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Desafios de empreendedoras na economia criativa periférica
Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, vol. 15, núm. 1, pp. 122-146, 2021
Universidade Federal Fluminense



Recepción: 21 Noviembre 2020

Aprobación: 20 Mayo 2021

DOI: https://doi.org/10.12712/rpca.v15i1.47233

Resumo: O objetivo foi analisar as principais dificuldades vivenciadas por empreendedoras na Economia Criativa em Caruaru-PE. Para isso, mobilizou-se a teoria da interseccionalidade, que possibilitou entender as estruturas de opressão em nível macro e as micro social. Realizou-se entrevistas semiestruturadas por videoconferência com cinco mulheres e nove entrevistas por formulário via Google Forms. As entrevistas foram realizadas durante a pandemia do Covid-19 no período de maio e junho de 2020. Conclui-se que as dificuldades das empreendedoras caruaruenses se relacionam com a gestão financeira, o acúmulo de jornadas, a dificuldade tecnológica, o contexto periférico e os desafios de atuar no meio digital.

Palavras-chave: Economia Criativa, Empreendedorismo Feminino, Marcadores Sociais da Diferença, Interseccionalidade, Contexto Periférico.

Abstract: The objective was to analyze the main difficulties experienced by women entrepreneurs in the Creative Economy in Caruaru-PE. For this, the theory of intersectionality was mobilized, which made possible to understand the structures of oppression at the macro and micro social levels. Semi-structured interviews were conducted by videoconference with five women and nine interviews were conducted per form via Google Forms. The interviews were conducted during the Covid-19 pandemic in the period from May to June 2020. It is concluded that the difficulties of entrepreneurs from Caruaru are related to financial management, the accumulation of hours, the technological difficulty, the peripheral and the challenges of acting in the digital environment.

Keywords: Creative economy, Female Entrepreneurship, Social markers of difference, Intersectionality, Peripheral Context.

Introdução

A Economia Criativa (EC) desenvolveu-se como um campo no qual tem destaque a criatividade e sua atuação no atual contexto econômico em prol do crescimento das cidades (Santos, Schmidt, & Zen, 2018). Aliada ao Empreendedorismo, tornou-se um conjunto de atividades advindas de transformações econômicas e culturais que originaram novos formatos de empreendimentos e novas maneiras de prestar serviços ou criar produtos (Ferreira, Lima, & Lins, 2019).

Neste contexto da EC, a atuação feminina progride, e traz uma valiosa contribuição para o crescimento do Brasil (Ramos & Valdisser, 2019). No entanto, é importante ressaltar que se o processo de empreender, seja por oportunidade ou necessidade, é difícil, quando se é uma mulher, as dificuldades inerentes a esse processo se articulam às discriminações impostas à construção histórica do gênero feminino (Alperstedt, Ferreira, & Serafim, 2014).

Em pesquisa realizada com empreendedoras de Santa Catarina, Alperstedt, Ferreira e Serafim (2014) observaram que as principais dificuldades enfrentadas por elas se relacionam ao fato de serem mulheres e atuarem em segmentos predominantemente masculinos, de serem jovens – interpretado como falta de capacidade e experiência para gestão do negócio – e de terem que lidar com conflitos entre vida pessoal e profissional, principalmente no que se refere à gestão financeira do negócio.

Ao encontro de Alperstedt, Ferreira e Serafim (2014), Silva et al. (2019) observaram que na atuação de empreendedoras do Rio Grande do Norte, haviam dificuldades relacionadas ao acesso a capital financeiro, à crise financeira, à concorrência, à falta de credibilidade perante os fornecedores, à dificuldade no equilíbrio entre família e o negócio, à discriminação por serem mulheres à frente dos negócios, à má gestão, à localização dos seus negócios na cidade, entre outros (Silva et al., 2019). Além disso, as mulheres empreendedoras ainda acabam por investir com recursos próprios como forma de transpor a barreira do financiamento de bancos (Silva, Mainardes, & Lasso, 2016).

No contexto local, Pernambuco passou a se destacar no que se refere à inovação, Empreendedorismo e à EC (Santos, Schmidt, & Zen, 2018). Desse modo, o Estado hoje acompanha uma economia que, a nível mundial, sofreu fortes modificações que propiciaram o deslocamento gradual da mecanização e da produção industrial para os denominados setores criativos (Ferreira, Lima, & Lins, 2019). Inclusive, entre 2015 a 2017, a região pernambucana apresentou avanços no PIB Criativo brasileiro, algo que evoluiu de 1,7% para 1,9% ao ano (FIRJAN, 2019).

Atualmente, Pernambuco também detém um parque tecnológico de grande importância para o país, o Porto Digital, e a cidade de Caruaru se destaca entre os principais polos têxteis brasileiros, movimentando em torno de R$ 2 bilhões ao ano por ser constituído por um forte aglomerado de cidades produtoras, em um Arranjo Produtivo Local (APL) de Confecções denominado Polo de Confecções do Agreste. Inclusive, "[...], esse APL não figura no mapeamento da FIRJAN por possuir caráter predominantemente informal em seus empreendimentos e grande número de empresas familiares, dificultando a produção de informações por órgãos oficiais" (Vieira, 2015, p. 25), bem como a produção e o acesso às informações referentes a um quantitativo mais atualizado da participação feminina em empreendimentos criativos, a nível estadual e municipal. Cabe destacar que este caráter predominantemente informal, com empresas familiares, muitas vezes de origem rural, e por vezes tidas como tradicionais, não modernas e improvisadas, caracteriza esta região como um contexto periférico (Sá, 2018).

Diante de tamanha complexidade, Caruaru, que tem em torno de 315.000 habitantes (IBGE, 2016; Santos, Schmidt, & Zen, 2018), foi escolhida por ser uma região que ainda está abrindo espaço para a EC e para a inovação devido ao conservadorismo familiar que ainda é forte nessa região (Santos, Schmidt, & Zen, 2018). Além disso, existe uma necessidade latente em compreender como as questões de gênero se configuram na EC em um momento em que ela ainda está se consolidando na região. Questões referentes a gênero já têm sido investigadas em Caruaru e região, como no caso das mulheres que atuam na Feira da Sulanca da cidade (Silva, 2016; Andrade, Santos, & Oliveira, 2018), e das mulheres revendedoras de cosméticos atuantes no Agreste de Pernambuco (Oliveira, Santos, Andrade, & Dias, 2020). Nos dois contextos investigados, foi identificada forte precarização dos trabalhos realizados, ausência de direitos trabalhista, desenvolvimento de doenças ocupacionais e jornadas duplas de trabalho.

No que se refere ao contexto da EC em Caruaru-PE um estudo realizado por Santos e Silva (2020) sobre feiras colaborativas, conseguiu identificar alguns perfis destes empreendedores, como produzem e se articulam. As autoras observaram que os participantes das feiras colaborativas estão na faixa etária dos 19 a 33 anos. As mulheres possuem maior participação nas feiras colaborativas, assim como universitários, que buscam na feira colaborativa uma saída para o desemprego ou complemento da renda. Santos e Silva (2020) concluíram que eles têm “posicionamentos sociais claros, ligados à sustentabilidade e empoderamento feminino” (p. 304) e que a maioria confecciona seus produtos em casa e ocupam as feiras como mecanismo de divulgação dos seus trabalhos e posicionamentos sociais.

Diante disso, parte-se do pressuposto teórico que as mulheres enfrentam dificuldades no cotidiano do seu trabalho relacionado à EC (Jesus, 2016). A pergunta que orienta este estudo é: quais as principais dificuldades vivenciadas e resistências agenciadas por empreendedoras na EC em Caruaru-PE, a partir de uma análise interseccional? A partir dessa pergunta, busca-se compreender (a) quais são as dificuldades no trabalho desenvolvido por empreendedoras da EC em um contexto periférico como Caruaru; (b) qual a origem destas dificuldades, considerando os conceitos de marcadores sociais da diferença interseccionados; (c) e por fim, compreender como estas empreendedoras lidam com esta situação. Pois, entende-se que elas possuem agência para modificar essas situações, encontrar saídas e resistirem (Brah, 2006; Piscitelli, 2008).

Os marcadores sociais da diferença são gênero, raça, classe, sexualidade, localidade, deficiência, entre outros, que marcam a identidade, experiência, subjetividade e relações sociais de pessoas e grupos (Brah, 2006; Zamboni, 2014; Almeida et al., 2018). Não existem marcadores isolados, para entender cada fenômeno é preciso olhar para suas intersecções (Piscitelli, 2008; Zamboni, 2014; Henning, 2015; Moutain, 2017; Almeida et al., 2018 Hirano et al. 2019).

Esta pesquisa tem como contribuição teórica a relação entre EC e interseccionalidade ao olhar as dificuldades e resistências de mulheres que empreendem e lançar luz sobre as especificidades de empreendedoras em um contexto periférico, como o agreste pernambucano. Atentas ao pedido de que pesquisas sobre empreendedorismo feminino mobilizem outras lentes teóricas para compreender o fenômeno (Gomes et al., 2014) e entendam que “para que se avance nos estudos sobre empreendedorismo nas perspectivas de gênero, é necessária a compreensão dos fatores pessoais e intrínsecos em conjunto com o contexto” (Camargo, Lourenço, & Ferreira, 2018, p. 183), este estudo avança na fronteira do conhecimento ao propor uma análise interseccional das diferenças e a situacionalidade da pesquisa em um contexto periférico (Mountain, 2017).

Considera-se que a partir deste texto se desdobra em contribuição prática por (1) mostrar as dificuldades de mulheres empreenderem na EC; (2) relacionar essas dificuldades aos marcadores sociais da diferença; (3) trazer à superfície essa realidade para que as pessoas, instituições, órgãos públicos, secretarias e programas de fomento à EC que fazem parte do ecossistema de inovação no agreste pernambucano e em outros contextos periféricos, possam também estar atentos a esses fatores e trabalhá-los para transpor estas dificuldades; e (4) apontar possibilidades de resistências às dificuldades, agenciadas pelas próprias mulheres empreendedoras.

