Recepción: 23 Abril 2021
Aprobación: 20 Mayo 2021
DOI: https://doi.org/10.12712/rpca.v15i2.49768
Resumo: Objetiva-se investigar como a categoria pinkwashing pode contribuir para uma análise crítica sobre o uso das pautas LGBTQI por marcas engajadas. Realizou-se uma pesquisa documental com três grandes marcas mundiais em suas subsidiárias brasileiras, a partir dos posts publicados em redes sociais virtuais selecionando aqueles com maior engajamento, seguida por análise temática qualitativa do conteúdo. O resultado indica que a categoria pinkwashing contribuiu para a caracterização de práticas corporativas que intentam passar uma mensagem invertida sobre sua atuação, evidenciado em uma das três marcas investigadas. Conclui-se com uma discussão sobre os limites da representatividade para as pautas sociais.
Palavras-chave: Pinkwashing, LGBQTI, Representatividade, Marcas engajadas, Marketing crítico.
Abstract: The objective is to investigate how the pinkwashing category can contribute to a critical analysis of the use of LGBTQI guidelines by engaged brands. The method was documentary research with three major world brands, from the posts published on virtual social networks, selecting the most engaged, treated with qualitative analysis of the content. The result indicates that the pinkwashing category contributed to the characterization of corporate practices that try to send an inverted message about their performance, especially in one of the three brands investigated. It concludes with a discussion on the limits of representativeness for social agendas.
Keywords: Pinkwashing, LGBQTI, Representativeness, Engaged brands, Critical marketing.
Introdução
O objetivo deste artigo consiste em investigar como a categoria pinkwashing pode contribuir para uma análise crítica sobre o uso das pautas LGBTQI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Queers e Intersexuais cf. Jayme, 2018) por marcas engajadas.
A força e a visibilidade do movimento LGBTQI tem feito com que muitos estudiosos das diversas áreas comecem a se interessar pela temática. No entanto, mesmo com todos esses avanços, a produção acadêmica sobre os consumidores LGBTQI é pouco explorada na área da Administração (Carrieri et al., 2014; Pompeu & Souza, 2018). Dentre as pesquisas que versam acerca da temática destacamos os seguintes assuntos: a questão da identidade e do preconceito (Caproni, Saraiva, & Bicalho, 2014; Saraiva, Santos et al., 2020; Souza, 2017); a violência simbólica sofrida pelos trabalhadores homossexuais (Carrieri et al., 2013; Pompeu & Souza, 2019); o silêncio e a ameaça à identidade (Gomes & Felix, 2019); a resiliência e adaptabilidade dos homossexuais masculinos no ambiente de trabalho (Irigaray et al., 2017); o estigma da feminilidade visto como “inferior” nas organizações (Moura & Nascimento, 2020).
Pari passu ao crescimento do movimento tem sido a ampliação do mercado LGBTQI, um dos que mais crescem em todo o mundo (Pequenas Empresas Grandes Negócios [PENG], 2018), em 2016 foram estimados U$3 trilhões por ano (IstoÉ Dinheiro, 2016). O potencial desse segmento pode ser visto em eventos grandiosos como a Parada LGBTQI de São Paulo que, em 2019, movimentou R$403 milhões na economia da cidade e reuniu 3 milhões de pessoas na Avenida Paulista (Pinhoni, 2019). O mercado LGBTQI brasileiro é o segundo maior do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, no Brasil, são mais de 9,5 milhões de adultos que se declaram LGBTQI e perfazem uma renda anual total de U$141 bilhões. Desses, 60% têm acesso à internet e renda anual total de U$84,7 bilhões (Out Now, 2017). Ou seja, é um público conectado e com potencial de consumo.
Uma pesquisa recente revela que consumidores/as têm demandado que as empresas solucionem problemas sociais, 83% daqueles declaram que prestam mais atenção no que as marcas dizem (Montesanti, 2020), isto é, há uma expectativa de engajamento das marcas como diferencial competitivo (Ákestman, Rosengren, & Dahlen, 2017). Toda essa dinâmica econômica-social, portanto, não se move por ordem do acaso.
Considerando o poder de compra da comunidade LGBTQI, as empresas têm sido atraídas pelo que tem sido chamado pink money, termo que surgiu no final da última década para designar o potencial de consumo do ambiente LGBTQI, no qual passaram a investir em produtos e ações voltados diretamente para esse público (Alves, 2019). Não obstante, a pauta LGBTQI pode estar servindo de “escudo” para empresas que publicitam uma postura, mas praticam seu inverso, é o que tem sido difundido como pinkwashing (Grace, 2015).
O movimento LGBTQI encampa a luta contra o preconceito, mas também contra a opressão, na medida em que busca igualdade de condições de cidadania (Dalaqua, 2020) assim como o combate às percepções negativas (Rios, 2007), discriminatórias e estigmatizantes (Moura & Nascimento, 2020; Bevilaqca & Medeiros, 2019). Enquanto as conquistas do movimento refletidas no Direito em decorrência das lutas sociais (Araújo, Silva, & Medeiros, 2011) representam avanços, persistem o preconceito e a opressão, o que sinaliza que o horizonte de uma sociedade emancipatória ainda parece distante (Bento, 2015), sendo relevante contribuições como a que se propõe no escopo deste artigo.
