ECONOMIA SOLIDÁRIA COMO AÇÃO CULTURAL PARA A LIBERDADE

SOLIDARY ECONOMY AS A CULTURAL ACTION FOR FREEDOM

Carolina Machado Saraiva
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Brasil
Lilian Cristina Gonzaga
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Brasil
Amanda Maria Gonçalves
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Brasil

ECONOMIA SOLIDÁRIA COMO AÇÃO CULTURAL PARA A LIBERDADE

Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, vol. 12, núm. 3, pp. 16-29, 2018

Universidade Federal Fluminense

Recepción: 09 Mayo 2018

Aprobación: 17 Agosto 2018

Resumo: Propomos neste artigo o uso das diretrizes de formação crítica de Paulo Freire sobre a educação popular para as pesquisas críticas em Administração. A escolha por Paulo Freire, um pedagogo crítico, se justifica pelo entendimento de que a consciência crítica é o ponto de clivagem para a consolidação de projetos de economia solidária de forma orgânica. Para compreender a potência da formação crítica, foi realizada uma sessão de bricolagem com artesãs dos projetos de economia solidária já desenvolvidos pela equipe deste artigo, em um distrito próximo a uma IFES. A bricolagem foi conduzida através dos esquemas interpretativos que criamos, com base na teoria freireana. Esses esquemas interpretativos têm como proposta balizar projetos críticos na área de administração. Através da técnica de bricolagem, com o uso dos preceitos críticos de Freire, percebemos como as artesãs se empoderaram, entendendo-se como sujeitos ativos no processo de construção de suas associações, tomando para si as questões referentes aos dilemas por elas enfrentados no dia-a-dia da gestão. Assim é que se constitui uma ação cultural para a libertação.

Palavras-chave: Bricolagem, Paulo Freire, Metodologia Crítica, Método.

Abstract: We propose in this article the use of critical training guidelines of Paulo Freire on the popular education on solidarity economy. The choice by Paulo Freire, a critical educator, is justified by the understanding that the critical conscience is the point of cleavage for the consolidation of solidarity economy projects of organic form. To understand the power of critical training, a DIY session with artisans of the solidarity economy projects already developed by the team of this article, in a district next to an IFES. Through the technique of bricolage, using the precepts of Freire, critics perceive as the artisans empowered themselves, it being understood as active subjects in the process of construction of their associations, taking for themselves the issues pertaining to the dilemmas for them faced in day-to-day management. That is a cultural action for liberation.

Keywords: Bricolage, Paulo Freire, Solidarity Economy, Criticism.

Introdução

A economia solidária surge como uma reação às injustiças praticadas pelo desenvolvimento capitalista a partir do final do século XIX, início do século XX (SINGER, 2004). Suas principais características são: solidariedade; coletividade, autogestão, tomadas de decisões coletivas e a distribuição equitativas de renda e de capital (CALBINO, 2013).

A proposta da economia solidária, no entanto, não é tão facilmente aplicável sob a lógica de um mercado capitalista. Autores do campo relatam problemas da ordem estrutural, problemas de valores individualistas x solidários, problemas gerenciais, problemas políticos, naturalização da opressão e sequestro do imaginário (PAULA et. al.,2011). Assim como indicado pela literatura, encontramos em campo as mesmas limitações. Tal foi presente, por exemplo, no desenvolvimento de diversos projetos de economia solidária em comunidades no entorno de um Instituto Federal de Ensino Superior -IFES. Nessas experiências, deparamo- nos, por exemplo, com problemas estruturais como a divisão hierárquica no processo de trabalho, problemas gerenciais como a complexidade da gestão da associação como um modelo autogestionário e não heterogestionária e problemas de valores individualistas x solidários, em que muitas vezes, os interesses pessoais foram colocados à frente dos interesses coletivos.

Na nossa experiência em campo, sempre nos questionamos sobre o que poderia ser feito para vencer o “estilo capitalista de gestão”, enraizado nos projetos de economia solidária. O que poderia ser feito para que a lógica cooperativista pudesse ser a tônica, estabelecendo-se formas democráticas e solidárias de gestão? Por mais que nos esforçássemos, percebíamos que a ênfase nas técnicas de gestão participativas não era suficiente para a construção dessa nova forma de organização do trabalho. Assim, resolvemos dar “um passo atrás”, voltar aos livros e entender a formação crítica. Após estudarmos as obras de Freire, valemo-nos do livro “Ação Cultural para a Liberdades e outros escritos” como a base para a construção de uma nova abordagem para a condução de projetos de economia solidária. Este livro não é icônico do autor, assim como o é o “Pedagogia do Oprimido”, mas vimos nele a discussão sobre as experiências na construção, com o povo, de formas críticas de estruturação social. Bingo! Tal é o que precisávamos!

Este artigo tem por objetivo descrever nossa experiência em campo com três associações de mulheres em um distrito próximo à uma IFES, no uso dos ensinamentos de Paulo Freire sobre a formação crítica em projetos de economia solidária. Tais experiências revelaram a potente associação entre a pedagogia crítica e a economia solidária, catalisando os preceitos de coletividade, empoderamento e criticidade. Em resumo, o que as experiências em campo trouxeram foram as construções orgânicas do ser mais de Freire.

As contribuições que esperamos trazer para o campo da Administração é a problematização da lógica reprodutivista e do mito do progresso, através da inclusão da formação crítica freireana como base para projetos de economia solidária. Com essa associação (consciência crítica + economia solidária) acreditamos ser possível criarem- se as bases para a consciência sobre a coletividade e as limitações estruturais do funcionamento de uma iniciativa solidária em meio à lógica capitalista. A consciência crítica não será um produto deste estudo. Ela emergirá no processo do trabalho desenvolvido, de forma dialética, à medida que as interações acerca da economia solidária forem sendo estabelecidas com o grupo e pelo grupo (nunca sobre o grupo!). A criticidade será construída pelos participantes à medida que, na condução do processo da economia solidária, as pessoas forem enfrentando as dificuldades, contradições e espaços emancipatórios encontrados, estabelecendo entre si uma relação de respeito, humildade e solidariedade. Assim é que se constitui uma ação cultural para a libertação.