Esta pesquisa também foge do que comumente se faz nos estudos hegemônicos da administração, pois ao contrário de pesquisas que seguem o mainstream, que silenciam as diferenças, tensões e conflitos nas organizações, aqui lançamos luz sobre elas e criamos espaço para que suas vozes sejam ampliadas e escutadas (Gouvêa, Cabana, & Ishikawa, 2018).

A atuação feminina no empreendedorismo e na economia criativa

O empreendedorismo é percebido como uma ação ou processo destinado a identificar e resolver problemas que necessitam ser atendidos no meio social, cultural, ambiental etc. Desse modo, o termo empreendedor(a) passou a se referir àquela pessoa que é vista como capaz de enfrentar riscos e ser criativa, a ponto de propor novas alternativas para solucionar determinados problemas de mercado (Ramos & Valdisser, 2019).

A EC tornou-se um campo no qual as pessoas criam e comercializam produtos ou serviços, utilizando ideias criativas que possam adquirir valores econômicos. Essa área da economia, além de ser forte aliada do empreendedorismo, ao longo do tempo, passou a abranger diversos setores "[...], tais como: pesquisa e desenvolvimento, publicação, software, televisão e rádio, design, música, cinema, brinquedos e jogos, propaganda, arquitetura, artes performáticas, artesanato, jogos eletrônicos, moda e arte" (Gallas, Pimenta, Gonçalo, & Rodrigues, 2019, p. 177).

Historicamente, a participação feminina nessas e em outras áreas foi fortemente marcada por desigualdades de diversos tipos. Tais circunstâncias afetaram as conquistas alcançadas por elas no mercado de trabalho, desde a criação e desenvolvimento de novos negócios até a sua lucratividade (Brandão, Marques, & Lamela, 2019). Ademais, a sociedade sempre foi fortemente marcada por uma cultura patriarcal, que designa às mulheres apenas os espaços privados dos lares, reduzindo a autonomia feminina.

Inclusive, um reflexo disso é que elas só passaram a ser foco de investigação de acadêmicos sobre empreendedorismo na década de 1970. Antes disso, só os homens eram sujeitos de pesquisa, por ser notório que, em sua maioria, apenas eles ocupavam esses espaços (Gomes et al., 2014; Brandão, Marques, & Lamela, 2019). A partir disso, percebe-se que empreendedoras vêm consolidando seu espaço tanto a nível nacional e regional, principalmente no que se refere ao número de mulheres à frente de seus negócios próprios, na última década (Camargo, Lourenço, & Ferreira, 2018).

Outros desafios vivenciados no mercado de trabalho são: dificuldades em conseguirem um emprego público ou privado e por vezes, quando contratadas, ficam mais sujeitas à vulnerabilidade de seu ofício, já que muitas delas costumam trabalhar sem carteira assinada, por exemplo; e a desigualdade salarial, pois o pagamento dado ao público feminino é inferior ao dos homens, apesar de terem, em sua maioria, a mesma qualificação profissional e educacional que eles. Desse modo, evidencia-se uma desvalorização do trabalho feminino, transformando as mulheres em mão-de-obra barata (Ramos & Valdisser, 2019).

Outra disparidade referente aos gêneros é sobre a maternidade e a paternidade. Após a maternidade, segundo Ceribeli e Silva (2017), os motivos que levam as mulheres a abandonarem suas carreiras estão relacionados às duplas jornadas, a não existência de creche pública ou condições para arcar com os cuidados terceirizados, e à falta de práticas organizacionais de apoio a elas. Os autores afirmam que após deixarem suas carreiras, as mulheres também sofrem com pressões psicológicas de cobrança para um possível retorno ao mercado de trabalho e preocupações financeiras, porém, não encontram apoio para voltar às suas carreiras.

Diante disso, ser dona do próprio negócio e poder conciliar trabalho e família torna-se fator determinante para a inserção de muitas mulheres na EC (Jesus, 2016). Isso acontece porque a participação da mulher na atividade laboral familiar e não remunerada continua elevada, em torno de 42% em 2018, e sem previsão de mudanças até o ano de 2021 (OIT, 2018), contexto este que acaba levando muitas mulheres a se inserirem nos desafios da informalidade (Oliveira, Aragão, Oliveira Júnior, & Silva, 2018). Apesar de todas essas dificuldades, alguns aspectos positivos referentes à inserção das mulheres na EC por meio do empreendedorismo são descritos pela literatura como: "[...] autossatisfação, construção do conhecimento por meio de erros e acertos, autonomia para tomar decisões e [...] trabalhar com o que se gosta" (Ramos & Valdisser, 2019, p. 27).

De acordo com o Global Entrepreneurship Monitor (GEM), no ano de 2017, houve um breve acréscimo no total do público feminino que criou negócios, sendo um total de 20,7% de mulheres, que decidiram dar início ao seu empreendimento com relação a apenas 19,9% de homens. Demonstrando que as mulheres tiveram mais iniciativa do que os homens para se inserir na informalidade, por meio do empreendedorismo. Por outro lado, no que se refere aos negócios estáveis a mais de dois anos, esse estudo também demonstrou que a realidade entre os gêneros também se encontra bastante distinta no Brasil, principalmente porque os homens conseguem se manter mais estáveis no mercado após o surgimento de um negócio do que as mulheres, sendo 18,6% do público masculino para apenas 14,4% do público feminino (Oliveira, Aragão, Oliveira Júnior, & Silva, 2018).

As mulheres ainda enfrentam obstáculos para a sua atuação nestes setores e por conseguinte, os aspectos negativos que eles apresentam reduzem de maneira considerável as chances de as comunidades progredirem socioeconomicamente, pela falta de uma equidade entre os indivíduos (Oliveira, Aragão, Oliveira Júnior, & Silva, 2018). Observa-se que as mulheres que se inserem na EC, assim como em outros áreas, ainda estão sujeitas a depreciação do seu trabalho, pois são mal remuneradas, situam-se em cargos ou atividades menos valorizadas que as dos homens e por vezes, são marginalizadas porque o seu trabalho é destituído de algum valor (Jesus, 2016).

Diante desses aspectos, é interessante notar que mesmo num país em desenvolvimento como é o Brasil, empreendedoras também estão cotidianamente sujeitas aos desafios advindos da discriminação ou do estigma relacionados às suas identidades sociais, ou seja, como aqueles referentes à orientação sexual, a raça, a classe, bem como os destinados ao gênero ou a sua nacionalidade, por exemplo (Almeida, 2016).

É importante ressaltar que hoje as dificuldades vivenciadas por empreendedoras vêm sendo pautadas, mas existe ainda uma lacuna nestes estudos, pois, de acordo com Gomes et al. (2014), que realizaram uma revisão sistemática da literatura sobre o tema, as pesquisas em sua maioria contribuíram apenas em revelar o perfil da empreendedora, enquanto outros estudos essencializam o debate sobre gênero. Por isso, os autores sugerem o uso de novas lentes epistemológicas para ler a realidade. Assim, analisar as diversas trajetórias femininas no empreendedorismo e na EC é algo ainda necessário, pois as vulnerabilidades a que estão inseridas, em razão da diversidade existente no meio social, não podem servir de justificativa para que lhe sejam negadas as garantias de proteção à sua integridade e a execução dos direitos humanos, enquanto trabalhadoras (Almeida, 2016).

Marcadores sociais da diferença

Os marcadores sociais da diferença são as categorias de classificações construídas socialmente e constituídas por relações de poder. As categorias mais usuais em pesquisas são raça, gênero, sexualidade (Henning, 2015), localização, idade, deficiências, classe, entres outras (Zamboni, 2014). Para analisá-las, é necessário considerar tempo e espaço, a articulação entre elas que podem ou não resultar em desigualdades (Zamboni, 2014; Almeida et al., 2018; Hirano et al., 2019).

Ressalta-se que o gênero se refere tanto às feminilidades quanto às masculinidades, pois não existe uma categoria universal e homogênea de homens e mulheres que deva ser seguida, mas diversas possibilidades de masculinidades e feminilidades (Piscitelli, 2002; Eccel & Grisci, 2011). As mulheres e os homens são múltiplos entre si, e seus significados e papéis são constituídos socialmente (Piscitelli, 2002; Eccel & Grisci, 2011) por diversos marcadores sociais. A exemplo, é possível citar as mulheres brancas e negras, marcadas em termos de gênero e raça (Zamboni, 2014; Almeida et al., 2018), e que possuem vivências distintas, bem como se situame em localizações sociais diferentes, constituídas por relações de poder assimétricas (Mountian, 2017; Ribeiro, 2017). Já as mulheres marcadas por outras diferenças sociais como a deficiência, tem os marcadores de gênero, raça e deficiência articulados, o que as faz terem vivências e experiências específicas na sociedade.

Para entender os marcadores sociais, é preciso considerar que (1) as diferenças, assim como desigualdades, são construídas socialmente, ou seja, não existem a priori; (2) os marcadores sociais não se restringem apenas a uma única categoria da diferença, pois são articulados e (3) essas categorias são permeadas por relações de poder (Pelúcio, 2011; Zamboni, 2014). É preciso elucidar que os marcadores sociais se constituem a partir do contexto histórico, sociocultural e das relações sociais. Por exemplo, não é a cor da pele que ocasiona a diferença, mas como em determinada sociedade (tempo e espaço) essa característica torna-se a partir das relações de poder, uma diferença que muitas vezes pode resultar em discriminação e desigualdade. Por isso, a importância de historicizar, localizar e contextualizar os marcadores sociais da diferença, assim como articulá-los (Zamboni, 2014; Almeida et al., 2018).

Se os marcadores sociais da diferença podem, a partir das relações de poder, resultar em discriminações e desigualdades (Zamboni, 2014), por outro lado, também se entende que os sujeitos possuem agência. Assim, as diferenças podem conduzir a subalternidade e desigualdade, como também a resistência, pois entende-se o poder como relacional, o que não significa dizer simétrico (Brah, 2006; Piscitelli, 2008; Pelúcio, 2011; Mendes, 2019).

