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Entre guerras e ruínas: uma política de memória nas cidades
Wanderson Vilton Nunes da Silva; Neuza Guareschi; Simone Maria Hüning
Wanderson Vilton Nunes da Silva; Neuza Guareschi; Simone Maria Hüning
Entre guerras e ruínas: uma política de memória nas cidades
Between Wars and Ruins: A Policy of Memory in Cities
Estudios Avanzados, núm. 35, pp. 83-94, 2021
Universidad de Santiago de Chile
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Resumen: Problematizamos procesos urbanos a partir de las formas en que se borran y olvidan vidas, cuerpos y experiencias en las ciudades brasileñas, considerando el surgimiento de políticas narrativas urbanas. Para ello buscamos, considerando a los autores Walter Benjamin y Michel Foucault, pensar en algunas narrativas de la ciudad como formas de resistencia y emergencia de una lucha que se da a través de la construcción de mapas de sensibilidad y memoria que tensan el silencio y el olvido asociados a violencia y violaciones de derechos en algunos territorios de la ciudad. Utilizamos reportajes, noticias de periódicos y textos en redes sociales como material analítico para pensar y analizar ciertos temas, trazando la fuerza de las narrativas como herramienta para componer una resistencia urbana que vincula a la memoria como un lugar de lucha social. Tenemos que hablar de una máquina de olvido que se da a través de la construcción de una vulnerabilidad que emerge para la formulación de narrativas y registros urbanos de una ciudad mortal para algunas vidas.

Palabras clave: memoria, ciudad, narrativas, urbanización, resistencia.

Resumo: Problematizamos os processos urbanos, a partir dos modos como produzem apagamento e esquecimento de vidas, corpos e experiências nas cidades brasileiras, considerando a emergência de políticas narrativas urbanas. Para isto, buscamos a partir dos autores Walter Benjamin e Michel Foucault, pensar algumas narrativas da cidade como formas de resistência e de emergência de uma luta que ocorre pela via da construção de mapas de sensibilidade e de memória que tensionam o silêncio e esquecimento associado às violências e violações de direitos em alguns territórios das cidades. Recorremos a relatos, notícias de jornais e textos em mídias sociais como material analítico para pensar e analisar algumas questões, remontando a força das narrativas como ferramenta para a composição de uma resistência urbana que atrela à memória lugar de luta social. Dispomos por discorrer sobre uma máquina de esquecimento que ocorre pela via da construção de uma vulnerabilidade que desponta para a formulação de narrativas e registros urbanos de uma cidade mortífera para algumas vidas.

Palavras-chave: memória, cidade, narrativas, urbanização, resistência.

Abstract: This paper aims to problematize the urban processes from the way how they make deletion and forgetfulness of lives, bodies, and experiences in Brazilian cities, seeing the emergence of urban narratives policies. For this, we seek from the contributions of authors as Walter Benjamin and Michel Foucault, to think some urban narratives like resistance and emergence of fighting that happens through the constructions of feeling and memory maps able of stress the silence and forgetfulness associated with violence and violations of rights in some cities’ territories. We resort to relates, news, and social media as analytical material to think and to analyze some questions, going up the power of the narratives like a tool that constitutes an urban resistance associated with social memory. We discuss a forgetfulness’ machine which builds vulnerability emerging to the incidence of urban narratives and records of a deadly city for some lives.

Keywords: memory, city, narratives, urbanization, resistance.

Carátula del artículo

Entre guerras e ruínas: uma política de memória nas cidades

Between Wars and Ruins: A Policy of Memory in Cities

Wanderson Vilton Nunes da Silva
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Neuza Guareschi
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Simone Maria Hüning
Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Brasil
Estudios Avanzados, núm. 35, pp. 83-94, 2021
Universidad de Santiago de Chile

Recepción: 05 Mayo 2021

Aprobación: 20 Noviembre 2021

Entre guerras e ruínas: uma política de memória nas cidades[1]

Resumen

Problematizamos procesos urbanos a partir de las formas en que se borran y olvidan vidas, cuerpos y experiencias en las ciudades brasileñas, considerando el surgimiento de políticas narrativas urbanas. Para ello buscamos, considerando a los autores Walter Benjamin y Michel Foucault, pensar en algunas narrativas de la ciudad como formas de resistencia y emergencia de una lucha que se da a través de la construcción de mapas de sensibilidad y memoria que tensan el silencio y el olvido asociados a violencia y violaciones de derechos en algunos territorios de la ciudad. Utilizamos reportajes, noticias de periódicos y textos en redes sociales como material analítico para pensar y analizar ciertos temas, trazando la fuerza de las narrativas como herramienta para componer una resistencia urbana que vincula a la memoria como un lugar de lucha social. Tenemos que hablar de una máquina de olvido que se da a través de la construcción de una vulnerabilidad que emerge para la formulación de narrativas y registros urbanos de una ciudad mortal para algunas vidas.

Palabras clave: memoria, ciudad, narrativas, urbanización, resistencia.

Nossas cidades tornaram-se um problema de governo em meio a interesses neoliberais de progresso urbano, deixando ruínas e esquecimentos de vidas e de modos de existência como resultado de um processo de formação das cidades. Em uma lógica de mercado, as cidades brasileiras são transformadas em negócio, fazendo com que determinadas vidas e experiências sejam impossíveis, sendo construídas máquinas de esquecimento atreladas aos modos de urbanização contemporâneos. Neste artigo, buscaremos problematizar os processos urbanos, a partir dos modos como produzem apagamento e esquecimento de vidas, corpos e experiências nas cidades brasileiras.

Através de fragmentos, relacionados a relatos de campo — resultantes do acompanhamento de uma equipe de saúde em uma cidade do nordeste brasileiro —, notícias e textos de mídias sociais, fazemos um percurso analítico dos modos pelos quais os processos urbanos têm se articulado com políticas de memórias e de narrativas relacionadas ao progresso. Faremos uma discussão a partir da qual destacaremos a construção de resistência elaborada através de políticas narrativas responsáveis pelo enfrentamento dos modos como construímos cidades e políticas de urbanização.