No espaço dessa pesquisa, o foco recai sobre a relação entre o movimento LGBQTI em sentido lato, e as empresas que se apresentam como parceiras na causa. De modo que não ampliaremos o debate acerca do movimento per si, mas de como o mercado tem assimilado a pauta LGBTQI em sua comunicação, por esta razão, considerando o amplo processo de produção global: produção, circulação, distribuição e consumo (Marx, 2011), nos debruçaremos sobre a esfera do consumo, onde consumidor e vendedor se encontram. Para isso, selecionamos três grandes marcas, cada uma de um segmento, a partir da rede social virtual Instagram, pinçamos o post de apoio ao movimento com maior engajamento e fizemos a análise.
Para isso, esse artigo foi organizado da seguinte maneira: após essa breve introdução são apresentados elementos teóricos acerca da relação entre as marcas e o movimento LGBTQI e do pinkwashing. Na sequência, apresentamos a metodologia, a análise dos comentários nos posts das marcas, encerrando com as considerações finais.
O movimento LGBTQI pelas marcas: o engajamento pink
Dentre os acontecimentos que marcam a adesão das empresas à causa LGBTQI, a “Revolução de Stonewall” que marca o dia do Orgulho LGBTQI (Facchini, 2005), certamente é uma das mais emblemáticas. A data é simbólica e seu desdobramento pode ser percebido por uma série de outras resistências e lutas pró-LGBTQI (Lopes, 2004). Desde então, o efeito cascata de empresas que apoiavam a causa foi se ampliando.
Já na década de 1980, a Absolut Vodka, por meio de anúncios veiculados em revistas para o segmento, destinava atenção ao público LGBTQI. Em 2008, a Absolut (2020) lançou uma edição comemorativa de sua garrafa com as cores da bandeira LGBTQI em alusão aos 30 anos de apoio à causa.
Ainda na década de 1980, a rede de loja de móveis Ikea deu visibilidade à homoafetividade com um anúncio que mostrava um casal de dois homens:
A primeira real representação de um casal gay, na rede televisiva norte-americana, foi feita em um comercial da loja de móveis Ikea, em 1984. A campanha esteve no ar em não mais que três ou quatro canais, e apenas depois das 22 horas, mas causou uma sensação generalizada, porque ninguém, até então, havia sido tão ousado e objetivo quanto ao tema. (Woitowicz, 2009, p. 239).
No Brasil, a Construtora Tecnisa, em 2009, veiculou um anúncio que mostrava duas peças íntimas masculinas penduradas em um varal, com a frase “Mais cedo ou mais tarde, vocês vão morar juntos. Por que não mais cedo?”, em alusão ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, desde 2003 a construtora tem veiculado anúncios em sites da comunidade gay, com o bom retorno a companhia viria incrementando o investimento para o público (Aguilhar, 2012).
Em 2013, as gigantes Ponto Frio, o Itaú, o Walmart Brasil, o Sonho de Valsa, o Halls Brasil, a Bonafont e a Contigo! manifestaram seu apoio à união entre pessoas do mesmo sexo usaram em suas redes sociais virtuais, elas utilizaram o símbolo matemático “=”, como representação da igualdade (Portugal, 2013).
O fato é que a adoção de temas LGBTQI tem crescido entre as empresas. Montesanti (2020) apresenta dados de uma pesquisa realizada pela Edelman Trust e Barometer, consultoria em relações públicas e marketing, que demonstra que 97% dos consumidores (inclusive os/as brasileiros/as) consultados/as esperam marcas mais engajadas, ou seja, a inclusão é também uma demanda mercadológica e como tal, sujeita às oscilações.
Ákestman et al. (2017) salientam que são várias as causas para que as empresas apoiem uma causa como a LGBTQI: alcançar um público-alvo homossexual; atrair um público pró-diversidade; comunicar os valores da empresa; refletir a sociedade em geral ou apenas projetar a imagem do que a empresa entende por uma sociedade desejável.
Em busca de compreender como o público homossexual compreende o uso da pauta LGBTQI pelas marcas, os suecos Berisha et al. (2015) revelam que o público vê com desconfiança a falta de conexão entre a peça publicitária, a marca e o produto, por isso anúncios com apelo emocional, mas que não tem um papel “informativo” são interpretados como pinkwashing, o que pode ser sinalizado em dois elementos: a) a forma como o homossexual é retratado impacta na recepção; b) a mensagem deve ser realista e genuína para ter uma atitude positiva em relação ao anúncio com tema homossexual.
Podemos sugerir que há uma maior adesão de grandes empresas sobre temas da comunidade LGBTQI, contudo, (ainda) não é possível afirmar se tal adoção promove ganho mútuo, sendo esse um dos motivos pelo qual realizamos essa investigação. Observemos que mesmo depois de passadas algumas décadas em que grandes marcas abordagem o tema LGBTQI em suas campanhas, ainda é possível encontrar representações negativas, pejorativas ou preconceituosas na publicidade sobre minorias (Branchik & O’leary, 2016).
