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REVOLUÇÃO 4.0 E O TRABALHO DE MOTOBOYS E BIKEBOYS DE APLICATIVO
Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, vol. 17, núm. 4, pp. 176-190, 2023
Universidade Federal Fluminense



Recepción: 23 Febrero 2023

Aprobación: 02 Agosto 2023

DOI: https://doi.org/10.12712/rpca.v17i4.57526

Resumo: Objetivando compreender os impactos da revolução 4.0 no trabalho de motoboys e bikeboys de aplicativos, realizou-se uma pesquisa qualitativa envolvendo entrevistas com 24 trabalhadores de delivery. Os resultados evidenciam que as tecnologias catalisadas pela revolução 4.0 se fazem muito presentes no cotidiano destes trabalhadores. Por um lado, tais tecnologias permitiram a emergência de novas formas de trabalho, que muitos entrevistados consideram uma oportunidade de geração de renda, aliado à flexibilidade de horário e à liberdade de “ser seu próprio chefe”. Por outro, paradoxalmente, a mesma tecnologia que “liberta” o trabalhador pode ampliar o controle sobre ele.

Palavras-chave: Revolução 40., Condições de trabalho, Processo de Trabalho, Trabalhadores de delivery, Uberização.

Abstract: Aiming to understand the impacts of the 4.0 revolution on the work of motoboys and app bikeboys, a qualitative research was carried out by interviewing 24 delivery workers. The results show that the technologies catalyzed by the 4.0 revolution are very present in the daily lives of these workers. On the one hand, such technologies allow the emergence of new forms of work, which many see as an opportunity to generate income, combined with flexible working hours and the freedom to “be your own boss”. Paradoxically, the same technology that “liberates” the worker can increase control over him.

Keywords: Revolution 40., Working conditions, Labor Process, Delivery workers, Uberization.

Introdução

Anteriormente à atual revolução 4.0, a sociedade passou por três revoluções industriais ao longo de sua história e todas trouxeram rupturas importantes nos contextos econômico, político, sociocultural e organizacional (Lee et al., 2018). Atualmente, a discussão gira em torno da quarta revolução industrial, também denominada de revolução 4.0 ou economia 4.0, entendida como como um novo sistema tecnológico que está sendo moldado pela internet, sua conectividade, a integração e a digitalização da produção de bens, serviços e informações (Sartori, Zanotto & Fachinelli, 2018). Trata-se de uma indústria inteligente caracterizada pelo uso intensivo de inovações em tecnologia digital, robótica avançada e inteligência artificial (IA) (Sartori, Zanotto & Fachinelli, 2018; Teck, Subramaniam & Sorooshian, 2019).

O crescente volume de estudos em torno da revolução 4.0 aponta para mudanças significativas nas relações indivíduo-trabalho-organização trazidas pela mais recente revolução tecnológica (Schwab, 2016; Frey & Osborne, 2017; Puhovichova & Jankelova, 2021; Sant’Anna et al., 2022). Tais estudos indicam a ressignificação de categorias clássicas, como a organização, a carreira e o trabalho, foco deste estudo (Oberer & Erkollar, 2018; Puhovichova & Jankelova, 2021; Sant’Anna et al., 2022).

No nível das organizações, pesquisa da Deloitte (2018) sobre os impactos da revolução 4.0 aponta que, na percepção de gestores brasileiros e internacionais, a transformação vai muito além da dimensão tecnológica. Envolve, também, uma mudança de cenário mercadológico e do ambiente regulatório de negócios; mudança no modelo de negócio das organizações, nos perfis de profissionais e nos estilos de liderança requeridos (Puhovichova & Jankelova, 2021; Sant’Anna et al., 2022).

Na dimensão do trabalho há também consequências diversas, seja em relação à eliminação de funções com a substituição de tarefas humanas por tecnologias, seja em relação à flexibilização dos tipos de contrato de trabalho em decorrência do surgimento de novos modelos de negócio; seja nos tipos de habilidades demandadas na era digital (Sant’Anna et al., 2022).

A junção da automação com o avanço da inteligência artificial atinge variados postos de trabalho, inclusive àqueles mais qualificados (Frey & Osborne’, 2017; Sant’Anna et al., 2022). Diversas funções que exigiam mão de obra não qualificada passaram a ser automatizados no contexto da revolução 3.0. Na revolução 4.0 a automação é aplicada em uma escala jamais vista pela inteligência artificial e pelos robôs (Dean & Spoehr, 2018; Martins, Carvalho Neto & Diniz, 2021).

O ritmo intenso das transformações desencadeadas pela revolução 4.0, aliado ao alto grau de qualificação profissional exigido, evidenciam a exclusão do mercado de trabalho - e/ou sua “uberização” - de contingentes populacionais expressivos (Sant’Anna et al., 2022). No Brasil, particularmente, já é possível observar uma mudança estrutural no mercado de trabalho, a multiplicação dos trabalhadores informais, incluindo aqueles “empreendedores” cujo trabalho está ancorado nas plataformas digitais (Nesello, 2019; Amorim, Carvalho Neto & Garcia, 2021).

O trabalho por aplicativos é um exemplo de trabalho baseado nas tecnologias da revolução 4.0 e vem ganhando grande adesão mundial desde a década de 2000. A empresa Uber, pioneira no setor de transporte por aplicativo, possuía, em agosto de 2020, 30 mil funcionários no mundo, 5 milhões de motoristas, 122 milhões de usuários, que fazem 20 milhões de viagens e entregas por dia em mais de 10 mil cidades espalhadas em 71 países. Só no Brasil, são 1 milhão de motoristas atuando em mais de 500 cidades (Uber, 2020).