Conforme Brah (2006) e Pelúcio (2011), a diferença precisa ser lida como importante instrumento de análise, uma vez que ela antecede o discurso da diversidade. Por isso, para falar de diversidade é necessário abordar a diferença e desse modo, considerar seu contexto sociocultural e político (Pelúcio, 2011). Diante disso, Brah (2006, p. 359) auxilia nesta compreensão sobre a diferença, ao utilizá-la como categoria de análise, e esclarece que “não é privilegiar o nível macro ou micro de análise, mas como articular discursos e práticas inscreve relações sociais, posições de sujeito e subjetividades”. Em outras palavras, é buscar compreender qual a diferença que estabelece um grupo com determinadas características como superior e o outro como subalterno, entender como a diferença distingue esses indivíduos - como sujeito ou como o “outro” - e entender de qual maneira ela é assimilada nas subjetividades coletivas.

Brah (2006) propõe entender a diferença como experiência, relação social, subjetividade e identidade. A diferença como experiência compreende que as experiências constituem o sujeito e não o contrário, bem como, ressalta a importância de entender a experiência não como uma verdade absoluta, mas como construída socialmente e culturalmente. A diferença como relação social “se refere à maneira como a diferença é constituída e organizada em relações sistemáticas através de discursos econômicos, culturais e políticos e práticas institucionais” (Brah, 2006, p. 362). Neste sentido, a diferença é mobilizada quando o grupo utiliza de estruturas de poder macro e micro sociais relacionados à raça, etnia e gênero, por exemplo, a fim de constituir a identidade de um grupo (Brah, 2006; Mendes, 2019).

No que se refere à diferença como subjetividade, a autora destaca os significados construídos em torno das diferenças. Tais subjetividades permitem entender que “as pessoas não são mecanicamente situadas nos discursos, mas são influenciadas e constituídas por eles, com possibilidades de resistência e de mudança sobre eles” (Mendes, 2019, p. 26). Por fim, a diferença como identidade se relaciona diretamente com os outros aspectos da diferença mencionados acima: experiências, subjetividade e relações sociais (Brah, 2006; Mendes, 2019), numa tentativa de dar coesão aos significados, experiências, discursos que constituem os sujeitos coletivos.

Identificar quais diferenças se fazem presente no contexto empreendedor e criativo em que as mulheres atuam é importante, sobretudo, para compreender como essas diferenças refletem no seu ofício, desde a sua inserção até sua permanência, pois, em geral, as mulheres estão mais suscetíveis às desigualdades de gênero em detrimento dos homens. Isto acontece, porque as mulheres estão na linha de frente no que se refere às desigualdades resultantes do gênero, ou seja, são elas que possuem “um status de gênero desvalorizado” e devido a isso acumulam mais “experiências negativas” (Martin, Reynolds, & Keith, 2002, p. 665).

Desta forma, ao buscar compreender as dificuldades vivenciadas no empreendedorismo feminino em Caruaru, é necessário olhar como os marcadores sociais da diferença se articulam nas vivências experienciadas pelas entrevistadas e considerar o contexto periférico do Agreste de Pernambuco no qual se inserem, no sentido de entender, a partir do olhar interseccional dos marcadores sociais, se estes resultam em dificuldades na atuação dessas mulheres na EC.

A interseccionalidade como ferramenta analítica

A ferramenta-metodológica da interseccionalidade surge a partir do black feminism, no intuito de atender às demandas sociais das mulheres negras, que não eram visualizadas e compreendidas nem pelo movimento feminista, majoritariamente branco e liberal, e tão pouco pelo movimento negro, porque o primeiro não conseguia entender que as mulheres negras em suas demandas eram marcadas duplamente pelo gênero e pela raça e, no segundo caso, pelo fato de o movimento negro debater somente questões relacionadas a raça, esquecendo-se de outro marcador social: o gênero (Piscitelli, 2008; Hirata; 2010; Rodrigues, 2013; Henning, 2015).

Mesmo o conceito da interseccionalidade surgindo dentro do feminismo negro e sendo cunhado, inicialmente, por Kimberlé Crenshaw, jurista, acadêmica e mulher negra, em 1989 (Piscitelli, 2008; Hirata; 2010; Rodrigues, 2013; Henning, 2015), não se pode dizer que o conceito se restringe apenas a esse público, visto que todos os sujeitos sociais são marcados por diferenças que se articulam/cruzam. São os marcadores sociais da diferença que permitem a compreensão das Interseccionalidades (Sagesse, Marini, Lorenzo, Simões & Cancela, 2018; Hirano, 2019).

Crenshaw (2002, p. 177) entende que “a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação”. Nesse sentido, Crenshaw (2002; 2004) entende que a partir do cruzamento dos eixos de poder a exemplo da raça, do gênero e da classe, mais comuns em suas análises, é possível localizar socialmente os sujeitos, como, por exemplo, as mulheres negras e subalternizadas, mas também outros sujeitos racializados como os brancos, em posições hierárquicas diferentes (Henning, 2015).

Para compreender melhor a articulação desses eixos de poder, Crenshaw (2002; 2004) elabora a metáfora da interseccionalidade como um cruzamento de ruas, onde as vias são os eixos de poder, que em determinado contexto específico se cruzam e se fundem. Diante disso, é importante entender que não existe uma hierarquia entre os eixos de poder, pois, a ferramenta-metodológica da interseccionalidade não olha de forma hierárquica para esses eixos de poder, mas de maneira interseccionada/articulada (Piscitelli, 2008; Hirata, 2010; Rodrigues, 2013; Henning, 2015).

Sabe-se que não existe um marcador social que seja mais determinante que outro, mas sim que existem impactos diferentes nos sujeitos e em suas realidades a partir de determinada intersecção entre mais de um marcador social da diferença. Ademais, destaca-se que a concepção conceitual e analítica da interseccionalidade adotada aqui, concebe os sujeitos dotados de agência, configurando-se dentro da abordagem construcionista da interseccionalidade, que entende o poder como relacional e não apenas estrutural (Piscitelli, 2008; Henning, 2015; Mountain, 2017) e nesse processo, [...] “uma pergunta a ser constantemente feita é se a diferença remete à desigualdade, opressão, exploração, ou, ao contrário, se a diferença remete a igualitarismo, diversidade, ou a formas democráticas de agência política” (Piscitelli, 2008, p. 269).

É importante salientar que a ferramenta teórico-metodológica da interseccionalidade tem em seu âmago a busca pela justiça social (Collins, 2017). Justiça social que de acordo com Jesus (2016) falta na atuação dos segmentos da economia criativa, quando se olha o gênero, visto que o discurso neoliberal e de mercado camufla as disparidades existentes, pois, “ao se assumir a Economia Criativa como um ramo da economia mais liberal do que as indústrias tradicionais, a igualdade entre os gêneros é colocada como dada, mas os homens ainda são privilegiados em termos de pagamento, acesso aos empregos, redes sociais e trajetórias de carreira” (Jesus, 2016, p. 21).

Essa disparidade pode ser visualizada por exemplo, nos relatórios da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) de 2008 e 2010, nos quais os segmentos da moda e do artesanato dentro da EC são mencionados como aqueles em que há alta empregabilidade de mulheres, visto que permite a elas conciliarem seu trabalho com as demandas da casa e da maternidade por exemplo. No entanto, é preciso observar com isso, que a atuação feminina dentro dos diversos segmentos da EC não se dá de forma igualitária, especificamente porque os segmentos que mais lhes dão espaço e consequentemente, lhes possibilitam alguma autonomia, são a moda e o artesanato (Jesus, 2016) de acordo com os relatórios.

É possível problematizar dois aspectos importantes a respeito disso: que o relatório da UNCTAD (2008; 2010) reforça que é papel das mulheres conciliarem o trabalho não remunerado doméstico e familiar com o trabalho remunerado, assim como, que existe divisão sexual do trabalho, visto que as mulheres atuam mais fortemente nos segmentos da moda e artesanato em detrimento da tecnologia, cinema e TV, por exemplo (Jesus, 2016). Divisão sexual do trabalho é aquela na qual o homem é encarregado do trabalho produtivo fora de casa, recebendo remuneração em forma de salário pelos serviços prestados, e a mulher é responsável pelas atividades de reprodução da força de trabalho, sem nenhuma bonificação (Bruschini & Rosemberg, 1982). Desse modo, prioriza-se a qualificação dos homens para a produção, destinando-os cargos com um valor social elevado, como políticos, religiosos, militares, entre outros (Hirata & Kergoat, 2007).

Assim, ao analisar as dificuldades no dia a dia de mulheres empreendedoras na EC em Caruaru, entende-se que outros marcadores sociais da diferença podem estar articulados ao gênero, a exemplo da raça e da localização, por ser um contexto periférico. Por isso a importância do olhar interseccional. Em outras palavras, entende-se aqui que ao fazer o recorte de gênero, as mulheres não compõem uma categoria universal (Piscitelli, 2002), por isso, a importância de localizar socialmente as mulheres empreendedoras que este estudo abarca e suas especificidades e realidades.

Lócus da Pesquisa

Historicamente, o Nordeste brasileiro, bem como o Agreste pernambucano, são regiões bastante plurais em cultura e diversidade e tidas como periféricas, assim como outras regiões brasileiras. Nesse caso, diferente de outros espaços brasileiros, o Nordeste e as demais localidades que a compõem ainda têm sido percebidas como atrasadas, principalmente em relação ao sul do país. Desse modo, compreende-se a existência de uma modernização híbrida neste contexto, que se constitui na relação conflituosa entre elementos modernos e tradicionais da região (Santos & Helal, 2018; Santos, Schmidt, & Zen, 2018). Inclusive, neste município é forte a presença e a importância das feiras de rua, como as feiras nos bairros, a Feira do Artesanato e da Sulanca, pois assim como em regiões circunvizinhas, elas foram as grandes responsáveis pela construção do comércio e da própria cidade (Sá, 2018).

