Resumo: Momentos de crise como da COVID-19 expõem desigualdades e implicam retrocessos para as mulheres. Para analisar esses efeitos, neste artigo problematizamos o dispositivo materno como um aspecto identitário que impacta a vida profissional das mulheres. Através da metodologia da história oral temática, ouvimos 11 trabalhadores, homens e mulheres. Os resultados indicam que a pandemia provocou repercussões negativas principalmente sobre as experiências profissionais das mulheres. No entanto, este impacto não pode ser explicado apenas pela desigualdade de gênero e divisão sexual do trabalho. Identificamos a maternidade como característica identitária, que se articula ao gênero para estruturar subordinações e perpetuar o desempoderamento.
Palavras-chave: Gênero, Dispositivo Materno, Divisão sexual do trabalho, Crise, Covid-19.
Abstract: Moments of crisis, such as the COVID-19 pandemic, expose inequalities and imply setbacks for women. To analyze these effects, this article problematizes the maternal device as an identity aspect impacting women's professional lives. Through the methodology of thematic oral history, we interviewed 11 workers, both men and women. The results indicate that the pandemic affected their work routines differently, with predominantly negative repercussions on women's experiences. However, gender inequality and the sexual division of labor cannot solely explain this impact. We identify maternity as an identity characteristic that articulates with gender to structure subordinations and perpetuate disempowerment.
Keywords: Gender, Maternal device, Sexual division of labor, Crisis, Covid-19.
MÃES EXAUSTAS, PAIS NEM TANTO: DISPOSITIVO MATERNO E A CRISE DA COVID-19
Recepción: 14 Agosto 2023
Aprobación: 11 Diciembre 2023
Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida. (Simone de Beauvoir, 1949)
Conforme a célebre frase de Simone de Beauvoir, episódios críticos submetem direitos e avanços sociais das mulheres ao questionamento e à opressão. A pandemia da Covid-19 pode ser entendida como uma dessas crises que, para além dos impactos sociais e econômicos, expôs desigualdades e implicou retrocessos para muitas mulheres.
A pandemia atingiu populações inteiras, intensificando crises econômicas, políticas e sociais em diversos países. No Brasil mais de 680 mil pessoas perderam suas vidas e milhares perderam seus empregos. Porém, como alertava Beauvoir, os impactos sobre as mulheres foram mais severos. Como mulheres pesquisadoras, vimos relevância em problematizar as consequências da pandemia com base no gênero, observando que a pandemia afetou de forma particularmente intensa as mulheres que são mães. O que poderia explicar este fenômeno? Dentre as muitas explicações possíveis, entendemos que o dispositivo materno seria uma delas.
Ao longo da história os comportamentos de homens e mulheres são determinados por expectativas sociais culturalmente estabelecidas. Essa construção social baseada na diferenciação dos sujeitos é compreendida como gênero, desassociando-se das questões biológicas e evidenciando os aspectos sociais. Nesse contexto, identificam-se relações de poder assimétricas entre homens e mulheres, revelando uma concepção hierárquica onde atributos considerados femininos são inferiorizados. Com isso, constitui-se uma rígida polarização dos gêneros, atribuindo aos indivíduos papéis que naturalizam responsabilidades definidas socialmente (Andrade, 2004; Pedro, 2005).
Neste cenário, ainda que nas últimas décadas tenha havido um avanço da participação feminina no mercado de trabalho, as mulheres permanecem sendo responsabilizadas pelas atividades domésticas e de cuidado, intensificando as necessidades de conciliação da vida profissional com a vida familiar. Essa sobrecarga faz com que muitas mulheres abandonem a vivência produtiva ou busquem trabalhos mais flexíveis, de caráter parcial ou temporário, porém normalmente associados a condições de trabalho desfavoráveis, com pouca possibilidade de crescimento profissional e salários mais baixos (Passos & Guedes, 2018).
O contexto pandêmico parece ter interferido neste exercício da conciliação das atividades profissionais e domésticas. A pandemia causada pela Covid-19 despertou mudanças em diversos campos da sociedade, principalmente em virtude do distanciamento social. Para muitos trabalhadores o home office compulsório levou a jornadas de trabalho mais intensas. Pelo fato de não possuir uma localização geográfica, o home office promove a ideia de “trabalho em nuvem”, em que “o sujeito deve registrar continuamente provas de seu esforço” (Losekann & Mourão, 2020, p. 73). Desta forma, o trabalho remoto promoveu um desequilíbrio entre os domínios pessoal e profissional, principalmente no que se refere ao convívio familiar (Martins, Aguiar & Bastos, 2020).
Para muitas mulheres que são mães e que puderam trabalhar de forma remota, o cenário de pandemia implicou a conciliação da rotina de trabalho com atividades domésticas e de cuidado com os filhos no espaço domiciliar em tempo integral, sem o apoio externo à família representado majoritariamente pelas instituições de ensino. Esta condição gerou uma sobrecarga e, por consequência, desgaste físico e psicológico sem precedentes, culminando com a manifestação de sintomas de depressão, ansiedade e estresse que afetam principalmente as mulheres (Pérez-Nebra, Carlotto & Sticca, 2020; Zanello, Antloga, Pfeifer-Flores & Richwin, 2022; Serafim et al., 2021). Além disso, elas tiveram suas vulnerabilidades socioeconômicas ampliadas, uma vez que perderam mais postos de trabalho em comparação aos homens (Barbosa, Costa & Hecksher, 2020).
As consequências da parentalidade também incidiram de forma desigual. Estudos como os de Amaral (2021); Adams‐Prassl, Boneva, Golin & Rauh (2020), Andrew et al. (2020), Del Boca, Oggero & Profeta (2020), Hupkau e Petrongolo (2020) e Kasymova, Place, Billings, & Aldape (2021) demonstraram que, apesar de os homens que são pais não serem imunes aos impactos do isolamento, as mães foram afetadas de forma mais intensa.
Na busca por compreender estes efeitos, sentimos a necessidade de um quadro teórico que nos ajudasse a ir além da divisão material do trabalho com base no gênero, mas que contemplasse também o sentimento das mulheres com relação à sua obrigação em assumir os cuidados com os filhos, uma vez que durante o trabalho remoto homens e mulheres compartilharam o espaço doméstico como lócus tanto para o trabalho produtivo como o reprodutivo. Neste sentido, o conceito de dispositivo materno pode lançar luz a aspectos pouco discutidos em trabalhos relacionados à divisão sexual do trabalho, uma vez que a maternidade é uma questão identitária para as mulheres, enquanto para os homens a paternidade envolve aspectos laborais e sexuais, não colocando em xeque sua identidade (Zanello, 2016).