Economia Solidária

A economia solidária surge a partir do final do século XIX início do século XX, com a consolidação do modelo capitalista, anunciando-se uma sociedade de produção e consumo em massa. Segundo Carvalho e Pires (2001) nesse período houve a implantação de produção fabril, em que foram criadas inovações técnicas e organizacionais articuladas, em que a principal finalidade era a produção e o consumo em larga escala. Os autores salientam que essas inovações têm como base o taylorismo/fordismo no nível de gestão de trabalho, introduzindo de maneira definitiva a separação entre sua concepção e execução. A execução é entendida como o trabalho fragmentado, em que o operário executa sob uma rígida disciplina a mesma tarefa, a qual não lhe exige praticamente nenhuma qualificação. Já o trabalho de concepção exige alta qualificação, não sendo realizado no chão de fábrica, resumindo-se à administração, programação, manutenção e configuração do produto a ser vendido. Encontra-se agora um sistema rigoroso e padronizado, que controla e estabelece hierarquias entre os membros pertencentes à organização, resultado dessa nova configuração de trabalho.

Singer (2004) ao caracterizar o desenvolvimento capitalista relata que sua base é a propriedade privada do capital, em que grande parte do povo trabalhador está excluída, pois se não estivessem, talvez não se submetessem à condição de ter que trabalhar como assalariado ou, pior, permanecer desempregado. Singer (2004) ainda ressalta que o modo de produção capitalista divide a sociedade em duas classes opostas: os proprietários e os seus empregados, sendo que os proprietários são detentores do poder e comandam as ações em suas empresas, conduzindo-as de acordo com seus interesses. As decisões sobre as organizações capitalistas sempre objetivam o lucro, ou seja, a busca pela maximização do capital investido.

Esse panorama nos revela o surgimento de uma dependência e submissão dos empregados ao patrão, pois, diferentemente do desenvolvimento e emprego que anunciava o modelo capitalista, o resultado foi a produção do desemprego e empresas falidas (CARVALHO; PIRES, 2001). Como afirma Singer (2004), o desenvolvimento capitalista não é para todos. Os consumidores irão se beneficiar desse modelo a partir do momento que desejam a produção de novos produtos e serviços que satisfaçam suas necessidades sejam elas reais ou fictícias. Obviamente a maioria dos bens e serviços preexistentes possui baixo custo graças ao aumento da produtividade do trabalho. Mas, Singer (2004) ressalta que o desenvolvimento capitalista é seletivo, tanto social como geograficamente, pois parte dos trabalhadores perdem suas qualificações e seus empregos, e acabam por serem lançados à miséria. Ademais, o desenvolvimento ocorre em certos países e em outros não, também em certas áreas dentro do país e não em outras. Assim, os moradores que são das áreas que se desenvolveram são beneficiados e, em contrapartida, os que estão fora desse círculo são prejudicados.

Nesse cenário, a economia solidária surge historicamente como reação às injustiças praticadas pelos que impulsionam o desenvolvimento capitalista. (SINGER, 2004). Os projetos que perpassam pela economia solidária buscam valores de solidariedade; se condensam no coletivo; se estruturam em um modelo autogestionário, suas estratégias de produção são voltadas para a necessidade; as tomadas de decisões são coletivas; e a distribuição de renda e de capital são equitativas (CALBINO,2013). Propósito que se diferencia do modelo capitalista, que é caracterizado como heterogestionário, se condensa no individualismo, busca a maximização do lucro e a produção em grande escala.

Um exemplo relativo às dificuldades de projetos de economia solidária sob a lógica de um mercado capitalista é ressaltado no trabalho Paes de Paula et. al. em que destacam as principais incoerências e ambiguidades que a economia solidária apresenta:

a) Problemas estruturais: divisão do trabalho, constituição de hierarquias, jornadas que excedem o tempo convencional, formação de quadros administrativos, decisões centralizadas nos “mais experientes”;

b) Problemas de valores individualistas x solidários: a permanência do individualismo nas atitudes, nas distribuições de sobras e de tarefas; o desinteresse por participar das decisões;

c) Problemas gerenciais: dificuldade de re-significar o conhecimento ou ouso da técnica para o novo contexto autogestionário; com isso, em busca da eficiência, se reproduzem instrumentos técnicos para a coordenação da cooperativa;

d) Problemas políticos: ausência de fomento ou debate sobre valores da Economia Solidária, cooperativismo, associativismo, alienação, relações de poder no trabalho, bem como propostas de articulação de contraponto ao capitalismo;

e) Naturalização da opressão: a permanência e reprodução do discurso deque a sociedade sempre se estruturou de maneira hierárquica, e que o fato de haver desigualdade na distribuição de rendas e tomadas de decisão é pela falta de capacitação e conhecimento do indivíduo;

f) Seqüestro do imaginário: a impossibilidade de se pensar em algo que transcenda o sistema capitalista, visto que se acredita que ele é “dominante” e o sujeito não tem voz, nem vez. Nega-se, com isto, a possibilidade de se criar utopias (PAES de PAULA et. al., 2011, p.329).

Entretanto, diante desse panorama, os estudos sobre economia solidária no Brasil centram-se mais em descrever e explicar os problemas presentes na mesma ao invés de proporcionar ações para saná-los (CALBINO, 2013).

Paulo Freire

Paulo Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921, em Recife, Pernambuco, aprendeu a ler com a orientação de sua mãe utilizando gravetos das mangueiras no chão do quintal onde nasceu (FREIRE, A., 1996). Quando completou 10 anos, mudou-se para Jaboatão uma cidade a 18 quilômetros de Recife (FREIRE, A.,1996). Em Jaboatão, Paulo Freire concluiu a escola primária e posteriormente completou o ginasial no Colégio 14 de Julho, em seguida ingressou no Colégio Oswaldo Cruz para cursar o fundamental e pré-jurídico. Aos 22 anos Paulo Freire entrou para faculdade e graduou-se pela Faculdade de Direito de Recife, fez esta opção por ser o curso que se oferecia dentro da área de Ciências Humanas, pois na época não havia em Pernambuco curso superior de formação de educador (FREIRE, A., 1996).