1. Aportes teórico-metodológicos

Na forma como constituímos a temática da cidade e dos processos urbanos neste artigo, torna-se fundamental retomar o conceito de política para alguns autores contemporâneos. Assim, poderemos confeccionar um modo de pensar cidade e o cuidado que desempenhamos com e na cidade quando tratamos de alguns modos de vida.

Achille Mbembe efetiva uma problemarização do conceito de política. Segundo este autor construímos tal conceito da filosofia clássica, a partir da separação entre razão e desrazão, dispondo a política como um aspecto relacionado ao uso instrumental e pragmático da razão. Para este autor, há diversas críticas a esta concepção na contemporaneidade. Mbembe afirma que a política se relaciona às ampliações de alcances da gestão sobre a vida. Para ele, “a política só pode ser traçada como uma transgressão em espiral, como aquela diferença que desorienta a própria ideia do limite. [...] A política é a diferença colocada em jogo pela violação de um tabu” (Mbembe, 2016: 127).

Ocorreria de modo a transgredir limites hegemonicamente dados, efetivando expansões no pensamento e nas práticas governamentais. Esta operação da política descrita pelo autor pode sustentar-se de modo a construir vida e também morte. Mbembe (2016) se ocupará sobre a forma como a política se constitui como geradora de mortes e de destruição de populações.

Para isto, o autor retoma o conceito de soberania que ocuparia, segundo ele, uma centralidade na forma como a política contemporânea é concebida. Michel Foucault e Giorgio Agamben fazem em suas obras uma crítica à gestão de vida na contemporaneidade. Diferentemente de autores que compreendem a política do lado sistemático da razão em defesa da vida, os autores anteriormente citados, de formas e em épocas diferentes, propõem que a racionalidade política contemporânea mantém o poder de morte como forma política.

A política que estaria ao lado de uma ascensão da vida constitui sofisticadas formas de produzir mortes sem que isso atue como uma infração penal (Agamben, 2010). Para alguns autores, a contemporaneidade é pensada como o tempo histórico que possibilita matar sem que as mortes sejam admitidas como crime: eles sistematizam e mostram a nós uma engrenagem política ocupada em compor motivos plausíveis para matar determinados sujeitos e populações.

Ao admitir que a política é uma guerra continuada por outros meios (Foucault, 1999), Mbembe (2016) afirma que o trabalho da morte é parte integrante da política atual, para a qual a soberania opera na fronteira do corte biopolítico. Nesta direção, o poder de morte soberano se atualiza também como uma forma sofisticada de manifestação de força soberana.

Aquela soberania que atua na fronteira do corte biopolítico através da morte ocorre através de uma espetacularização de seu poder de matar, constituindo aspectos do poder e do trabalho da morte; isto refaz e performatiza elementos que segundo Mbembe constitui e retoma a estrutura soberana dos Estados na modernidade.

Mbembe (2016) pensa a forma como essa máquina de morte estatal contemporânea constituiu-se como elemento da colonialidade. Para este autor, o processo de expansão do capitalismo através da colonização de povos além do atlântico e do sul global, especialmente de África, atualiza-se em nossos Estados nacionais de forma à constituir algumas vidas como menos importantes, processo resultante de assimilação do poder colonial que buscou constituir uma civilização aos moldes eurocêntricos de colonialidade e de poder em nossos territórios. Este autor faz uma retomada histórica da forma como esse poder de morte atua em nossos territórios. O que nos mostrará é a forma como algumas vidas são tomadas como um fardo social que impediria o progresso científico e econômico de nossos territórios políticos; ele chama de máquina de guerra uma tecnologia de poder responsável pela morte de populações de modo sistemático nas colônias desde o ingresso de colonizadores europeus em nossos continentes colonizados. As práticas que descreve em nossa atualidade estão relacionadas a táticas de guerra utilizadas em territórios africanos, relacionadas ao bombardeio de povoados, mas também a formas de racionar recursos de sobrevivência de modo a enfraquecer e matar aos poucos uma dada população através do controle e retirado de água, alimentação, dentre outros.

A partir dessa crítica ao colonialismo e à colonialidade buscamos destacar a forma como, durante séculos, houve a construção sistemática de um trabalho da morte frente a algumas formas de vida (Mbembe, 2016). Tais políticas de morte têm sido responsáveis pela sofisticação de negligência e de armas que se destinam a matar grandes números de pessoas, desempenhando uma função sem precedentes na construção de irresponsabilidades sobre determinadas formas de lidar com corporeidades e vidas.

Assim, estamos delineando que a política contemporânea não somente estaria desempenhando uma função de defesa da vida, mas também de uma zona que constrói e estabelece elementos para a morte de alguns em uma fronteira relacionada ao racismo e a um corte biopolítico que estabelece quem deve viver e quem deve morrer (Foucault, 1999). Deste modo, estamos situados em uma construção política que ao estabelecer vidas e mortes desejáveis, permite a criação de zonas de exceção nos territórios da cidade.

Agamben (2010) ressalta que a política atualmente tem colocado a vida em jogo através de sua suspensão, retomando a figura do soberano como esse elemento de retorno efetivo da negatividade na política. Nesta direção, também estamos situando como a pobreza tem sido administrada em nossas cidades através de uma memória citadina que reforça a periculosidade dela, atribuída e recortada por dimensões territoriais e raciais, reiteradamente incididas por uma discursividade relacionada à criminalidade que justificaria a ação truculenta e violenta do Estado em determinados territórios e com algumas populações, construindo uma sombra de morte sobre tais formas de vida nas cidades.

Nossas cidades têm sido alvo de uma complexa rede capitalista constituindo uma memória política e social relacionada a uma política de esquecimento. Nessa perspectiva, há uma forma cada vez mais incisiva de construir uma cidade que reconecta a morte a alguns espaços urbanos e territórios da cidade. Se por um lado a morte comumente esteve em uma conexão direta com a religião e a teologia, por outro, vemos como a gestão da morte em alguns espaços não somente naturalizam-nas em nossas cidades, como também isentam o Estado de uma relação de responsabilidade, pela vida ou morte nesses territórios urbanos.