Analisando este aspecto, argumentamos que a maternidade é uma característica identitária que exerce forte influência sobre as experiências vivenciadas pelas mulheres que são mães. Neste contexto, este artigo visa problematizar o dispositivo materno como um aspecto identitário que tem impacto sobre a vida profissional das mulheres, lançando luz sobre as suas consequências concretas durante o período da pandemia de Covid-19.
Para realizarmos este estudo, optamos pela história oral como método de pesquisa, dada a sua capacidade de transmitir as experiências dos sujeitos pertencentes a uma determinada sociedade (Alberti, 2000; Meihy & Holanda, 2011). Assim, na próxima seção abordamos as ideias de gênero, dispositivo materno e divisão sexual do trabalho. Após discutimos as características do mercado de trabalho pela perspectiva de gênero e apresentamos informações sobre relações de trabalho e empregabilidade na pandemia. A terceira seção trata dos aspectos metodológicos empregados na pesquisa e a quarta seção apresenta os relatos de pais e mães sujeitos da pesquisa, analisados à luz do conceito do dispositivo materno. Por fim, discutimos as implicações teóricas e práticas dos fenômenos descritos e sugerimos temas relevantes para o avanço das pesquisas nesta área.
Foi em meio a segunda onda do movimento feminista, na segunda metade do século XX, que o conceito de gênero foi ressignificado, desvinculando-se do conceito de sexo (Louro, 1997; Praun, 2011). Assim, o sexo biológico passou a limitar-se às diferenças anatômicas e genéticas entre os indivíduos, ao passo que gênero assume um viés político e é concebido como uma construção social (Praun, 2011).
Neste contexto, Scott (1995, p. 75) define gênero como “uma categoria social, imposta sobre um corpo sexuado”. Percebe-se portanto que os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres desde a infância são criados a partir de uma ideologia estereotipada, que determina o que deve ser considerado como masculino e feminino. Esses papéis sociais constituem-se a partir da existência de uma hierarquia entre os corpos, que determina não somente o comportamento dos sujeitos, mas também estabelece uma relação de superioridade e poder do homem sobre a mulher (Ramos, 2011). Como reflexo da sua relação com a sociedade, a concepção de gênero é influenciada pela cultura, pelo contexto histórico, organização familiar e política, entre outros fatores, sendo portanto mutável (Praun, 2011).
Esta oposição entre os gêneros, por si só, não consegue explicar as diferentes experiências sociais vividas pelos indivíduos, marcadas por diferentes camadas identitárias que articulam e entrelaçam diferentes níveis de opressão (Crenshaw, 2002; Collins, 2019).
Neste sentido, percebemos que embora a maternidade seja uma característica que se entrecruza com outras categorias na definição dos sujeitos e nas relações de subordinação e desempoderamento, ela não é uma característica comumente estudada. O'brien e Liddy (2020), por exemplo, concluíram em sua pesquisa que existe um viés sistêmico contra as mães, não apenas um viés de gênero contra elas enquanto mulheres, mas um viés adicional e mais específico pelo fato de serem mães.
Assim, o tema da maternidade parece ser ainda pouco abordado nos estudos sobre mulheres e divide opiniões nos estudos feministas. De acordo com Takseva (2018) é notável o desaparecimento da maternidade nas pesquisas acadêmicas no século XXI.
Apoiada em Badinter (1985), Zanello (2016) nos alerta que a maternidade não é uma característica biológica e nem deriva da capacidade de procriação. Trata-se, pois, de habilidade incitada em determinados sujeitos de acordo com o momento histórico e com as especificidades culturais de diferentes grupos. Deve, portanto, ser pensada como uma construção social, naturalizada como algo instintivo nas mulheres (Zanello, Antloga, Pfeifer-Flores & Richwin, 2022).
A partir da noção de mecanismos de controle social, poder constitutivo e dispositivo de Focault, Zanello et al (2022) argumentam que neste momento histórico há em nossa cultura caminhos privilegiados de subjetivação, distintos de acordo com o gênero. Segundo a autora, as mulheres se subjetivam por meio dos dispositivos amoroso e materno e os homens por meio do dispositivo da eficácia.
Desde a democracia ateniense as mulheres foram relegadas à esfera privada com a justificativa de que elas davam à luz. Foi justificando-se pela maternidade que os gregos excluíram as mulheres da vida pública, mantendo-as no papel de cuidadoras: dos homens, dos filhos, das pessoas idosas, dos doentes, da casa e de tudo que não era a esfera política, a esfera comum, a esfera do reconhecimento e da existência (Szczyglak, 2022).
Tendo havido uma naturalização das funções sociais historicamente atribuídas às mulheres, a ideia de maternidade se estabeleceu como sinônimo de feminilidade, tendo papel fundamental na construção identitária das mulheres e definindo seus comportamentos e julgamentos simbólicos pela via da maternidade. Assim, “a construção das emocionalidades das mulheres passa por um heterocentramento que é demandado desde cedo às meninas: o que se aprende é a priorizar sempre, e em primeiro lugar, os desejos, anseios e necessidades dos outros, em detrimento dos próprios.” (Zanello et al., 2022, p. 2)
Por meio deste dispositivo materno ocorre uma subjetivação na qual as mulheres são constituídas como cuidadoras “natas”, o que define todas as relações sociais das quais elas participam. Podemos ver que este mecanismo funciona pela presença do sentimento de culpa nas mulheres:
Esse, tão constante na fala daquelas que são mães nos dias atuais, é o sintoma de que a interpelação de certas performances e subjetivação pelo dispositivo materno deram certo. Assim, as mulheres se culpam, quando mães, por cuidarem demais, por cuidarem de menos, por não cuidarem. Culpam-se também por não desejarem ser mães, quando descobrem uma gravidez; por se arrependerem de ter tido um filho (apesar de muitas vezes amá-lo); por não se disponibilizarem a cuidar dos outros” (Zanello, 2016, p. 114).