Caruaru lida com a chegada de investimentos governamentais para o fomento da inovação na cidade, por exemplo, com a construção do Armazém da Criatividade (AC), que atua com o empreendedorismo, experimentação, exibição e educação, e com o trabalho desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia de Pernambuco (ITEP). Além disso, o Sebrae-PE também atua na cidade, proporcionando capacitações para empreendedores(as) e "[...] consultorias gerenciais com preço subsidiado às pequenas empresas, [...]", bem como outras instituições de âmbito político, que por vezes, se propõe a arrecadar recursos destinados às empresas locais, tais como "[...] a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) e a Associação Comercial e Industrial de Caruaru (ACIC)." Há também as organizações mais voltadas à capacitação técnica dos indivíduos, como "o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) [...]" (Santos, Schmidt, & Zen, 2018, p. 12). Com base em dados da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Economia Criativa de Caruaru (SEDEEC), em 2019 a cidade detinha o seguinte quantitativo de MEIs, que envolvem a EC em suas atividades laborais (ver quadro 1).

Quadro 1 -
Setores da EC em Caruaru

Fonte: Elaborado a partir de dados da SEDEEC (2019)

Apesar dos dados apresentados acima, no qual se observa um grande fluxo de pessoas atuando com EC, essencialmente nas áreas de gastronomia, artes e escrita ou no entretenimento, não foi possível obter dados sobre o quantitativo real de pessoas uma vez que não há dados sobre aqueles(as) que atuam na informalidade. Exemplos destes espaços informais são as feirinhas criativas e espaços colaborativos em diversos locais da cidade (ver Santos & Silva, 2020). De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2019), apresentados pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Economia Criativa do município de Caruaru (SEDEEC, 2019), entre 2016 a 2017, houve um percentual de crescimento econômico de 9,3% de modo tal que a cidade alcançou um PIB em 2017 de 6,87 bilhões (Prefeitura de Caruaru, 2019).

Outro destaque é que Caruaru também apresentou um Produto Interno Bruto (PIB) relevante em 2018, que alcançou estimadamente R$ 3,87 bilhões. Apesar do segmento têxtil ser o que lhe traz mais destaque economicamente, a cidade ainda se volta mais para o setor de serviços, que compõe aproximadamente 82% do PIB municipal anual, em contrapartida a apenas 17% da indústria e 1% da agricultura, em valores estimados (Santos, Schmidt, & Zen, 2018).

Diante da dificuldade em se encontrar dados referentes à participação feminina no empreendedorismo criativo local, os dados mais atuais que foram encontrados foram de 2014, indicando que, apesar de seu ingresso ser gradativo, em 2014 o público masculino ainda era majoritário nesse ramo (Torres & Silva, 2014). Ainda que as mulheres tenham se mostrado mais inovadoras do que os homens na época, em um percentual de 100% da população feminina alcançada pelos autores em relação a 86,96% dos respondentes masculinos (Torres & Silva, 2014). A seguir, serão abordadas as estratégias utilizadas por este estudo para o alcance dos resultados.

Método da pesquisa

Optou-se pela abordagem qualitativa, uma vez que possibilita analisar a subjetividade presente em uma diversidade de vivências individuais e coletivas (Ramos & Valdisser, 2019). Para o estudo, também se utilizou a triangulação da interpretação das pesquisadoras, pois cada pesquisadora realizou a leitura das transcrições e respostas dos formulários e a identificação de categorias de análise, que foram comparadas a fim de alcançar unicidade. Isso porque a triangulação garante confiabilidade e validade às informações coletadas (Martins & Theóphilo, 2009).

As técnicas de coleta de informações foi a entrevista semiestruturada, principalmente por ela possibilitar o acesso a certa subjetividade e profundidade presente nas respostas dadas pelas participantes (Flick, 2013). As entrevistas precisaram ser realizadas mediante videoconferência ou formulário Google Forms por causa das diversas limitações ocasionadas pelas medidas restritivas adotadas no estado de Pernambuco para contenção do vírus Covid-19, principalmente durante os meses de maio e junho de 2020, período no qual as informações deste estudo foram coletadas. Os critérios para seleção das entrevistadas foram possuir identidade de gênero feminina e atuar em qualquer segmento da EC na cidade de Caruaru-PE. A partir destes critérios, realizou-se uma busca prévia sobre empreendedoras locais em sites e redes sociais. O contato inicial com elas se deu através dos meios que elas disponibilizam para seus clientes em suas redes sociais no período anteriormente descrito.

Utilizou-se a saturação de respostas como indício para encerramento das coletas de informações (Paiva Júnior, Souza Leão, & Mello, 2011). Desse modo, a pesquisa abrangeu um total de quatorze empreendedoras que serão representadas do E1 ao E14. Dessas quatorze, cinco delas foram entrevistadas por videoconferência, devido à pandemia. As outras nove entrevistadas foram entrevistadas por meio de formulário do Google Forms, por não terem disponibilidade e/ou intimidade com a videoconferência.

Tanto o roteiro de entrevista quanto o formulário utilizaram as mesmas questões. O roteiro de entrevista foi construído pelas autoras a partir da revisão da literatura e visando responder o objetivo da pesquisa. Assim, estruturou-se o roteiro em blocos, a saber: o bloco A com perguntas sobre o perfil da empreendedora (para compreender os marcadores sociais da diferença com os quais elas se identificam) e a origem do seu negócio; o bloco B com perguntas sobre como empreender na EC (para compreender como acontece o trabalho delas e quais as dificuldades percebidas); e o bloco C com questões sobre o contexto da pandemia e as dificuldades e aprendizados ocasionados pela crise sanitária.

Tanto nas entrevistas por videoconferência quanto nas entrevistas via Google Forms, o objetivo do estudo foi explanado e as participantes também ficaram livres para indicar outras mulheres ou compartilhar o formulário para outras que pudessem participar. No entanto, não obtivemos nenhuma respondente pela técnica bola de neve. Para o tratamento das informações coletadas, foi utilizada a Análise de Conteúdo, compreendida pela autora Bardin (2011, p. 47) como “análise das comunicações visando a obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. A análise de conteúdo possibilita decifrar o conteúdo presente nas comunicações de modo que permita aos pesquisadores interpretarem aquilo que está sendo dito. Na próxima seção, será apresentado as categorias de análise a partir de Bardin (2011).

Apresentação e análise dos resultados

Perfil das respondentes

Esta seção detalha os marcadores sociais da diferença e outras informações consideradas relevantes para apresentar o perfil das entrevistadas.

Quadro 2 -
Caracterização das Entrevistadas

Fonte: Elaborado pelas autoras

Nenhuma das entrevistadas possui deficiência e todas são cisgênero, ou seja, se identificam com o gênero com o qual socialmente são lidas. Além disso, todas as entrevistadas cumprem o critério de seleção, pois atuam no contexto periférico do Agreste pernambucano e se identificam como mulheres. É interessante destacar (conforme o quadro acima) que somente uma das entrevistadas é idosa e as outras se enquadram na categoria jovem ou adulta. Em sua maioria, essas profissionais possuem o Ensino Superior Completo (6), seguidas daquelas de Ensino Superior Incompleto (3) e que já possuem alguma Especialização (3). Apenas a E14 possui o Ensino Médio Completo e a E7 tem titularidade de Mestrado. Quanto a sua residência, majoritariamente moram em Caruaru/PE, onde ficam localizados seus empreendimentos. No entanto, apesar de ter seu negócio em Caruaru, a E13 reside em Olinda/PE, a E6 reside em Sanharó/PE e a E2 em Blumenau/SC.

É interessante observar que os segmentos de atuação das entrevistadas dentro da EC são em sua maioria moda e artesanato, reafirmando o que indicam os relatórios da UNCTAD (2008; 2010), que vislumbram nestes segmentos a possibilidade de as mulheres conseguirem conciliar o trabalho doméstico e os cuidados com os filhos com seu empreendimento. No entanto, concordamos quando Jesus (2016) problematiza essa questão, ao afirmar que: (1) existe uma naturalização de que cabe ao gênero feminino conciliar as múltiplas jornadas; (2) há um reforço à divisão sexual do trabalho; (3) e não se problematiza o porquê de as mulheres atuarem mais fortemente nos segmentos menos remunerados da EC. Isso permite questionar de que maneira as instituições/órgãos voltados para o fomento da EC em Caruaru, no Agreste pernambucano, tem direcionado seus esforços/investimentos. Em outros termos, quais são os segmentos da EC priorizados e quem são os beneficiados, porque se as entrevistas predominam nos segmentos de moda e artesanato, que remuneram menos, em comparação ao segmento da tecnologia, por exemplo (Jesus, 2016), é preciso (re)pensar estratégias de equidade.

A seção a seguir detalha as categorias a partir do corpus das informações, considerando a orientação de Bardin (2011), a saber: pré-análise, exploração do material e o tratamento, inferência e interpretação.

Análise interseccional

Nesta seção apresentam-se as categorias de análise, os resultados e discussões. As categorias de análise foram agrupadas em três grupos chaves, conforme quadro abaixo.

Quadro 3 -
Categorias de Análise

Fonte: Elaborado pelas autoras

Esses pontos também são factíveis de serem percebidos nas discussões aqui apresentadas, como se observa a seguir:

Dificuldades externas e internas ao empreendimento

Nos relatos acessados, identificou-se que houve uma preponderância de capital próprio ou de algum membro da família para compor o capital inicial do negócio, demonstrando assim a dificuldade delas em conseguir apoio externo, no que se refere aos possíveis investidores do empreendimento. Desse modo, os relatos das entrevistadas dialogam com a realidade de outras mulheres empreendedoras, como aquelas investigadas por Silva, Mainardes e Lasso (2016) e Silva et al. (2019). Inclusive, algumas delas também relataram dificuldades em encontrar parceiros que partilhem dos mesmos princípios e valores que elas e seus empreendimentos, como se observa nos relatos a seguir:

E3: Dificuldades, assim, o que eu sinto mais dificuldade hoje em dia é encontrar um sócio, um parceiro, alguém que abrace isso comigo, porque eu sempre digo que tenho muitas ideias e projetos, mas fazer tudo sozinha, literalmente, produção, atendimento, compra, marketing, divulgação. Por mais simples que pareça, são muitas coisas, enfim, fora as outras coisas que a gente tem de trabalho, estudo, casa, enfim, tantas outras coisas. Então eu sinto muito dificuldade, eu já tentei ter contato com outras pessoas, mas eu sinto uma resistência ainda em empreender muito grande. Às vezes a arte ela tem que ter uma identificação muito grande, você tem que ser apaixonado pelo que você faz, para você poder arriscar e apostar em arte. A minha dificuldade maior hoje é isso, arranjar, ter parceria com sócio que abrace essa causa comigo [...].