Paulo Freire foi um dos grandes nomes da educação e da pedagogia crítica. Em sua trajetória, adotou a utilização da prática no processo de aprendizagem, ao contrário do que pregava a educação bancária e técnica. A pedagogia freireana é síntese da teorização implícita na prática de Educação Popular. Ela traz a consideração do conhecimento como possibilidade de superação de relações verticais contraditórias e de modelos mecanicistas de análise da realidade social e implantação de novas propostas que indiquem esperança e a necessidade de mudança (MACIEL, K. F. 2001, p. 337).

Freire é autor de incontáveis obras, alguns exemplos são Educação como prática da liberdade (1967), Pedagogia do oprimido (1968), Cartas à Guiné-Bissau (1975), Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos (1981) e Pedagogia da esperança (1992).

Dentre as inúmeras obras freireanas, escolhemos a “Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos” (1981) para o desenvolvimento deste artigo. Esta obra é a junção de alguns textos que Freire escreveu entre 1968 e 1974, com o objetivo de proporcionar discussões e reflexões sobre a educação crítica. Freire não baseava seu método de ensino em uma forma engessada, um modelo único e fechado, mas avaliava as necessidades dos envolvidos e o processo educacional a partir da práxis.

A educação de Paulo Freire era uma educação social, no qual o foco era a necessidade do aluno, além do próprio aluno se conhecer e conhecer os problemas sociais que o cercam. A educação não era vista por Freire como um meio para dominar os padrões acadêmicos de escolarização ou para profissionalizar-se. O foco era a necessidade de se estimular o povo a participar do seu processo de aprendizagem como um todo engajando-se no todo social (FREIRE, A., 1996).

Segundo Moacir Gadotti (1996), na década de 1950, pensava-se em uma educação de adultos como uma forma de reposição dos conteúdos, mas Paulo Freire propunha uma pedagogia específica, em que ele interligava experiência de vida, trabalho, pedagogia e política. Freire entendia que a aprendizagem não é algo à parte da vida social de cada indivíduo, mas sim toda a experiência por ele vivida também tem ligação direta com o processo de aprendizagem.

A experiência percebida por Freire como um pedagogo das classes oprimidas fazia com que seus ensinamentos partissem do saber, da linguagem e da necessidade popular, respeitando o concreto e as limitações deles. Ademais, apresentava uma proposta de superação deste mundo em que o oprimido se encontrava apontando para um mundo de possibilidades (FREIRE, A., 1996).

Mas, como Freire executava essas ideias? Primeiramente as atividades de alfabetização necessitavam do “universo vocabular mínimo”, ou seja, à partir de uma interação com o grupo que participa do processo de alfabetização ou como Freire chamava “círculo de cultura” extraíam-se dele as palavras geradoras. Essas palavras geradoras, além da riqueza fonêmica e sua ordenação de dificuldades fonéticas das menores para as maiores, estavam no contexto das vidas dos alfabetizandos e da linguagem local (FREIRE, A., 1996).

Nesse processo ocorre a decodificação da palavra escrita e posteriormente apresenta-se a decodificação da situação existencial codificada (FREIRE, A., 1996). A primeira parte desse processo consiste na compreensão das sílabas e a capacidade de formar as palavras. O “método” não desobedece às normas metodológica e linguísticas, apenas vai além dessas regras, ao desafiar o homem e a mulher que se alfabetizam a apossarem-se do código escrito, tendo assim uma visão de totalidade não só da linguagem, mas do mundo (FREIRE, A., 1996). Mas, como isso é feito?

Após o processo de conhecimento das sílabas, os sons e formação das palavras, palavras essas que fazem parte do universo do alfabetizando, há então o processo de decodificação da situação existencial codificada. A palavra geradora utilizada é tijolo e seu contexto apresentado é de um grupo que se encontra em Brasília, nos anos 1960, cuja situação concreta representada é de homens trabalhando em uma construção. Os participantes do grupo ou “círculo de cultura” partem para o processo de diálogo sobre o objeto que se pretende conhecer e sobre a representação da realidade a ser decodificada. Nesse processo o coordenador do grupo levanta questões sobre o tema fazendo surgir debates que possibilitam uma reinterpretação do mundo em que os participantes do grupo vivem. (FREIRE, 1996).

Brandão descreve o “método” e os questionamentos em torno da palavra geradora salário, esse relato retratado por ele, foi extraído das experiências ocorridas no nordeste do Brasil, em 1961, em Mossoró e Angicos.

“Palavra geradora: salário

Idéias para discussão:

• a valorização do trabalho e a recompensa.

• finalidade do salário: manutenção do trabalhador e de sua família.

• o horário do trabalho segundo a lei.

• o salário mínimo e o salário justo.

• repouso semanal — férias — décimo terceiro mês.

Finalidades da conversa:

• levar o grupo a discutir sobre a situação do salário dos camponeses.

• discutir o porquê dessa situação.

• discutir com o pessoal sobre o valor e a recompensa do trabalho.

• despertar no grupo o interesse de conhecer as leis do salário.

• levar o grupo a descobrir o dever que cada um tem de exigir o salário justo.

Encaminhamento da conversa:

• o que é que vocês estão vendo neste quadro?

• como é que está a situação do salário dos camponeses? por quê?

• o que é o salário?

• como deve ser o salário? por quê?

• o que é que a gente sabe das leis sobre o salário?

• o que podemos fazer pra conseguir um salário justo?”(BRANDÃO, s\d, s\p)

Foi a partir dessa prática que Freire criou o “método”, que se tornaria conhecido no mundo, tendo como princípio que o processo educacional deva ser a partir da realidade que cerca o educando. Ou seja, não basta saber ler “Eva viu a uva”, como menciona Paulo Freire, é preciso entender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem são as pessoas que produzem a uva e quem lucra com esse trabalho (GADOTTI, 1996).

Ação Cultural Para a Liberdade e Outros Escritos

A obra Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos (1981) de Paulo Freire apresenta uma proposta de alfabetização para adultos, com intuito não apenas linguístico (o aprender a ler e escrever), mas uma alfabetização política, em que o indivíduo possa se posicionar sobre o mundo e problematizar a sua realidade.