Apesar de a Uber ser pioneira no cenário da uberização, há diversas outras organizações que atuam por meio de plataformas digitais, a fim de conectar clientes e prestadores de serviços. Dentre elas está a empresa Ifood, que teve a sua origem no Brasil. De acordo com dados de março de 2021, o Ifood conta com mais de 160 mil entregadores ativos em sua plataforma, rendendo 60 milhões de entregas mensais, abrangendo 270 mil restaurantes e 5 mil mercados espalhados em dois países da América Latina, Brasil e Colômbia. Só no Brasil a empresa alcança mais de 1.200 cidades, movimentando mais de 1.5 milhões de downloads para instalação do aplicativo por mês (Ifood, 2021).

A uberização, que começou no setor de transporte de passageiros, conseguiu alcançar outros segmentos de mercado por meio das plataformas digitais. Além das citadas anteriormente, há ainda o 99 pop, Cabify, EasyGo, Te Levo transporte e logística e WillGo. No que se refere às empresas que atendem aos pedidos de entrega, além do Ifood existem outras em constante crescimento como o Loggi, Rappi e o UberEates. No âmbito educacional há também organizações como o Superprof, Colmeia e Sharing Academy, que contam com milhões de clientes e prestadores de serviço atuando no mercado de aulas online (Pesole et al., 2018; Franco, 2020).

Neste contexto, umas das áreas que está se tornando cada vez mais uberizada é a de entrega, que conta principalmente com trabalho de motoboys e bikeboys em sua composição, ganhando popularidade através de aplicativos como Ifood, Rappi e Loggi (Sabino & Abílio, 2019). Na pandemia de Covid-19, o trabalho de entrega de itens de consumo em casa ganhou ainda mais notoriedade, em razão das restrições de circulação das pessoas em todo o mundo.

Dado o crescimento exponencial do trabalho de delivery mediado por tecnologia em todo o mundo, algumas questões de pesquisa emergem e, dentre elas, a influência das tecnologias 4.0 no processo de trabalho dos entregadores. Cada vez mais pessoas em todo o mundo dependem, de forma complementar ou exclusiva, da fonte de renda obtida nesses trabalhos informais. Além de se tratar de uma temática nova na literatura em razão da natureza contemporânea de temas, como a revolução 4.0 e o trabalho de profissionais mediado por tecnologias. São, portanto, raros os estudos que buscaram entender o processo de trabalho desses indivíduos. Tomando como ponto de partida tal lacuna, buscou-se, neste estudo, compreender os impactos das mudanças catalisadas pela revolução 4.0 no processo de trabalho dos motoboys e bikeboys de aplicativos.

Tal questão de pesquisa é relevante, pois a revolução 4.0 está gerando diferentes transformações no mercado de trabalho, alterando sobremaneira o processo e as relações de trabalho (Kramer, 2017). Sendo assim, torna-se necessário investigar o trabalho no setor de delivery para uma melhor compreensão deste quadro, indo ao encontro dos estudos de Sabino & Abílio (2019) e Slee (2017), que salientam a necessidade de fomentar novas pesquisas sobre o trabalho de motoboys e bikeboys.

Referencial teórico

A quarta revolução industrial: tecnologias 4.0 e impactos no trabalho

Historicamente, a maioria das revoluções industriais ocorreram através de uma disrupção tecnológica nos meios produtivos (Lee, et al, 2018). A primeira revolução industrial, ocorrida nos anos de 1760, teve seu estopim ligado à invenção da máquina a vapor, que permitiu a migração de diversas pessoas das zonas rurais para as cidades (Cunha, 2019). A segunda revolução, por volta de 1900, trouxe como grande ruptura tecnológica o motor com combustão interna, fomentando o crescimento industrial que passou a ser baseado no petróleo e na geração de energia (Xu et al., 2018).

A terceira revolução industrial, a partir do final dos anos de 1960, foi marcada pela automatização dos processos produtivos e pelo aumento de produtividade nos setores de indústria e de serviços através de tecnologias eletrônicas, computacionais e do advento da internet (Xu et al., 2018).

Atualmente a discussão gira em torno da quarta revolução industrial, termo cunhado por Klaus Schawb, engenheiro, economista, fundador do Fórum Econômico Mundial e um dos precursores desse debate. Para Schawb (2016, p. 1) “(...) estamos no início de uma revolução que está mudando fundamentalmente a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos um com o outro”. Esta revolução se diferencia das anteriores fundamentalmente pela velocidade das transformações, pelas mudanças que tecnologias inteligentes e complexas têm gerado e pelos impactos nas mais diferentes facetas do mundo moderno, seja no trabalho, nas relações sociais, nas organizações e nos indivíduos (Nesello, 2019).

A revolução 4.0 pode ser definida como um novo sistema tecnológico que está sendo moldado pela internet, sua conectividade, a integração e a digitalização da produção e distribuição de bens, serviços e informações. Trata-se de uma indústria inteligente caracterizada pelo uso intensivo de inovações em tecnologia digital, robótica avançada e inteligência artificial (IA) (Sartori, Zanotto & Fachinelli, 2018; Israel, 2021).

Embora muitos autores considerem que indústria 4.0 e revolução 4.0 sejam termos semelhantes, Borges et al. (2019) salienta que há diferença entre os dois. A indústria 4.0 refere-se à infraestrutura e tecnologia aplicada e é apenas um dos componentes da nova revolução, que por sua vez é todo o processo de mudança cultural, social, tecnológica e organizacional decorrente dos avanços tecnológicos.