Para Bevilacqua e Medeiros (2019), nas últimas décadas, foi possível observar um tratamento analítico acerca do juízo do estereótipo, a questão de gênero, a cultura e estudos étnicos, e mais recentemente, a interligação entre os estereótipos, raça e cultura. Não se trata de uma defesa intransigente ao “politicamente correto”, ou tampouco de uma questão de pouca tolerância para o humor em propagandas, trata-se, sobretudo, de desnudar os preconceitos estruturais que são ocultados nas peças publicitárias, pois como salientam Pompeu e Souza (2019, p. 660), “as piadas homofóbicas servem como manutenção da heteronormatividade” e todas as suas mazelas. Ou seja, se por um lado há um crescente interesse das marcas de alcançar o público LGBTQI dado seu potencial de consumo, por outro lado tal atitude comercial “esbarra” no preconceito e na opressão arraigada nas relações sociais.
Dentre as principais críticas realizadas sobre os efeitos do marketing sobre a sociedade, destaca-se a contribuição da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt sobre a chamada Industria Cultural, que manipulava os elementos artístico para mobilizar e comercializar produtos padronizados e de baixa qualidade (Horkheimer & Adorno, 1985). A publicidade, por tanto, é um desdobramento dúplice que une mercado e arte e tem conseguido incentivar o consumismo e também os abusos de estereótipos (Bevilacqua e Medeiros, 2019), muitas vezes desconectada dos movimentos sociais como o feminismo e outras lutas (Zotos & Tsichla 2014).
Todos esses casos citados buscam apenas indicar como o poder das marcas se expressa junto aos indivíduos articulando-se às dimensões simbólicas e imaginárias (relações entre discursos, valores e relações do sujeito consigo) para legitimar interesses específicos de grupos e práticas hegemônicas, historicamente construídas e estruturadas, levando pesquisadores/as a sustentar que as empresas podem ser aceitas como corresponsáveis pelo processo de diversidade e inclusão, seja desenvolvendo capacidades, ou seja, “empoderando” grupos socialmente marginalizados (Magalhães & Saraiva, 2018).
Por um lado, como explanam Magalhães e Saraiva (2018), as práticas de inclusão podem contribuir com abertura do diálogo para a construção de discursos que possam reorientar os sujeitos sociais visando à reelaboração de seus valores na convivência com outrem, o que favoreceria a diversidade, a tolerância e a politização das minorias. Por outro lado, seria a inclusão suficiente para a busca da equidade que guia a luta do movimento LGBTQI?
O risco que se incorre ao endossarmos a política de inclusão como “sócia-majoritária” – uma vez que são eles que ditam o que será dito, quando e como – consiste em resolver a opressão apenas no plano aparente, no nível do discurso, uma vez que apenas tolerar e aceitar as diferenças não alteram a estruturas sociais que produzem as desigualdades (Haider, 2019). No lugar das diferenças serem aceitas como parte constitutiva da pluralidade da vida em sociedade, é encetado nos discursos acerca da inclusão uma igualdade apenas formal, conciliando os interesses a partir das demandas do mercado, sem sequer mencionar as causas que geram a opressão e, principalmente, como a exploração atua reforçando a opressão (Souza, Ferraz e Ferraz, no prelo).
Assim, é possível perceber que há uma contradição latente. Pois, segregar dificulta a convivência com as diferenças e reduz as possibilidades de conciliação e reconhecimento (Natt et al., 2015), contudo, na medida em que essa inclusão se dá mediante as trocas mercantis (empresas e seus consumidores), os indivíduos são reduzidos à consumidores, sua existência enquanto um ser humano unidimensional (Marcuse, 2015), portanto, o papel das empresas nesse processo deve seguir sendo perscrutado.
O que é o Pinkwashing?
Blacmer (2019) aponta que o termo teria surgido em 1985 quando a organização Breast Cancer Action (BCA) adotou “pinkwashing” para designar a forma fraudulenta e enganosa de marketing de causa. O motivo se deve às fitas rosas (até hoje utilizadas no Brasil) como símbolo para anunciar sobreviventes de câncer de mama, vítimas e instituições de caridade, contudo, o símbolo se tornou um meio potente para promover produtos e vender mercadorias; porém se descobriu mais tarde que muitos desses produtos vendidos por “marcas engajadas” continham matéria-prima cancerígena.
O pinkwashing ocorre quando as práticas de empresas ou governos buscam ocultar de modo falacioso suas práticas como engajadas em lutas (Berisha et al. 2015; Blackmer, 2019). O termo (re)surgiu em um artigo publicado em 2011, no The New York Times, “Israel and Pinkwashing” de Sarah Schulman (2011). É por esta razão que pinkwashing encontra-se fortemente vinculado ao abuso supostamente desonesto de Israel de seu histórico de direitos humanos LGBT para ocultar ou “encobrir” suas lutas com os palestinos (Blackmer, 2014). Embora o termo pink[i] remeta à causa LGBQTI, o termo pinkwashing não se resume a esse movimento, que engloba também o posicionamento falacioso das marcas quando apoiam causas sociais e ambientais (Orser, Colema & Li, 2020; Schulman, 2016).
No Brasil, ainda há poucos estudos acerca do Pinkwashing. Dentre as autoras que tem contribuídos com o estudo da temática destacamos Berenice Bento (2015), que demonstra que o “Pinkwashing brasileiro”, ocorre com “as letras da lei”, isto é, há leis que pressupõem direitos aos LGBTQIs e às pessoas negras, mas essas leis não se efetivam, reproduzindo a opressão e a luta que o movimento negro já encapada há centena de anos, e, mais recentemente, a luta da população LGBTQI, como vimos. Assim, embora a Lei tenha avançado, no plano social a segregação segue sendo reproduzida e isso seria pinkwashing brasileiro.