Conforme Marcello (2005), para as mulheres que são mães, esta subjetivação se produz também pelas tecnologias do eu, ou técnicas de si, “procedimentos, [...] pressupostos ou transcritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si” (Focault como citado em Marcello, 2005, p.140). Por meio dessas técnicas, a mulher mãe é chamada a exercer o autocontrole de seus atos e de seu corpo, a se auto organizar para que possa enfrentar as inúmeras tarefas relacionadas à maternidade, e a se definir e falar de si como alguém transformado pela maternidade: “o indivíduo-mãe falar sobre si mesmo como sujeito agora modificado, metamorfoseado, potencializado pela possibilidade de ser um sujeito-mãe” (Marcello, 2005, p.141).
Essa construção simbólica é um fenômeno que interpela exclusivamente as mulheres. Na nossa cultura, os homens não são definidos pela paternidade, eles são demandados identitariamente pelo dispositivo da eficácia, o qual se baseia na virilidade sexual e laborativa.
A paternidade é uma escolha dos sujeitos masculinos que perdura, inclusive, após o nascimento de um filho.
Um homem que abandone seus filhos, não será definido existencialmente por esse ato. Uma mulher que abandone seus filhos deverá guardar segredo sobre isso, sob pena de severo julgamento moral social. Por outro lado, uma mãe dedicada e abnegada será vista como algo “normal” e esperado; já um pai dedicado, receberá elogios e admiração social, pois está além do que se acredita ser normal esperar de sua performance” (Zanello, 2016, p. 114).
Portanto, não apenas os homens não são interpelados identitariamente pela paternidade como se beneficiam majoritariamente do dispositivo materno das mulheres. “Enquanto elas cuidam deles, por eles e para eles (não só da casa, dos filhos, mas colocando energia pessoal nos projetos deles), os homens podem cuidar e investir sua energia em si mesmos e em seus próprios projetos.” (Zanello et al., 2022, p. 2)
É a partir destas constatações que identificamos a maternidade como uma característica identitária, que se entrelaça à identidade de gênero e reforça a opressão vivenciada por indivíduos a partir do cruzamento dos marcadores sociais mulher e mãe. Também forma o caleidoscópio de características que marca a experiência de mulheres mães trabalhadoras a opressão advinda da divisão sexual do trabalho, forma de organização do trabalho decorrente das relações sociais entre os sexos, modulada histórica e socialmente (Sardenberg, 2015; Spade & Valentine, 2008; Borges, 2020).
Biroli (2018) destaca a relação existente entre a divisão sexual do trabalho e a construção dos papéis sociais, pois é com base nesta divisão que se definem os espaços de ocupação masculinos e femininos. Assim, além de reforçar desigualdades, a divisão sexual do trabalho “é um lócus importante da produção de gênero” (Biroli, 2018, p. 24).
No âmbito das relações de trabalho, Biroli (2018) salienta que as mulheres estão em posição de desvantagem, uma vez que o resultado da sua força de trabalho é invisibilizado e desvalorizado socialmente. Tal cenário escancara uma relação de dominação de gênero, que se acentua no que diz respeito ao trabalho não remunerado. Este trabalho fornecido pela mulher em casa expõe uma situação exploratória, visto que o tempo e a energia despendidos por ela na realização das atividades domésticas e de cuidado não geram retorno financeiro ou mesmo reconhecimento social. Mas, ao mesmo tempo, liberam os homens da responsabilização por um grande volume de trabalho, criando condições favoráveis para que eles se dediquem ao trabalho remunerado.
A apropriação deste trabalho, realizado de forma gratuita, é aceita em razão da naturalização de práticas sexistas de divisão do trabalho (Hirata & Kergoat, 2007), a qual se perpetua no tecido social pelo fato de constituir uma estrutura enraizada, mantida por um ideário patriarcal. Enquanto distribui as responsabilidades de forma desigual no ambiente doméstico, no mercado de trabalho gera um desequilíbrio de oportunidades e participação entre homens e mulheres, assim como representações estereotipadas dos gêneros nas organizações (Molinete, Barcellos & Salles, 2017).
É neste contexto que a divisão sexual do trabalho repercute desigualdades e permite uma contínua exploração do trabalho feminino em prol de uma eficácia coletiva. No mundo do trabalho, o acúmulo de tarefas e a responsabilização pela criação dos filhos estreitam as chances das mulheres de constituir uma trajetória profissional, além de impedi-las de exercerem sua individualidade (Biroli, 2018; Guérin, 2003).
A globalização trouxe grandes transformações no mercado de trabalho internacional, principalmente a partir da década de 1990. O aumento da competitividade estimulou uma maior participação feminina em empregos remunerados, alavancando o percentual de mulheres economicamente ativas.
Porém, esse cenário criou uma situação paradoxal pois, ao mesmo tempo em que houve uma inserção das mulheres no mercado de trabalho, ocorreu também uma precarização desses empregos, marcados pela falta de proteção social, instabilidade, baixa remuneração e expectativas de crescimento (Hirata, 2003). Além disso, as mulheres não foram isentas dos deveres domésticos e familiares, o que provocou um aumento generalizado da carga de trabalho. Assim, momentos de crise, como a pandemia da Covid-19 provocam uma piora significativa em uma situação já problemática (Bridi, 2020).
A interrupção da circulação de pessoas e o fechamento de diversas atividades comerciais, decorrente das medidas de contenção da pandemia, afetaram a economia e o mercado de trabalho de modo generalizado (Costa, 2020). Em uma escala global, dados da Organização Internacional do Trabalho (2020) informam que já no início de abril de 2020, 81% da força de trabalho mundial havia sido afetada.
No entanto, o desemprego afetou as mulheres de modo mais contundente. O fechamento das creches e escolas, a intensificação dos trabalhos de cuidado e a perda total ou parcial da rede de apoio, foram fatores que influenciaram a saída delas da força de trabalho (Costa, 2020; Barbosa, Costa & Hecksher, 2020; Porto, 2020). Segundo Bridi (2020), apesar da pandemia ter ocasionado a redução da jornada de trabalho, do salário ou mesmo o desemprego para a maioria dos trabalhadores, para outros ela trouxe uma intensificação da demanda de trabalho e a necessidade de se enquadrar ao home office. Essa súbita alteração nas relações de trabalho, exigiu dos trabalhadores uma alta capacidade de adaptação, tanto no campo profissional como no familiar (Martins, Aguiar & Bastos, 2020).
