adotada, assumindo assim a hipótese [2] do dilema central.
O argumento de Mumford contra o ED pode ser resumido da seguinte maneira: se o realismo nomológico for o caso, então as leis governam os fenômenos; de acordo com o ed, as leis são redutíveis às essências disposicionais das coisas; portanto, se as leis dependem ontologicamente das propriedades dos objetos, não é possível que as leis governem (Mumford 2004 156). Como o disposicionalista pode responder a essa objeção? Há duas estratégias disponíveis. Por um lado, autores como Ellis e Ghins argumentam que as leis da natureza são mais bem definidas como proposições, de modo que elas não precisam cumprir nenhum tipo de papel de governança. Nessa visão, as leis não são consideradas fatos no mundo, ou seja, leis não representam um acréscimo ao que existe (addition of being), do ponto de vista ontológico. Por outro lado, a estratégia adotada por Bird (2007a cap. 9) consiste em recorrer à noção de superveniência. Nesse sentido, Bird sustenta que as leis podem até não governar, mas podem ser supervenientes de algo que cumpra o papel de governança. Segundo ele, a hipótese de que as leis são redutíveis às disposições dos objetos é imprecisa, de modo que ele define leis como supervenientes das disposições. Em termos gerais: suponhamos que as leis L sejam supervenientes das disposições D. Portanto, são necessárias alterações no nível D para que haja alterações em L. No entanto, isso não implica que o nível L governe D, mas pode ser o caso em que D determine L(Bird 2007a 193).
Dessa forma, a noção de superveniência permite que Bird explique como as leis podem ser reais sem governar o curso dos eventos (no sentido de Mumford). Ainda assim, Bird sustenta que essa suposição não torna as leis irrelevantes. Como afirmei antes, a identidade de uma disposição D pressupõe a conexão necessária entre um estímulo S e uma manifestação M. A relação entre S e M – fundamentada na essência de D – pode ser considerada uma lei da natureza L. Considere um objeto a tal que Da seja o caso. Em tais condições, o estado de coisas Sa implica a ocorrência de Ma. Assim, podemos afirmar que L – entendida como a conexão necessária entre S e M – é interna à propriedade D, ou seja, a lei é superveniente a partir da essência disposicional dessa propriedade. No entanto, a conclusão do argumento de Bird é a afirmação de que os estados de coisas Da, Sa e Ma não são internos a D nem a L, mesmo que seja possível explicar o curso dos eventos como consequência de uma lei que seja, ela mesma, superveniente de uma disposição. Nas palavras de Bird:
Vemos como a lei é interna à propriedade – ela flui da essência da propriedade. Essa essência disposicional pode governar ou determinar as coisas, como acabamos de mencionar, pois faz com que se algo possui a potência e se experimenta o estímulo, então haverá uma manifestação. Mas esse conjunto de eventos é ele próprio externo ao poder e à lei. (Bird 2007a 196).
Portanto, o tipo de superveniência defendida por Bird é totalmente distinto da superveniência humeana defendida por Lewis. No regularismo, afinal, as leis são supervenientes de todo o conjunto de eventos que constituem o mundo. Nesse sentido, obtemos leis ao coletar eventos. Dentro do mosaico humeano – citado por Lewis (1986 ix) – só há espaço para eventos sucessivos, sem modalidade. Por outro lado, o essencialismo disposicional introduz um domínio ontológico diferente pela noção de essência disposicional. O conteúdo das leis não é limitado pela história do mundo entendida como uma sequência de eventos, uma vez que as disposições são irredutíveis. Assim, as essências disposicionais, as leis da natureza e o curso dos eventos governados pela primeira são todas existências diferentes que não conflitam entre si.
Na minha visão, a teoria de Bird sobre a noção de superveniência consegue demonstrar a consistência das alegações de que (i) as leis são internas às propriedades disposicionais e que (ii) sendo externas aos estados de coisas que governam, as leis podem desempenhar um papel relevante na explicação do curso dos eventos. Nesse sentido, a concepção de Bird fornece uma resposta satisfatória à principal preocupação expressa pelo dilema central de Mumford, a saber, a aparente contradição entre as alegações de que as leis são internas às propriedades e que as leis cumprem um papel de governança (ver também Borge 2015 77). Entretanto, sustento que esse argumento deixa uma questão importante sem resposta. Se as leis da natureza são supervenientes às disposições que governam, por que deveríamos afirmar que as leis representam um acréscimo ao que existe, uma vez que já formulamos uma ontologia de disposições? Essa preocupação parece ser o pano de fundo de todo o debate sobre o dilema central. É por essa razão que, embora avaliando a concepção de Bird como plausível, sustento que as leis devem ser identificadas a proposições que estabelecem as relações entre estímulos e as manifestações desencadeadas por eles. Nesse sentido, as leis podem ser entidades reais (abstratas) sem a necessidade de serem consideradas como uma categoria ontológica extra, comparável a propriedades e estados de coisas. Voltarei a essa concepção nas próximas seções, ao tratar de outras objeções direcionadas ao disposicionalismo. Antes de avançar, há uma objeção independente levantada por Mumford que vale a pena mencionar.