E6: Nunca conseguimos investimentos de terceiros, infelizmente. O pouco que investimos foi nosso próprio dinheiro. Os parceiros que temos hoje são os fornecedores que trabalham juntos conosco. E que apesar de ver nosso crescimento, ainda não se importam muito em entender como funciona nossa loja e ainda não nos levam muito a sério.

E7: Sim, é difícil conseguir quem invista, a gente consegue mais apoio e soma com outras empreendedoras.

Nos relatos acima, além de ser possível observar a necessidade de parceiros que possam investir nos negócios, particularmente na fala da E3 é possível perceber também que as mulheres empreendedoras investigadas acumulam diferentes papeis nos negócios, o que torna o trabalho mais complexo.

A pesquisa evidenciou também que as entrevistadas que alcançaram alguma parceria, em geral, o fizeram com Lojas Colaborativas da região, principalmente para poderem usufruir do espaço sem contrair todos os gastos de uma loja física. A maioria indicou parceria com Loja Colaborativa em Caruaru-PE, lócus dessa pesquisa, mas duas entrevistadas relataram que comercializam produtos em Lojas Colaborativas de Fortaleza/CE. Por exemplo, como no relata a E3, “vê, meu espaço físico é na ((nome da loja colaborativa)) só e em Fortaleza eu mandei já quadro pra lá, existe um espaço também lá. Todos dois são lojas colaborativas, certo? O resto é online no Instagram e o Whatsapp”.

Outras possibilidades de parcerias e apoio também foram observadas como: a) uma parceria com um Café Colaborativo (E2); b) parcerias com fornecedores de insumos de madeira para elaboração do trabalho (E3); c) parcerias com outras marcas que alugam salas no Espaço Colaborativo do qual se é proprietário, ou com os donos do prédio em que funciona o Espaço (E4); d) auxílio de programa de incubação da região (E8); e) aporte financeiro da família para iniciar o empreendimento (E12); f) parcerias com gráficas distintas que imprimem ou emolduram os trabalhos (E9 e E13); g) parceria com uma profissional de design (E9).

Apenas três respondentes optaram por não detalhar quem eram os seus parceiros. O que se pode perceber, diante desses relatos, é que as mulheres investigadas vivenciam experiências de desigualdades similares a outras mulheres no contexto de trabalho (Ramos & Valdisser, 2019; Brandão, Marques, & Lamela, 2019) periférico, uma vez que possuem dificuldade de conseguirem investidores, precisam lidar com diferentes atribuições nos seus negócios e fora deles, no ambiente doméstico, e ainda tem de lidar com a descrença dos outros em relação ao seu negócio, como no exemplo da E6, ao mencionar que os seus fornecedores não levam o seu trabalho a sério. Entretanto, as diversas possibilidades de parcerias observadas podem ser vistas como modos que essas mulheres encontram de driblar a ausência de apoio e investimento, principalmente o formal, e de resistirem. Assim, observa-se que as entrevistadas E2, E3, E4, E8, E9, E12 e E13, quando buscam por parcerias para solucionar as dificuldades mencionadas, estão exercendo agência e elaborando resistências (Brah, 2006; Piscitelli, 2008).

As entrevistadas também relatam dificuldades relacionadas à gestão do seu negócio seja no que tange ao atendimento ao cliente, à utilização de ferramentas digitais e redes sociais e à pouca compreensão e valorização do valor do produto ofertado. As entrevistadas E1 e E3 dizem sentir um certo estranhamento ao precisar lidar com as redes sociais de seus respectivos empreendimentos, por exemplo, quando relatam:

E1: [...] eu não gosto dessa parte de marketing e de comunicação através da internet, fazendo vídeo sabe, me expondo mesmo, é uma coisa que eu tenho muita dificuldade, eu sou muito travada e é uma coisa que eu pretendo mudar, pretendo fazer alguns cursos de oratória, mas é um impasse muito grande que eu tenho assim, falar em público também.

E3: [...] eu tenho uma certa resistência em ter esse contato maior [...], digitalmente falando, com meus clientes, eu sou muito ainda pequena em botar cara no meu negócio, entende? Eu não coloco a cara, meu negócio é sobre isso, em acolher, ter um contato, em demonstrar sentimento, só que a pessoa que está por trás da marca mostrando esse sentimento lá, no microfone, nos stories, entendesse?

Assim como elas, a E13 acredita que a sua introversão e a sua dificuldade em separar o pessoal do profissional durante o processo criativo são os principais motivos que a impedem de se aproximar de novos clientes. Elas não conseguiram formular no momento da entrevista o que está por trás disso. No entanto, evidenciam que essa é uma dificuldade. A E1 conta com o apoio do seu sócio e companheiro para fazer a produção de conteúdo nas redes, mas reconhece que precisa trabalhar esse aspecto. Acredita-se que esta dificuldade pode estar associada ao fato dessas mulheres terem que assumir atribuições diferentes dentro do mesmo negócio, que exigem formações e habilidades distintas que, muitas vezes, elas não possuem. Essa situação acaba gerando autocobrança dessas mulheres, que se veem atuando sozinhas e precisando desempenhar inúmeras atribuições com as quais, algumas vezes, elas não se identificam.

Outro aspecto observado na narrativa de várias empreendedoras como a E2, E3, E10 e E13, refere-se a como seus clientes lidam com o seu trabalho e com o preço final dos seus produtos. A E13, por exemplo, afirmou que suas ilustrações já possuem preços fixos e com isso, ficou difícil para alguns clientes aceitarem os valores cobrados pelo seu trabalho. Para lidar com a situação, contou que buscou o auxílio de uma amiga contadora. A E2, por sua vez, relata que a dificuldade que percebeu com seus clientes, está no fato deles não entenderem o valor cobrado pelos seus produtos. Até porque, para a E2, por estarem acostumados com o consumo nos grandes supermercados e lojas, há uma dificuldade em compreenderem que o produto artesanal possui um valor um pouco mais elevado do que o dos produtos consumidos nestes estabelecimentos, por causa do processo manual que demandam (ver trecho abaixo).

E2: Eu acho que a partir do momento que a gente explica cada “etapazinha”, de… O porquê que a gente coloca aquele sentimento ali, o cuidado, talvez as pessoas comecem a entender, porque um produto de pequena escala, totalmente artesanal tem um valor mais alto do que um produto feito pela indústria. Produto que é manuseado e vendido pelos supermercados e lojas grandes. [...] eu percebo que o pessoal tem dificuldades em entender, o porquê de o produto artesanal possuir aquele valor, como ele está, como todo mundo está habituado, foi criado a consumir produtos que são vendidos em mercados, em lojas […].

Vale destacar que a E2 aponta também uma possível solução para essa situação, demonstrando sua agência (Brah, 2006; Piscitelli, 2008) para lidar com tal dificuldade. Embasada em suas convicções pessoais, ela afirma que por meio da comunicação com os clientes sobre os processos de produção, pode explicar o cuidado que a produção vegana e artesanal necessita e que é executado por ela e as demais mulheres de sua família, que atuam nesse empreendimento.

Observou-se a partir das falas destas mulheres que independente do produto comercializado, todas sentem certa desvalorização do seu produto, a partir do momento que os seus clientes não compreendem e consequentemente, não aceitam os valores cobrados. Para elas, no valor cobrado não consta apenas o preço de sua mão de obra, mas também de todo o cuidado, dedicação e afeto que passam para o seu ofício. Apesar das soluções que se propuseram a executar em seus negócios, essa ainda é uma dificuldade que resiste cotidianamente. Em relação a isso, Ramos e Valdisser (2019) afirmam que por não terem seu trabalho valorizado e remunerado de maneira adequada, as mulheres estão vulneráveis a serem a mão-de-obra mais barata. Se o trabalho, o cuidado e os insumos por trás de cada produto não são percebidos pelos/as clientes, como relata a E2, fica mais difícil aceitar o preço e compreender o valor cobrado.

A única respondente idosa, a E9, relata que para fazer seu artesanato de arquitetura de papel, precisa contar com a parceria de uma designer, pois não tem familiaridade em fazer alguns processos pelo computador. Nesse ponto, observa-se como o marcador social da diferença geracional (Zamboni, 2014; Henning, 2015; Almeida et al., 2018) permeia esta dificuldade da empreendedora, visto que é a parceira designer que inicialmente passa todas as dimensões do desenho para o computador e o imprime, porque a E9 tem dificuldade de realizar essa etapa sozinha. Só após isso, ela executa a parte manual do seu trabalho, mediante o uso de um estilete afiado e cuidadosamente vai manuseando o papel, etapa por etapa. A E9 utiliza-se dessa parceria e agência para resistir à dificuldade tecnológica, que marca sua experiência como empreendedora mulher e idosa. Cabe destacar aqui que, de acordo com Brah (2006), as experiências coletivas, bem como as subjetividades, relações sociais e identidades são elementos que constituem as diferenças.

O marcador social da diferença (Zamboni, 2014; Henning, 2015; Almeida et al., 2018), referente à localidade também se destacou em um dos relatos acessados. A E6 relatou que por trabalhar com uma loja virtual, o frete tem papel importante na decisão de compra, e o fato das duas sócias e companheiras serem de um contexto periférico impacta diretamente no cálculo do frete. A E6 afirma que lida com essa dificuldade no momento optando por colocar o menor frete (entrega) do produto. Desse modo, observa-se que o marcador social da diferente relativo à localidade, ou seja, ser do centro ou da periferia, pode dificultar decisões importantes na gestão dos negócios.