Freire é contrário ao que ele costuma chamar de “educação bancária” por justamente não proporcionar ao educando a oportunidade de problematizar a sua realidade. Para ele, essa forma de “ensinar” acaba por ser um simples ato de depositar palavras e letras nos alfabetizandos, como se eles fossem vasilhas vazias que precisam ser preenchidas com o conhecimento que só o educador possui. Na educação bancária, utilizam-se textos e palavras que não têm relação com a experiência de vida dos alfabetizandos contribuindo para uma alienação que não incentiva em nada o processo de transformação de uma realidade opressora. Há um trecho que pode exemplificar tal situação em que o autor faz uma crítica sobre qual a significação que o texto característico de uma “educação bancária” pode ter para a realidade dos camponeses. Textos que ilustram casinhas simpáticas, acolhedoras, casais risonhos, que costumam ser brancos e louros, crianças saudáveis se despedindo dos pais para irem à escola, depois de um maravilhoso café da manhã (FREIRE, 1981).

A consequência disso é o reforço do silêncio dessas pessoas e a manutenção do status quo da classe dominante, em que o propósito dessa forma de “ensinar” é propagar a ideologia de acomodação e da aceitação da realidade de modo a não constituir uma ferramenta para auxiliar na transformação desse contexto social, composto por opressores e oprimidos, classes dominantes e classes dominadas.

Para que ocorra uma mudança, para que os camponeses possam aprender a escrever a sua vida e ler e pensar a sua realidade é preciso unir a prática e a teoria - a ação e reflexão - para assim incitar a consciência crítica e humanizar o processo de alfabetização (FREIRE, P., 1981).

Essa união precisa considerar também a unidade entre a teoria e a prática social. Isso significa que a unidade entre teoria e prática educativa, orientada para o sentido da libertação, não terá as mesmas ferramentas utilizadas para a prática educativa orientada para a alienação ou domesticação. Por isso, o ponto inicial que diferencia esta união voltada para a libertação é a concepção crítica da alfabetização, que tem como primeira exigência prática as palavras geradoras, que serão usadas no processo de alfabetização.

Tais palavras partem do universo vocabular mínimo dos camponeses: as palavras geradoras são as palavras do povo. Os alfabetizandos passam a serem sujeitos do processo de alfabetização. As palavras geradoras saem do universo dos alfabetizandos e a eles retorna com o intuito problematizá- las, não mais de memorizá-las através de repetições, como na educação tradicional. Essa prática inicial já explicita uma ação educadora voltada para a libertação.

Para Freire (1981), problematizar a palavra significa problematizar a temática ligada a ela. Isso se torna uma práxis crítica que supera o conhecimento mistificado pela classe dominante. Esse processo de problematizar a palavra do seu mundo, de analisar de forma crítica a sua prática, permite que os alfabetizandos atuem cada vez mais seguros em seu mundo. Eles excedem uma visão acrítica sobre a realidade.

As palavras geradoras fazem parte de um processo de codificação e descodificação. Como ação para o conhecimento, o processo de alfabetização implica na existência dialética entre contexto teórico e contexto concreto. O contexto teórico é onde ocorre o diálogo entre os sujeitos cognoscentes, ou seja, entre os educadores e educandos. Há também o contexto concreto que é a realidade social que se encontram os alfabetizandos (FREIRE, 1981). É no contexto teórico que se analisa criticamente os fatos que ocorrem no contexto concreto, que se dá através da codificação ou representação de situações existenciais dos alfabetizandos (FREIRE, 1981).

A codificação da realidade é a forma que os educandos se expressam sobre determinado tema proposto. Segundo Paulo Freire (1981), essa codificação pode ser expressa por meio de fotografias, desenhos, pequenos textos, uma pequena dramatização sobre um fato concreto e que será posteriormente descodificada. O importante é que essa representação seja considerada um objeto de conhecimento.

A partir dessa codificação da realidade, o educando tomará distância de sua própria realidade, e analisará com o educador os aspectos de sua própria ação e as suas implicações diversas. Esse processo de análise é a descodificação, em que o educando passará a dividir a sua codificação em partes para problematizá-las e ao uni-las novamente perceberá relações existentes que antes não havia percebido.

Nesse processo encontram-se duas perspectivas que devem ser consideradas na leitura da codificação: a “estrutura de superfície” e “a estrutura profunda”. A estrutura de superfície será a leitura meramente descritiva da codificação.

Suponhamos, por exemplo, a codificação de uma situação de trabalho no campo. A “estrutura de superfície” desta codificação seria representada por diferentes dados: a presença de mulheres e de homens trabalhando com alguns instrumentos; a figura do patrão, no seu cavalo; árvores, pássaros, animais etc. O primeiro momento da “leitura” ou descodificação se centra na descrição daqueles dados. “Vemos dois homens e três mulheres trabalhando. O patrão olha eles de seu cavalo. Lá longe tem umas árvores. Tem também uns passarinhos nos galhos. E animal pastando. O céu escuro indica chuva” etc (FREIRE, P.,1981,p.42).

Logo após desenvolver esse primeiro contato descrevendo a “estrutura de superfície” da codificação, então se segue para o próximo passo que é a descodificação, onde ocorre a problematização da situação codificada. A partir desse momento é que se tem a possibilidade de alcançar a “estrutura profunda” da codificação, ou seja, de se ter uma análise mais profunda e crítica sobre a realidade que se representa.

Assim, se no primeiro momento, o que se faz é preponderantemente mirar a codificação, no segundo, ela é “ad- mirada”. Naquele se diz apenas que há homens e mulheres trabalhando, que o patrão os observa de seu cavalo etc.; neste, se discute a significação do trabalho, as relações entre os trabalhadores e o patrão; o problema da produção, quem lucra com ela etc (FREIRE, P., 1981, p.42).

Para a educação crítica o ser humano é dotado de consciência, que têm o direito de expressar seu mundo e falar suas palavras. Para isso, a educação não pode ser algo constituído fora de sua realidade, como se o contexto social não apresentasse convergências com o processo de conhecimento. De acordo com a educação crítica, há uma relação dialética entre escola e sociedade. Por isso, diferente da educação tradicional ou bancária, não há a transferência de conhecimento do educador para o educando, ambos aprendem e ensinam juntos, o propósito é aliar ao processo de alfabetização a oportunidade de enxergar o mundo e sair de uma cultura do silêncio imposta pelas classes dominantes, que os impedem de pensar o seu mundo e o ser no mundo.