Dentre os desafios enfrentados, a realização do trabalho no ambiente doméstico sobrepõe as esferas profissional e privada, fazendo com que os trabalhadores estejam permanentemente à disposição das empresas. Com a família em casa, as atividades domésticas também se intensificaram, disputando espaço com as atividades de cuidado, de lazer, escolares e de trabalho. Essa sobrecarga de tarefas, aliada ao isolamento social, a insegurança financeira causada pela crise econômica, bem como outras preocupações geradas pela pandemia, fragilizaram a saúde mental dos trabalhadores e contribuíram para a desestabilização das relações familiares (Losekann & Mourão, 2020; Bridi et al., 2020; Martins, Aguiar & Bastos, 2020).
Diversos estudos (Amaral, 2021; Adams-Prassl et al 2020; Andrew et al., 2020; Del Boca et al 2020; Hupkau & Petrolongo, 2020; Kasymova et al 2021) demonstraram que embora os homens pais não sejam imunes aos impactos do isolamento, foram as mães que carregaram a carga mais pesada. Ao pesquisar famílias norte-americanas com crianças em idade escolar durante a pandemia, Petts, Carlson e Pepin (2020) demonstraram que a perda de assistência em tempo integral para as crianças está associada ao aumento do risco de desemprego para as mães, mas não para os pais.
No campo acadêmico, Amaral (2021) salienta que as mulheres mães conviveram com o risco de sofrerem penalidades porque, ao invés de trabalharem as suas pesquisas, dedicaram tempo e atenção aos filhos e às tarefas domésticas. Na mesma área, Oliveira (2020, p. 160), ao descrever o trabalho da mulher-mãe-pesquisadora, questiona: “onde ela vai ambientar seu tempo-espaço do trabalho?”. Isto porque além da adaptação do espaço doméstico para realizar o trabalho intelectual com a concentração que a tarefa exige, a autora destaca que as horas dedicadas ao trabalho são incompreensíveis para uma criança que divide o mesmo lar e tem a mãe tão perto e tão longe.
Diante deste fenômeno, Kasymova et al. (2021) apontam que a divisão desigual das responsabilidades domésticas e de cuidados infantis entre mães e seus parceiros parentais desde o início da pandemia da Covid-19 terão efeitos duradouros nas trajetórias de carreira delas e poderão levar a um aumento nas disparidades de gênero já existentes.
A história oral é um método de pesquisa que permite acessar a subjetividade e transmitir as experiências dos sujeitos pertencentes a uma determinada sociedade (Alberti, 2000; Meihy & Holanda, 2011). Uma característica da história oral é “recuperar o vivido conforme concebido por quem viveu” (Alberti, 2004, p. 23). Assim, essa abordagem metodológica possibilita que, por meio de depoimentos, se acesse a subjetividade das experiências dos sujeitos sociais.
Nesses termos, apoiamos nossa pesquisa na história oral para resgatar as memórias da experiência recentemente vivida por pais e mães durante a crise sanitária da Covid-19. A partir desses relatos buscamos problematizar o dispositivo materno como um aspecto identitário que impacta de forma diferente a vida profissional de homens e mulheres.
Freitas (2006) destaca que a história oral tem diferentes vertentes: a tradição oral, a história de vida e a história temática. A modalidade empregada na elaboração deste estudo foi a história temática, que se concentra na investigação de um tema específico escolhido pelo pesquisador. Desta forma, elementos da história pessoal do narrador somente são relevantes quando relacionados à temática central do projeto (Freitas, 2006; Meihy & Holanda, 2013).
A coleta dos depoimentos ocorreu com apoio de um roteiro composto por dez questões. Este roteiro serviu como um guia visto que na história oral deve-se privilegiar a sequência memorialística do depoente. Foram ouvidos quatro homens e sete mulheres, selecionados através de um perfil previamente definido: trabalhadores em home office; membros de organizações familiares do tipo nuclear, isto é, composta por pai, mãe e filho(s); e com filho(s) de até 12 anos de idade.
Considerando o contexto de distanciamento social em que o estudo se desenvolveu, todos os depoimentos foram coletados de forma virtual, através de vídeo chamadas do Google Meet ou Whatsapp. Os relatos foram gravados, com o devido consentimento dos entrevistados e seus nomes foram modificados a fim de preservar a identidade e garantir o sigilo.
A partir das narrativas, seguimos a orientação de Prodanov e Freitas (2013, p. 113), que definem o processo da análise de dados como “[...] uma sequência de atividades, que envolve a redução dos dados, a sua categorização, sua interpretação e a redação do relatório”. Sendo assim, a transcrição de todas as entrevistas foi seguida pela categorização dos dados. Nesta etapa buscamos agrupar as memórias semelhantes tendo como pano de fundo as perspectivas de gênero e o dispositivo materno como conceito norteador. Os resultados são apresentados e discutidos na seção seguinte, comparando as vivências de pais e mães com o trabalho remoto durante a pandemia.
Nesta pesquisa abordamos o dispositivo materno como um aspecto identitário que impacta a vida profissional das mulheres, especialmente em momentos de crise, como vivenciado no período da pandemia de Covid-19. Para essa discussão, apoiadas em Zanello (2016), consideramos a maternidade como um aspecto que atravessa a identidade de mulheres que são mães enquanto os homens não são interpelados identitariamente pela paternidade. Como se verá a seguir, nossos dados mostram evidências de que, mesmo tendo em comum a parentalidade, a pandemia pesou de forma diferente para homens e mulheres.
Nas histórias dos homens participantes da pesquisa, percebe-se uma relação entre o sentimento de sobrecarga e a pandemia. O motivo apresentado pela maioria deles foi o acréscimo de atividades de cunho profissional, a qual eles atribuem ao aumento da jornada de trabalho em home office ou à necessidade de complementar a renda. Como explica Joaquim
[...] eu peguei alguns “freelas” também durante esse tempo. A minha esposa, ela é engenheira civil e ela tá [sic] desempregada desde... da gravidez dele [do filho deles]. Então pra [sic] tentar ajudar nos gastos eu peguei “freelas” e comecei a trabalhar mais. [...] E isso fez eu me sobrecarregar, né [sic]?
A situação vivenciada por Joaquim ilustra o conceito de papéis de gênero (Scott, 1995). Conforme abordado por Insfran e Muniz (2020), o homem assume socialmente o papel de provedor, incumbido do sustento financeiro, enquanto a mulher recebe a função de cuidadora do lar.
No depoimento, Bruno também manifestou preocupação com a subsistência da família ao dizer que “[...] Então a pandemia veio, tava [sic] complicado, tá [sic] difícil, tem gente morrendo. Compactuo com tudo, mas eu tenho que pensar fora disso, senão eu não vou trazer o ‘ganha-pão’ [...]”.