Para Sakurai & Zuchi (2018), algumas das principais características que definem a revolução 4.0 são: a virtualização e a capacidade de operação em tempo real permitem uma melhor gestão de dados e negócios com monitoramento e processamentos remotos; descentralização dos negócios por meio de ambientes virtuais; e interoperabilidade, que tem a capacidade de fazer com que todos os recursos da organização (pessoas, sistemas, máquinas) comuniquem entre si em cada fase do processo.

Dentre as principais tecnologias introduzidas no contexto da revolução 4.0 que estão modificando o mundo do trabalho e dos negócios, merecem destaque: a internet das coisas (IoT), big data, robôs, sensores de alta tecnologia, dispositivos móveis, plataformas que usam algoritmos complexos, computação e armazenamento em nuvem, realidade 3D e aumentada, dentre outras (Sartori, Zanotto & Fachinelli, 2018; Puhovichova & Jankelova, 2021).

A internet das coisas (IOT) representa a interconexão digital de objetos de uso cotidiano com a internet, permitindo a integração de objetos físicos, digitais, produtos e serviços (Sakurai & Zuchi, 2018). Esta tecnologia permite às organizações oferecerem produtos e serviços para um grupo amplo e diversificado de clientes com maior praticidade e aprimorando a experiência do cliente (Lee et al., 2018, Sabino & Abílio, 2019). Relógios, casas, carros e até cidades inteligentes são algumas das aplicações das tecnologias de IOT.

Outra tecnologia marcante da revolução 4.0 é o big data, que se tornou uma importante ferramenta para organizar, tratar e obter informações a partir de um enorme volume de dados (Silva, Oliveira Borges & Jesus, 2021). Diversos aplicativos utilizam o big data para gestão de seus dados, como o Linkedin, plataforma de ofertas de vagas e conexão de profissionais e de empresas para facilitar o networking profissional. Outros exemplos são plataformas de viagem e hospedagem, como o AirBnB e o aplicativo de transporte EasyTaxi (Oussous et al., 2018; Nascimento et al, 2021).

A computação em nuvem, por sua vez, é uma ferramenta que permite o armazenamento e o acesso a um volume enorme de dados, antes inimaginável e sem a necessidade de mantê-los registrados em um equipamento físico. As organizações usam este recurso para armazenar informações organizacionais, promovendo maior acessibilidade e segurança contra perdas de informações nas diferentes etapas do processamento de dados (Rubmann et al., 2015).

Outra importante tecnologia da revolução 4.0 é a segurança cibernética (Rubmann et. al, 2015). Em meados de 2017, cerca de 70 organizações no mundo sofreram danos com ataques promovidos por hackers em suas bases de dados, colocando em risco a segurança de dados empresariais (Perlroth & Sanger, 2017). A importância da segurança cibernética para as organizações na era 4.0 é crítica, pois oferecem dados criptografados que permitem acesso somente aos detentores dos dados, aumentando a confiabilidade de circulação e uso da informação (Sakurai & Zucchi, 2018).

A robótica avançada é outro conjunto de tecnologias 4.0 que gerou flexibilidade, eficiência e um grau de automação nos processos organizacionais nunca visto anteriormente (Lee et al, 2018). Embora os robôs já existissem desde a 3ª revolução, na revolução 4.0 tais tecnologias ganharam habilidades que vão além da automação de tarefas repetitivas, principalmente com o uso da inteligência artificial. Em um futuro breve muitos processos empresariais e humanos ficarão cada vez mais próximos daqueles realizados por robôs “inteligentes” e “autônomos”, que substituirão diversas funções humanas (Sakurai & Zuchi, 2018).

Diretamente relacionado à autonomia dos robôs, está o conceito de inteligência artificial, sistemas ou máquinas que buscam “aprender” com o comportamento humano para executar tarefas complexas. Pode ser utilizada para a elaboração de modelos para máquinas, o machine learning ou o aprendizado das máquinas (Kusma & Chiroli, 2020). A inteligência artificial abrange diversas tecnologias no contexto da revolução 4.0, tais como a robótica e a internet das coisas (Silva et. al, 2021).

É inegável que essas diferentes tecnologias trazidas no contexto da revolução 4.0 vem modificando profundamente a economia, os processos organizacionais e as relações de trabalho (Sakurai & Zuchi, 2018). Como pontua Schwab (2016), novas tecnologias estão fundindo os mundos físico, digital e biológico de forma a criar grandes promessas e diversos perigos.

Quanto às oportunidades, diversos autores discutem melhorias provocadas pela introdução de tecnologias inteligentes (Sant’Anna et al., 2022; Puhovichova & Jankelova, 2021), como o aumento exponencial da produtividade e eficiência dos processos produtivos; maior potencial de resolução de problemas complexos; operações e logística interconectadas e inteligentes; bem como o aproveitamento de indivíduos em atividades mais mentais e menos braçais.

Por outro lado, os impactos negativos decorrentes da revolução 4.0 não devem ser subestimados, seja na composição da estrutura do mercado de trabalho, na polarização entre ocupações ou na intensificação das desigualdades sociais. Mesmo em economias mais desenvolvidas, o enfraquecimento dos sistemas previdenciários e a estagnação dos salários, registrados desde 2000, evidenciam os riscos de um movimento de esvaziamento da classe média, com a exclusão dos trabalhadores de baixa renda (Sant’Anna et al., 2022).