Para Reyes Mate, a modernidade acabou construindo uma batalha com a religião para efetivar-se e ganhar espaço no ocidente. O que permitiu à religião e à teologia uma importância para lidar com alguns territórios e especialmente para lidar com a noção de experiência, uma vez que com a filosofia iluminista houve uma redução da experiência ao experimento, deixando as experiências que não coubessem no âmbito do laboratório a cargo dos sentimentos e da literatura (Mate, 2011). Neste sentido, Benjamin (2012) possibilita pensarmos articulações que estão ao lado de uma ciência que retoma a experiência como elemento central para sua elaboração, construindo um fazer científico que se ocupará com as ruínas humanas, pois reconhece nelas um valor teórico. Para estes autores, “o esquecimento ou a morte são componentes da política dos vivos contra os oprimidos. A hermenêutica do passado, sobretudo do passado dado por morto, é um componente fundamental da política dos vivos e, portanto, um instrumento de poder” (Mate, 2011: 68).

Essa maquinaria de guerra que atravessa a produção de mortes nas cidades, bem como essa retomada que alguns autores têm chamado de epistemicídio, conta como alvo com uma memória urbana encerrando alguns territórios em uma lógica de esquecimento e de morte que afastou o Estado historicamente de uma retomada de responsabilidades sobre as vidas e as mortes que acontecem em determinadas zonas urbanas de nossas cidades. A isto, alguns autores como Mbembe (2016) e Agamben (2010) tem se referido no campo teórico como necropolítica e tanatopolítica, respectivamente: uma política que estaria ocupada em uma tecnologia de governo que se instala na negatividade, atuando por uma lógica de morte e de esquecimento sistemática de algumas vidas, rompendo o limite do corte biopolítico de forma desordenada.

Um dos principais elementos benjaminianos que podemos ativar frente a tais processos de injustiças e de uma composição política afinada à guerra urbana, diz respeito à forma como lidamos com a memória através de práticas narrativas que combinam um certo desencantamento e o que ele chama de redenção. Em uma perspectiva benjaminiana, estaríamos atuando de modo a construir uma temporalidade atuada pela forma como construímos justiça através da memória. E tal operação diz também de como mediente a memória construímos uma visibilidade da verdade que tentam tornar esquecidas nos nossos processos urbanos.

O trabalho da memória estaria ao lado de uma construção política e social que reativa caminhos de justiça atrelados às práticas sociais, desativando em certa medida o Direito como elemento único de justiça, e efetuando uma relação direta com os modos de construir visibilidades específicas para que a justiça social possa ocorrer também no campo político e nas práticas urbanas.

O que o fascina no catador é o fato de ele salvar os dejetos, mas não para reciclá-los e devolvê-los outra vez à fatalidade do consumo, mas sim para despertá-los para uma nova vida [...]. Benjamin pensa que o antídoto contra a miséria está nos pobres. Só o excluído pode imaginar um sistema sem exclusões. É assim que ele vê o intelectual. (Mate, 2011: 40)

Temos, portanto, uma construção de um pensamento que reativa alguns elementos da experiência para pensar os modos como o trabalho de pesquisa pode se efetivar, sempre atentos às formas de vida simples e excluídas para a construção de um conhecimento comprometido com a justiça social e determinadas de formas de ser e estar no mundo.

A função da narração para Walter Benjamin (2012) estaria associada às formas como nos engajamos da história contada sobre nós mesmos e do mundo. Através dela podemos construir linhas de fugas e acontecimentos que colocariam em jogo formas de lembrar e de dizer sobre vidas em espaços excluídos de uma linha urbana destinada historicamente ao fracasso e ao esquecimento urbano, atrelado ao progresso tecnológico da modernidade ocidental. Neste sentido, a narração ocorreria de modo a integrar vida aos movimentos de morte, e dejetos resultantes deles, construídos pelas políticas urbanas de morte e de esquecimento. A narração mediante a memória estaria relacionada a integrar, reconduzir e despertar para a vida elementos excluídos por uma concepção política mortífera de nossos processos urbanos.

Tratamos de uma forma política de memória relacionada à construção de uma urbanização que coloca memória, vida e experiência como dispositivos elementares para uma justiça social que integre vida aos fragmentos e ruínas do progresso urbano. Remetemo-nos a cidades que sejam possíveis no encontro com o passado e com o futuro, atuados pela verdade dos excluídos de uma urbanização capitalista e colonial do presente histórico em que vivemos.

Para pensarmos essas disposições, estamos situados em uma determinada forma de pensar subjetividade, mas também em restituir aos discursos as enunciações e os sujeitos que as colocam em circulação nos espaços em que vivem e experienciam o progresso moderno da urbanização neoliberal. Por isso, faz-se necessário pensarmos o lugar do passado na construção de nossos processos urbanos.

O passado traz consigo um índice secreto, que impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que envolveu nossos antepassados? Não existem, nas vozes a que agora damos ouvidos, ecos de vozes que emudeceram? Não tem as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, então existe um encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Então, alguém na terra esteve à nossa espera. Se assim é, foi-nos concedida, como a cada geração anterior à nossa, uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunimente. O materialismo histórico sabe disso. (Benjamin, 2012: 242)

A questão trazida por Benjamin (2012) também pode ser composta pela necessidade de uma política de narrativas que articule passado e futuro no presente vivido; tal construção estaria articulada às formas como edificamos cidades, mas também um elemento histórico de uma memória social que possibilite vida aos elementos excluídos pelo progresso urbano moderno capitalista e colonial. Tratamos de refazer outros caminhos de ação social que compõem possibilidades de urbanização integrativas daqueles que foram produzidos como esquecidos: um expediente que remonte modos afetivos de construir cidades, a partir daqueles que foram tragados pela história urbana de progresso. Esses expedientes narrativos aos quais nos referimos estão associados à forma como construímos encontros felizes com nossa própria história social e coletiva, dizem respeito à forma como habitamos de vida nossos processos urbanos. Nesta construção, estamos articulados aos modos como a habitação e a gestão urbana articula-se à efetividade da vida como experiência e vivência.