O “racismo cordial” e a “LGBTQIfobia cordial” elencados por Bento (2015) podem ser caracterizados pela possibilidade de convivência pacífica, desde que a/o excluída/o não ouse cruzar determinadas linhas e se contente com a ficção da igualdade legal. Entretanto, quando há a “invasão de fronteiras” e a luta se dá nos marcos do reconhecimento ou das identidades, ocorrem os conflitos.
A violência se imprime tanto nas desigualdades de condições, quanto em fazer com que essas populações tenham que “limpar” suas marcas de diferença para serem aceitas (Colares & Saraiva, 2016; Garcia & Souza, 2010; Gomes & Felix, 2019). Por isso Bento (2015) define como um “racismo cordial” e uma “LGBTQIfobia cordial”, na qual não há uma segregação legal, o “outro”. O pinkwashing ocorre, pois embora os “seres transviados” que constituem a população negra e os LGBTQI tenham o mesmo estatuto legal que as pessoas que se encaixam no padrão branco e heteronormativo, socialmente essa igualdade não se efetiva.
Nesse sentido, sustentamos que o pinkwashing pode ser uma categoria frutífera para ampliar a capacidade analítica acerca da opressão e do preconceito e propomos sua interligação com a teoria crítica das organizações, dada sua intencionalidade em questionar e transformar a realidade social, amparada em fundamentações teóricas que procuram entender tanto as relações sociais quanto os sujeitos e sua inserção nestas relações e nos grupos e organizações (Faria, 2007). Pois conforme o autor, nas organizações, são criadas racionalidades para legitimar as ideias e os valores morais de grupos sociais que tentam manter seus privilégios, tal como Bento (2015) suscitou tratando do pinkwashing, para isso esses grupos necessitam mascarar a realidade e diminuir as racionalidades que venham a colocar em risco as relações de poder.
Método de investigação
Trata-se de uma pesquisa exploratória e de natureza qualitativa (Creswell, 2014), com dados coletados por pesquisa documental (Godoy, 1995).
Foram selecionadas três empresas mundialmente reconhecidas: Avon Brasil, Coca-Cola Brasil e Uber Brasil, escolhidas por serem empresas signatárias do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI, o qual tem como propósito articular empresas em torno do compromisso com o respeito e a promoção aos direitos humanos LGBT no ambiente empresarial e na sociedade e também porque cada empresa faz parte de um ramo de negócio diferente, sendo representada pela Avon, no setor da estética; pela Coca-cola, da indústria de bebidas e pela Uber, do setor de transporte de passageiros mediados por aplicativos.
Para representar a comunicação das empresas, em tempo crescente de comunicação digital, foi eleito o Instagram, uma rede social que prioriza a publicação de imagens e vídeos que são visualizados e compartilhados pelos usuários da rede (Perinotto et. al, 2020) e que tem sido um importante aliado na construção das marcas (Dantas & Abreu, 2020). Foi escolhido um post por empresa, o critério de escolha foi o engajamento online, isto é o nível de interatividade dos usuários no tocante às marcas, acessadas por meio das mídias sociais (Harigan et al., 2017). Matérias de jornais e revistas também foram consultadas para complementar a análise .
Vale ressaltar que nosso intento não consistiu em realizar uma análise da marca, ou seja, não se trata de avaliar o posicionamento da empresa. Nossa atenção está na percepção dos/as milhares de usuários/as dessas redes/marcas, por pressupor que seguem a marca nas redes sociais por serem consumidores, ou simpáticos à marca, e saber como eles reagem, sejam eles/as LGBTQI ou não. Em outras palavras, nosso foco é menos sobre como as empresas devem se comunicar e mais como as pessoas reagem na expectativa de contribuir com o entendimento sobre a subjetivação do engajamento, como destacou Schulman (2016).
A operacionalização da pesquisa ocorreu do seguinte modo: a coleta dos dados aconteceu no dia 20 de agosto de 2020 e foi selecionado o post sobre o tema LGBQTI com maior engajamento. Foi feito o print dos posts (Figura 1) e em seguida os comentários foram baixados com a plataforma Sorteiogram (https://sorteiogram.com/), que exporta para planilhas do Excel, facilitando a análise dos dados.
Nota1: Instagram da Avon: postado em 10/06/19, possuía 634 comentários.
Nota2: Instagram da Coca-cola: postado em 24/01/18, possuía 6.344 comentários.
Nota3: Instagram da Uber: postado em 11/11/20, possuía 1.613 comentários.
Para o tratamento dos dados sobre a interação (comentários), nosso dado principal, utilizamos a análise de conteúdo sugerida por Graneheim e Lundman (2003) dado seu enfoque qualitativo. A técnica consistiu em condensar os comentários por assunto e ir reduzindo-os sucessivamente até que se chegasse a um tema. 1) O primeiro passo foi uma leitura flutuante em todos os comentários. 2) Depois foram sendo agrupados de acordo com posição positiva ou negativa em relação ao conteúdo da postagem (Unidade de significado). 3) Em seguida foram condensados os comentários por conteúdo semântico similar (subtema). 4) E por fim, foram selecionadas as três categorias (temas) com maior incidência. Tal procedimento de análise corresponde à abordagem exploratória (Creswell, 2014) desta investigação, tanto no que se refere ao tema (pinkwashing), quanto ao objetivo (mercado LGBTQI) e meio (Instagram).