No nível do trabalho, há consequências nos mais variados aspectos, seja na quantidade de postos de trabalho (eliminação de funções e substituição de atividades humanas por tecnologias inteligentes) (Schwab, 2016); seja nos tipos de competências requeridas na era digital (Sant’Anna et al., 2022), o que pode provocar a exclusão de trabalhadores menos qualificados ou com menos acesso à educação formal; seja na flexibilização dos tipos de contrato de trabalho e na legislação trabalhista de muitos países gerando um aumento significativo de trabalhadores informais (Amorim & Carvalho neto, 2021; Amorim, Carvalho Neto & Garcia, 2021).

A uberização consiste em uma nova forma de organizar, gerenciar e controlar o trabalho que se diferencia das relações tradicionais formais que os trabalhadores têm com as organizações (Abílio, 2019). Representa um novo modelo de trabalho mais flexível em que o trabalhador presta serviços conforme a demanda e sem vínculo empregatício (Franco & Ferraz, 2019).

Tal modelo de trabalho é muitas vezes executado apenas com o uso de um aplicativo de internet. Apesar dessa aparente flexibilidade, muitos autores abordam as consequências negativas desse modelo, especificamente para o trabalhador, como: a ausência de direitos trabalhistas; a precarização do trabalho; a remuneração incerta; o controle do trabalhador via tecnologia (Kramer, 2017; Franco & Ferraz, 2019; Abílio, 2020).

Procedimentos metodológicos

Considerando o objetivo de captar a percepção dos entregadores sobre os impactos da revolução 4.0 no trabalho dos motoboys e bikeboys, optou-se pela realização de um estudo qualitativo (Yilmaz, 2013). A abordagem qualitativa privilegia a visão do sujeito investigado, permitindo a emergência de experiências, percepções e aspectos subjetivos dos indivíduos (Patias & Hohendorff, 2019).

Como método de pesquisa, o estudo de caso único foi o selecionado, tendo em vista a intenção de focar neste grupo de indivíduos que têm como característica comum o trabalho de entregadores por aplicativo, uma classe que cresceu quantitativamente no contexto da revolução 4.0 e ganhou relevância na pandemia. Para Yin (2005), os casos únicos são apropriados quando o objeto envolve uma empresa ou um grupo de indivíduos com características homogêneas, como é o caso dos trabalhadores de delivery.

Para a coleta de dados foram utilizadas duas fontes de evidência: entrevistas semiestruturadas e análise documental. O roteiro de entrevista foi composto por questões de natureza aberta, definidas previamente, mas dando liberdade ao entrevistado de colocar opiniões fora do que havia sido planejado (Minayo, 2010). Foram entrevistados 24 trabalhadores que fazem entrega de produtos de consumo de diferentes setores (alimentício; supermercado; transporte de pessoas, outros).

Os principais critérios de seleção dos entrevistados foram: entregadores de aplicativos de delivery que atuam em Belo Horizonte e na Região Metropolitana; trabalhadores de diferentes aplicativos. Em relação a esse último ponto, buscou-se contemplar trabalhadores de diferentes aplicativos, pois cada empresa tem políticas de trabalho distintas e a ideia era captar essas diferentes realidades de trabalho. A identificação do primeiro entrevistado foi através da rede de contato dos pesquisadores e posteriormente, foi adotada a técnica de bola de neve e os entrevistados foram indicando pessoas potencialmente relevantes para o objetivo da pesquisa.

Quanto ao perfil dos entrevistados, um aspecto que ficou evidente nos dados coletados é o público majoritariamente masculino, de trabalhadores jovens com idade na faixa de 20 a 30 anos e que tiveram poucas oportunidades no mercado antes de aderirem ao aplicativo. Dos 24 entrevistados, 18 entregadores dependiam unicamente da fonte de renda deste trabalho e 6 acumulavam mais de uma função. O Quadro 1 reúne dados do público entrevistado.

Quadro 1 -
Perfil dos entregadores

Fonte: dados da pesquisa.

O roteiro de entrevista foi subdividido em três blocos envolvendo questões abertas sobre: i) o perfil dos respondentes (sexo, idade, tempo que trabalha com aplicativo, setor, formação); ii) a rotina e as condições de trabalho (horas de trabalho por dia, tempo de descanso, remuneração, vínculo com a empresa); iii) os impactos da tecnologia no trabalho dos entregadores. As entrevistas duraram, em média, 28 minutos e todas foram transcritas para facilitar a etapa de análise dos dados. Quando aos documentos, foram consultados os sites institucionais das empresas de aplicativos e documentos públicos que tratavam de questões tecnológicas e das condições de trabalho oferecida aos profissionais.

Para o tratamento dos dados, foi adotada a técnica de análise de conteúdo por categoria. A análise de conteúdo consiste em uma técnica de análise da comunicação, com foco na organização, categorização e interpretação sistemática dos dados obtidos nas mensagens (Bardin, 2009). Dessa forma, todas as respostas dadas pelos 24 entregadores foram primeiramente transcritas e alocadas em cada pergunta aberta. A partir daí, foram realizadas análises exaustivas de cada resposta, buscando identificar aspectos convergentes e divergentes nos diferentes relatos.