Procuramos destacar a construção de espaços de exceção como uma questão a ser enfrentada pelas nossas formas de fazer pesquisa científica. O problema decorre de uma aproximação também com o que estamos chamando de um racismo de Estado que tem se ocupado da construção de linhas que separam e decide quais vidas merecem ser vividas ou não. Tal decisão ancora-se em práticas que operam em uma lógica de racismo científico e em uma construção colonialista que se insere na vida política de nossa contemporaneidade atravessada pelo capitalismo neoliberal, atentas à produção capitalista e à constituição de corpos dóceis e produtivos para o capital financeiro, administrando a vida como uma empresa que admite aqueles e aquelas que devem viver ou morrer em nossas cidades. Lembramos que para Michel Foucault (1999) a morte ocorre de vários modos, não somente através da morte biológica, mas também através do esquecimento, do apagamento subjetivo, entre outras formas de excluir e esquecer. Assim, a memória acaba por constituir-se como um recurso que devolve à vida o que fora removido da convivência política e social.

O uso que fazemos da memória, a partir dessas perspectivas teóricas, atua como um recurso para as pesquisas urbanas que retomam uma determinada maneira de construir uma política que atue como prática social em busca de uma justiça historicamente situada. Como nos articulamos com a política, acaba por demostrar a articulação e o compromisso social com a pluralidade de vidas e a diversidade de existências que podemos acessar ao adentrar em tantos territórios urbanos, possibilitando também a construção de um mundo em que a felicidade e a justiça social possam se efetivar para todos, todas, todes.

Na parte analítica deste artigo partiremos para pensar as formas como temos constituído memória a partir de situações de violências urbanas que acometem diversas formas de ser, estar e existir no mundo. Compreendemos que ao acionarmos uma rotina de práticas científicas que se articulam à política estamos também efetivando um expediente que recoloca na ordem de nossas ciências uma outra forma de lidar com a vida política e social.

Interrogamos sobre o que temos feito com os modos de morrer em nossas cidades, pois compreendemos que a produção dessas mortes está articulada aos processos de urbanização contemporâneos. Ressaltamos a forma como a morte tem sido uma notícia constante para alguns territórios urbanos de nossas cidades marcados pela exclusão e vulnerabilidade social. Estas questões acabam por se articularem às questões que inicialmente colocamos sobre a produção de práticas de extermínio que tem sido frequentes em nossas periferias urbanas, atravessadas pela exposição à fome, à insalubridade e a demais práticas de impedimento à políticas públicas e de promoção de Direitos Humanos, sociais e políticos.

Ressaltamos como as instituições têm efetivado uma forma de pensar a verdade construída por tais sujeitos através de uma ótica que se sustenta na dúvida, incidindo de forma radical sobre como são produzidas verdades e formas verdadeiras de pronunciá-las, desqualificando não somente seus modos de vida, mas também aquilo que produzem como verdade no mundo.

2. Detalhamento metodológico

Entre setembro de 2016 e abril de 2017 acompanhamos duas equipes de saúde que atendem uma cidade do nordeste brasileiro. Tratam de populações em situação de vulnerabilidade social, em situação de rua ou em territórios considerados em condições de risco social. Durante cerca de oito meses, quatro vezes por semana estávamos junto a estas duas equipes com o objetivo de constituir o acompanhamento de suas atividades de modo que pudéssemos seguir suas atividades com estas populações.

Diferentemente de buscar avaliar suas condições de trabalho, interessávamos sobre os modos como produziam relações e projetos de urbanização a partir de suas práticas de intervenção em saúde nessas comunidades. Compreendíamos que seus modos de atuação no campo da saúde e na garantia de direitos ocorria de modo a produzir relações com a cidade e com aquilo que ela produz de vulnerável, buscando minimizar as formas como o progresso urbano tem tocado suas vidas.

A produção de vulnerabilidade era o que nos interessava ao longo desses meses, mas também os modos como essa vulberabilidade produz saberes e conhecimento sobre a cidade, saberes sem os quais torna-se difícil compreendermos e circularmos nas cidades brasileiras.

Durante esse período de acompanhamento das equipes de saúde produzíamos anotações e memória em alguns registros em cadernos de anotações. Tais registros serão objeto de análise no artigo, a partir dos quais faremos um recorte para análise sobre as políticas de memórias na cidade e como temos atrelado isso à maneira com que produzimos processos urbanos e de vulnerabilidade social, considerando como o esquecimento e a morte têm sido frequentes na forma de gerir determinados territórios das cidades.

O território que percorremos é banhado por uma orla lagunar e por uma orla marítima. Impressionamo-nos como um ambiente com tamanhas riquezas naturais seja contrastado com tantas desigualdades sociais, econômicas e políticas, marcado por índices de pobreza extrema. Sendo diversas vezes associado aos piores índices de desenvolvimento do país, estes territórios constituem uma variedade de vidas e de modos de existência, em grande parte nômades; homens, mulheres, homossexuais e transexuais, jovens, crianças, adultos e idosos que pela situação de vulnerabilidade social foram atendidos pelas equipes de saúde que seguíamos.

As equipes que acompanhamos eram formadas por diversas profissões: artistas e músicos, auxiliares de enfermagem e enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicólogos de formação, mas que na equipe não desempenhavam a função por questões contratuais, apoiadores que já haviam vivido em situação de rua e agora trabalhavam como profissionais da equipe, entre outros estudantes de curso de Psicologia em situação de estágio. Tínhamos uma equipe multiprofissional que atuava sobre questões sociais e políticas com planos de ação e de enfrentamento de condições severas de desfiliação social, principalmente em uma das equipes, relacionada ao uso abusivo de álcool e outras drogas.

Ao final de cada ida ao campo, escrevia-se anotações em cadernos de anotações e estes registros eram realizados na forma de narrativas como histórias fragmentadas do campo que acompanhávamos, de modo a preservar um certo sigilo relacionado à identificação das pessoas e dos locais envolvidos. Esta questão era importante para os modos como lidávamos com as questões e as vidas que acompanhávamos devido questões éticas e legais relacionadas às características das situações e territórios que vivenciamos.