Em suma, a educação crítica desenvolve uma ação cultural para liberdade. Educandos e educadores juntos realizam a problematização da realidade codificada e das palavras geradoras. Essa ação objetiva a libertação dos camponeses de uma situação de dominação e opressão que os deslocava para uma cultura do silêncio, impedidos de ler e escrever a sua própria realidade.

Ação Cultural para a Liberdade: nossa proposta com base nos escritos de Freire

Após a apresentação da concepção crítica de educação de Freire (1981), propomos esquemas interpretativos para a condução de projetos críticos em Administração. Esses “esquemas interpretativos” baseiam-se nos estudos de freire (1981) e são a nossa construção mental acerca de como projetos em Administração que têm por base serem projetos críticos poderiam se desenvolver/organizar. Longe de serem estruturas fixas ou modelos, nossa perspectiva é a sistematização para a condução crítica de projetos na área da administração, a fim de manterem-se, os pesquisadores, no norte/tom da crítica. Entendamos os esquemas abaixo como bússolas, adaptáveis às mais diversas situações/ estilos de pesquisador e público.

Tais esquemas interpretativos foram frutos não somente da reflexão e estudo da obra freireana, mas das nossas interações com a comunidade com a qual trabalhávamos. Durante nossas inúmeras reuniões, durante as conduções dos processos juntos com as associadas, construímos e refinamos esses esquemas que serão abaixo descritos. Construindo junto com a comunidade uma ação cultural para a libertação, estabelecemos as bases um processo que unifica a ação e reflexão – o ser e o agir no mundo - em um quefazer constante de autonomia, empoderamento e luta pela igualdade social.

Ao estruturamos em nossa prática, as diretrizes do Freire, buscamos sistematizar uma representação do processo dialético de formação crítica, que se dá no nível individual e coletivo. Assim, é equivocado interpretá-lo como um esquema fixo da teoria Freireana, reduzindo-a a categorias sequenciadas em um processo mecânico.

Antecedentes para o processo de formação crítica.
Figura 1 .
Antecedentes para o processo de formação crítica.
autoras da pesquisa (2018).

A educação como ato político e a educação no lócus do trabalho são antecedentes para o processo de formação crítica (FIGURA 1). A equipe central, formada pelos professores e pelos envolvidos no processo de alfabetização, precisa compreender tais preceitos antes de ir a campo (FREIRE, 1981). Compreender que a educação como um ato político é uma inserção crítica no mundo e o trabalho é a produção do homem sobre o mundo (esfera em que o homem se produz, reconhece a si e aos seus semelhantes).

Diretrizes baseadas nos ensinamentos de Paulo Freire.
Figura 2 .
Diretrizes baseadas nos ensinamentos de Paulo Freire.
autoras da pesquisa (2018)

Cumpridos os antecedentes (FIGURA 1), parte-se para a ação no mundo, no nosso caso, para o desenvolvimento de projetos de economia solidária. Baseado na dialogicidade crítica (FIGURA 2), o método busca ilustrar a construção de conhecimento e relações entre os sujeitos no decorrer do processo de desenvolvimento da economia solidária. A construção do conhecimento é sempre uma troca entre as partes, exigindo do professor humildade e renúncia de um espaço de poder que é tradicionalmente dele. A partir desse comprometimento na construção do conhecimento coletivo, o processo de educação crítica será criado respeitando-se os símbolos e cultura do alunado.

A partir desse acordo, parte-se para o levantamento dos códigos (FIGURA 2), ou a investigação do universo vocabular mínimo, sejam eles códigos novos ou já utilizados, é importante compreender que cada código irá proporcionar uma palavra geradora, palavra que aponta sentidos para além dele mesmo, apresentando informações relevantes para o entendimento da cultura daquele determinado grupo.

Em seguida, a codificação e a descodificação são as expressões e as concepções que cada indivíduo tem sobre as palavras geradoras. Na codificação são representadas as visões a respeito da palavra geradora, seja ela em desenhos, figuras ou textos. A partir dessa representação ocorre o processo de descodificação, ou seja, a descrição individual do que aquela codificação significa. Esse processo de descodificação também acontece de forma coletiva, por meio do confronto entre os textos individuais elaborados e os coletivos para a compreensão crítica, pois além da descrição da codificação ocorre a problematização da situação codificada. Esse confronto revela a cultura do silêncio, em que há uma consciência velada do que pode ou não ser ditos mesmo entre os seus iguais, essa cultura do silêncio busca propagar a ideologia de acomodação e da aceitação da realidade de modo a não constituir uma ferramenta para auxiliar na transformação do contexto social.

Para que esse processo ocorra é necessário o desenvolvimento do círculo de cultura, que é o espaço para o processo crítico de educação (FIGURA 2). De acordo com o método ele não precisa ser necessariamente dentro de uma escola, na sala de aula ou qualquer outro espaço formal educativo, pois qualquer espaço pode ser usado para aprender. Constituído o círculo de cultura é que parte-se para o processo prático da alfabetização crítica e política proporcionando não só a formação linguística (saber ler e escrever), mas uma consciência crítica do que acontece ao seu redor e o seu papel no mundo como descrito anteriormente.

Todos esses processos já descritos fazem parte da etapa da avaliação, ou seja, quando ocorre uma problematização da própria ação (FIGURA 2). A avaliação será um ato em que equipe central e comunidade se avaliam juntas, avaliam a prática, o seu desenvolvimento, os obstáculos encontrados, os erros e equívocos porventura cometidos. Nesse momento todos refletem a prática para que revejam os conceitos e o modo como a ação foi desenvolvida. Tudo isso para gerar no final uma ação cultural para a liberdade, pois o processo de libertação está exatamente no momento da compreensão de mundo que acontece na práxis (ação política na realidade concreta).

Durante todo o processo descrito acima, existe um embate de ideias, ou seja, um conflito originado pela contradição e contraposição de pensamentos, no qual podemos chamar de dialética. Este tensionamento dialético durante todo o processo irá trazer a possibilidade de um olhar novo para as perspectivas que se propõem a trabalhar. Diante de uma tese que é uma afirmação ou uma situação inicial dada, cria-se uma antítese, ou seja, uma oposição à tese, e devido a esse conflito entre tese e antítese surge então a síntese, que é o pensamento, um olhar novo, ou uma ideia diferente resultado desse embate entre tese e antítese. Esse processo que chamamos de tensionamento dialético durante todo o processo é constante e infinito, resultando sempre em um olhar novo dentro do ambiente em que se trabalha o pensamento crítico desvelando as artimanhas utilizadas para a manutenção do status quo em que o oprimido deixa de ser a sustentação da elite passando a ter sua própria voz.