Assim, ficou evidente que o cruzamento/intersecção entre os marcadores gênero, localidade e geração marcam experiências bem particulares na vida das entrevistadas, no que tange às dificuldades vivenciadas (Crenshaw, 2002; 2004; Piscitelli, 2008; Henning, 2015). Assim, considerando a ferramenta interseccional, foi possível evidenciar que em virtude do gênero, as mulheres possuem mais dificuldades do que os homens para obter credibilidade para o seu negócio no mercado e, consequentemente, conseguirem investimentos e parceiros para o seu empreendimento, o que dialoga com Silva et al. (2019) e Silva, Mainardes e Lasso (2016), quando estes afirmam que as mulheres empreendedoras utilizam dos seus recursos próprios pelas barreiras impostas.

Por causa dessa dificuldade em encontrar parcerias, também foi possível perceber que as mulheres investigadas acabam tendo que executar diferentes atividades num mesmo negócio, que exigem habilidades e formações diferentes e que elas não dominam. Elas acabam se cobrando ainda mais por não dominarem habilidades que são importantes para o desenvolvimento dos negócios e com as quais elas nem sempre se identificam.

Ademais, a ferramenta interseccional permite articular a diferença de gênero a outras categorias como localidade e geração, possibilitando compreender que a mulher não só se depara com dificuldades para conseguir parceiros, mas também se encontra diante de dificuldade para adequar o seu negócio às novas tecnologias (no caso da empreendedora idosa) e para tomar decisões relativas ao transporte e entrega dos produtos comercializados, por estar localizada em contexto periférico.

Ainda no que se refere ao gênero, percebe-se que a maioria das respondentes, ao narrarem seu trabalho, evidenciaram majoritariamente, a dupla/tripla jornada de trabalho, que é bastante comum na realidade dessas mulheres empreendedoras, em razão de uma estrutura social patriarcal, que condiciona à mulher a responsabilidade pelo espaço privado e do cuidado com o lar e os filhos (Bruschini, 1982; Hirata & Kergoat, 2007). Nos casos das respondentes que possuem filhos, elas não mencionam durante a narrativa a participação masculina nos cuidados com os filhos e com a casa.

O interessante desse ponto, é que poucas entrevistadas são mães, porém, mesmo aquelas que não são, também relatam uma rotina atribulada em razão de uma grande carga de trabalho proveniente dessa vivência entre o trabalho principal (em sua maioria, formal), os cuidados com o lar e o empreendimento. Com o contexto da pandemia do Covid-19, as duplas/triplas jornadas ficaram condicionadas ao mesmo espaço da casa. Desse modo, na experiência dessas mulheres empreendedoras, além das dificuldades referentes ao estabelecimento parcerias e à necessidade de desenvolver inúmeras atribuições no mesmo negócio, soma-se a dificuldade em lidar com múltiplas responsabilidades simultaneamente, incluindo o trabalho doméstico.

Muitas vezes essas mulheres empreendedoras, responsáveis pelo trabalho do cuidado, também são as provedoras do lar desenvolvendo outros trabalhos que lhes garante rendimento mensal, o que evidencia o acúmulo de atividades exercido por essas mulheres empreendedoras. Além disso, o fato de serem provedoras do lar também coloca essas mulheres em situação delicada no que se refere ao investimento no próprio negócio, principalmente no começo. Isso acontece porque a renda que elas obtêm com o desenvolvimento de outros trabalhos precisa ser direcionada à manutenção do lar, o que pode dificultar o desenvolvimento do negócio iniciante. Essa questão pode ser observada em algumas narrativas a seguir:

E2: A avó [...], todas as outras, tanto eu, quanto [...] mainha, tem uma jornada de trabalho fora de casa. Aí, meio que queira ou que não queira, isso acaba meio que atrapalhando. É… Quando a gente começa o produto, é… [...] Em escala, com pequena escala, é… Acontece muito isso. A gente não consegue só ter aquela renda. A gente acaba dependendo de uma renda, de uma outra renda, de um outro trabalho para poder dar os primeiros passos e se sustentar, que é o que aconteceu com a gente, né? Aí acaba que não é nem dupla jornada, às vezes, eu acho que é tripla. Ela, ela triplica, porque tem a jornada dos trabalhos fora, tem a jornada da ((nome da empresa)) e tem jornada do trabalho de casa, né? A gente tem os afazeres comuns, né? Do dia a dia doméstico comum e enfim.

E7: Sim, sempre complicado. É preciso dinheiro para colocar as ideias em prática e nem sempre temos. Assim como tempo, porque temos que nos dedicar a nossos trabalhos formais.

E13: Dividida entre afazeres domésticos e encomendas. Não tenho horário para começar nem terminar.

Essa necessidade em se desdobrar em mais de um trabalho evidencia a dificuldade de autonomia financeira de algumas dessas mulheres empreendedoras, presente, por exemplo, nas falas das entrevistadas E2 e E7 acima. Por não conseguirem sustentabilidade financeira com o trabalho que desempenham como empreendedoras na EC, precisam conciliar com outro trabalho, geralmente nos modos de carteira assinada e formal, como no caso da entrevistada E3, ou simplesmente não conseguem deixar seus trabalhos formais que são sua renda principal, como na fala da E2 e E7. A entrevistada E3, conforme o relato abaixo, afirma que já pensou em desistir do seu negócio por não ter autonomia financeira como empreendedora.

E3: Porque hoje eu tenho um outro emprego para poder incrementar minha renda, eu não vivo só ((nome da marca)), eu não consigo ainda dizer assim: vou largar tudo e viver só ((nome da marca)), eu já fiz isso, eu já larguei tudo e fiquei só com ((nome da marca)), e foi nesse momento que quando começou a pesar que eu comecei a querer desistir, eu não tinha outra renda para nos momentos difíceis eu ter um apoio, então, foi quando eu tive que ... eu disse caramba... eu vou regredir novamente, eu vou abandonar tudo e viver do meu negócio, né vou viver dele e vou fazer de tudo. Aí é quando a gente pensa que tá frustrado assim, interiormente, que a gente se frustra assim, interiormente, se frustra, o que tá acontecendo? O que eu fiz de errado? Por que não tá dando certo? Por que nem tem o retorno esperado?

A E3 questiona qual o motivo de não conseguir ainda tirar sua renda e sustento somente do seu trabalho com artesanato (quadros). Apesar disso, entende que isso leva tempo: [...] “só que daí foi quando eu tive que regredir para poder voltar pra uma empresa privada para trabalhar de novo, para poder conciliar essas duas coisas, porque eu sabia como era difícil fazer isso, mas aí eu consegui um trabalho de meio período”. Para lidar com falta de autonomia financeira, a E3, bem como a E2 e E7 se submetem a várias jornadas, cuidando da casa, dos filhos, além dos estudos. Merece destaque o fato de a E3 entender como uma “regressão” a volta ao trabalho na empresa privada.

No caso das entrevistadas que são mães, além de vivenciarem mais de uma jornada, observou-se que essa jornada praticamente quadruplica, em razão dos cuidados com os filhos menores de dez anos (salvo, a E4, pois por não possuir outro emprego, ela sustenta sua família apenas com a renda do seu empreendimento em conjunto com a renda do marido, vivenciando uma espécie de tripla jornada, quando se faz um comparativo com as outras entrevistadas, que também são mães). A situação dessas mulheres que exercem a maternidade pode ser vista nos relatos a seguir:

E4: [...] na parte da manhã eu sou mãe em tempo integral.

E5: Porque esse é um trabalho que eu faço em casa e aí já deixa que eu tenho uma carga horária a cumprir no meu outro ramo, [...], onde eu já falei que essa é a principal renda. Então é um trabalho que eu faço em casa, nos horários que eu estou em casa, ou seja, nos horários que eu estou com os meus filhos. Então, é bem desafiador é... Ter que dividir esse tempo com o cuidar dos filhos, com estar presente com os filhos, porque crianças cobram, criança cobra muita atenção. Então, eu acredito que esse é um grande desafio da mulher empreendedora, da mulher que tem família e trabalha em casa. Eu acho que o grande desafio de empreender, para mim, é a questão do tempo, em primeiro lugar, porque eu tenho crianças pequenas que demandam muito minha atenção e meus cuidados, então, estando em casa, que é onde eu trabalho, que é onde eu desenvolvo o meu trabalho, [...] eu tenho que dividir esse espaço com elas, então, é [...]. E em segundo lugar também, outro motivo, é o fato de que eu acho que o meu negócio, ele, eu acho que ele tem potencial para crescer, mas eu não disponho desse tempo para investir, e… Mais tempo, nisso, porque eu tenho essa outra atividade, porque também eu tenho essa outra prioridade que é cuidar e estar na vida das minhas crianças.

E14: Sim. Mesmo tendo filhos adultos que poderiam tomar conta da mais nova, minha filha mais velha é casada, o outro não mora em casa e a outra sempre está estudando, então eu tenho que estar sempre atenta a tudo o que a pequena faz pela segurança dela e também porque ela ainda é dependente.

Convém destacar com base nos relatos, que mesmo a mulher cada vez mais inserida no mercado de trabalho, como na EC, ainda assim é costumeiro o discurso social predominante que une a figura feminina à ideia de que é seu papel, único e exclusivo, cuidar das demandas da casa e dos filhos, mesmo que para isso também seja necessário abdicar de sua carreira e de seus cuidados pessoais (Ceribeli & Silva, 2017). Essa ideia se baseia no gênero como definidor do papel/função a ser exercida, desta forma, atua-se sob a lógica da divisão sexual do trabalho (Bruschini & Rosemberg, 1982; Hirata & Kergoat, 2007). Por mais que pareça algo já superado na sociedade, ainda é possível observar essa divisão presente no cotidiano, como revelam os relatos das entrevistadas e também a exemplo do relatório da UNCTAD (2008; 2010) que mobiliza a divisão sexual do trabalho para justificar a aderência das mulheres na EC aos segmentos de moda e artesanato (Jesus, 2016).