O quadro 1 exemplifica como se deu o processo de tematização, como foram milhares de comentários, selecionamos os mais recorrentes para demonstrar como foi o tratamento dos dados. O nome dos usuários foi substituído por “@usuário” seguindo de um número sequencial, para manter o sigilo sobre as identidades. Optou-se por manter os erros ortográficos e emojis (ideogramas gráficos utilizados no ambiente virtual) originais, para caracterizar a interação em toda sua expressão.
Dentre as limitações destaca-se que uma análise de uma única peça não é suficiente para avaliar se há prática de pinkwashing ou não, contudo, nossa intenção não era avaliar o engajamento das marcas, mas sim destacar como os usuários percebem a comunicação comercial da pauta LGBTQI.
Análise e discussão
A análise ratifica o resultado da pesquisa de Berisha et al. (2015), tanto no que tange ao efeito negativo que a estereotipização têm sobre os usuários (Bevilacqua e Medeiros, 2019), quanto sobre a percepção de mensagem enganosa. Como poderá ser visto a seguir.
Representatividade
Representatividade consiste em simbolizar social e politicamente os interesses de determinado grupo, classe social e/ou de um povo. Nos últimos anos temos ouvido com certa frequência “representatividade importa” para se referir a presença de minorias (negros/as, mulheres, LGBTQI, entre outros) em espaços antes ocupados apenas por homens brancos heterossexuais (Haider, 2019). Pudemos observar no quadro 1 diversos comentários de @usuários ressaltando a relevância de se sentir representado/a, e outros tantos que manifestaram apoio à posição das três empresas que investigamos. Contudo, no contexto da representatividade das empresas, humanizemos a frase: A quem importa a representatividade? Para as marcas ou para os sujeitos? Seria uma relação em que ambos ganham?
Por um lado, se ver representado em campanhas públicas (mercantis ou não) é importante, pois denota o sentimento de pertença dos indivíduos (Berisha et al., 2015; Gomes & Felix, 2019). Como nos ensina Faria (2007), a quebra de racionalidades superiores (como a heteronormatividade, neste caso), pode contribuir para mudanças na forma de perceber e refletir a realidade social, criando, assim, novas racionalidades para substituir as que estão se tornando ineficientes na manutenção da estrutura de controle.
Assim, para as empresas, a representatividade pode servir para incluir novos grupos e ampliar seu público, tendo como principal embargo o preconceito arraigado na sociedade, e é esse aspecto que tem gerado um problema de marketing para grandes corporações, que devem responder aos anseios dos grupos sociais (Montesanti, 2020). A luta social nas relações fora da empresa também se dá nas relações de compra e venda, por isso no momento do consumo também há disputa.
Por outro lado, recordemo-nos que não foi por iniciativa do “mercado” que o movimento LGBTQI tem conseguido suas conquistas, o que aparece como causa é, na verdade, desdobramento. As empresas respondem à dinâmica social e mais que isso, dada a ampliação da necessidade de reprodução do capital, da constante ampliação da produção (Marx, 2013), demandam ininterruptamente por mais gente para produzir e também para consumir.
Situando tal discussão nas redes sociais, acompanhemos a explica de Andrade (2020):
O lucro anual do Facebook, Instagram e Twitter juntos passa de dezenas de bilhões de dólares. Certamente esse lucro deve ter um incremento neste ano de pandemia em que estamos mais confinados ao mundo virtual. Essas cifras são importantes para explicitar o óbvio, mas que ainda precisa ser dito. Essas empresas lucram e operam com a lógica – racionalidade – capitalista. E a forma delas lucrarem nos envolve diretamente. Elas lucram com os nossos posts, fotos, mas também e sobretudo com as nossas “tretas”, cancelamentos e momentos de celebridade. (...) Quando não estamos vigilantes ao caráter comercial e empresarial das redes sociais podemos reproduzir apenas uma lógica que garante o lucro para empresas, responsáveis pelo manejo das redes, ao passo que nos afastamos de uma dimensão orgânica da vida coletiva que envolve sobretudo a escuta.
Nessas redes é o engajamento que propicia o lucro, se os comentários são favoráveis ou desfavoráveis é de menor monta, o que importa é o post viralizar, as vendas crescerem e, em última instância, como a bolsa de valores recebe a notícia. Ou seja, para a empresa, muitas vezes a intensidade e o volume das disputas que engajam tendem a ser mais importantes que o resultado social que anuncia. Por isso, o tema LGBTQI, dado as acaloradas discussões que promove, pode ser um conteúdo com forte tendência a se espalhar.
O que tem sido chamado de reconhecimento nos moldes das relações mercantilizadas é apenas sua aparência, sua sombra em um sentido platônico, que tem pouco ou nenhuma efetividade sobre reprodução da vida dos tidos como diferentes (Haider, 2019). E que tem forte adesão, principalmente por toda marginalização das minorias. A rejeição e o sofrimento psíquico em casa, no trabalho e na vida pública, faz com que esses sujeitos enxerguem no engajamento das marcas uma possibilidade de reduzir o impacto subjetivo do preconceito.