Outra forma de definição e seleção de materiais de análise foi o acompanhamento de notícias e artigos em sites de notícias e redes sociais. A partir de webpages de movimentos sociais do país, que tratavam de relatar algumas situações de violações de direitos de populações em situação de vulnerabilidade social, buscamos registrar algumas notas e notícias relativas a isto. Tais registros, também em formas de narrativas e fragmentos, funcionavam como modo de produção de memória dos acontecimentos e como denúncia de situações de violência.

A seguir, buscamos organizar os materiais de análise a partir dos seguintes eixos analíticos: (a) produção de negligência e de vulnerabilidade; (b) esquecimento como modo de urbanização, e (c) políticas narrativas de resistência. Estes eixos serão descritos e formarão material de análise para a problematização dos processos urbanos, a partir dos modos como produzimos políticas de memória nas cidades.

3. Construção de analíticas sobre uma máquina de esquecimento

Os materiais de análise estão organizados a partir de algumas questões que escolhemos para problematizar os processos de urbanização no cotidiano. As questões que organizam os nossos materiais são as seguintes: (a) o que as narrativas produzem e visibilizam sobre as vidas nas cidades; (b) quais são os elementos que constituem essas narrativas, e (c) as rupturas e continuidades que propõem nos processos urbanos. Estas questões são elementos que formariam os processos de urbanização das cidades que acompanhamos. Principalmente aqueles relacionados aos territórios e populações em condições de vulnerabilidade social, constituindo-os como resultado do progresso urbano que desmobiliza vidas e formas de existência, pauperizando-as.

A seguir apresentaremos um quadro com fragmentos dos diários de campo, bem como de narrativas midiáticas compartilhadas por movimentos sociais e também notícias jornalísticas, para visualizarmos aspectos da construção dos três eixos dispostos no item anterior.


Figura 1.
Máquina de esquecimento. Retoma fragmentos de diários de campo e mídias brasileiras Figure 1. Machine of forgetting. Resumes fragments of field diaries and Brazilian media
elaboração própria. Source: own elaboration.

Máquina de esquecimento é o nome que damos a aspectos das políticas de urbanização que para ocorrerem produzem um apagamento subjetivo de vidas, bem como o desaparecimento de corpos em determinados territórios urbanos. Estamos nos referindo às formas como há uma determinada construção de memória associada a alguns sujeitos e populações vulneráveis atravessada pela deslegitimação, mas também por uma desqualificação insistente nas formas de construir o que chamamos de uma memória oficial de nossas cidades. Deste modo, “ainda que a prática de tortura, mesmo se ela ainda for hoje oficialmente condenada, continua de fato a ser tolerada” (Gagnebin, 2015: 5). Jeanne M. Gagnebin remete essa presença de práticas de violência no país a uma determinada forma de construção de memória que produz o esquecimento como uma forma de lidar com nossas violências institucionais no país durante o período de ditadura militar brasileira, no entanto, também não podemos deixar de mencionar o período de escravidão e as consequências que tiveram em nossas políticas urbanas.

Para Safatle (2010), frente a estas construções políticas é necessário assumir uma postura que retome uma memória que visibilize aqueles que não aparecem nos discursos oficiais, sendo importante delinear e nos ocuparmos analiticamente dos modos como são construídas as exclusões e as maquinarias ocupadas em produzir vidas menos legitimas e desqualificadas para existir e narrar, vidas que não seriam dignas de memória.

Por sua parte, para Gagnebin é necessário nos situarmos em uma perspectiva que se permita tensionar “o limite onde o poder político se converte em violência” (Gagnebin, 2015: 8). Estamos situados em uma política narrativa que Gagnebin (2012) afirma como sendo pensada a partir de uma de uma história aberta que seja composta por narrativas que permitam outras articulações e verdades históricas que reinventem o presente a partir do encontro fortuito entre passado e futuro. Tais elementos possibilitam a construção de uma outra temporalidade que requer articulações com possibilidades de justiça social e uma crítica aos nossos modos de construir memória na contemporaneidade. Conforme Da Silva,

Esse desejo de desaparecimento, de relegar ao esquecimento os atos humanos em determinados territórios e com certas populações é o que remete a uma não produção de ações de resistência, à construção sistemática de um não-arquivo que nos faz reproduzir sobre a vida mais violência ultrajada de legitimidade. Ora, se é o arquivo, a memória, a história que nos possibilita a atualização e a possibilidade de ser, de ganharmos existência enquanto sujeitos e objetos do governo humano, como pensar o esquecimento como estratégia política de urbanização destinada a alguns grupos populacionais e modos de vida nas cidades? Por outro lado, como fazer da memória política instrumento de uma outra urbanização? (Da Silva, 2018: 38)

Não buscaremos responder estas perguntas, mas colocamo-las como forma de pensarmos aspectos de uma política de memória que tem produzido nossas cidades no país. Se por um lado temos uma sistemática guerra a determinadas populações pobres, negras e periféricas, de outro lado, também constituímos um caminho de registros e de rememoração das violências como modo de resistência. Este percurso, nem sempre operado pela via do processo legal no Direito, proporciona outros modos de efetivar justiça através de políticas de memórias que incidem sobre os modos de governo e urbanização das nossas cidades.

Na Figura 1 temos descritos alguns discursos presentes nos cadernos de anotações e em matérias nas mídias brasileiras. São discursos que remetem a uma máquina de memória. Tais discursos escolhidos a partir de uma leitura aleatória dos fragmentos compilados permitem-nos constituir os três eixos de análise aos quais nos deteremos e que estão interligados: (a) produção de negligência e de vulnerabilidade; (b) esquecimento como modo de urbanização, e (c) políticas narrativas de resistência (Figura 2).


Figura 2.
Indicando a interligação entre os eixos no modo como produzem políticas narrativas de resistência e de memória de urbanização Figure 2. Indicating the interconnection between the axes in the way they produce narrative policies of resistance and memory of urbanization
elaboração própria. Source: own elaboration.