Por um lado, os dois relatos evidenciam a concretude da divisão sexual do trabalho, presente tanto na organização familiar como na forma como o indivíduo se vê em sociedade. Por outro, mostram que a vivência identitária masculina parece estar muito mais ligada ao dispositivo da eficácia, o qual se baseia na virilidade sexual e na potência laborativa (Zanello, 2016).
A constante presença no ambiente doméstico ampliou a percepção dos entrevistados no que diz respeito às demandas familiares, aumentando a colaboração deles dentro de casa. No entanto, observa-se que a mulher ainda figura como a maior responsabilizada pelo trabalho reprodutivo e pelo cuidado. Nesse sentido, Bruno menciona que
[...] ela [esposa do entrevistado] continua fazendo a maior parte sim, da parte doméstica e tal. E não por nada, mas às vezes... acaba fazendo, né [sic]? [...] nesse mundo que a gente vive, às vezes é até machista, que é errado, é uma visão errada, mas o homem às vezes ele fica mais tranquilo "Ah não, porque a esposa vai fazer, deixa lá” [...].
Embora avaliem que os afazeres domésticos e de cuidado sofreram uma intensificação na pandemia, isto não é apontado como um fator de sobrecarga pelos trabalhadores homens. Nota-se que os entrevistados não concebem estas atividades como obstáculos à sua atuação profissional, mas sim como um elemento superficial de suas rotinas. Este cenário se associa ao princípio de separação exposto por Hirata e Kergoat (2007) no contexto da divisão sexual do trabalho, reafirmando a distinção entre o que é considerado trabalho de homem e trabalho de mulher.
A forma repentina com que a pandemia impactou o mercado de trabalho criou condições que agravam o desenvolvimento de um clima de instabilidade profissional. Por essa razão, a maioria dos respondentes relatam que temeram os efeitos imediatos da crise. No entanto, alguns respondentes homens consideraram este momento como uma oportunidade de crescimento profissional, um desafio a ser vencido. Como se verifica na fala do entrevistado João
[...] Profissionalmente, eu acho que eu tô [sic] na melhor fase [...]. Os desafios são extremamente motivadores dentro da minha área. [...] A pandemia não só me dá mais confiança, como me desafia a entender melhor essas novas situações e propor melhores soluções pra [sic] nossa empresa [...].
No mesmo sentido, Bruno acrescenta que
[...] Eu sou o tipo de cara que o desafio eu até gosto. O obstáculo, a parte ruim, eu até gosto. É aí que eu acho que eu cresço. Tá [sic] difícil ligar, tá [sic] difícil falar, tá [sic] difícil... Legal, eu paro, penso, reflito, imagino uma opção [breve pausa] e aí eu vou atrás.
Ainda que se considere todas as complexidades decorrentes do compartilhamento do espaço domiciliar com o de trabalho, os participantes da pesquisa se mostraram confiantes e se inserem em um contexto de relativa estabilidade profissional. Os depoimentos dos entrevistados remetem ao elucidado por Biroli (2018), quando esta diz que o trabalho reprodutivo realizado pelas mulheres, fornece condições para que os homens se dediquem ao trabalho produtivo. Esse sistema permite que homens priorizem o campo profissional, atravessados pelo dispositivo da eficácia, uma vez que o dever do cuidado ou da produção social da existência não os atravessa como aspecto identitário.
Mesmo a pandemia tendo provocado profundas transformações na rotina das pessoas, os impactos negativos levantados pelos pais entrevistados estão relacionados ao trabalho e às mudanças que ocorreram neste âmbito, como relata João:
[...] Quando a gente fala em atuação de equipe, quando você tem um modelo presencial a interação é estimulada. Você tem muita troca, você tem muitas questões que são resolvidas de uma forma mais ágil, porque as pessoas estão no mesmo local. Então desse ponto de vista, dessa perspectiva, eu creio que essa mudança [de rotina] gerou um impacto um pouco negativo.
Joaquim também conta que “[...] sinto falta de poder sair e encontrar com os colegas de trabalho pra [sic] trocar ideia, porque a gente fica meio sozinho assim trabalhando só de casa, né [sic]? Então... foi isso que mais me atrapalhou assim”.
No que se refere à convivência familiar durante o home office, com exceção das queixas relacionadas às interrupções e barulhos dos filhos, os pais viram esse período como uma oportunidade de passar mais tempo na companhia da família. Segundo Pedro “[...] é um prazer assim estar em casa, né [sic]? Termino uma consulta, no intervalo, por exemplo, posso tomar um cafezinho, curtir ali o [nome do filho ocultado]. A princípio a gente tá [sic] super adaptado [...]”. No mesmo sentido, João expõe posição semelhante ao afirmar que
[...] Eu tenho um filho pequeno, o meu filho tem 2 anos. [...] E poder acompanhar o crescimento dele, o desenvolvimento dele diariamente, ter ele na minha rotina, não só rotina de casa, mas a rotina de trabalho também. Isso na minha visão foi muito positivo [...].
Diante destes relatos verifica-se que as experiências dos pais, nas quais a responsabilização pelo cuidado não é identitária (Zanello, 2016), dão origem a narrativas nas quais não se identificam traços de sobrecarga atrelados às tarefas de cuidados, ou mesmo danos à vida profissional. Para Andrade (2004), tais circunstâncias denotam as assimetrias existentes entre os sexos, sendo este um ponto significativo para compreender as relações de poder que se formam entre homens e mulheres, bem como a consequente desigualdade de gênero.
Ao escutarmos mulheres que são mães, observamos que o cuidado com os filhos representa uma parcela significativa de suas rotinas e que essa responsabilização foi significativamente ampliada na pandemia. Sem o apoio das escolas ou creches, todas as mães ouvidas em nossa pesquisa tiveram que conciliar as atividades profissionais e de cuidado de maneira mais intensa em comparação ao que já acontecia antes da pandemia. Em muitos casos isso se traduziu em uma limitação da oferta de tempo dedicado ao trabalho.
Fruto não apenas da divisão sexual do trabalho, mas também do dispositivo materno, o cuidado dos filhos é socialmente atribuído às mulheres. Para Hirata (2003) isto se explica por uma ideologia naturalista, a partir da qual se assume uma tendência natural dos sujeitos a determinadas tarefas, apoiando-se no conceito de habitus masculino e feminino. Porém, a partir da ideia de dispositivo materno, percebe-se que esta atribuição social do cuidado às mulheres é também uma forma de subjetivação delas, marcando sua identidade de maneira irreversível (Zanello, 2016).