A quarta revolução industrial e o trabalho dos bikeboys e motoboys

Sendo um dos pilares para a expansão da uberização do trabalho na sociedade, a revolução 4.0 está presente em diversos processos no contexto de trabalho dos entregadores de delivery (Wright, 2016; Abílio, 2019; Costa & Staudacher, 2021). Diversas características da revolução 4.0, tais como a internet das coisas, o armazenamento em nuvem e a inteligência artificial, são essenciais para a manutenção destas relações de trabalho uberizadas. Tais características ficaram evidentes nos relatos da maioria dos motoboys e bikeboys entrevistados, evidenciando aspectos que sinalizam a quebra de paradigmas dos processos de trabalho quando comparado às relações de trabalho tradicionais.

A internet das coisas é um dos importantes quesitos para a execução e propagação do trabalho uberizado. Através da disseminação desta tecnologia, hoje a sociedade tem amplo acesso à internet e uma interconexão digital de objetos, tornando o delivery uma das principais ferramentas para compras em diversos segmentos do comércio. Não deixa de ser também uma oportunidade de produzir renda através do trabalho informal, e até mesmo, em menor escala, do emprego formal, que garanta a subsistência de um número significativo de trabalhadores. Muitos autores, como Peters (2017) e Rapanyane & Sethole (2020), apontam como essas tecnologias têm modificado não só as relações entre as pessoas, como também as relações de trabalho.

As entrevistas deixaram claro como este novo modelo de trabalho fomentado pela internet via plataformas digitais virou uma opção para muitos trabalhadores. O Entrevistado 14 evidenciou a relação da tecnologia com o crescimento do seu trabalho: “(...) trabalhar com delivery foi uma boa opção para mim, uma vez que o aplicativo, por ser uma plataforma online, me permite ter acesso a vários clientes”. Ao utilizar a internet como um meio para a divulgação e execução da prestação de serviço, os aplicativos uberizados conseguem ampliar exponencialmente o alcance de clientes, contribuindo para atrair trabalhadores que passam a ter acesso facilitado a um maior número de entregas. Tais achados vão ao encontro da literatura (Sakurai & Zuchi, 2018; Lee et al., 2018; Sabino & Abílio, 2019) que discorre sobre como a revolução 4.0 fomentou novas formas de negócios, atraindo consumidores e trabalhadores, tornando reais e crescentes as novas relações de trabalho uberizadas.

Além da revolução 4.0 que forneceu as condições para o desenvolvimento de serviços dessa natureza, a pandemia do Coronavírus tornou o delivery ainda mais relevante em razão das políticas restritivas à circulação de pessoas nas ruas, com o objetivo de conter a propagação do vírus. Consequentemente, a internet se tornou ferramenta crucial para o trabalho na sociedade, para reuniões virtuais e para o comércio eletrônico. Diversos entrevistados destacaram em suas falas que os incentivos às compras online ampliaram exponencialmente as demandas de entrega no período da pandemia, tornando esse nicho de trabalho atrativo, além de representar uma opção de renda para as pessoas que perderam seus empregos. A fala do Entrevistado 12 ilustra essa discussão:

A pandemia, quando começou há um ano atrás, por um lado fui ruim pra população, mas pra nós foi bom, porque muita gente parou, tava tudo pela internet, muita gente no começo não saía, por causa do auxílio emergencial, então foi muita entrega, a meta, minha meta por dia, eu tava fazendo 200 conto por dia em média, então eu tava tirando 250 quase 300 conto quase todo dia, entendeu? (Entrevistado 12).

Portanto, a atividade dos motoboys e bikeboys ganhou maior importância e reconhecimento no contexto da pandemia, como citado por Manzano & Krein (2020), já que boa parte da população que não trabalhava em serviços essenciais ficou reclusa. Parentes não visitavam suas famílias, o contato social presencial foi reduzido e a compra de alimentos e demais itens de consumo passou a ser feito via aplicativos com o intuito de evitar a propagação do vírus. Isso pode ser confirmado na fala do Entrevistado 10: “No caso da pandemia até a demanda cresceu né, a maioria das pessoas não podia ir aos lugares, então acabou que a gente era a única opção de ligar o lugar à pessoa.”.

Por outro lado, quem ficou mais exposto ao risco de contaminação pelo vírus foi a classe de entregadores, que em sua grande maioria não contava com direito a auxílio-doença nem a plano de saúde, dado à natureza informal do vínculo de trabalho. Esses dados corroboram os estudos de Oliveira et. al (2020) e Souza (2020), que discorrem sobre o impacto da pandemia na vida e na saúde daqueles que continuaram trabalhando ativamente.

Os dados evidenciam que a pandemia potencializou ainda mais a dificuldade que este tipo de trabalho traz para a saúde ocupacional do trabalhador, uma vez que, se já era um desafio a autogestão da quantidade de trabalho e os problemas que o trabalho excessivo acarretavam aos bikeboys e motoboys, a situação piorou com as exigências necessárias para manutenção da saúde no período pandêmico.

É visível, portanto, que a pandemia agravou ainda mais as desigualdades de uma sociedade como a brasileira, na qual os trabalhadores historicamente acumulam prejuízos de direitos trabalhistas e previdenciários, levando o país a uma crescente taxa de desemprego e a um aumento do número de trabalhadores informais (Amorim & Carvalho Neto, 2021; Amorim, Carvalho Neto & Garcia, 2021). Alguns aspectos relativos à natureza informal do trabalho foram destacados pelo Entrevistado 20:

Infelizmente os aplicativos não nos oferecem a mesma estrutura que um emprego fichado. Pra trabalhar, preciso ter minha moto, com seguro para ela, arcar com o combustível, com o celular. Se for colocar na ponta do lápis, nós temos que gastar dinheiro, pra ganhar dinheiro e isso torna tudo mais inseguro (...) (Entrevistado 20).