Não obstante, como aponta Schulman (2016), trata-se apenas de um efeito paliativo, especialmente porque a lógica da igualdade formal é necessariamente individualista, semelhante ao que afirma Haider (2019), assim, se uma pessoa LGBTQI ou negra não “performar” ou se “empoderar” seria por culpa dela própria que não se esforçou o suficiente e não pela opressão estrutural que enseja o preconceito.
Ademais, se a inclusão e a aceitação se desse apenas para quem consegue “comprar” esse ou aquele produto, não seriam os indivíduos/grupos quem estariam sendo “aceitos”, mas o seu dinheiro. E como vivemos em uma sociedade capitalista, em que trabalhadores/as são sempre compradores (de produtos) ou vendedores (de força de trabalho), a representatividade, nestes termos, consegue aglutinar a luta por reconhecimento com os interesses materiais (Fraser, 2020) e como é possível constatar, os grupos oprimidos seguem sendo os indivíduos mais pauperizados nas relações de trabalho e de também de consumo, embora, como vimos, o mercado LGBTQI seja um nicho atrativo.
A opressão, desse modo, precisa ser tratada considerando a exploração (Haider, 2019), pois, segundo o autor, a LGBTfobia e o racismo não são “coisas dadas”, são construções históricas, que têm sido reforçadas para ampliar a exploração e dividir o movimento dos/as trabalhadores/as, ao pinçar a identidade em um plano estritamente individual, desconsiderando as relações sociais que produzem o preconceito.
Assim, a tendência é que as marcas se valham cada vez mais de temas como a pauta do movimento LGBTQI em sua comunicação, e que isso ocorra de forma mais sutil e menos estereotipada. O que nossa investigação indica, porém, é que não é possível efetivar a emancipação via mercado, é, antes, o seu oposto, trata-se, sobretudo, das empresas mercantilizando as disputas.
Nosso apontamento é que a noção de representatividade precisa considerar: se a exposição do sujeito tem o potencial de contribuir mormente com a redução das condições de opressão daquele grupo e se tal discussão passa necessariamente, considerando a sociedade hodierna, pela compreensão do papel daqueles sujeitos nas relações materiais de produção. Se não levarmos isso em consideração, apenas um lado ganha, o lado dominante pois a representatividade tende a ocultar o que deveria ser superado, operando apenas para suavizar os efeitos sem combater as causas, e isso é um limite para o uso mercantil das pautas de lutas sociais.
Preconceito social
O preconceito social emergiu a partir de dois subtemas: o sentimento sintetizado por meio da expressão “quem lacra não lucra” e a ameaça de @usuários insatisfeitos de que iriam deixar de consumir os produtos da marca. De acordo com Faria (2007), quando um grupo se coloca contra a ampliação das conquistas ora relegadas de outro grupo, há a tentativa de manutenção de privilégios, o que explica diversos comentários nos três posts investigados. O preconceito existente nas relações sociais permeia a forma como se compra e se vende, pois, consumidores/as e vendedoras, por isso os @usuários expõem abertamente suas bravatas nas redes na tentativa de impedir que pessoas LGBTQI possam compartilhar os mesmos espaços antes exclusivos.
À guisa de exemplo, uma campanha anterior da Coca-Cola também com a Pabllo Vittar foi alvo de uma fake news, de que a campanha da Coca-Cola teria causado um prejuízo bilionário para empresa, pois um boicote dos brasileiros teria reduzido em 21% as ações da bolsa que estimava uma perda de cerca de US$ 1,2 bilhão de dólares, quase 4 bilhões de reais; entretanto, na verdade, durante o período da veiculação a flutuação do preço das ações foi estável e a assessoria de imprensa informa que não foi registrada queda nas vendas (Lopes, 2017).
O preconceito social, portanto, é o reflexo da opressão que se expressa nas relações sociais estranhadas. O seu combate, como foi discutido no tópico sobre representatividade, deve se dar na transformação da forma como o ser social atua em seu fazer cotidiano em suas relações com os outros indivíduos. Haider (2019) elucida que o preconceito exprime a ideologia dominante e assim oculta as contradições, esconde a sociedade patriarcal, conservadora e reacionária. E que, neste caso, subjaz nos algoritmos (Morozov, 2018).
O preconceito manifestado no exame das interações também corrobora com as reflexões de Bento (2015) acerca da LGBTQIfobia cordial, uma vez que a manifestação dos @usuários tende a encarar o destaque de pessoas LGBTQI como “espetáculo” apenas para chamar atenção, manifestada na expressão “quem lacra não lucra”, para se referir a desnecessidade da presença do que está “fora do padrão”. Ou seja, mesmo havendo uma Lei contra a homofobia em vigência, o comportamento de setores conservadores da sociedade brasileira é indiferente ao código, e segue esperando que cada um cumpra seu papel conforme o script da família pequeno burguesa de comercial de margarina, já que o assunto é marca engajada.
Pinkwashing
O pinkwashing perpassou toda a análise de modo mais mediado, neste tópico abordaremos mais diretamente. Para isso, investigamos mais detidamente a Uber, pois dentre as três marcas, foi a que teve maior impacto negativo e reclamações sobre assédio, racismo e LGBTQIfobia sofridas tanto por motoristas quanto por passageiros. Buscamos notícias e matérias sobre essas denúncias de casos de LGBTQIfobia envolvendo a Uber, e encontramos diversos casos, dentre eles apresentaremos dois recentes para ilustrar as práticas da empresa em desalinho com o que declara em sua peça publicitária.