Além do dilema central, Mumford levanta a objeção universal acidental contra o essencialismo disposicional. Mumford (2004 116-120) afirma que os amigos das essências não explicam como é possível distinguir entre propriedades essenciais e propriedades que apenas são compartilhadas acidentalmente por todos os membros de determinado tipo natural. O argumento pode ser reconstruído da seguinte maneira: suponhamos que o conjunto de objetos {a, b,…, z} contenha membros de um tipo natural K. Permitamos que P e Q denotem propriedades de modo que P seja uma propriedade essencial do tipo K e Q seja apenas acidental. Portanto, cada um dos objetos do conjunto {a, b,…, z} deve instanciar P, mas pode não instanciar Q. Como o essencialismo não exige que todas as propriedades de um objeto sejam essenciais, Mumford sustenta que o essencialismo não pode descartar o caso em que uma propriedade como Q seja acidentalmente instanciada por todos os membros do tipo natural K. O resultado da objeção de Mumford é que, se não houver um critério para descartar a possibilidade do caso de universal acidental, não há como distinguir propriedades essenciais, o que enfraquece a postulação de essências pelo ED.
Embora Mumford esteja correto ao afirmar que a noção de essência desempenha um papel fundamental nos argumentos de Bird e Ellis sobre leis, a objeção do universal acidental tem pouca força para apoiar sua afirmação de que essa noção está mal definida. Primeiro, há duas preocupações distintas que parecem indevidamente misturadas no argumento de Mumford: a questão ontológica (a existência de propriedades essenciais) e a epistemológica (a possibilidade de conhecer essas propriedades em todos os casos). Mesmo que haja casos em que não saibamos distinguir todas as propriedades essenciais que caracterizam um tipo natural, isso por si só não acarreta a ausência de razões suficientes para acreditar que existam propriedades essenciais (ver Ellis 2001 76;Borge 2015 70).
Em segundo lugar, o próprio Kripke (1980 45) elucida essa questão quando distingue entre as condições necessárias e suficientes para afirmar que uma propriedade é essencial. Por exemplo, parece razoável afirmar que ‘possuir carga negativa’ é uma propriedade essencial dos elétrons. Logo, instanciar essa propriedade é uma condição necessária para que algo seja considerado um elétron. No entanto, essa conclusão não exige que saibamos antecipadamente todas as condições necessárias e suficientes para que algo seja um elétron. A determinação dessas condições é de responsabilidade da pesquisa científica, ou seja, é um conhecimento a posteriori. O problema do universal acidental não é, portanto, uma razão convincente para abandonarmos a crença na existência de propriedades essenciais distintas das acidentais.
Na seção anterior, apresentei o dilema central de Mumford contra o realismo nomológico. Embora o argumento elucide uma série de aspectos relevantes, mostrei que ele não deve nos impedir de defender uma visão disposicionalista das leis da natureza. Nesta seção, discuto outra objeção ao ED. É também um dilema, mas este se concentra na necessidade metafísica das leis, reivindicação fundamental do disposicionalismo.
Segundo Armstrong (1997), não há dúvida de que as propriedades (concebidas por ele como universais aristotélicos) atribuem poderes (disposições) aos objetos que as instanciam. Por exemplo, a propriedade de ‘possuir massa’ está claramente relacionada à possibilidade de participar de processos de atração gravitacional em determinadas circunstâncias. Porém, o ponto de desacordo entre Armstrong e os disposicionalistas se refere à questão de saber se a identidade de uma propriedade depende (ou não) das disposições a ela relacionadas. De fato, o monismo categórico preconizado por Armstrong concebe a relação entre a instanciação de uma propriedade por um objeto e seu perfil causal como uma questão contingente. Portanto, a natureza das propriedades é independente dos efeitos que podem resultar de sua instanciação por um objeto (Armstrong 1997 70). Por outro lado, todos sabemos que o ED postula a existência de conexão necessária entre a instanciação de uma propriedade e a manifestação dos efeitos a ela relacionados. Se um objeto instancia uma propriedade disposicional, dado o estímulo apropriado, a manifestação do efeito correspondente seguirá necessariamente. Na visão disposicionalista, a aparente contingência das leis da natureza (nossa crença de que as leis poderiam ser diferentes) reside no âmbito epistêmico, ou seja, a necessidade envolvida nas leis é de ordem metafísica (ver Shoemaker 1998 72-74). Em termos gerais, Armstrong argumenta que assumir a relação necessária entre a identidade da propriedade e o perfil causal resulta em um dilema destrutivo para o ED: ou o essencialista admite que sua posição envolve regresso infinito ou nega a necessidade metafísica das leis da natureza.