Outra característica da revolução 4.0 evidenciada na pesquisa de campo é o uso da inteligência artificial para a avaliação e mediação dos processos de trabalho nos aplicativos. Tecnologias de IA, em conjunto com o machine learning, são ferramentas essenciais para garantir o pleno funcionamento e a eficiência do processo de trabalho via app; uma distribuição eficaz das demandas entre os trabalhadores e a precificação dos serviços prestados. Podem gerar, por outro lado, um controle maior sobre esses trabalhadores informais, conforme aponta o estudo de Abílio (2010).

Os dados coletados evidenciam que as empresas usam algoritmos para gestão da demanda de trabalho dos bikeboys e motoboys. Alguns entrevistados relataram, por exemplo, que os diferentes dados informados pelos trabalhadores no momento do cadastro junto à empresa são utilizados para a posterior alocação do volume de trabalho para cada entregador, como informações relativas à disponibilidade do trabalhador no aplicativo, existência de outros vínculos etc. Sendo assim, diferentemente das relações de trabalho tradicionais, os bikeboys e motoboys são geridos por meio da tecnologia. Esta mesma tecnologia define quais entregadores realizarão o serviço, quando e quanto serão remunerados. O relato do Entrevistado 5 ilustra como isso se dá no cotidiano de trabalho dos entregadores:

Quanto à diferenciação de remuneração, eles cobram em finais de semana, tipo assim, sexta começa a partir das dezoito, sábado e domingo; eles liberam pontos por região, cada região você tem que ter uma certa quantidade de pontos, na sexta feira a partir das dezoito, eles começam a liberar os pontos, cada entrega que você faz é dois mil pontos. Se você faz a entrega você ganha dois mil, se você não fizer ou sair fora da entrega ou cancelar, aí você já perde esses pontos mais a bonificação acima de cinco entregas. Se você completar as cinco entregas, você ganha vinte e um pontos, aí você já não perde muito a remuneração (Entrevistado 5).

Tal fato evidencia a aplicação da inteligência artificial na gestão do processo de trabalho dos entregadores, rompendo com a figura de um gestor, figura comum no emprego tradicional. Tal achado vai ao encontro da literatura que discorre sobre a importância da utilização destas tecnologias na revolução 4.0 para gestão dos processos de trabalho (Kusma & Chiroli, 2020; Silva et. al., 2021), corroborando ainda o estudo de Abílio (2020), que destaca a intensa adoção destes mecanismos pelos aplicativos uberizados para o controle do processo de trabalho e dos serviços prestados. Este controle abrange análises analíticas e estatísticas da frequência em que o trabalhador está disponível para o trabalho, dos horários e locais, entre outras variáveis.

Este contexto só é possível devido à utilização da tecnologia de armazenamento na nuvem e à cyber security que os aplicativos oferecem ao consumidor e ao trabalhador. Essas tecnologias exercem uma influência significativa no processo de trabalho dos bikeboys e motoboys, embora vários aspectos não sejam claramente percebidos pelos trabalhadores, como os dados mostram.

Alguns aspectos identificados nos relatos dos entrevistados evidenciam a importância de características da revolução 4.0 nos aplicativos uberizados. A maioria dos entrevistados afirmou que o uso do aplicativo facilita consideravelmente a obtenção de demandas para a prestação de serviços. Isso se deve ao uso de tecnologias de IA e à capacidade de armazenamento de um grande volume de dados que essas tecnologias oferecem, onde ficam registrados cadastros de milhares de clientes em várias regiões geográficas dos municípios atendidos pelas empresas. Tal aspecto pode ser visualizado na fala do Entrevistado 3, quando perguntado sobre a facilidade de conseguir demandas de trabalho sem o aplicativo:

Olha, é tipo assim, eu não sei explicar perfeitamente, pelo fato de eu não trabalhar muito de forma autônoma. Até tem um amigo meu que trabalha autônomo, não sei como ele consegue tanta demanda. Prefiro por aplicativos, porque no aplicativo ele já te dá a localização correta, então você tem tal lugar, tem você já tem aquele destino que você tem que ir, e os clientes certos, aí já fica mais fácil. A tecnologia ajuda muito. Além da quantidade de clientes e restaurantes cadastrados no App (Entrevistado 3).

Este relato evidencia, mesmo que de forma sutil, que a base de dados existente nos aplicativos traz comodidade e segurança aos trabalhadores, que aproveitam dos diversos restaurantes e clientes cadastrados para facilitar o processo de trabalho. A maioria dos entrevistados manifesta a sua satisfação por ter à sua disposição informações de localidade, de clientes, restaurantes, de forma simples e precisa, condição diferente da realidade de um trabalhador autônomo que tem que gerir os processos por conta própria e, por vezes, de forma manual.

Outra vantagem de natureza tecnológica relatada pelos entrevistados é a segurança no recebimento dos valores, uma vez que o aplicativo faz a gestão virtual de todo o dinheiro envolvido nas transações, além de fornecer ao trabalhador um relatório de dados como o histórico de determinado cliente, oferecendo, portanto, segurança nas prestações de serviços. Tal achado corrobora com os estudos de Rubmann et. al. (2015) e Perlroth & Sanger (2017), que apontam que a capacidade de armazenamento de uma grande quantidade de dados na nuvem e a evolução da cibersegurança têm possibilitado o desenvolvimento de novos trabalhos com novas relações, reforçadas pela uberização.