Em 02 de janeiro de 2020, o site G1 Ceará (2020) noticiou que um casal de empresários registrou um Boletim de Ocorrência contra um motorista do aplicativo Uber por agressão e homofobia em Fortaleza, no turístico bairro Meireles. De acordo com os passageiros, o condutor informou que “não ia levar viado” e agrediu com um tapa um dos homens que esperavam pelo transporte. Sobre o caso, por meio de nota, a Uber informou que tem uma política de “tolerância zero” para qualquer forma de discriminação em viagens realizadas em sua plataforma e que apuraria que as medidas cabíveis seriam tomadas. Não encontramos nenhuma outra matéria referente ao desfecho do caso.
Um mês ali a frente, em 06 de fevereiro, duas mulheres trans, Erika Muniz Araujo e Melissa de Menezes Sousa, denunciaram a agressão que sofreram, por um motorista do aplicativo Uber, na cidade de Brasília (Fernandes, 2020). Elas relataram que pediram um carro, porém estavam embarcando e o condutor identificou as passageiras, pediu que saíssem do veículo e cancelou a corrida sem dar explicações. Ao ser questionado sobre o motivo, o motorista se recusou a explicar e iniciou um comportamento violento, elas avisaram que estavam filmando seu comportamento e que chamariam a polícia, em seguida o motorista da Uber tentou tirá-las forçosamente do veículo, arremessou o celular de uma delas no chão e tentou enforcá-la. Em nota, a Uber informou que “não tolera qualquer forma de discriminação em sua plataforma. Ao recebermos (sic) a denúncia banimos o motorista do aplicativo. Em casos como esses, a empresa fica à disposição para colaborar com as autoridades e compartilhar informações sobre os envolvidos, na forma da lei”. (Fernandes, 2020).
O crescimento dos casos e das denúncias fez com que a Uber, em julho de 2020, lançasse o podcast “Fala, Parceiro!” dedicado ao combate do racismo, da violência contra a mulher e da LGBTQIfobia. De acordo com as informações de Eishima (2020), a série “Fala Parceiro de Respeito”, terá 20 episódios e será direcionada para os motoristas, aqueles que consumirem todo o conteúdo ganharão o selo “Viagem de Respeito”, programa já oferecido em 2019 e reforçado no último Carnaval (como vimos no post). Quando um passageiro chama o motorista pelo aplicativo pode optar por motoristas com o referido selo.
Por um lado, poderia ser dito que a empresa estaria buscando combater as opressões ao buscar conscientizar seus motoristas sobre “respeito”, uma vez que destinou tempo e dinheiro para a ação. Por outro lado, será que nos dois casos acima relatados, os motoristas fariam o tal curso do podcast? A tendência é que apenas os que já simpatizam com a causa ingressem no curso visando criar um nicho de mercado. Sobretudo, ao que parece, agindo desse modo, a Uber não contribui com o combate contra a LGBTQIfobia, apenas reduz a possibilidade de que um possível agressor e uma possível vítima se encontrem. Ou seja, é uma segmentação de mercado e não uma inclusão.
Analisando os casos acima, vemos que a solução é “banir o motorista” e cooperar “na forma da lei”, isto é, o que for estritamente formal. Para as vítimas ficam as marcas da agressão, para o motorista, o desalento de perder a fonte de renda, e para a Uber, nada acontece, afinal com milhares de motoristas cadastrados no Brasil, há bastante gente para repor quem for desligado. Há uma expressiva representação dos grupos sociais que se relaciona com a Uber, sendo, assim, é bastante evidente que a empresa professe a inclusão e a diversidade, como afirma a Diretora de Diversidade e Inclusão da Uber (2020), Bo Young Lee, “Com as ações corretas, equipes diversas podem se tornar nosso bem mais valioso, pois é a diversidade desses grupos que promove a inovação.”
Ou seja, o que está no horizonte é resultado corporativo (inovação), e dispensa, portanto, uma ação efetiva nas causas da opressão, bastando atuar paliativamente sobre os efeitos quando eles ocorrerem (banir o motorista, cooperar com as autoridades) ou mesmo evitar que os conflitos se deem na prestação de serviço (podcast e selo “Parceiro de Respeito). O caso do Uber ilustra a “ficção de igualdade legal” mencionada Bento (2015), pois as normas e condutas que deveriam ser seguidas pelos motoristas e usuários não tem efeito real, caracterizando uma possível prática de pinkwashing.
Conclusão
O objetivo geral desta pesquisa consistiu em investigar como a categoria pinkwashing pode contribuir para uma análise crítica sobre o uso das pautas LGBTQI por marcas engajadas.
Concluímos que a categoria pinkwashing contribui como mediação útil para caracterizar práticas corporativas que tentam passar uma mensagem invertida sobre sua atuação no que tange a uma referida causa.
Entre os resultados adicionais, verificamos que das marcas engajadas examinadas notadamente a Uber possivelmente pratica pinkwashing. Nas outras duas marcas não ficaram evidenciadas atitudes distintas do que sustentaram no post analisado, contudo, pouco se sabe sobre quais as práticas de gestão nestas empresas (política da diversidade) ou mesmo se o engajamento não se resume a criação de um segmento lucrativo, o mercado LGBTQI, conforme mencionado no início deste artigo.