A participante da pesquisa Joana expressa bem essa situação ao afirmar que ela alterou sua rotina de trabalho: “porque eu me vi trancada dentro de casa com uma criança pequena, sem ter como levar pra [sic] escola. Sempre ali conciliando um pouco o trabalho com os cuidados da criança [...]”. A necessidade de adaptação da vida profissional e a sua relação com o cuidado dos filhos, é também relatada por Nicole:
Desde que se iniciou a pandemia elas [as filhas da entrevistada] estão comigo dentro de casa. Então minha rotina mudou bastante, porque eu tenho que mesclar a minha vida profissional e a parte de ser mãe, né [sic]? [...] Agora desliguei o botão mãe e vamos ligar botão profissional e ficar o dia inteiro assim, não tem um horário que eu possa dizer "Não, agora eu vou só trabalhar", né [sic]?
A simultaneidade com que a entrevistada realiza as atividades de cuidado dos filhos e as atividades profissionais revela a forma como o trabalho reprodutivo é invisibilizado, uma vez que não gera valor monetário. Como resultado disso, tem-se o modelo de conciliação apresentado por Hirata (2010), em que a mulher permanece no papel de cuidadora, ainda que inserida na esfera econômica. Cria-se então, uma volumosa carga de trabalho proveniente da combinação entre a vida doméstica e profissional, que se acentua em um cenário de pandemia, visto que trabalho e casa ocupam o mesmo ambiente.
Além das tarefas de cuidado já normalmente desempenhadas pelas mulheres, a pandemia fez com que elas tivessem que suprir a carência do ensino regular, assumindo demandas até então realizadas pelas escolas. Neste sentido, os depoimentos das participantes corroboram o estudo de Porto (2020) que indicou que “o fechamento de escolas e de creches também impôs encargos adicionais significativos para as mulheres em casa”. Em suas narrativas, nossas respondentes com filhos em idade escolar descreveram o impacto que o ensino online teve em suas vidas profissionais, conforme conta Gabriela
[...] os atendimentos de terapia que eu faço, eu reduzi basicamente 80% deles. Então num momento onde eu poderia tá [sic] faturando bastante, trabalhando bastante, né [sic]? Em virtude da pandemia muita gente ter precisado de apoio, eu não consegui trabalhar porque o meu filho tá [sic] fazendo aula online, né [sic]? [...] E no online ele precisa de apoio 100% junto, ele não consegue ficar concentrado, parando, prestando atenção, entendendo o que a professora tá [sic] falando, sabe? [...].
Consonante ao exposto por Gabriela, a entrevistada Carla também relata que “[...] Não tinha [antes da pandemia] toda essa assessoria que precisa, né [sic]? No caso da aula online. Aí isso mudou bastante, porque a minha tarde hoje eu não tenho mais, né [sic]? Eu tenho que ficar integral pra [sic] elas assim, nesse período [...]”.
Aqui é interessante perceber o contraste entre os depoimentos de Gabriela e Carla e o depoimento de Pedro, pois para ele “[...] é um prazer assim estar em casa, né [sic]? Termino uma consulta, no intervalo, por exemplo, posso tomar um cafezinho, curtir ali o [nome do filho ocultado]. A princípio a gente tá [sic] super adaptado [...]”.
Esta disparidade de percepção entre pais e mães sobre um mesmo fenômeno pode ser analisada pela tecnologia do eu (Marcello, 2005). Por meio das técnicas de si, a mulher mãe é chamada a exercer o autocontrole de seus atos e de seu corpo, a se auto organizar para que possa enfrentar as inúmeras tarefas relacionadas à maternidade. O mesmo não se aplica aos homens, cuja identidade não é definida pela paternidade (Zanello, 2016).
Em diferentes momentos as participantes da pesquisa citam que houve uma intensificação das tarefas domésticas após o início da pandemia. Além disso, percebe-se pelos relatos que os afazeres do lar são realizados paralelamente ao trabalho, nos intervalos e principalmente após o expediente, desvelando uma jornada exaustiva, caracterizada pelo acúmulo de atribuições. Nas palavras de Nicole
[...] Se você trabalha o dia inteiro fora de casa, seus filhos estão na escola ou na creche ou com alguém. Você chega na sua casa, sua casa tá [sic] limpa, né[sic]? Não tem muita sujeira ou coisas muito acumuladas. Mas como em casa... tipo, terminei meu expediente, a sala tá [sic] espalhada de brinquedo, a pia tem louça, parece que a quantidade de roupa dobrou, a sujeira aumenta. Então assim, além disso tudo tu termina ali o expediente e ainda tem aquele monte [deu ênfase] de coisa pra [sic] fazer, né [sic]? Muito diferente da minha rotina como era antes. [...] Aí tem todas as coisas pra [sic] arrumar da casa, fazer a janta, dá comida pras [sic] meninas, aí dá banho, aí parece que a quantidade de tarefas aumentou assim, dobrou basicamente.
Esse atravessamento da responsabilidade pelo cuidado, revelado no depoimento de Nicole, ilustra a introjeção do estereótipo do gênero feminino, um processo no qual “a construção das emocionalidades das mulheres passa por um heterocentramento que é demandado desde cedo às meninas: o que se aprende é a priorizar sempre, e em primeiro lugar, os desejos, anseios e necessidades dos outros, em detrimento dos próprios” (Zanello et al., 2022, p. 2)
Em decorrência de sua socialização, ao identificarem a tarefa doméstica como sua responsabilidade as mulheres experienciam uma sobrecarga física e psicológica alimentada pelas condições impostas pela pandemia. Mesmo neste cenário, as entrevistadas manifestam o sentimento de responsabilização pela manutenção do lar, o que segundo Trindade e Covre-Sussai (2019) evidencia a naturalização dos papéis de gênero. Conforme se constata na fala da entrevistada Teresa, ao declarar como o trabalho doméstico e de cuidado se acentua na pandemia e se mistura aos compromissos do trabalho, “[...] E hoje tudo sobrecarrega mais nesse sentido de... eu, como mãe, como profissional e mulher, preciso estar atenta e conciliando tudo isso”.