Consideremos o caso em que a propriedade P está relacionada à manifestação do efeito M nas condições C. O conjunto de condições necessárias que levam à manifestação de M é definido por Armstrong como a causa total de M(Armstrong 1997 75). Portanto, a instanciação de P por um determinado objeto x e a ocorrência das condições C constituem a causa total de M. Colocando esse raciocínio formalmente, temos:
(2) (Px & Cx) Mx
Armstrong dirige a seguinte pergunta ao disposicionalista: qual é a natureza das propriedades envolvidas em (2), isto é, como devemos descrever as propriedades dentro do processo causal que resultam na manifestação do efeito M? Em particular, qual é a natureza das propriedades envolvidas na causa total de M? Segundo o autor, existem duas respostas possíveis para este caso: ou (i) todos os fatores envolvidos no processo causal são (irredutivelmente) disposicionais ou (ii) alguns deles são categóricos. Na verdade, a distinção entre (i) e (ii) é equivalente à distinção entre monismo disposicional (MD) e ontologia mista (OM), respectivamente. Enquanto MD postula apenas as propriedades disposicionais como fundamentais, a OM admite propriedades categóricas irredutíveis (estruturas) além das disposicionais. Vamos considerar cada uma das visões separadamente.
De acordo com (i), todas as propriedades envolvidas no processo descrito em (2) são disposições. Tal perspectiva monística é apoiada por Bird (2007a 45) quando ele afirma que todas as propriedades fundamentais da natureza são poderes puros, ou seja, possuem essências disposicionais. Segundo Armstrong, a ontologia monística de Bird implica um regresso infinito: “Se as propriedades que compõem a causa são poderes puros, os efeitos terão que ser poderes puros também, e os efeitos dos efeitos, e assim por diante. [...] Onde chegamos a alguma natureza concreta, algo que não seja mero poder?” (Armstrong 2002 169). O mundo disposicionalista é um mundo de meros poderes, levando a uma ontologia sem atualidade suficiente. Dito de outro modo: suponhamos que um objeto x1 instancia uma propriedade P1. De acordo com o MD, a essência dessa propriedade é disposicional, de modo que seu efeito característico será a instanciação de uma determinada propriedade P2 por um determinado objeto x2. Por definição, isso acarreta o poder de fazer com que um terceiro objeto adquira (ou perca) outra propriedade, e assim por diante. Por meio de uma metáfora, Armstrong caracteriza o mundo postulado pelo monista disposicional como um lugar onde os particulares estão sempre preparando a bagagem (alterando as propriedades disposicionais) sem nunca fazer qualquer viagem (da potência para o ato):
O falecido professor A. Boyce Gibson, da Universidade de Melbourne, disse, espirituosamente, que os filósofos da linguagem estavam sempre arrumando as malas para uma jornada que nunca fizeram. Dada uma descrição puramente disposicional das propriedades, os particulares parecem estar sempre reorganizando suas malas [always packing] à medida que mudam de propriedades, porém nunca viajam [never traveling] da potência para o ato. Pois, nessa visão, o ‘ato’ não passa de uma potência diferente. (Armstrong 1997 80).
Assim, o argumento always packing, never traveling (doravante APNT) pretende demonstrar que a ontologia monista torna impossível explicar a manifestação de qualquer disposição. O argumento de Armstrong está muito próximo da acusação de regresso infinito de Swinburne (1980). Segundo Swinburne, a única justificativa para atribuir um poder causal a um objeto seria a observação sistemática dos efeitos que pretendemos associar a esse poder. Se considerarmos que um efeito é a instanciação de uma propriedade, a tese monista implicaria a impossibilidade de reconhecer qualquer propriedade, uma vez que a manifestação de uma disposição seria uma nova potencialidade e nada mais. Em outras palavras, o reconhecimento da propriedade P1 requer o reconhecimento de seus efeitos; vamos identificar esses efeitos como a instanciação da propriedade P2. Como P2 também é disposicional, o reconhecimento dessa propriedade requer o reconhecimento de efeitos adicionais (a instanciação de P3) e assim por diante. Logo, se houver apenas disposições, todo o conhecimento sobre propriedades é impossível. Consequentemente, não haveria justificativa para atribuir qualquer poder causal aos objetos, uma vez que o conhecimento dos efeitos das propriedades (poderes) seria impossível. As duas objeções de regresso mencionadas acima enfatizam aspectos distintos: enquanto o regresso de Swinburne enfatiza as consequências epistemológicas do monismo disposicional, o argumento APNT de Armstrong é formulado em termos ontológicos, de modo que enfatiza os problemas relativos à identidade das propriedades.
Em geral, as tentativas de fornecer uma resposta a ameaças de regresso infinito adotam uma dentre duas estratégias possíveis: ou se explica como o regresso pode ser interrompido ou, admitindo a inexorabilidade do regresso, procura-se demonstrar de que maneira o regresso pode ser convertido em um círculo virtuoso. Nesse sentido, supor a existência de propriedades não-disposicionais fundamentais poderia constituir uma alternativa viável para impedir o regresso envolvido na postulação de poderes puros. Essa estratégia leva à postulação de uma ontologia mista. Assim, a sequência {P1, P2, P3, ...} não continuaria indefinidamente, mas pararia quando a sequência atingisse uma propriedade categórica Pn, cujo reconhecimento não envolve outras propriedades adicionais. Como veremos abaixo, essa estratégia enfrenta dificuldades importantes. Antes de analisar esses problemas, no entanto, gostaria de discutir a resposta de Bird à ameaça de regresso infinito.