Salientamos, por isso, o caráter contraditório do uso publicitário das pautas dos movimentos sociais, neste caso, nos detivemos especificamente no movimento LGBTQI. O aspecto positivo é a representatividade, que importa, mas não resolve. O aspecto subjetivo de se ver e se sentir representado em espaços novos, de poder, de destaque, de importância social, contribui com o acalento ao sentimento de rejeição experienciado por tantas pessoas LGBTQI, negras, periféricas, minorias sociais, em um sentido amplo, esse seria seu aspecto positivo. Esse efeito, porém, tende ao ensimesmamento do tratamento da opressão, isto é, um paliativo que reduz a dor, mas não trata a causa (Schulman, 2016), sendo este o aspecto negativo.
A representatividade atua como uma tentativa da quebra de racionalidades superiores (Faria, 2001), as atitudes LGBTQIfóbicas, e, assim, pode vir a contribuir com a construção de novas racionalidades, o que proporcionaria um desenvolvimento de uma sociedade mais justa e equânime. Entretanto, nos parece insuficiente, dada as demonstrações de preconceito expostas pelos @usuários, o que nos permite suspeitar do quanto a sociedade brasileira aceita e reproduz a opressão. Pudemos observar o quanto ações protagonizadas por pelos LGBTQI incomodam quem pauta as relações com seus semelhantes, expressando a LGBTQIfobia cordial apontada por Bento (2015).
Tal alerta sobre os limites do engajamento da marca para a comunidade LGBTQI pode ser sintetizada pelo que Haider (2019, p. 45) chama de “a armadilha da identidade”, pois por um lado, “Identidade” é um fenômeno real: ela corresponde ao modo que o Estado nos divide em indivíduos, e ao modo que formamos nossa individualidade em resposta a uma ampla gama de relações sociais”. Mas por outro lado, se a identidade é tomada de forma isolada dos demais aspectos da vida social, pode se tornar um perigo para superação das opressões. O problema não ser diferente, o problema é o uso da diferença como meio de exploração e preconceito.
Por isso, Hairder (2019, p. 45) assevera: “(...) não aceito a divina trindade da “raça, gênero e classe” como categorias identitárias. Essa ideia de Espírito Santo da Identidade, que ganha três formas divinas consubstanciais, não tem lugar na análise materialista.” Ou seja, raça, gênero e classe [E a questão de gênero, incluímos] são abstrações que devem ser explicadas a partir de sua própria historicidade, mas que não é acessível se tomarmos a identidade como ponto de partida, se aceitarmos o individualismo como constitutivo dos seres humanos (Ferraz, 2020).
Assim, indo além do pinkwashing, mesmo para as marcas engajadas, o impasse a que se chega diante da contradição da representatividade no uso mercadológico das pautas da população LGBTQI é que não é possível terceirizar a luta por igualdade para o mercado, que o ponto de chegada da relação: momento do consumo. O limite do engajamento será como a comunicação interfere no resultado corporativo, assim, diferente do que apresentou a pesquisa relatada por Montesanti (2020), não são as empresas que resolvem os problemas sociais.
Observemos, por exemplo, o caso da Uber, com uma explícita contradição entre o valor que declara e suas práticas. Fica notória a inferência de que dadas empresas que se colocam como engajadas, mas, na verdade, não influenciam na luta contra a opressão, pelo contrário, se omitem e criam espaços e situações para que a opressão ocorra. Portanto, do ponto de vista das empresas, recomenda-se que atentem para que pauta LGBTQI não se torne uma declaração vazia e oportunista, que seja de fato um apoio para que trabalhadores/as e/ou consumidores/a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Queers e Intersexuais tenham condições equânimes para vender sua força de trabalho e consumir bens e serviços.
Não seria prudente esquecer que para as empresas e seus dirigentes, não é a luta por equidade que está no horizonte (ainda que eles possam genuinamente desejá-la), pois o que guia qualquer campanha corporativa são os indicadores cuidadosamente previstos: inovação, segundo a Uber (2020) declarou; projetar a imagem do que a empresa entende por uma sociedade desejável (Ákestman et al., 2017) (projetar a imagem não é transformar a realidade); criar um diferencial competitivo (Ákestman et al., 2017; Montesanti, 2020). Não obstante, é urgente que a luta das minorias avance em busca de melhores condições de vida.
A busca pela emancipação, como denota Faria (2007), é uma tarefa que intenta identificar as ilusões que aprisionam os indivíduos no pensamento supersticioso, inerte, preconceituoso, ideológico, que propiciam a opressão e a exploração. A emancipação é o oposto da alienação, da reificação, da opressão social, da dominação do indivíduo pelo indivíduo e da prevalência dos interesses individuais em detrimento dos coletivos. É por essa razão que necessitamos aprender com a luta dos povos e grupos que vêm de longe sendo oprimidos e explorados.
Como recomendação de pesquisas futuras sugerimos estudos que investigassem mercado de trabalho e população LGBTQI em uma perspectiva materialista; estudos que ampliem o entendimento sobre a categoria pinkwashing; e também que investigassem casos que possam caracterizar tais práticas e, além disso, investigações sobre o impacto das redes sociais virtuais nos movimentos sociais.
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[i] Cf. Blacmer (2014) o termo pink provém da prática nazista de sinalizar os homens homossexuais prisioneiros dos campos de concentração com um triangulo rosa (pink) invertido para constrangê-los e identificá-los como “invertido”.