A E4, por exemplo, renunciou à rotina que levava no trabalho formal, para poder dedicar mais tempo aos filhos. No caso dela, o trabalho empreendedor lhe proporcionou se dedicar integralmente às crianças. Já as demais mães buscaram empreender por motivos distintos. Entretanto, há sempre um desafio inerente a esses ofícios e desse modo, a narrativa da E5, por exemplo, revela que a falta de tempo agravada por esse desafio de conciliar múltiplas jornadas, dificulta não só o seu progresso pessoal, mas também a dedicação ao empreendimento, novos investimentos e o crescimento da empresa em diversas esferas, destacando questões financeiras (investimentos e retorno). Além disso, as entrevistadas pouco mencionaram a participação ativa de homens nas etapas de execução dos negócios, salvo apenas os poucos casos em que o marido era sócio do negócio ou investidor, ou quando outros homens prestavam algum tipo de serviço na condição de terceirizados ou parceiros. Como afirmam os relatos abaixo das E10 e E11, elas desempenham sozinhas a maior parte das atividades relativas ao negócio.

E10: Geralmente é bem corrido, pois trabalho sozinha para fazer planilhas de custo, compras para estoque, publicidade e divulgação dos produtos, realização de pedidos e produção das encomendas.

E11: Eu fui me virando com o que tinha. No início quando precisei migrar para a loja física, fiz tudo que estava ao meu alcance. Sem precisar de grande investimento, fiz o que pude com o dinheiro que tinha no momento. Não tenho funcionários ainda... Então faço tudo só! Limpo e organizo a loja, atendo cliente, avalio peças, coloco as etiquetas.

As vivências relatadas evidenciam uma condição de precariedade do trabalho empreendedor feminino na Economia Criativa e Caruaru. Afinal, por meio das narrativas, foi possível observar que mesmo quando o negócio possui mais de um ano, muitas das empreendedoras ainda são as únicas responsáveis por boa parte do processo de planejamento, negociação com fornecedores, produção, embalagem, distribuição, venda trato com cliente e logística. Na subseção seguinte será detalhado o que move estas mulheres a empreenderem na EC caruaruense.

Motivação

Numa sociedade patriarcal, muitas mulheres ainda assimilam como sendo unicamente suas as múltiplas responsabilidades atribuídas ao gênero feminino, levando-as à sobrecarga e exaustão (Bruschini & Rosemberg, 1982; Hirata & Kergoat, 2007). Em virtude disso, muitas acabam saindo do mercado de trabalho formal e abdicando da carreira, principalmente após a maternidade, para que possam se dedicar aos cuidados dos filhos. Nessas circunstâncias, práticas de trabalho à distância, a flexibilização ou a redução da jornada de trabalho formal estão se tornando rotineiras entre as mulheres no meio empresarial em geral, sendo percebidas como alternativas para que elas não abandonem as vias formais de trabalho (Ceribeli & Silva, 2017). No entanto, observa-se que também tem sido comum a saída destas mulheres do mercado de trabalho formal para obtenção de um negócio próprio em razão da maternidade, permitindo a conciliação entre o trabalho e os filhos. Outra motivação observada para que estas mulheres se tornem empreendedoras, é a busca por realização pessoal, como pode ser visto na fala abaixo:

E5: Eu me sinto bastante motivada nesta atividade. É…não é minha, como eu falei não é minha fonte de renda principal, mas é algo que eu faço e que me dá muito prazer em fazer. Além do retorno financeiro, que não é ainda o que eu desejaria que fosse, eu gostaria que fosse maior é lógico, mas é… nunca pensei em desistir não.

Desse modo, definiu-se a categoria de análise motivação, por perceber que diversas entrevistadas relataram que apesar das dificuldades analisadas aqui, se sentem realizadas com seus negócios. Este sentimento de auto realização e auto satisfação por trabalhar com o que se gosta encontra respaldo da literatura de Ramos e Valdisser (2019). A E1, por exemplo, relata a motivação por trás da aceitabilidade dos clientes, quando afirma “a gente quer viver da ((nome da loja)), a gente [...] objetiva lucrar com isso, mas claro com esse sentimento de gratidão das pessoas, sabe, as pessoas vão olhar para gente dizer, mas só de ver você na rua eu fico feliz, para mim isso é um ponto mais positivo de tá na ((nome da loja))". A E3 revela que poder fazer qualquer quadro personalizado e atender toda e qualquer diversidade é sua maior motivação para fazer o que faz.

Percebe-se que a E2, E5, e E6 e E11 apresentam como motivação para fazer o que fazem fatores relacionados às suas identidades, valores e crenças como observado por Santos e Silva (2020) com participantes de feiras colaborativas do mesmo contexto periférico. A E2 pontua que criou o seu negócio voltado para o público vegano por entender nisso um compromisso com a vida, e que funciona sob outra lógica de gerir seu negócio, conforme o trecho abaixo:

E2: Hoje em dia, o positivo é que eu não penso… Eu não penso, eu nunca pensei na ((nome da marca)) como algo necessariamente capitalista, certo? Para ganhar dinheiro em cima daquilo, e somente... Né? Somente largar um produto para consumo, sem me preocupar como seria o processo daqueles produtos. Como eles podem afetar a vida do outro? Como eles podem afetar a minha vida? Então, o positivo é isso, que eu acredito muito que ele… É uma libertação, é… Tanto para os animais, como para a gente, porque a gente não está tendo, [...] nem exploração da gente nem na execução, porque a gente não está sendo explorado por uma cadeia de produção é… Totalmente capitalista e os animais começam a partir disso, a sair do prato das pessoas, porque elas já começam a perceber que é possível viver sem exploração animal.

E5: [...] é algo que eu faço e que me dá muito prazer em fazer. O aspecto mais positivo do meu trabalho está no fato dele estar totalmente ligado a… A uma causa social. No caso, a preservação do meio ambiente.

Nesse mesmo sentido, as entrevistadas E5 e E11 relatam que seus negócios foram inspiradores em seus valores relativos à sustentabilidade e a entrevistada E6 afirma que o que motivou a abrir sua loja foi a dificuldade para encontrar peças autorais sobre a temática LGBT.

Percebe-se, portanto, que a atuação de algumas mulheres na Economia Criativa em Caruaru parece ser motivada pelas “experiências, subjetividades, relações sociais e identidade” (Brah, 2006) associadas ao gênero feminino. Isso porque os negócios criados por essas mulheres aparecem como alternativas para conciliar a obtenção de rendimentos às responsabilidades domésticas e de cuidado, historicamente atribuídas às mulheres, conforme explica a noção de divisão sexual do trabalho (Bruschini & Rosemberg, 1982; Hirata & Kergoat, 2007). Além disso, cabe destacar a fala da E6, que menciona o marcador social da diferença de sexualidade como motivador para a confecção e comercialização de seus produtos e consequente criação do seu negócio.

Desse modo, acredita-se ser de extrema relevância considerar que a criação e gestão de negócios na Economia Criativa de Caruaru está associada a experiências, subjetividades relações sociais e identidades específicas, que precisam ser demarcadas e investigadas para o entendimento das dificuldades, necessidades, restrições e possibilidades existentes nesse campo de negócios.

Impactos da pandemia do Covid-19

Diante do contexto da pandemia do Covid-19, identificou-se que problemas que outrora eram costumeiros, como o contato com o cliente e o capital financeiro da empresa, por exemplo, foram agravados durante esse período. A maioria mencionou como principal desafio durante este período, ter de lidar com a questão financeira do empreendimento. Por exemplo, em função do Café Colaborativo, à época da entrevista, não ter realizado uma negociação ou dado um retorno acerca dos produtos da E2, que haviam sido deixados no estabelecimento para serem vendidos antes da pandemia, a E2 relatou que precisou arcar com a logística das vendas sozinha (nesse caso, dos produtos que estavam em sua propriedade, e não dos que estavam na posse do Café Colaborativo, pois estava fechado até o momento da entrevista), e mesmo assim, pagar a taxa de mensal de R$ 70,00, referente a parceria feita com o estabelecimento.

A E3 mencionou que estava tendo dificuldades em vender o produto no preço que ele se encontrava no mercado, por conta das mudanças ocasionadas pela pandemia (como o relato abaixo). Já a E4, além de sempre possuir como desafio lidar com a concorrência, que busca vender o produto a um preço abaixo do mercado, ainda teve dificuldades em lidar com o distanciamento social, uma vez que o contato presencial lhe possibilitava, de algum modo, fidelizar os seus clientes. Por sua vez, a E4 ressaltou como maior desafio da pandemia a questão financeira. Outros relatos também reforçam essa dificuldade financeira:

E3- [...] uma das coisas que mais batalhei foi a valorização em questão de valor mesmo do produto, não ao preço do produto, e eu tô vendo uma reviravolta, voltando novamente a isso, esse negócio, as pessoas me procuram e aí dizem “é eu queria saber valor, mas tu sabe né a gente tá na pandemia e eu não tenho tanto dinheiro” como se eu precisasse, tivesse que me vender, aquela história de prostituir seu produto, prostituir sua marca para poder realizar uma venda. Aí eu vejo muito isso, o pessoal procurando e fazendo novamente a mesma coisa que faziam no começo. Eu não sofria mais com isso, as pessoas sabiam que era meu trabalho, sabiam da dificuldade por trás da realização.

E4: O impacto maior que eu tenho sentido é a questão financeira mesmo, porque minhas receitas, elas reduziram em noventa por cento do que quando estava aberta para agora na pandemia.

E8: Sim. Agora na pandemia caiu cerca de 80% o faturamento. Mas não nos demos por vencidas. Sempre buscamos alternativas e vem mostrando resultado.

E9: As pessoas estão recebendo as artes que estavam encomendadas e os outros clientes não cancelaram os pedidos, mas remarcaram.

E12: [...] muitos romperam contrato.