Na Figura 1 podemos ler discursos como: “Fulano com quem acabamos de conversar fora baleado pela polícia e está morto”; “Seu corpo não tinha nome, nem endereço”; “Este deve ser enterrado como indigente”; “E Ninguém continua morrendo por abandono nas ruas”. Estes discursos ressaltam aspectos de uma produção de vulnerabilidade e de negligência relacionados ao modo como produzimos abandono, indigência, desaparecimentos e um não endereçamento nas práticas com que construímos cidades. Se pensarmos que estas últimas também são constituídas de memórias, estamos produzindo outros modos de relação com os processos urbanos, algo importante nos modos de fazer cidades plurais e que retomem à diversidade como elemento arquitetural dos nossos dias. Assim a negligência e a vulnerabilidade são condições importantes das políticas de esquecimento.

Já em “Um corpo morto sendo posto no porta-malas daquela viatura” e “Piauí tinha medo de ser o próximo, pois ele havia assistido a tudo de perto”, temos aspectos de uma urbanização que ocorre de modo a esquecer, “deixar para lá” violências e violações de direitos que produzimos com algumas vidas. Vejamos fragmento de relato em redes sociais divulgados por movimentos sociais que ressaltam sobre o corpo sendo jogado na viatura:

Ao chegar perto, vê carros de polícia e algo sendo colocado no porta-malas de uma das viaturas, que sai rápido cantando pneu. Chega perto dos policiais e pergunta o que teria acontecido. Uma abordagem com resistência, respondem. Engole seco. Os gritos continuam:

—Assassinos! Assassinos!

Deduziu: era um corpo morto sendo posto no porta-malas daquela viatura. Conclui, tantas mortes ocorrem na cidade justificadas pelos autos de resistência. Haviam matado alguém, pensou. Livraram-se do corpo, recolheram as balas do chão, sem esperar perícia e sem chamar o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), tudo diferente do que pede o protocolo. Cena perfeita. Ao conversar com os moradores da região, percebe que estava certa. (Da Silva, 2018: 86)

Destacamos como esses relatos, ao inscreverem uma lógica de esquecimento e apagamento no modo como constituímos memória dos processos urbanos, constituem também formas de memória e de não-esquecimento dos modos como lidamos com algumas vidas. Dito de outro modo, ao produzirem denúncia, fazem memória como condição de resistência aos processos de urbanização relacionados a uma lógica neoliberal de progresso. Estes são os três eixos analíticos que descreveremos a diante.

Seguiremos para descrever e analisar aspectos da produção de memória de nossas cidades, a partir dos três eixos analíticos apresentados anteriormente.

3.1. Produção de negligência e de vulnerabilidade

Este eixo descreve sobre os modos como as cidades produzem indigência como modo de lidar com algumas vidas. Diferentemente de compreender a indigência como natural da vida urbana, pensamos em colocá-la como resultado de uma política urbana relacionada a modos de produzir cidades e memória social.

Inverno. Em uma noite gélida, morre um homem que vivia em situação de rua, sem sinais de violência, acredita-se que o frio o matou. Hipotermia. Durante o inverno, a frieza matava homens e mulheres, era quando havia escuridão, na dura e sem fim madrugada, em que a luz do sol se retirava. Naquele dia, o prefeito da cidade falava de um zumbi que rondava as ruas, havia trazido o inverno e a morte. As ações do prefeito eram criticadas pela cidade dos vivos por se pautarem em piadas e campanhas de agasalho.

Outros dois morreram nas ruas durante o inverno, o padre dizia: no Instituto Médico Legal não se ouvirá falar de morte por hipotermia, pois hipotermia não é doença — referindo-se com ironia a um artigo publicado em um jornal local, para o qual a causa de morte nesses casos muitas vezes estava ligada ao uso excessivo do álcool pelos moradores de rua para evitar sentir frio. Outra morta, mais uma morte. Essa também morreu de frio. Aquela era uma cidade de muitos prefeitos. Um deles diz que a morta morreu por se recusar a ser atendida por uma equipe da assistência social, no momento da oferta de atendimento perceberam que estava fortemente drogada e alcoolizada. Ele completa dizendo que não é um desejo seu que ninguém morra por abandono, mas que as forças-do-mal insistem no direito de permanecer na rua. Chamou essa insistência de algo perverso. E Ninguém continua morrendo por abandono nas ruas. (Da Silva, 2018: 85)

Nestes momentos em que as variações climáticas e as estações do ano como eventos naturais retomam a cidade impondo a seus habitantes modos de vestir e morar, como maneira de proteger-se do frio, encontramos a força dos discursos que naturalizam eventos climáticos ao abandono nas ruas e às formas periféricas e marginais de habitação. Estes discursos encontram ressonância nos modos como as cidades são produzidas, principalmente através da naturalização ou culpabilização dos sujeitos pela vida que levam. Além das cidades produzirem a pobreza que tentam extirpar, culpabilizam-na pela sua existência. Considerações e modulações de uma máquina de guerra mortífera para algumas populações e territórios das cidades.

O que podemos apontar é que os modos como construímos cidade estão associados a como produzimos territórios e memória, aspectos relacionados à vulnerabilização de vidas e às formas de urbanização que atuam trazendo um progresso urbano que desorienta e esquece vidas.

Estes elementos encontram-se de modo a articular e propor aqueles que devem viver e aqueles que devem ser esquecidos, vivos ou mortos, tornando-os parte de uma história de fracasso e negligência. A naturalização dos processos de pauperização e negligência em nossas cidades efetivam-se produzindo a indigência como justificativa de remoção e apagamentos de vidas e de corpos. Esses processos urbanos permitem que vidas sejam tragadas e esquecidas por aspectos de um progresso neoliberal iniciado através da naturalização das desigualdades sociais.

3.2. Esquecimento como modo de urbanização

A urbanização de nossas cidades associa-se a processos de memória que retomam o esquecimento como alternativa recorrente no tratamento dispensado a habitantes de determinados territórios, vidas aparentemente dispensadas dos processos formais de garantias de direito. Em determinados momentos, esse processo de esquecimento na organização urbana ocorre pela atuação da força repressora do Estado. Na Figura 1, que apresentamos anteriormente, lemos os seguintes trechos de matérias de jornais e relatos em mídias sociais: “Piauí tinha medo de ser o próximo, pois ele havia assistido a tudo de perto; e um corpo morto sendo posto no porta-malas daquela viatura”.