Do ponto de vista monístico, Bird afirma ser possível parar tanto o regresso ontológico quanto o epistemológico. Primeiro, Bird considera falso o regresso epistemológico. Analisemos o seguinte exemplo fornecido pelo autor: suponhamos que se queira saber se um objeto tem a propriedade P1. Para atingir esse objetivo, é necessário saber se a propriedade P2 se manifesta, o que implica saber se P3 é o caso e assim por diante. Enquanto Bird admite que há um problema epistemológico a ser resolvido, ele argumenta que esse regresso não é infinito. Assim, o autor afirma que – na sequência de propriedades e manifestações – deve haver uma propriedade Pj cuja manifestação (Pk) seja um estado mental. Esse estado pode ser um estado de conhecimento ou um estado epistêmico. Obviamente, Pk também é uma propriedade disposicional e, portanto, há efeitos (Pl) associados a ela. No entanto, esses efeitos não são relevantes para o reconhecimento de Pk: “Não há mais regresso, uma vez que, para estar num estado de conhecimento, não há exigência de se saiba estar nesse estado (da mesma forma para outros estados epistêmicos)” (Bird 2007a 135). Por fim, o argumento de Bird fornece uma estratégia para bloquear o regresso, uma vez que a cadeia de disposições termina com o conhecimento de uma determinada propriedade, identificada com um estado de conhecimento.2
Mesmo se aceitarmos a resposta monista ao regresso epistemológico, devemos reconhecer que a ameaça de regresso ontológico (APNT de Armstrong) permanece intocada pela estratégia de Bird. Afinal, esse problema diz respeito à determinação da identidade das propriedades disposicionais, não apenas à possibilidade de acesso epistêmico a elas. De fato, Bird (2007a 7-8) considera o regresso ontológico como a objeção mais séria ao monismo disposicional. Apesar disso, ele aponta que o APNT tem uma pressuposição incorreta, a saber, a tese de que não há conteúdo suficiente no sistema proposto pela ontologia disposicionalista. Em geral, esse raciocínio pressupõe que a atribuição de disposições aos objetos não possui nenhuma base atual, somente potencial, uma vez que estímulos e manifestações de disposições também são disposições. Segundo Bird, esse raciocínio é equivocado precisamente porque os oponentes do md assumem, apressadamente, o que devem demonstrar, a saber, que disposições puras são menos reais que outros tipos de propriedades (Bird 2007b 521). Nesse sentido, quando Armstrong se apoia na metáfora APNT para demonstrar que o processo causal (2) não exibe atualidade suficiente quando descrito pela ontologia disposicional, fica faltando explicar por que uma propriedade disposicional é menos eficaz do que uma categórica (Chakravartty 2003 400).
Independentemente das suposições do argumento APNT, Bird propõe uma tese metafísica para descartar definitivamente a ameaça de regresso ontológico. Obviamente, ele admite que os defensores do md devem apresentar uma explicação clara para a determinação da identidade das disposições. A estratégia de Bird para lidar com esse problema consiste em duas etapas. Primeiro, ele tenta converter a ameaça de regresso em circularidade. Como vimos, o MD afirma que a essência de uma propriedade envolve (pelo menos) duas outras propriedades: o estímulo e a manifestação. Da mesma forma, a essência dessas propriedades envolve outras e assim por diante. Consequentemente, o monismo disposicional enfrenta um dilema:
ou (a) existem infinitas propriedades ou (b) a identidade das disposições acarreta circularidade. Para evitar o regresso infinito, Bird opta por (b): a identidade de uma propriedade envolve relações sucessivas com outras propriedades, de modo que, em algum momento, o conjunto dessas relações retorna à propriedade com a qual iniciamos. Portanto, Bird (2007b 524) aponta: “A identidade dessa propriedade é o que o conjunto de relacionamentos deveria estabelecer”.
O segundo passo do argumento é demonstrar que a circularidade envolvida na identidade das propriedades não é uma circularidade viciosa. O autor deve provar, então, que a identidade de uma propriedade disposicional é determinada pela estrutura composta por suas relações com outras propriedades (estímulos e manifestações). Em suas próprias palavras:
Para o monista disposicional, a identidade das propriedades é dependente de outra coisa, em vez de ser primitiva (esta última visão é o quiditismo). Essa outra coisa é o padrão das relações de manifestação. A questão pode ser formulada assim: a identidade dos poderes puros pode ser superveniente do padrão de suas relações de manifestação? A resposta é que sim (Bird 2007b 533-534).
Voltemos à acusação de regresso ontológico contra o monismo disposicional. Como vimos, essa objeção diz respeito à identidade das disposições. O regresso surgiria porque a identidade de uma propriedade P1 acarretaria a disposição para manifestar o efeito P2, cuja identidade é determinada pela tendência a manifestar o efeito P3, e assim por diante. No entanto, Charkravartty (2007) argumenta que a acusação de regresso se baseia em uma ambiguidade, a saber, a fusão de disposições e manifestações. Embora a identidade de P1 dependa da possibilidade de desencadear uma sequência causal {P2, P3, ...}, isso não significa que P1 seja idêntica a essa sequência causal. Em outras palavras, podemos reconhecer P1 nos referindo à sequência causal (hipotética) relacionada a ela (já que a ocorrência real dessas manifestações depende dos estímulos correspondentes), mas isso não significa que P1 se confunda com a sequência. Nesse sentido, devemos lembrar que o disposicionalista entende as disposições como irredutíveis, a fim de assegurar que elas são propriedades que ocorrem efetivamente. Chakravartty explica sua visão nos seguintes termos:
As disposições são distintas e não devem ser confundidas com suas manifestações. Uma disposição específica pode desencadear a instanciação de outra, o que desencadeia a instanciação de outra e assim por diante até que perdure o processo causal, mas isso não implica que a disposição original seja constituída pela sequência, seja ela real ou meramente hipotética (Chakravartty 2007 139).