Por outro lado, os dados evidenciam percepções diferentes em relação à oportunidade de geração de renda proporcionada pelos aplicativos, conforme ilustra a fala do Entrevistado 2: “(...) não sei se chega a ser vantagem, porque você rala muito para conquistar, você abre mão de tá em casa, não tem final de semana nem feriado. Então é uma coisa que você conquistou, mas nem sempre pode usufruir .”

Os trabalhadores que aderiram aos aplicativos depois de uma demissão de um emprego formal manifestaram dificuldades em relação à pouca demanda de serviço, à demora para terem um pedido direcionado a eles e à baixa remuneração obtida ao final do mês. O estudo de Manzano & Krein (2020) aponta que embora a pandemia tenha favorecido a demanda pelo serviço de entrega, houve concomitantemente um aumento significativo do número de trabalhadores informais que se inseriram nos aplicativos, sendo em sua maioria homens e negros.

Portanto, os dados indicam que, apesar de ser um complemento de renda para aqueles que tem mais de uma ocupação, é um trabalho desgastante e com remuneração incerta para os entregadores que dependem exclusivamente do aplicativo para a sua subsistência. A tecnologia que faz a gestão das demandas pode, por um lado, representar uma facilidade, mas por outro se configurar como um dificultador, pois o aplicativo demanda ao trabalhador ficar disponível muitas horas por dia e muitos dias na semana, incluindo final de semana e feriados. Quanto menos tempo conectado ao aplicativo, menos demandas são direcionadas ao trabalhador, conforme salienta o Entrevistado 9:

É, eles falam muito assim, que viramos reféns do aplicativo, porque se você fica sem trabalhar, principalmente no final de semana, já que no final de semana a demanda é maior e é o momento que eles mais precisam dos motoqueiros. Mas às vezes não dá, você não consegue manter esse ritmo de trabalhar sete dias na semana, de domingo a domingo, às vezes você folga um final de semana. Se seu score no aplicativo for bom, às vezes isso não influencia na diminuição da demanda, mas se seu score for mais ou menos sua demanda diminui (Entrevistado 9).

Portanto, muitos trabalhadores que dependem exclusivamente da renda obtida no aplicativo acabam não usufruindo períodos de descanso com receio de perderem oportunidades de trabalho, o que pode gerar impactos na saúde mental, física e emocional do indivíduo, corroborando o estudo de Schmidt & Seligmann-Silva (2017). Os autores destacam a instabilidade, a incerteza, o estresse o esgotamento emocional que trabalhos dessa natureza podem provocar, como o relato do Entrevistado 9 pode sugerir: “(...) no dia que você está de folga, você fica preocupado se no dia seguinte você vai ter entrega, se vão te solicitar os serviços.”

Com isso, é possível observar as consequências que o trabalho uberizado tem na vida de motoboys e bikeboys de aplicativos. São trabalhadores por vezes submetidos a longas jornadas de trabalho que assumem os riscos e os custos para a realização de suas atividades (Castro, 2021), já que não recebem auxílio para o transporte e para a manutenção de seus veículos de trabalho. O relato do Entrevistado 11 ilustra a carga de trabalho dos trabalhadores de transporte por aplicativo:

Eu às vezes chego a trabalhar até 13 horas (...) Em geral eu paro no horário de almoço para fazer algum lanche, na maioria das vezes é só um lanche mesmo. Não parar para descansar no período, a cada minuto parado eu acabo perdendo dinheiro.

Além disso, eles trabalham sem garantias de remuneração, já que os valores auferidos dependem de diversas variáveis determinadas pelo aplicativo. Ou seja, a tecnologia influencia no valor da remuneração auferida pelo trabalhador, indicando o impacto das transformações trazidas pela revolução 4.0 nas condições de trabalho.

As entrevistas também mostraram a formação desses trabalhadores, em geral pouco qualificados, sendo que a grande maioria apenas completou o ensino médio. Convergente com esse achado, o estudo de Sabino & Abílio (2019) mostrou que apenas 53% dos entregadores de aplicativo que utilizam a bicicleta conseguiu completar o ensino médio e apenas 4% deles completou o ensino superior.

Considerações finais

A popularização da internet tornou possível a propagação dos serviços de delivery por aplicativos, turbinado ainda mais com a pandemia do coronavírus. Os dados evidenciaram, primeiramente, que as tecnologias catalisadas pela revolução 4.0, como o armazenamento em nuvem, o big data, IOT e a inteligência artificial, se fazem muito presentes no dia a dia dos trabalhadores entrevistados. A adoção dessas tecnologias pelas empresas de aplicativo são fundamentais para a operacionalização desse modelo de trabalho, as quais modificaram consideravelmente os processos de trabalho quando comparado à forma de trabalho tradicional, como os achados apontam.

Por um lado, a tecnologia permitiu a emergência de novas formas de trabalho, o que muitos entrevistados consideraram uma oportunidade de geração de renda (complementar ou exclusiva), aliado à flexibilidade de horário. Os dados deixam claro, portanto, como este novo modelo de trabalho via plataformas digitais virou uma opção para muitos trabalhadores ou mesmo a única via de geração de renda em razão do desemprego provocado pela pandemia. Essa crise sanitária transformou o serviço de delivery em um dos mais relevantes em todo o mundo, já que boa parte da população que não trabalhava em serviços essenciais ficou reclusa por tempo considerável.