Esses trechos referem a um assassinato de um morador de rua na cidade de São Paulo. Relato veiculado nas mídias sociais, efetivado por uma jornalista e compartilhado por coletivos e movimentos sociais nas redes de relacionamento. O primeiro trecho descrito remonta o medo que Piauí, amigo do rapaz assassinado, tinha de ser também assassinado devido ter sido testemunha do crime, que segundo o relato, fora efetivado por policiais.

No segundo trecho há uma referência ao que a jornalista viu logo que saiu de casa para ir ao supermercado. Havia um barulho nas ruas, policiais e viaturas. Logo avista um corpo sendo jogado na viatura e esse é o mote narrativo para o relato dela nas redes sociais. Bem como para uma série de mobilizações que buscavam ir de encontro a um determinado modo de silenciar, encobrir e esquecer a vida de alguém que morava nas ruas.

Também queremos demarcar que o que chamamos de processos urbanos diz respeito aos modos como produzimos cidades e cidadanias para determinadas vidas que circulam e habitam certos territórios construídos como vulneráveis. É a partir de uma política de esquecimento, engendrada em práticas e ações do Estado e de outros cidadãos, que podemos assinalar a produção de cidades e de esquecimento como máquina de urbanização que toca e marca determinadas vidas.

Ainda que de modo paradigmático, o medo de Piauí em ser o próximo corpo assassinado e aquele cadáver sendo posto no porta-malas de uma viatura com o objetivo de apagar o crime, evitando a produção de uma memória social e política dessas práticas de violação de direitos, funcionam como aspectos exemplares de uma máquina de esquecimento que não cessa em apagar, matar, desfazer e descartar vidas e memória de práticas que violam direitos em determinados territórios da cidade. Tais práticas efetivam o que chamamos de esquecimento pela via de uma construção criminal da situação de rua, fazendo com que determinadas práticas sejam perpetuadas e legitimadas pela via do extermínio, em uma política de higienismo social e racismo de Estado, direcionada a determinadas populações e territórios urbanos.

Do ponto de vista da história brasileira, podemos retomar como a memória dos corpos e das vidas negras, pobres e periféricas são historicamente acessadas por estas políticas de esquecimento no país. Os processos urbanos brasileiros têm ocorrido de modo a empurrar e remover estas formas de vida para as margens das cidades, construindo territórios pauperizados e vulnerabilizados pela ineficiência das forças de garantias de direito, exceto por aquelas forças e instituições repressivas que controlam, além de tudo, sua circulação e permanência nas cidades. Basta retomar a história dos grandes centros urbanos e o longo processo de escravidão que o país passou, aspectos que levaram da senzala às favelas uma série de pessoas nas cidades brasileiras.

3.3. Políticas narrativas de resistência

As questões que apontamos anteriormente marcam, além de uma violência institucional, aspectos de uma política narrativa que incide sobre a memória de nossas cidades. Com práticas e ações anteriormente tomadas como não pronunciáveis e inviáveis em termos da constituição de um registro político, social e mesmo jurídico, torna-se fundamental aos nossos atuais modos de produção de cidades.

As redes sociais e as mídias têm sido transformadas em ferramentas de registro e de produção de um não-esquecimento de práticas de violação de direitos que acometem determinadas populações. Elas demarcam a confecção de uma memória urbana que guia nossas práticas cotidianas; com isso temos visto a produção de forças de resistência através das narrativas urbanas. Não de todo, essas mídias são elementos que performam não somente estes tipos de narrativas. Também é comum a manifestação e reprodução de discursos que retomam o racismo de Estado, sobressaltados com sentimentos de ódio e de medo que produzem seus efeitos nos modos de construção de nossas cidades.

No entanto, as narrativas, que emergem para o enfrentamento de uma cidade cada vez mais excludente, têm ocorrido de forma a produzir resistência cotidiana das violações de direito não somente pela via jurídica, mas pela formação narrativa e discursiva que circula nas cidades. Desta maneira, a partir de ferramentas políticas buscam formular e disparar ações, práticas e afetos, com os quais interroga-se, pela produção de uma cidade, em que seja possível viver não somente através da afirmação de uma identidade, como também pela diferença e pelos modos como tais narrativas são necessárias para a produção de um outro mapa de visibilidades de nossas cidades.

Em nossa máquina de esquecimento formulada a partir de fragmentos narrativos na Figura 1, podemos ler “Relata tudo nas redes sociais. Ouve gritos perto de um viaduto...” e “Não deixar que as mortes de Ricardos e de Piauís sejam em vão”: estes escritos formulam narrativas para as quais o esquecimento deve ser desativado. Eles retomam a escrita como campo de luta e fazem das palavras ferramentas que produzem sensibilidade, além de práticas efetivas de enfrentamento dessas situações. As narrativas de resistência configuram políticas de visibilidades com as quais uma outra urbanização torna-se possível. Tais narrativas formulam condições de outras possibilidades, não somente aquelas restritas ao campo da lei, como também a estetização dos afetos que coincidem com a formulação de políticas de governo de nossas cidades.

Tais políticas narrativas de resistência criam visibilidades e afetos por trazerem a experiência como coletiva, histórica e não-anônima: os números que resultam em políticas públicas ganham vida, nomes e contexto. Essas narrativas pluralizadas tornam-se ferramentas de memória urbana ao configurarem mapas afetivos de nossas cidades; tornam a linguagem objetiva das estatísticas, elementos políticos da experiência e da vida urbana, construindo outras zonas de possibilidades não restritas ao campo jurídico, mas ampliada para a lida cotidiana dos coletivos sociais e dos sem nome de nossas cidades.