É importante destacar que o uso do termo “preciso” indica não apenas como a divisão sexual do trabalho está internalizada no discurso das mulheres, mas como a maternidade se expressa na necessidade e na obrigação do cuidado. Assim, ao mesmo tempo em que a divisão sexual do trabalho se constitui a partir de uma estrutura social, o dispositivo materno atua como fonte de subjetivação que assegura que as mulheres mantenham-se na posição de cuidadoras, principalmente quando são mães, corroborando os argumentos de Zanello, 2016 e Zanello et al, 2022.
A pandemia também representou um momento de instabilidade econômica, no qual a maioria das respondentes alegou ter sentido seus empregos ameaçados de alguma forma. Suas narrativas demonstram que a insegurança profissional que experimentam não se explica pela crise econômica, mas também está predominantemente vinculada ao fato de precisarem conciliar família e trabalho durante o home office. Esta precariedade da permanência no emprego que se intensificou durante a pandemia atravessa a vida profissional das mulheres regularmente, uma vez que a distribuição desigual do trabalho doméstico dificulta a presença feminina no mercado de trabalho (Passos & Guedes, 2018).
Esta instabilidade aparece de forma recorrente nos depoimentos, corroborando os resultados da pesquisa de Petts, Carlson e Pepin (2020). Maria, participante da nossa pesquisa, revela que
[...] Eu tive minha produtividade questionada no início da pandemia, com a minha gerente, que ela achava que eu tava [sic] sendo improdutiva. E foi bem doído assim [...] Aí no meu retorno de férias foi me dado um ultimato, eu tô [sic] agora nos três meses de experiência pra [sic] ver se eu vou permanecer na empresa, entendeu? Então talvez, se não tivesse havido pandemia, eu não estaria passando por isso nesse momento, entendeu? [...].
Nicole, por exemplo, chegou a pedir demissão durante a pandemia.
[...] A empresa nem queria mandar embora, mas eu já tava [sic] querendo sair. Porque assim, era muita pressão. E eu ficava "Eu não vou conseguir, eu não vou dar conta. Daqui a pouco eles vão ver que o meu desempenho já caiu mesmo." [...] Porque já é puxado uma rotina de mãe, de esposa, de ter que cuidar da casa. E aí tentar fazer isso ainda tudo junto. Falei "Eu vou surtar", né [sic]?
Em ambas as falas observa-se como o peso de sentir-se responsável pelas obrigações familiares, consequência concreta da identidade vinculada ao dispositivo materno (Zanello, 2016), interfere na produtividade das profissionais entrevistadas, o que as coloca em uma posição fragilizada, mais propensas a serem demitidas e a pedir demissão. Destacamos o contraste desses depoimentos ao de João que afirmou que
[...] Profissionalmente, eu acho que eu tô [sic] na melhor fase [...]. Os desafios são extremamente motivadores dentro da minha área. [...] A pandemia não só me dá mais confiança, como me desafia a entender melhor essas novas situações e propor melhores soluções pra [sic] nossa empresa [...].
Isso põe em evidência que os pais se beneficiam do dispositivo materno pois “enquanto elas [mães] cuidam [...] os homens podem cuidar e investir sua energia em si mesmos e em seus próprios projetos.” (Zanello et al., 2022, p. 2).
Para Hirata e Kergoat (2007) a dicotomia existente entre as esferas produtivas e reprodutivas é uma característica determinante da divisão sexual do trabalho. Nas histórias das participantes da pesquisa, nota-se que muitas delas permanecem em casa, trabalhando remotamente, ao passo que seus maridos trabalham fora do âmbito doméstico. O que é explicitado pela respondente Gabriela, ao relatar que seu marido passou a trabalhar em um coworking, pois não conseguiu permanecer trabalhando em casa
[...] ele atende muito telefonema durante o dia e daí em casa meu filho fica, daí grita, daí pula, daí tem que pedir pra [sic] fazer silêncio, daí meu marido tava [sic] meio que perdendo as estribeiras assim de trabalhar em casa, e tá [sic] trabalhando no escritório, mas ele faz home office, entendeu? Só que dentro do escritório, ele não fica em casa porque ele não consegue trabalhar dentro de casa, então ele fica basicamente todos os dias fora [...].
A entrevistada Débora retrata situação similar, quando conta que seu marido seguiu trabalhando presencialmente durante grande parte da pandemia “[...] Como ele é dono, né [sic]? Então ele não tem como ficar em home office, ele tem que trabalhar. E aí como eles desenvolvem embalagem e o negócio dele é muito específico, eles também são essenciais, então não fecha nunca, né [sic]? [...]”.
Assim, percebe-se que as experiências masculinas são antagônicas às relatadas pelas mulheres, como Joana que afirmou que se viu “trancada dentro de casa com uma criança pequena, sem ter como levar pra escola. Sempre ali conciliando um pouco o trabalho com os cuidados da criança [...]”.
Por fim, destacamos que nossa pesquisa reforça outros estudos (Amaral, 2021; Adams-Prassl et al 2020; Andrew et al., 2020; Del Boca et al 2020; Hupkau & Petrolongo, 2020; Kasymova et al 2021). As vivências das entrevistadas elucidam a forma como a pandemia resgata as distinções entre os espaços de ocupação masculinos e femininos, deslocando a mulher de volta ao espaço privado - de onde ela nunca saiu - enquanto mantém o homem no espaço público (Trindade & Covre-Sussai, 2019).
A partir das discussões realizadas, podemos afirmar que Simone de Beauvoir estava certa: as conquistas feitas pelas mulheres ao longo dos anos são sempre precárias e contingentes, bastando um momento de crise para que sejam questionadas e se percebam os retrocessos.
Nesta pesquisa, tomamos como cenário de discussão a crise da pandemia da Covid-19 e os impactos sobre mulheres que são mães e homens que são pais. Assim como estudos anteriores afirmam, pudemos confirmar que as mulheres foram mais afetadas pela pandemia do que os homens (Pérez-Nebra et al 2020; Zanello et al, 2022; Serafim et al., 2021; Barbosa et al., 2020), e que as mães foram mais afetadas que os pais (Amaral, 2021; Adams‐Prassl et al., 2020; Andrew et al., 2020; Del Boca et al., 2020, Hupkau & Petrongolo, 2020; Kasymova, et al., 2021).