Todo esse processo descrito é importante para a etapa de implementação de projetos críticos, em especial nesse artigo os da economia solidária. Ela traz uma ideia diferente, pois os projetos que perpassam pela economia solidária buscam valores de solidariedade; se condensam no coletivo; se estruturam em um modelo autogestionário, suas estratégias de produção são voltadas para a necessidade; as tomadas de decisões são coletivas; e a distribuição de renda e de capital deve ser equitativa (CALBINO, 2013). Propósito que se diferencia do modelo capitalista, que é caracterizado como heterogestionário, se condensa no individualismo, busca a maximização do lucro e a produção em grande escala.

Em razão disso, durante o trabalho que circunda a economia solidária, as diretrizes pretendem levar a esses projetos a percepção da importância das discussões e reflexões sobre a realidade que aqueles sujeitos estão inseridos e não fora de seu contexto, como uma pedagogia crítica da economia solidária. A seriedade de avaliar as necessidades dos envolvidos, de conhecer os problemas sociais que o cercam e a possibilidade de compreender e abraçar valores solidários para um novo modus operandi de trabalho.

Metodologia

A pesquisa realizada foi do tipo qualitativa, descritiva conclusiva, na qual utilizamos a técnica da bricolagem, por meio de recortes de figuras para representações individuais e do círculo de cultura das associadas. O termo bricolage, advém do francês, utilizado para designar trabalhos manuais realizados de improviso com materiais distintos para representar o meio social (NEIRA, M. G.; LIPPI, B. G., 2012).

O primeiro autor a utilizar o termo bricolage foi Lévi-Strauss, que o entendia como sendo um pensamento guiado pelo desejo de conhecer o que há no mundo (RAMPAZO, A. V.; ICHIKAWA, E. Y., 2009), como uma expressão dos componentes que fazem parte de uma cultura (NEIRA, M. G.; LIPPI, B. G., 2012). Além desse autor, há também outro nome importante que traz outros olhares em relação à bricolagem, dando perspectivas necessárias para o avanço das pesquisas, Joe L. Kincheloe traz uma abordagem voltada para a prática da pesquisa, entendendo a bricolagem como interdisciplinaridade, ou seja, uma investigação que tem como objetivo agregar diferentes pontos de vista sobre um dado fenômeno (RAMPAZO, A. V.; ICHIKAWA, E. Y., 2009).

Sem dúvida, o pesquisador se encontra num âmbito desafiador no campo das buscas científicas sociais e humanas, visto que não é mais possível enxergar a metodologia como um livro de receitas prontas para a coleta e tratamento dos dados. O caráter de abertura da bricolagem permite a reflexão mais profunda e ampla do objeto investigado, pois não é mais admissível o simples enquadramento do tema em método único, mesmo que, para isso, se tenha que buscar referenciais teóricos de áreas disciplinares distintas do conhecimento ao qual o objeto é tra - dicionalmente abordado ou percebido pelo pesquisador. Desse modo, evidencia-se o fato de que a bricolagem é expressa como um modo alternativo de pensar a pesquisa, possibilitando uma forma diferente de olhar as demandas do conhecimento no mundo contemporâneo (RODRIGUES, C. S. D.; THERRIEN, J., FALCÃO, G. M. B.; GRANGEIRO, M. F., 2016 p.972).

Isso nos faz compreender que “a bricolage, portanto, permite interpretar o objeto de pesquisa por múltiplas perspectivas, conforme as escolhas do pesquisador e o que ele encontrar no campo (RAMPAZO, A. V.; ICHIKAWA, E. Y., 2009,

p.10). Por isso optamos por tal ferramenta para trabalhar as diretrizes do Freire, pois “a bricolage se torna uma opção metodológica viável, conectando teorias, metodologias, pesquisador e contexto da pesquisa” (RAMPAZO, A. V.; ICHIKAWA, E. Y., 2009, p.2), fatores que consideramos de suma importância no processo crítico educacional.

Sendo assim, levamos a bricolagem a campo no dia 21 de julho de 2017. Estavam presentes a coordenadora do projeto de pesquisa, os bolsistas que integravam a equipe e integrantes das três associações participantes. O nosso objetivo ao utilizarmos a técnica da bricolagem foi trabalhar as relações interpessoais das associadas, além de levantar os principais aspectos (sejam positivos ou negativos) para a criação das orientações de convivências de cada associação, pois um dos conflitos mais recorrentes nas associações era a dificuldade em estabelecer uma relação horizontal e colaborativa entre as associadas, como indica a teoria da economia solidária.

A equipe e as associadas se reuniram em uma escola do distrito, para que pudéssemos desenvolver as atividades. Inicialmente, foram distribuídas revistas, folhas sulfites, canetas, colas e tesouras, para que as associadas folheassem as revistas e encontrassem imagens ou palavras que representassem aquilo que elas consideravam comportamentos essenciais para uma boa convivência ou características que elas consideravam importantes dentro do ambiente da associação, e também os principais aspectos negativos que são vistos como “vilões” dentro do ambiente de trabalho. Por meio disso, cada associada separadamente expressava seu pensamento através das palavras escritas ou recortadas das revistas assim como as imagens/figuras escolhidas também das revistas e colocadas nas folhas em branco para expressar as opiniões a respeito dos comportamentos.

Feito isto, cada associada conversou com um bolsista que ficou responsável por anotar o que a imagem ou palavra recortada representaria para aquela associada. Nesta conversa foi possível perceber que, embora as associações sejam distintas, os pontos positivos e negativos relatados são bem semelhantes. Entre as qualidades (ou pontos) que as associadas mais citaram como positivas, está a proatividade, pontualidade, ordem e o respeito; já entre os pontos negativos está o desrespeito, falta de compromisso e as fofocas existentes dentro do ambiente organizacional.