A fim de corroborar esse ponto de vista, Chakravartty (2007 140ss) oferece uma analogia. Vamos supor que o universo tenha iniciado pelo evento chamado Big Bang. Nesse caso, podemos nos referir a esse evento através da sequência causal desencadeada por ele. Entretanto, ao determinar o que foi o Big Bang – e, assim, lidar com a questão de sua identidade –, provavelmente não aceitaríamos a tese de que o Big Bang é constituído pela sequência causal desencadeada por ele. Segundo Chakravartty, os defensores da acusação de regresso reivindicam basicamente o mesmo quando afirmam erroneamente que uma disposição é constituída pela sequência causal potencialmente desencadeada por ela. Como regresso deriva dessa suposição, segue-se que essa não é uma ameaça genuína ao MD. Os argumentos de Chakravartty e Bird, portanto, implicam que a acusação de regresso infinito não representa grande ameaça à ontologia disposicionalista, pois esta se baseia em ambiguidades, a saber: (i) fusão de disposições e manifestações e (ii) confusão entre a descrição de um evento e sua constituição.
A estratégia delineada por Bird e Chakravartty não é a única disponível ao disposicionalista para evitar a ameaça de regresso. Como mencionei anteriormente, uma ontologia mista bloqueia automaticamente o regresso relativo à definição de poderes.
Passemos assim ao item (ii) do dilema proposto por Armstrong, isto é, à concepção que admite propriedades categóricas e disposicionais como fundamentais.
A ontologia proposta por Ellis (2001;2002) é um exemplo desse tipo de visão. Segundo ele, admitir a existência de propriedades categóricas irredutíveis não acarreta necessariamente a defesa do monismo categórico, uma vez que Ellis discorda da tese de que as disposições possam ser reduzidas às propriedades categóricas. Entretanto, Ellis e os outros defensores de ontologias mistas precisam explicar em que consistem exatamente as propriedades categóricas, bem como definir claramente como elas se relacionam com as disposições dos objetos. A teoria de Ellis define as propriedades categóricas como propriedades fundamentalmente espaço-temporais, concebidas como estruturas.
Em primeiro lugar, existem as estruturas de bloco, que são assim definidas por ele: “Propriedades estruturais de bloco são propriedades que dependem de relações entre coisas cujas identidades são independentes dessas relações” (Ellis 2002 69). Assim, um arranjo estrutural de uma molécula é classificado como uma estrutura de bloco, uma vez que seus elementos constituintes (átomos e ligações químicas) podem existir independentemente da estrutura em questão. Segundo Ellis, a essência dessas propriedades é estrutural – e não disposicional – precisamente porque a existência da estrutura de uma molécula não depende de como ela interage com outros objetos.
Um segundo tipo de propriedade categórica consiste nas estruturas intrínsecas. Essas são as estruturas dos campos e do próprio espaço-tempo, definidas por Ellis como a distribuição espaço-temporal dos poderes causais. Diferentemente das estruturas de bloco, as estruturas intrínsecas são compostas de partes espaciais cuja existência não pode ser concebida de forma independente. Ellis (2002 70) menciona o exemplo do campo eletromagnético, descrito pelas equações de Maxwell. Nesse caso, o conjunto (o próprio campo) depende intrinsecamente de suas partes (os potenciais elétrico e magnético). Além disso, como a intensidade das forças que atuam sobre uma determinada carga (dependendo do campo) depende das características do campo em questão, Ellis define uma estrutura intrínseca como uma estrutura de poderes causais – isto é, uma estrutura composta pela distribuição espaço-temporal de disposições que descrevem a possível interação com as cargas. Como essa estrutura é definida em termos das possíveis interações causais que ocorrem no espaço e no tempo (por exemplo, as forças eletromagnéticas que operam em determinada direção), ela é classificada por Ellis como categórica. Assim, sejam elas intrínsecas ou em bloco, as estruturas são consideradas por ele como propriedades categóricas (ver Ellis 2002 75).