Apenas a E2 mencionou como dificuldade o fato de manter a sustentabilidade durante a entrega dos seus produtos, pois às vezes precisa entregá-los em bolsas plásticas, não só pelas dificuldades em encontrar embalagens sustentáveis que fazem parte de sua proposta de valor, mas também porque entregando-as em bolsas plásticas, o cliente poderá limpar aquilo que estiver recebendo, seguindo as orientações dos órgãos de saúde, para evitar o alastramento do Covid-19. A pandemia também provocou novos desafios, principalmente no que se refere à necessidade de aquisição de novas habilidades, como fotografia dos produtos, geração de conteúdo, interação virtual com os clientes e fornecedores. Isso acabou ampliando ainda mais a jornada de trabalho das entrevistadas, por exemplo, na fala da E11:

E11: [jornada de trabalho] mais cansativa que o normal. Preciso gerar ainda mais conteúdo para o Instagram, fazer entregas e ter paciência com a comunicação on-line

Desse modo, ficou evidente que, a partir da pandemia, houve um agravamento das múltiplas jornadas de trabalho para as entrevistadas, em razão da necessidade de lidar, de forma mais enfática, com o meio digital. Assim, quando elas estão em casa, além do trabalho principal (em alguns casos, desenvolvido em home office), elas ainda têm o trabalho do empreendimento, os cuidados do lar (tanto as mães, como as solteiras sem filhos) e o cuidado dos filhos (no caso das mães desta pesquisa), como mencionado anteriormente.

Além dos impactos na rotina, outros impactos, aqui entendidos como subjetivos, foram sentidos por algumas entrevistadas, devido às mudanças bruscas em termos de isolamento social, mudança de espaço, de rotina e outros fatores de estresse. A E3, por exemplo, relata que além da dificuldade para comprar as linhas que são matéria-prima dos seus quadros, seus planos para ampliar seu negócio também precisaram ser modificados, o que impactou na sua subjetividade. Ela afirma que sentiu na produtividade e organização diária os impactos da pandemia: “[...] o que mudou pra mim foi a produtividade porque como o humor, o lado emotivo tem mudado, a produtividade oscila também, então eu tô nesse espírito de produtividade, às vezes eu não consigo [...].

Outro relato que aborda os impactos subjetivos da pandemia foi o da E13, no que se refere ao cancelamento da festa de São João de Caruaru, que movimenta a economia da cidade. Segundo a E13 “se ganha um dinheiro legal” nas feiras de economia criativa que acontecem no São João, conforme exposto por Santos e Silva (2020). Entretanto, por causa da pandemia, o evento não aconteceu. Para a E13, além do fator financeiro, a pandemia afetou seu bem-estar:

E13: [...] E o principal é saúde mental mesmo. Todo meu negócio depende exclusivamente de mim. Se eu não tiver bem, tudo para. E as coisas não estão fáceis com essa tensão e medo de perder entes queridos, medo de morrer, medo de adoecer e não ter para onde ir.

Nessa fala da E13 constata-se que o impacto financeiro é significativo, principalmente se considerarmos que muitas das entrevistadas não conseguem tirar sua renda principal do seu empreendimento, bem como o impacto no bem-estar, pois afeta na criatividade, criação e confecção dos produtos. As produções realizadas pelas entrevistadas exigem bastante da subjetividade e criatividade. Apesar da pandemia proporcionar restrições e dificuldades, decidiu-se perguntar às entrevistadas se era possível obter algum aprendizado neste momento de tensão e medo, como definiu a E13. Diante dessa questão, percebe-se que o principal aprendizado se refere à gestão financeira, como observado na fala da E1, que afirma: “o aprendizado que fica é sobre a importância da reserva financeira, já sabia que era importante, mas só em um momento como este, entendi a real necessidade”.

Outro aprendizado relatado pela E1 refere-se à importância da venda pelo meio-digital. Ela e seu sócio possuem uma loja física e redes sociais, mas foi a necessidade de vender on-line, devido à pandemia, que fez com que eles conseguissem colocar o site da loja no ar, algo que ela e seu sócio vinham planejando a algum tempo. Foi possível observar também o aprendizado referente à importância do planejamento e organização de estoque e matéria-prima, conforme a narrativa da respondente E3.

Considerações finais

Neste artigo, buscou-se analisar as principais dificuldades vivenciadas por empreendedoras na EC em Caruaru-PE. Para tanto, também se localizou a pesquisa no tempo e espaço, pois entende-se a importância da situacionalidade da pesquisa e de evidenciar a não neutralidade das pesquisadoras. Mobilizou-se as lentes teóricas dos marcadores sociais da diferença e da interseccionalidade para o alcance desses objetivos e para entender a forma como estas empreendedoras lidam com estas múltiplas situações nesse contexto periférico.

Foi possível perceber que em virtude do gênero, as mulheres empreendedoras na EC em Caruaru-PE possuem mais dificuldades do que os homens para obter credibilidade para o seu negócio no mercado e, consequentemente, conseguirem investimentos e parceiros para o seu empreendimento, levando-as a dificuldades financeiras. Por causa dessa dificuldade em encontrar parcerias, também foi possível perceber que as mulheres investigadas acabam tendo que executar diferentes atividades num mesmo negócio, que exigem habilidades e formações diferentes e que elas não dominam, levando-as a uma autocobrança. Também foram identificadas dificuldades ligadas às duplas e triplas jornadas de trabalho, considerando o trabalho como empreendedoras, o trabalho em empregos que garantem rendimentos fixos e o trabalho doméstico, reforçando a divisão sexual do trabalho.

Dificuldades referentes à gestão e sustentabilidade financeira dessas empreendedoras também foram percebidas, bem como dificuldades ligadas à gestão de relacionamento com os clientes, que muitas vezes não compreendem o processo de produção artesanal e o valor do produto final. Tais dificuldades se agravaram com a pandemia do Covid-19.

Por meio da ferramenta interseccional, que permite articular a diferença de gênero a outras categorias como localidade e geração, foi possível compreender que as mulheres empreendedoras investigadas não só se deparam com as dificuldades colocadas acima, mas também se encontram diante de dificuldade para adequar o seu negócio às novas tecnologias (no caso da empreendedora idosa, que articula os marcadores sociais da diferença de gênero e geração) e para tomar decisões relativas ao transporte e entrega dos produtos comercializados, no caso de empreendedora localizada em contexto periférico, que articula gênero e localidade.

No que se refere à motivação das mulheres empreendedoras na EC em Caruaru-PE, percebemos que elas se associam às experiências, subjetividades, relações sociais e identidade que constituem o gênero feminino. Isso porque os negócios criados por essas mulheres aparecem como alternativas para conciliar a obtenção de rendimentos às responsabilidades domésticas e de cuidado, historicamente atribuídas às mulheres, conforme explica a noção de divisão sexual do trabalho (Bruschini & Rosemberg, 1982; Hirata & Kergoat, 2007). Além disso, cabe destacar a fala da E6, que menciona o marcador social da diferença de sexualidade como motivador para a confecção e comercialização de seus produtos e consequente criação do seu negócio.

No que diz respeito aos impactos da pandemia do Covid-19 na atuação das empreendedoras caruaruense e suas subjetividades, foi possível observar: 1) o impacto da falta de uma reserva financeira; 2) o impacto em relação ao valor dos seus produtos; 3) a dificuldade para conseguir matéria-prima, como as madeiras para construir os quadros ou as bolsas recicláveis que atendam às exigências sanitárias; 4) a necessidade de estarem em outras plataformas de venda on-line e sentirem o impacto de precisarem estar à frente destas redes sociais; 5) a alteração do humor, o medo e tensão ocasionados pela Covid-19 e que impactam na produtividade e criatividade das empreendedoras e por fim 6) as múltiplas jornadas de trabalho em home office, que afetou a organização e produtividade delas. Assim, percebe-se, em muitos desses impactos, o agravamento de dificuldades existentes antes da pandemia.

Além disso, com a lente interseccional também foi possível perceber que quanto a raça, houve pouca representatividade de mulheres negras empreendedoras; quanto a gênero e deficiência, todas as entrevistadas são mulheres cisgênero e sem deficiências. Isso nos possibilita refletir que mesmo que as mulheres empreendedoras estejam conquistando seu espaço no que se refere a EC, é perceptível que este espaço não abarca ainda as diversas diferenças e vivências identitárias. Ademais, a análise interseccional também permitiu perceber a agência das mulheres diante das desigualdades vivenciadas, elaborando resistências, dentre elas, a construção de parcerias com lojas colaborativas, sócios(as), fornecedores de matéria-prima e designer, para lidar com as dificuldades financeiras.

Acredita-se que a nível nacional, a principal contribuição dessa pesquisa é analisaras dificuldades de empreendedoras brasileiras na EC, em uma realidade periférica brasileira, que de modo similar a outras regiões do país, encontram dificuldades relativas às questões de gênero (múltiplas jornadas, descredibilização etc.), às questões financeiras, entre outras. Logo, há particularidades e semelhanças em relação a outros contextos periféricos brasileiros, em virtude das inúmeras diferenças culturais e regionais existentes entre as múltiplas localidades brasileiras, que precisam ser consideradas durante a aplicabilidade de estudos futuros.

Entende-se também que outra contribuição nacional relevante é o fato desta pesquisa utilizar a ferramenta interseccional e a noção dos marcadores sociais da diferença para a análise das dificuldades vivenciadas pelas empreendedoras na EC, tendo em vista que as diferença que as constituem levam-nas a vivenciarem dificuldades específicas, sendo necessário considerar estes lugares sociais que elas ocupam para compreender suas necessidades e elaborar soluções efetivas.

As limitações deste estudo se referem à impossibilidade, no momento da coleta das informações, de realizar a observação participante e acessar pessoalmente as mulheres empreendedoras que não tinham familiaridade com a videoconferência. Sugere-se como agenda futura: 1) que sejam realizadas outras pesquisas em contextos periféricos utilizando a lente interseccional que busquem acessar as dificuldades e resistências de mulheres empreendedoras na EC; 2) que sejam realizadas pesquisas de abordagem quantitativa que mapeiem as mulheres da EC em Caruaru e outros contextos periféricos com o objetivo de identificar quantas são, quais são os segmentos que atuam e as suas intersecções a partir dos marcadores sociais da diferença e 3) por fim, uma pesquisa que se aprofunde a entender as especificidades de mulheres empreendedoras que atuam no meio digital.

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