Constatou-se entre os participantes da pesquisa que a pandemia foi vivenciada de forma diferente entre homens e mulheres, ainda que tenham em comum a parentalidade. Para os trabalhadores pais, as principais mudanças na rotina de trabalho estavam associadas ao aumento de demandas profissionais e modificações na coordenação do trabalho. As trabalhadoras mães, por sua vez, destacaram o incremento de tarefas domésticas e de cuidado como um ponto crítico do trabalho efetuado durante a pandemia. Para elas, as obrigações familiares caracterizaram impedimentos à vida profissional, limitaram o tempo destinado ao trabalho remunerado prejudicando seu desempenho e geraram uma intensa sobrecarga, uma vez que se somaram às atividades laborais.
Ficou evidente nos depoimentos coletados que o sentimento de instabilidade profissional manifestado pelas trabalhadoras mães está ligado à sua responsabilização, por si mesma e pelo parceiro, pelas tarefas de cuidado, as quais se somam às atividades profissionais, exercidas no espaço doméstico durante a pandemia. Tais fatores não impactaram a rotina dos trabalhadores pais na mesma medida, tendo um efeito secundário em suas vidas profissionais.
Diante das experiências relatadas, o conceito de dispositivo materno foi um construto importante para compreender a condição vivida durante a pandemia por mulheres que têm filhos. O dispositivo materno é meio de subjetivação pelo qual as mulheres são constituídas enquanto sujeitos como “cuidadoras natas''. Tendo papel fundamental na construção identitária das mulheres, o dispositivo materno define seus comportamentos e julgamentos simbólicos pela via da maternidade.
Assim, enquanto para os homens a paternidade é uma opção, é algo que acrescenta às suas vidas, para as mulheres a maternidade é algo que as define como sujeitos e que tem consequências concretas nas suas vidas cotidianas. Sobre as vidas das mulheres que têm filhos, o dispositivo materno justifica que recaiam objetivamente a responsabilidade pelo cuidado físico e psíquico e as funções domésticas dele decorrentes. Neste sentido, a maternidade se articula ao gênero por meio do processo de socialização e subjetivação das mulheres para estruturar subordinações e perpetuar o desempoderamento.
Nesta pesquisa isso ficou evidente na medida em que, sob a ótica dos pais, o trabalho na pandemia ganha forma de desafio profissional, uma motivação que impulsiona o desempenho, ou mesmo uma oportunidade de estar junto da família e acompanhar o crescimento e o desenvolvimento dos filhos. Para eles, cuja socialização não envolve definir a identidade em torno do cuidado, o trabalho doméstico e de cuidado provocados pela pandemia não impactou profundamente suas rotinas, tampouco representou retrocessos em suas vidas profissionais.
Isto está presente em seus relatos sobre a pandemia, os quais que incluem percepções como a de estar super adaptado; de ter sido muito positivo poder acompanhar o crescimento e o desenvolvimento do filho; de ser um prazer estar em casa e poder tomar um cafezinho e curtir o filho; de não ficar em casa por não conseguir trabalhar dentro de casa; de ficar sobrecarregado por precisar trabalhar e ganhar mais; de que o que mais atrapalhou foi a falta de poder sair e encontrar com os colegas de trabalho; e de que esta é sua melhor fase profissional, com desafios extremamente motivadores em suas profissões.
Já nos depoimentos das mulheres que são mães aparecem relatos relacionados à experiência de estarem trancadas em casa com crianças pequenas; que elas tem que mesclar a vida profissional e a parte de ser mãe; que não conseguiram trabalhar porque precisavam apoiar os filhos nas aulas online; que após um dia de trabalho tinham que realizar o trabalho doméstico juntando brinquedo, lavando roupa e louça, arrumando a casa, preparando refeições, alimentando e dando banho nas crianças; que precisam estar atentas e conciliar os papéis de mãe, profissional mulher, e esposa; e que o acúmulo de tudo isso lhes despertou o medo de perder a sanidade mental.
Estes achados são convergentes com os resultados de outras pesquisas, como as de Bridi et al. (2020) cujos resultados demonstraram que os discursos das mulheres durante a pandemia relacionaram-se aos termos “casa”, “filho”, “cuidado” e “criança”, à medida que para os homens houve maior repetição dos termos “tempo”, “contrato”, “pandemia” e “casa”. A menção deste último termo, porém, se relacionava à gestão do tempo de trabalho e não às tarefas domésticas e de cuidados com os filhos.
Os depoimentos das mulheres ouvidas na pesquisa também corroboram os dados apontados por Zanello et al. (2022), demonstrando como o esgotamento, a sobrecarga e a solidão das mulheres mães se exacerbaram neste período. Refletindo sobre as falas das nossas entrevistadas percebe-se o peso que estas mulheres carregam sobre seus ombros, assombradas pelo sentimento de culpa que, apoiado no dispositivo materno, as culpa por cuidar demais, por cuidar de menos, por não cuidar (Zanello, 2016).
A partir dos dados da pesquisa pode-se refletir que, com a subjetivação feminina marcada pela maternidade, ainda que as atividades de cuidado recaiam sobre as mulheres, porque são mulheres e porque são virtualmente ou potencialmente mães, para as mulheres que concretamente são mães este dispositivo impõe o lugar do cuidado sem possibilidade de escolha e determinou muitas das diferenças da vivência feminina em relação à masculina sobre os efeitos da pandemia de Covid-19.
Portanto, em complemento aos resultados de pesquisas anteriores, nossos achados permitem argumentar que a diferença de impacto da pandemia sobre homens e mulheres não pode ser explicada apenas pela desigualdade de gênero e pela divisão sexual do trabalho. Sendo a maternidade elemento identitário fundamental das mulheres, elas não apenas se responsabilizaram e foram responsabilizadas pelas atividades de cuidado em suas diversas constituições, mas também foram obrigadas a priorizar esta função em detrimento de seu bem-estar, de sua saúde física e mental e de suas escolhas profissionais e possibilidades de desenvolvimento de carreira.
Não é tarde para lembrar, porém, que os trabalhadores e trabalhadoras cujos depoimentos embasam nossa análise representam uma massa escolarizada, qualificada e portanto privilegiada da população, para quem o home office figurou como uma possibilidade (Bridi, 2020). A partir disso, pontua-se também que mulheres em situação de maior vulnerabilidade social apresentam outras vivências frente à pandemia (Borges, 2020; Zanello et al., 2022) e enfrentam outros dilemas, obstáculos e dificuldades, experimentando a precariedade de maneiras diferentes (Salles, 2022).