Armstrong, todavia, argumenta que a visão mista das propriedades traz consequências indesejadas. As dificuldades dizem respeito à tarefa de explicar a contribuição causal das propriedades não disposicionais, isto é, das estruturas postuladas por Ellis. Vimos anteriormente que a necessidade metafísica das leis é uma tese central para o essencialismo disposicional. Afinal, as leis são fundamentadas nas essências disposicionais de algumas propriedades, e isso implica uma relação necessária entre causas (estímulos) e efeitos (manifestações). Por outro lado, da perspectiva da ontologia mista, o processo causal descrito em (2) possui tanto componentes disposicionais quanto categóricos. Armstrong salienta que, se os fatores categóricos também contribuem para o processo causal, é difícil ver como o efeito resultante pode ser necessário, visto que as propriedades categóricas estão contingentemente relacionadas aos efeitos resultantes de suas instanciações. Por fim, se as propriedades básicas da natureza são divididas entre categóricas e disposicionais, “[...] algumas relações causais serão necessárias e outras contingentes, o que parece um pouco confuso” (Armstrong 1997 76). Para ilustrar sua objeção, Armstrong recorre ao exemplo da lei da gravitação de Newton. Segundo Ellis, a massa deve ser caracterizada como uma disposição, enquanto a distância deve ser definida como uma propriedade estrutural (categórica). Como a distância entre corpos dotados de massa influencia a magnitude da força gravitacional observada, Armstrong afirma que o resultado dessa influência é contingente, contradizendo a tese fundamental do ED:
Dada uma teoria de poderes causais, as massas dos corpos certamente devem ser poderes. Mas agora suponha que as distâncias dos corpos sejam não-poderes. As forças gravitacionais exercidas são inversamente proporcionais à distância. [...] E como as distâncias não são poderes, dada a teoria que estamos analisando, parece que não há argumento para que a contribuição da distância seja necessária. Mas se há um fator contingente envolvido na causa gravitacional, então a gravitação é uma questão contingente (Armstrong 2005 313).
Em outras palavras, se uma propriedade não é um poder causal, os efeitos que resultarão de sua instanciação são contingentes, ou seja, distâncias diferentes resultarão em forças diferentes entre os corpos. Armstrong conclui, portanto, que isso não pode ocorrer se a distância não for considerada um fator causal (ver Armstrong 2002 169-171). A única maneira de garantir que a contribuição causal da distância seja necessária seria caracterizar a distância como uma disposição. Porém, vimos que essa estratégia leva à ameaça de regresso infinito. Assim, esse argumento completa o dilema proposto por Armstrong contra o ED: dado o processo causal descrito em (2), o autor afirma que a afirmação (i) leva a um regresso infinito, ao passo que a afirmação (ii) torna inconsistente o caráter metafisicamente necessário das leis. Ao fazer isso, Armstrong espera ter demonstrado a inconsistência de qualquer versão do ED, para que apenas o monismo categórico – e as leis contingentes relacionadas a ele – possam evitar as dificuldades envolvidas em (i) e (ii).
Se, por um lado, Bird lida com o dilema de Armstrong apresentando uma resposta monística à ameaça de regresso infinito, por outro, Ellis o faz argumentando que a Om é consistente com a defesa do caráter metafisicamente necessário das leis. Ellis (2002 172) defende que sua caracterização de propriedades categóricas como estruturas não requer identificá-las como fatores causais efetivos, uma vez que as estruturas definem apenas a configuração e as dimensões nas quais o processo causal ocorrerá. Em outras palavras, as estruturas não participam dos processos causais como causas ativas, mas apenas como suas condições iniciais (e finais). Nesse sentido, a ação causal eficaz é realizada pelos poderes causais, isto é, pelas disposições. Portanto, considerando o desafio de Armstrong em relação à lei da gravitação universal, que resposta poderia ser formulada na linha de raciocínio da Om?
Considerando que a força da atração gravitacional depende da massa dos corpos e da distância entre eles, Ellis poderia responder da seguinte forma: consideremos a massa de um corpo como a tendência de atrair outros corpos massivos com uma força cuja magnitude é definida pela lei do inverso do quadrado das distâncias. Nesse caso, sejam dois corpos A e B, com massas mA e mB; assim, a distância dAB entre eles faria parte da estrutura do arranjo causal. Isso significa que, uma vez fixada a distância entre os corpos, a ação dos poderes causais inerentes aos corpos massivos produziria a força da magnitude correspondente FAB. Obviamente, a magnitude da FAB depende do valor de dAB, mas essa dependência não torna contingente o resultado da ação das disposições. O argumento de Armstrong supõe que, uma vez que a distância seja caracterizada em termos categóricos, a questão sobre como diferentes efeitos surgiriam de diferentes distâncias seria considerada uma questão contingente. No entanto, essa conclusão pressupõe uma concepção de leis como a de Armstrong, na qual as propriedades são limitadas por uma certa relação N que ocorre apenas no mundo atual. No caso do ED, as leis também podem ser descritas como relações entre propriedades, mas serão relações necessárias, devido à forma como é definida a identidade das propriedades disposicionais, como a massa. Por fim, a propriedade de ‘possuir massa’ implica necessariamente que – dada certa distância entre dois corpos – o efeito será uma força de magnitude correspondente.3
Embora Ellis não o mencione, essa caracterização parece considerar a massa como uma disposição multi-track, ou seja, é uma propriedade que atribui uma infinidade de disposições ao seu possuidor. Distâncias diferentes implicariam que poderes causais agissem sob circunstâncias diferentes, mas seus efeitos ainda seriam necessários. Essas considerações são perfeitamente coerentes com a visão de Ellis, porque, segundo ele, apenas os poderes causais são efetivamente operantes nos processos causais, enquanto as propriedades categóricas “[...] determinam as configurações estruturais nas quais os poderes operam” (Ellis 2002 174).