A pluralidade narrativa também nos coloca no plano da verdade e naquilo que seria assentado pelo afastamento do engano e de toda uma teratologia que assombra os discursos competentes. Podemos ressaltar aqui a relevância das ficções e das narrativas como elementos que nos auxiliam a pensar o mundo em que habitamos. Neste sentido, não estamos afirmando nem a ficção como descomprometida com a verdade, nem tão pouco a busca e a proliferação de mentiras como relevante nas formulações de nossas cidades. O que estamos afirmando é que no plano da linguagem, as narrativas, numéricas ou não, recaem sob a produção de engano, por isso para as estatísticas estão as noções de proporção, porcentagem, taxas de erro, entre outros. Uma vez inseridos no campo narrativo estamos sob um campo que performa verdades. Cada tipo de narrativa, seja numérica, cientifica, ficcional, literária, ou outras, faz e submete-se às regras de seu círculo discursivo, sendo em seu jogo narrativo remetida ao que é possível e tomado como legítimo e verdadeiro (Foucault, 2001).

Estas narrativas, científicas ou não, cada uma a seu modo; efetivam condições de possibilidades para a emergência de naturalizações, estranhamentos e/ou guerrilhas, a partir das quais é possível formular outros cenários de intervenção política e social. Sem a referência à evidência numérica e dos fatos, tantas vezes reclamadas pela lei e por uma linguagem que busca afastar enganos, as narrativas dos cidadãos retomadas nesse artigo produzem afetações e condições para uma cidade em que seja possível a memória, a luta e a vida de tantos. Ao lembrar, tomando a memória como elemento político, tais narrativas criam um campo seguro para formulação de vida e de políticas de vida nos territórios urbanos construídos como vulneráveis.

4. Considerações finais

Ao longo deste artigo, pudemos visualizar aspectos de uma construção narrativa que tomam as cidades como espaço de produção de uma memória social, a partir de registros em textos, bem como a produção de vulnerabilidade, integrando um jogo de urbanização presente na forma com que produzimos morte e apagamento de algumas formas de vida nas cidades brasileiras.

Para além destes elementos, pudemos vislumbrar aspectos de uma produção de resistência que toma a narração, a experiência e a proposição ficcional e literária como aspecto de enfrentamento de uma objetividade sobre vidas em territórios vulneráveis. Deste modo, a vulnerabilidade é efetiva em meio a ruínas e uma guerra direcionada aos corpos negros, pobres e periféricos em condições de problematização do nosso presente histórico. Aquilo que seria esquecido e negligenciado na produção do urbano, cada vez mais tem aparecido como aspecto relevante para a produção de conhecimento e problematizações de nossas práticas nas cidades.

As narrativas e políticas de memórias em nossas cidades, principalmente aquelas efetivadas em condições de vulnerabilidade de territórios e de algumas vidas marginalizadas, formulam condições de transformações urbanas especificadas pela produção de afetos e sensibilidades insistentes nos modos como tornam presentes aspectos históricos e sociais que a capacidade humana de contar, narrar e experienciar.

A proliferação de condições de fala e registro de experiências e de vidas vulnerabilizadas pelo progresso urbano, inscrito em uma lógica neoliberal, traz condições de enfrentamento histórico dos processos de urbanização mortíferos de nossas cidades. A resistência está associada aqui a um campo de fala e de narrativas que operam outro expediente de justiça, não restrito ao Direito, mas a uma memória social capaz de exercitar através da literatura e da ficção outras condições de urbanização para nossas cidades.

Estes expedientes correspondem a uma política narrativa de resistência que visibiliza e afeta ao dar nome aos números e às objetividades das narrativas científicas e estatísticas que produzimos sobre estas populações. Tais recursos narrativos possibilitam rememorar e desestabilizar o processo urbano neoliberal através da experiência.

Material suplementario
Bibliografia
Agamben, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2da. edição. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais.
Benjamin, W. (2012). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8va edição. São Paulo, Brasiliense.
Da Silva, WVN. (2018). Territórios vulneráveis: arquivos impróprios de uma memória em perigo. Tese de doutorado. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Foucault, M. (2001). A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 7ma. edição. São Paulo, Loyola.
____. (1999). Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo, Martins Fontes.
Gagnebin, JM. (2015). “Walter Benjamin – ‘Esquecer o passado?’”. Em Jordão Machado, CE.; Machado R.Jr. e Vedda, M. (orgs.). Walter Benjamin: experiências históricas e imagens dialéticas. São Paulo, Unesp.
____. (2012). “Prefácio: Walter Benjamin ou a história aberta”. Em Benjamin, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8va. edição. São Paulo, Brasiliense.
Mate, R. (2011). Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “Sobre o conceito de história”. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo, UNISINOS.
Mbembe, A. (2016). “Necropolítica”. Arte & Ensaios, Revista do PPGAV/EBA/UFRJ 32: 123-151.
Safatle, V. (2010). “Do uso da violência contra o Estado Ilegal”. Em Teles, E. e Safatle, V. (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo, Boitempo.
Notas
Notas
1 Este artigo é resultado de tese de doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, defendida pelo primeiro autor deste artigo junto ao trabalho de orientação das coautoras. Para sua efetivação houve bolsa da CAPES. A tese encontra-se na base de teses da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com o título Territórios Vulneráveis: arquivos impróprios de uma memória em perigo, constando sua referência completa na seção destinada a isso neste artigo.
2 Wanderson Vilton Nunes da Silva: Universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE, Brasil, ORCID 0000-0003-2396-9933, wandersonvilton@gmail.com; Neuza Guareschi: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil, ORCID 0000-0001-5892-188X, nmguares@gmail.com; Simone Maria Hüning: Universidade Federal de Alagoas, Maceió-AL, Brasil, ORCID 0000-0001-8080-7733, simone.huning@ip.ufal.br

Figura 1.
Máquina de esquecimento. Retoma fragmentos de diários de campo e mídias brasileiras Figure 1. Machine of forgetting. Resumes fragments of field diaries and Brazilian media
elaboração própria. Source: own elaboration.

Figura 2.
Indicando a interligação entre os eixos no modo como produzem políticas narrativas de resistência e de memória de urbanização Figure 2. Indicating the interconnection between the axes in the way they produce narrative policies of resistance and memory of urbanization
elaboração própria. Source: own elaboration.
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