Portanto, observou-se que a demanda pelo serviço de delivery aumentou exponencialmente no período pandêmico, contribuindo, consequentemente para ampliar a receita auferida pelos motoboys e bikeboys. Entretanto, colocou essa classe exposta ao risco de contaminação e morte pelo vírus, já que os dados apontam que a maioria dos trabalhadores não recebia nenhum tipo de auxílio-doença ou plano de saúde, em razão do vínculo informal de trabalho. A crise econômica, a inexistência de protocolos sanitários e a ausência de fiscalização dos aplicativos-empresas para a proteção do trabalhador só evidenciou a fragilidade econômica, social e trabalhista em que o Brasil se encontrava no contexto pandêmico.

Um paradoxo que os achados da pesquisa evidenciam é que, enquanto a tecnologia gera oportunidade de trabalho (ainda que informal e não regulado), permitindo ainda uma flexibilidade ao trabalhador que passa a ser responsável pela gestão do seu tempo; por outro lado, a tecnologia pode ampliar o controle sobre esse trabalhador informal. Os achados mostram que o uso de sistemas algorítmicos de gestão, característicos da revolução 4.0, pelas empresas de aplicativo permitem que elas controlem diversas etapas do trabalho, seja na designação das corridas aos entregadores; seja no tempo que eles ficam disponíveis no app; seja na movimentação dos trabalhadores nas cidades em que atuam.

Os achados revelam, portanto, que diversos aspectos do trabalho dos entregadores autônomos são monitorados pela empresa, curiosamente, dos empreendedores informais que autogerenciam as suas carreiras. Neste caso, a figura do gestor é substituída pela tecnologia inteligente. Portanto, os achados da pesquisa levantam dúvidas sobre a flexibilidade e a autonomia aparentemente propiciadas ao entregador inserido nesse modelo informal de trabalho via tecnologia.

Outro ponto que merece destaque é que os motoboys e bikeboys que ficam mais tempo disponíveis no sistema do aplicativo tendem a receber um número maior de demandas por corridas e consequentemente, melhores condições de remuneração. Esta gestão tem como objetivo “beneficiar” os trabalhadores que se sujeitam a longas cargas de trabalho no aplicativo, consequentemente punindo aqueles que desejam tirar algum dia de descanso ou lazer, tornando as longas horas de trabalho um ciclo constante. Ciclo este que traz implicações sérias para a saúde mental, física e emocional do indivíduo, corroborando estudos na área que destacam a instabilidade, o estresse e o esgotamento emocional que trabalhos dessa natureza podem gerar.

A saúde do trabalhador é motivo de preocupação entre muitos motoboys e bikeboys entrevistados, onde a elevada carga de trabalho, juntamente com a natureza informal do trabalho, traz desafios extras para eles. Casos de esgotamento físico, ansiedade e depressão vieram à tona nas falas dos entrevistados, principalmente em momentos desafiadores como a pandemia do Coronavírus. E este esgotamento, aliado aos perigos diários do exercício da atividade, torna acidentes de trabalho uma realidade ainda maior. Além disso, a maior parte dos motoboys e bikeboys necessita lidar com jornadas duplas, ou até mesmo triplas, para conseguir alcançar suas metas de remuneração.

Do exposto, embora os trabalhadores da categoria de entrega tenham ganhado relevância numérica no mercado de trabalho e particularmente no contexto da pandemia de Covid-19, os dados mostram que eles sofrem as características da uberização em seu dia a dia de trabalho. Ou seja, apesar da aparente flexibilidade propiciada pelo novo modelo de trabalho, os entregadores sofrem as consequências da uberização, modelo fomentado pelas tecnologias trazidas pela revolução 4.0. Sendo alguns desses impactos já previamente discutidos na literatura da área, tais como: a ausência de direitos trabalhistas; a precarização do trabalho; a remuneração incerta; o controle do trabalhador via tecnologia.

Tais condições deixam claro a necessidade de a categoria organizar uma representatividade coletiva que defenda os direitos da classe junto às empresas de aplicativos, uma vez que as relações de trabalho ainda são desiguais. Em momentos de crise, como a pandemia, com a elevação dos preços e a diminuição da remuneração, observa-se que a precarização aumenta e o trabalho fica ainda mais desigual (Kramer, 2017).

Dado o exposto, este estudo apresenta três contribuições à literatura no campo da administração, ainda incipiente no tocante aos impactos da revolução 4.0: sobre o processo de trabalho; sobre a categoria de motoboys e bikeboys pouco investigada nos estudos da área; sobre o trabalho via plataformas digitais, que tende a se expandir de forma exponencial nos próximos anos.

Reconhece-se que este estudo apresenta limitações e dentre elas, o fato de que a pesquisa não abrangeu a totalidade de aplicativos existentes no mercado. Além disso, o estudo traz a visão somente de trabalhadores homens e exclusivamente e sob a ótica do trabalhador, sem considerar a visão de demais implicados, como as empresas de aplicativos, os usuários das plataformas ou mesmo da representação sindical da categoria.

Sugere-se que novos estudos deem voz aos demais atores desse sistema de relações de trabalho, bem como investiguem as entidades representativas no que se refere à necessidade de regulação da atividade dos motoboys e bikeboys. Outra sugestão para pesquisas futuras seria abordar as políticas e práticas que podem ser desenvolvidas pelas empresas para proteger e melhorar as condições dos trabalhadores. Por fim, seria relevante analisar o impacto das tecnologias catalisadas pela revolução 4.0 em outros setores intensivos em tecnologia, além desse segmento de transporte por aplicativo, como o segmento de saúde e educação.

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