Ao longo desta seção, tentei demonstrar que o dilema de Armstrong pode ser satisfatoriamente respondido pelas duas versões principais do essencialismo disposicional. De fato, a ontologia mista proposta por Ellis consegue sustentar a necessidade metafísica das leis, uma vez que as propriedades categóricas são descritas por ele como estruturas que determinam as condições de ação dos poderes causais. Por outro lado, o monismo disposicional de Bird evita a ameaça de regresso relativa à identidade de poderes puros, transformando o regresso em circularidade não viciosa. Assim, a identidade de uma propriedade é definida a partir da estrutura de relações de que participa. Logo, a escolha entre MD e OM exige o exame de outras vantagens e desvantagens das duas variações de ED, tarefa que adiarei por enquanto. Por ora, estou interessado em abordar outra objeção ao ED, esta de caráter mais geral, que acusa o discurso disposicional de redundância e falta de interesse metafísico e científico.
Enquanto as objeções abordadas acima dizem respeito a aspectos específicos do ED, a acusação de dupla visão metafísica procura minar a plausibilidade do próprio discurso disposicional, considerado por alguns filósofos como um relato redundante, misterioso e opaco (ver Mackie 1977 e Psillos 2006 170) Nesta seção, meu objetivo é fornecer uma resposta a essa objeção.
Para demonstrar a imprecisão das explicações disposicionais, os oponentes do ED costumam mencionar exemplos como a fragilidade do vidro e a famosa virtude indutora do sono do ópio (virtus dormitiva). Obviamente, a afirmação de que ‘o ópio tem a disposição de induzir o sono’ não nos ajuda a entender o mecanismo que o produz e, nesse sentido, provavelmente não seria aceita como uma explicação para determinada manifestação do caráter soporífico do ópio. Da mesma forma, a alegação de que a fragilidade do vidro – ou seja, sua tendência a ser quebrado sob certas condições – é responsável pelo fato de que um copo se partiu após cair no chão não parece particularmente relevante do ponto de vista explicativo. Todavia, é importante observar que a mera ocorrência de um nome vinculado a um determinado caráter disposicional de um objeto não é suficiente para motivar a postulação de uma disposição correspondente (ver Heil 2003 cap. 3). Por exemplo, podemos atribuir o predicado ‘fragilidade’ a objetos distintos em diferentes contextos; no entanto, dificilmente admitiríamos que tal atribuição denota uma disposição irredutível da natureza. Nesse sentido, devemos lembrar que a alegação básica do ED se refere à existência de disposições irredutíveis fundamentais, isto é, no nível das propriedades mais básicas da natureza. Essa visão, portanto, não implica compromisso com supostas propriedades macroscópicas irredutíveis, como ‘fragilidade’ ou ‘tendência a induzir o sono’.
Contudo, filósofos como Mackie afirmam que, em qualquer nível a ser considerado, a postulação de disposições irredutíveis é irrelevante de um ponto de vista explicativo (ver Mackie 1977 368). Ele tenta fundamentar a dispensabilidade das explicações disposicionais a partir da suposição de que as disposições são redutíveis a propriedades categóricas. Para Mackie, a postulação de disposições intrínsecas é o subproduto de um erro chamado dupla visão metafísica:
[…] tais poderes intrínsecos são claramente produtos da dupla visão metafísica: eles são apenas os processos causais que eles deveriam explicar vistos novamente como algo latente nas coisas que participam desses processos. [...] É muito mais razoável supor que elétrons e similares tenham, intrinsecamente, meramente quaisquer propriedades categóricas que possuam, e que, em interação com as características categóricas de outras coisas, gerem o comportamento causal de que as ‘disposições’ ou os ‘poderes’ são uma sombra (Mackie 1977 366).
Assim, em vez de apontar a fragilidade intrínseca dos objetos de vidro como uma explicação para um evento, Mackie acha mais produtivo mencionar a estrutura molecular do objeto em questão. Essa estrutura compõe a base categórica da atribuição da disposição de fragilidade e, portanto, isso seria suficiente para explicar o processo causal resultante. Obviamente, quando não conhecemos a propriedade categórica que gera certo comportamento observado, podemos atribuir provisoriamente uma disposição a um objeto. Suponhamos que não conheçamos a estrutura molecular do ópio, embora notemos que, quando utilizado por seres humanos, é regularmente seguido de sonolência. Nesse caso, Mackie considera legítimo dizer que o ópio tem um ‘poder soporífico’. No entanto, essa atribuição “significa apenas que o ópio possui (alguns de constituintes possuem) algumas propriedades ainda desconhecidas, mas não essencialmente incognoscíveis que, interagindo com os corpos humanos normais, produzem causalmente o sono” (Mackie 1977 368). Portanto, a explicação em termos categóricos e, eventualmente, empíricos, seria a única visão legítima dos processos causais. Adicionar uma explicação com base em disposições supostamente irredutíveis consiste, portanto, em uma segunda visão do mesmo processo e, portanto, trata-se de algo dispensável.