Após essa etapa realizamos com cada associação um diálogo para conversamos sobre os pontos mais citados por elas. A partir dessa reunião foram estabelecidos juntamente com as associadas orientações de convivência de acordo com as particularidades de cada associação. Foram confeccionados cartazes (em conjunto com as associadas) com as orientações de convivência, fixando um cartaz que terá os dizeres sobre o que é positivo e o que é negativo para a associação, para que todo comportamento negativo seja reconsiderado e avaliado por elas individualmente em prol do bem estar e cooperação entre as associadas.

Por fim, prosseguimos para a etapa da avaliação em que juntamente com as associadas buscamos compreender os pontos positivos e negativos dessa atividade, o que elas tinham a pontuar sobre o trabalho e sobre a equipe, percebendo qual foi o resultado obtido e o quanto as associadas estavam de acordo com as novas orientações. Percebemos que a atividade gerou resultado, pois as associadas relataram seguir as orientações criadas em conjunto e que elas possuem uma melhor convivência a partir desse trabalho.

A metodologia utilizada descreve o que apresentamos na sessão anterior dos esquemas interpretativos, criados por nós, como forma de proposta de condução crítica de projetos em Administração.

Análise dos dados

A condução da bricolagem foi feita de forma a considerar as diferentes experiências vividas pelas associadas no âmbito profissional e pessoal para o direcionamento do nosso trabalho. Por meio das diretrizes do Paulo Freire, utilizando-nos dos esquemas interpretativos que criamos, foi possível desenhar uma proposta de trabalho in loco para que pudéssemos promover ações integradas à educação crítica, pois no processo de trabalho em campo não iríamos apenas coletar dados com as ações escolhidas, mas também desenvolvermos juntamente com a equipe o processo da formação crítica.

Para tal processo, foi necessário a equipe ter em mente antes mesmo de ir a campo o posicionamento da equipe central, como Freire mencionava em seus trabalhos. Foi importante para o andamento do trabalho termos a consciência de que a educação é um ato político e que o sujeito tem o direito de ter um olhar crítico sobre o mundo em que vive. Assim, nossa equipe se desvestiu de qualquer pensamento de que apenas nós detínhamos o conhecimento e que estávamos levando até eles a emancipação.

Quando fomos a campo, como nos orienta a teoria, levamos o pensamento de que estávamos para além da consultoria técnica às associadas, mas estávamos com as associadas em prol de um ato político. Tínhamos entendido a importância de estabelecer a dialogicidade entre todos a importância da troca de conhecimento entre as partes e, principalmente, a importância do respeito aos símbolos e à cultura do grupo com que se trabalha. Esse é um dos motivos de escolher atividades que possibilitem essa relação mútua entre as partes.

Na bricolagem trabalhamos os conceitos de codificação e decodificação na etapa em que foi proposto que as associadas identificassem os aspectos que consideravam contribuir para uma boa convivência na associação e os aspectos que não contribuiam para tal convivência, buscando a demonstração desses aspectos por meio de recortes de imagens e/ou palavras.

A primeira parte da atividade consistiu nos recortes de figuras, palavras que representavam os comportamentos positivos e negativos dentro da associação. Essa primeira fase é a codificação, fase em que se reúnem signos para representar a situação dada, com a utilização de imagens, figuras e situações que pudessem expressar o que elas entendiam como comportamento positivo e negativo. Assim, posteriormente, as associadas poderão relacionar os itens de forma não pensada anteriormente, como propõe Freire (1981), tem-se um distanciamento do seu mundo, para analisá-lo de melhor forma, com criticidade e maior entendimento. Com isso, cada elemento escolhido tem uma fonte de significado que é utilizado no processo posterior que é decodificação.

Durante o processo da leitura dos códigos (decodificação), seguindo o esquema interpretativo baseado em Freire (1981), iniciou a etapa da problematização, em que o código começaram a serem desmembrados, revelando os elementos que os constituíam. Nessa etapa, houve a construção entre os alunos, professor e associada, surgindo ali as palavras geradoras. Alguns exemplos das palavras geradoras que apareceram foram união, respeito, confiança, compromisso como comportamentos positivos e como comportamentos negativos tivemos fofoca, falta de comprometimento, fraude, falta de comunicação, não saber aceitar crítica. Como explicitado por Brandão (s.d.) anteriormente, após extraída as palavras geradoras foram feitos os questionamentos necessários para que nesse processo de reflexão, fosse apresentado a realidade que cada associada tem a respeito dos comportamentos positivos e negativos dentro da associação, a fim de alcançarmos uma reinterpretação do mundo, ou seja, refletir e dialogar sobre esses comportamentos positivos e negativos dados e termos uma concepção coletiva capaz de conduzir o trabalho entre as associadas fortalecendo o coletivo. A problematização sobre o tema tratado conduziu-se em torno destas ideias: : ”,. Descrito abaixo:

Idéias para discussão:

• as associações e o relacionamento entre as pessoas;

• pontos negativos e positivos dos comportamentos das pessoas que compõem as associações;

• comportamentos semelhantes para melhorar o ambiente das associações.

Finalidades da conversa:

• Fazer o grupo dialogar sobre os problemas de convivência nas associações ;

• Fazer o grupo refletir sobre trabalho em equipe;

• Fazer o grupo compreender a individualidade de cada um e como unir essa individualidade ao coletivo.

Encaminhamento da conversa:

• quais são os comportamentos considerados bons para que a associação tenha um ambiente melhor?

• quais comportamentos atrapalham o convívio dentro da associação?

• por que você acredita que esses comportamentos são importante para a associação?

• o que fazer para evitar os comportamentos negativos dentro das

• associações??

qual a importância de manter-se um diálogo entre o grupo?

A partir dessas ideias pôde ser desenhado todo o processo da bricolagem.

Foram realizados as leituras (estrutura de superfície) das codificações em seguida os questionamentos sobre as escolhas das imagens e o motivo dessas escolhas, o porque aquelas palavras geradoras eram importantes para elas (estrutura profunda). Isso ocorreu primeiramente numa conversa individual, entre bolsista e associada, para que elas pudessem externalizar suas reflexões e opiniões. É o inicio do processo que encontra-se no âmbito do contexto teórico, ou seja, é o momento de diálogo entre o educador e educando, como mencionado pelo Freire. Nesse momento da bricolagem buscamos juntamente com as associadas analisar criticamente cada comportamento que ocorrem no contexto concreto, O contexto concreto é a realidade vivida pelas mulheres das associações e juntamente ao contexto teórico ocorre o embate de ideias gerando um novo pensamento.

Após as etapas individuais levamos as palavras geradoras para uma discussão emgrupo, com cada associação separadamente, visto que cada organização possui sua peculiaridade, ou seja, são os círculos de cultura. Nesse confronto de ideias é que se revelou o que não é compartilhado dentro das associações, Freire denomina como a cultura do silêncio, ou seja, a consciência velada do que pode ou não ser dito mesmo entre os seus iguais, essa cultura do silêncio busca propagar a ideologia de acomodação e da aceitação da realidade de modo a não constituir uma ferramenta para auxiliar na transformação do contexto em que estão inseridos, nesse momento buscamos fazer com que as associadas não se sentissem acuadas de alguma forma, fazendo-as se sentirem mais confortáveis ao lidarem com o assunto. O grupo debateu sobre as representações, expondo opiniões sobre cada item e, até mesmo, estimulando o grupo a debater mais, visto que a exposição de uma associada encorajava as demais, reforçando o que havia aparecido com as palavras geradoras, como se davam as relações no trabalho, como a hierarquia era estabelecida em cada associação, ética, companheirismo, cooperação, etc.

A partir dessa conversa dialógica e não unilateral foram criadas orientações que consideravam as diferenças e semelhanças entre as associadas, um consenso entre as mesmas. Essa construção proporcionou a cada associada a possibilidade de percepção para além do que elas consideravam como algo positivo e negativo, além de se colocarem dentro do espaço que são delas e tendo a possibilidade de entender melhor umas às outras e a formação da organização. Esse processo de problematizar a palavra do seu mundo é visto pelo Paulo Freire como um modo de analisar de forma crítica a sua prática, isso permitia que os alfabetizandos atuassem cada vez mais seguros em seu mundo, e isso ocorreu com as associadas durante o trabalho desenvolvido por nós. Pois como mencionado, por meio dessa prática elas se inseriram no universo que pertence a elas possibilitando a compreensão do porquê de cada comportamento e como ele se estabelece.

Após a construção dessas orientações realizamos a etapa da avaliação, em uma roda de conversa posterior a bricolagem, nós, a equipe central, e as associadas avaliamos juntas a prática, o desenvolvimento, os obstáculos encontrados, os erros e equívocos cometidos. Nesse momento todos refletiram sobre a prática revendo os conceitos e o modo como a ação foi conduzida, tudo isso com a finalidade maior de gerar uma ação cultural para a liberdade, pois o processo de libertação está exatamente no momento da compreensão de mundo que acontece na práxis (ação política na realidade concreta).

O retorno foi muito positivo e elas conseguiram absorver a ideia da bricolagem, pois conseguiram implantar ações que unissem a percepção da individualidade em coletividade criando orientações de convivência.

No dia 9 de maio de 2018, já com o projeto finalizado desde dezembro de 2017, visitamos as associadas e lá encontramos o cartaz com todas as orientações criadas com a atividade desenvolvida utilizando como base os ensinamentos de Paulo Freire. E tiveram relatos de que as associadas estavam seguindo aquelas orientações e de que houve uma contribuição positiva para o trabalho na associação, criando entre elas uma representação de comportamento e atitudes que respeitam o espaço de cada associada e alinham a participação de todas de forma que haja mais equilíbrio, criando assim uma conduta própria e condizente com a realidade delas e não perpetuando condutas do sistema já existente.

Considerações Finais

Ao desenvolvermos as diretrizes para auxiliar nos projetos que circundam a economia solidária com base na obra Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos (1981), estamos propondo a formação crítica e o melhor entendimento do mundo e de si.

O processo de lidar com a economia solidária em uma sociedade capitalista com todas as constrições sociais, econômica, políticas que isso implica é duro, mas trabalhando-se com as ideias do Freire conseguimos fazer deste processo, um processo de formação crítica. Para isso acontecer o diálogo é primordial, pois o trabalho desenvolvido precisa ser entre as partes e não algo unilateral. O conhecimento é construído e não dado, ou seja, todo o processo crítico construído na bricolagem foram construídos entre bolsistas, professores e associadas de forma dialógica. O processo bem trabalhado é um processo que vai gerar consciência crítica nos sujeitos envolvidos, sendo consciência crítica entendimento do mundo, entendimento de si como sujeito no mundo e comprometimento do sujeito com a mudança do mundo. Podendo ser trabalho com recortes, como o exemplo da bricolagem, o objetivo era por meio da percepção das associadas quais comportamentos positivos e negativos dentro da associação impactam em suas atividades, a fim de criar através deste debate um espaço de união e cooperação, características essas presentes na economia solidária.

Não está se afirmando que ao final do processo tem-se a entrega de projetos na área da economia solidária de forma X, Y, Z. Mas que o próprio processo com todos os problemas deles, pois é um processo dialético, é um processo histórico, esse próprio processo é um processo de conscientização, ou seja, é um processo de ação cultural para a libertação. Qualquer atividade desenvolvida seja por projetos de universidades, ONGs que trabalham com a economia solidária podem utilizar das diretrizes do Freire para adaptar as ações criando um processo de problematização e construção conjunta de uma nova ideia. Mirar e admirar uma nova forma de trabalho, entendo que empreendimentos solidários podem ser administradas para além de uma atividade hierarquizada, mas sim uma autogestão em que todo o grupo participe e colabore com o trabalho. Não vai se criar no final uma nova ordem econômica, social e política que o Freire chama de revolução cultural, pois disso abre-se mão, pois sabemos o quanto o contexto atual é complexo e que para tal mudança muito do que se debate nesse trabalho deve ser levado para as escolas e isso infelizmente não acontece. Agora não se abre mão de entender que esse processo de constituição do sujeito crítico é um processo de constituição do sujeito como ativo no mundo em que ele se encontra e que isso, por conseguinte o torna dono de suas escolhas. Essa consciência crítica será um fator importante na compreensão da importância de projetos na área da economia solidária e como projetos assim vão além da geração de renda e trabalho, mas pode gerar a união e empoderamento de diversas comunidades.

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