Apesar de ser um argumento interessante, acredito que a objeção de Mackie apresenta pouco perigo para a metafísica disposicional. De fato, a análise proposta por ele tem como suposição implícita o que McKitrick (2005) chama de princípio explicativo forte (SEP), que pode ser formulado da seguinte forma: se houver um conjunto de propriedades categóricas e condições iniciais que explicam um evento específico, então não há função relevante a ser desempenhada pelas disposições. No exemplo mencionado acima, se a estrutura cristalina do vidro e sua queda são a base causal de sua fratura, não faz sentido dizer que a fragilidade desempenha algum papel causal. Como McKitrick aponta: “Como existe uma explicação completa e um conjunto suficiente de propriedades que não incluem fragilidade, a fragilidade é considerada irrelevante” (McKitrick 2005 368). Assim, o argumento pressupõe que existem duas explicações concorrentes: uma categórica e uma disposicional. Dado que ambas devem ser completas, uma delas precisa ser excluída como irrelevante. Portanto, parece que se conseguirmos criticar o SEP, poderemos enfraquecer a objeção da dupla visão metafísica. Pretendo seguir essa direção.
Em primeiro lugar, McKitrick argumenta que as explicações não são fatos brutos, de modo que são dependentes do contexto. Assim, é bem possível que exista uma explicação verdadeira para um evento que não mencione todos os seus fatores causais relevantes, mas apenas alguns. A avaliação da explicação como satisfatória dependerá de fatores contextuais, e isso não implica que as disposições sejam causalmente irrelevantes. Como McKitrick aponta, o SEP não é um critério suficiente para determinar a relevância causal das propriedades, de modo que não pode ser usado como argumento para provar a ineficácia das disposições (McKitrick 2005 360).
Em segundo lugar, vimos que a tese básica do ed é que as propriedades fundamentais da natureza possuem essências disposicionais, isto é, essências que implicam a necessária manifestação de certos comportamentos em determinadas condições. Assim, consideremos um evento e, a manifestação de uma força de repulsão eletrostática entre duas partículas carregadas negativamente. De acordo com o ED, a essência da propriedade de carga negativa implica que, em circunstâncias apropriadas, eventos de tipo e ocorrerão. Portanto, o ED não propõe uma explicação paralela à categórica – como afirma Mackie – de tal modo que o princípio de exclusão não é aplicável nesses casos. Trata-se de uma explicação única, com base em uma caracterização alternativa – isto é, disposicional – de certas propriedades.
Em terceiro lugar, a atribuição de uma disposição a um objeto não se destina apenas a dar conta de eventos retroativamente, mas tem, como sabemos, implicações contrafactuais. Dizer que um objeto possui a disposição D para manifestar a propriedade M sob certas condições implica que, se tais condições forem satisfeitas, o objeto necessariamente manifestará tal propriedade. Mesmo que as disposições tenham uma base categórica, apenas as propriedades categóricas de um objeto não são suficientes para fundamentar tais condicionais contrafactuais. As leis da natureza também são necessárias, e os problemas que envolvem concepções das leis baseadas no monismo categórico me parecem suficientes para demonstrar o fracasso do argumento de Mackie (ver Cani 2018). Logo, a atribuição de disposições não é redundante, como afirma Mackie, uma vez que os contrafactuais decorrentes dessa atribuição não são sustentados apenas pelas propriedades categóricas.
Os defensores dos poderes puros afirmam que o essencialismo disposicional fornece uma descrição satisfatória das propriedades e das leis da natureza. De acordo com essa visão, a identidade de uma propriedade é definida por uma relação essencial entre um estímulo e uma manifestação. Assim, as leis da natureza são metafisicamente necessárias.
Neste artigo, tentei argumentar que o ed consegue lidar com algumas das críticas geralmente direcionadas a essa visão. Com relação à identidade das propriedades, parece-me que as visões monista e mista não podem ser consideradas incoerentes, uma vez que elas superam a dupla visão metafísica e o dilema de Armstrong. Assim, a escolha entre MDe OM depende de quanto peso se coloca no quiditismo. Se alguém considera o quiditismo pouco confiável, como eu considero, deve escolher a concepção monista. Na minha visão, as críticas de Ellis (2001;2002) ao monismo categórico são muito esclarecedoras; entretanto, sua concepção mista acaba sendo vulnerável a objeções semelhantes que geralmente são feitas às abordagens categorialistas. Por isso, não tenho certeza de que sua descrição das propriedades categóricas como estruturas possa afastar o quiditismo completamente. Portanto, considero a ontologia apresentada pelo monismo disposicional como mais promissora.
No que se refere à relação entre propriedades e leis, argumentei que a análise do dilema central aponta que tomar as leis como proposições gera uma visão mais promissora. Embora a análise de superveniência de Bird possua algumas virtudes, ainda não está claro como as leis supervenientes podem permanecer relevantes dentro da estrutura disposicionalista. Portanto, caracterizar leis como proposições baseadas em uma ontologia disposicionalista me parece uma maneira de colocar as coisas onde elas devem estar.
Gostaria de expressar meu agradecimento a Michel Ghins e a Bruno Borge, pelas intensas discussões acerca dos temas tratados aqui e por seus valiosos comentários a uma versão anterior deste trabalho.
https://revistas.unbosque.edu.co/index.php/rcfc/article/view/3234/2801 (pdf)
