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CARREIRAS EM CONTEXTO E AGÊNCIA EM TENSÃO: ANALISANDO AS NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DO TURISMO NÃO-TRADICIONAL SOB A PERSPECTIVA DA SUSTENTABILIDADE
CAREERS IN CONTEXT AND AGENCY IN TENSION: ANALYZING THE NARRATIVES OF NON-TRADITIONAL TOURISM PROFESSIONALS FROM A SUSTAINABILITY PERSPECTIVE
Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, vol. 18, núm. 4, pp. 186-205, 2024
Universidade Federal Fluminense



Recepción: 26 Agosto 2024

Aprobación: 20 Noviembre 2024

DOI: https://doi.org/10.12712/rpca.v18i4.64396

Resumo: O estudo investiga como a cidade, enquanto contexto, influencia a sustentabilidade das carreiras. Foram realizadas 25 entrevistas com profissionais de turismo em Porto Alegre, uma capital brasileira com enfoque turístico não-tradicional. A análise temática revelou quatro características principais das trajetórias: 1) influência da identidade das cidades; 2) carreiras ao acaso no turismo; 3) agentes de mudanças, com destaque para a influência comportamental; e 4) retorno às origens, que envolve a ressignificação das trajetórias no ingresso ao campo do turismo. Resultados revelam a multiplicidade de contextos que afetam a sustentabilidade das carreiras e limitam a capacidade de agência individual.

Palavras-chave: Carreira, Carreira sustentável, Career sustainability, Social Sustainability, Narrative.

Abstract: This study investigates how the city, as a contextual factor, influences career sustainability. It involved 25 interviews with tourism professionals in Porto Alegre, a Brazilian capital with a non-traditional tourism focus. The thematic analysis identified four main characteristics of career trajectories: (1) the influence of city identity; (2) careers in tourism by chance; (3) change agents, with a focus on behavioral influence; and (4) a return to origins, involving the reinterpretation of career paths upon entering the tourism field. The findings reveal the diversity of contexts that impact career sustainability and constrain individual agency.

Keywords: Career, Sustainable career, Career sustainability, Social sustainability, Narrative.

Introdução

A perspectiva dominante nos estudos de carreira da área da psicologia vocacional e administração enfatiza a agência individual como fator preponderante para a empregabilidade (Akkermans & Kubasch, 2017; Forrier et al., 2018), ressaltando a influência de aspectos comportamentais, como proatividade e adaptabilidade (Akkermans et al., 2021) no aumento das chances para permanecer no mercado de trabalho. Essa orientação tem sido considerada limitar ao representar uma parcela qualificada de profissionais que conseguem transitar entre diferentes experiências laborais, inviabilizando, assim, o grande contingente de trabalhadores precarizados (Bal et al., 2021; Forrier et al., 2018). Tal condição se mostra ainda mais problemática ao se analisar países com contextos estruturais de acesso desigual à postos de trabalho, como o Brasil, em que a iniciativa para a empregabilidade se mostra pouco provável (e possível) (Baruch & Rousseau, 2019).

Uma das principais críticas sobre essas vertentes recai sobre a pouca ênfase nos elementos contextuais que limitam ou potencializam a capacidade de agência individual (Gunz et al., 2011), desconsiderando os múltiplos atores que interferem nas trajetórias e dificultam o controle dos sujeitos sobre os rumos das carreiras. Nesse sentido, há uma crescente de perspectivas que destacam a necessidade de uma “virada contextual” (contextual turn) na pesquisa em carreiras (Tams et al., 2021, p; 631), que analisem os diferentes aspectos que estruturam a capacidade de ação individual. Essa orientação se fortaleceu com a pandemia de Covid-19, que, ao afetar os modos como pessoas e organizações gerenciam as carreiras, ressaltou a indissociabilidade entre contexto e indivíduos (Akkermans et al., 2020).

Um importante esforço nessa direção se dá com a introdução da discussão da sustentabilidade das carreiras (Baruch & Sullivan, 2022). A discussão expande o foco na empregabilidade, centrada no indivíduo, para a incluir a preocupação sobre os fatores contextuais que interferem nas carreiras (De Vos et al., 2020; Van der Heijden & De Vos, 2015). Assim, se tradicionalmente o foco das pesquisas está em construir uma carreira, a discussão da sustentabilidade se preocupa com a continuidade das trajetórias diante das ameaças inerentes à atual configuração do trabalho (ex.: crises econômicas, dificuldade das empresas em garantirem o vínculo empregatício, necessidade de constante atualização) (De Vos & Van der Heijden, 2017; Lawrence et al., 2015). Enquanto lente teórica, a sustentabilidade implica em adotar uma perspectiva sistêmica (contextual), ao assumir a influência de múltiplos stakeholders, e dinâmica, compreendendo como essas relações se modificam e/ou se estabelecem no longo-prazo (De Vos et al., 2020).

Outro caminho sugerido na literatura para assumir a perspectiva contextual nas carreiras é enfatizar a influência das cidades (Curşeu et al., 2020; Tams et al., 2021). Cidades representam um construto cultural da sociedade, estruturando, por meio de estilos de vida e comportamentos locais característicos, cursos de ação em relação às carreiras (Tams et al., 2021). A interação das pessoas com a dinâmica das cidades, por meio do uso de seus serviços e instituições, é fundamental para a formação de condições que permitam trajetórias mais ou menos sustentáveis. Diante desse cenário, estudos têm sugerido a adoção da perspectiva da cidade como ponto-de-partida para compreender a interdependência da relação agência-contexto, e, assim, avançar na lacuna contextual da literatura (Tams et al., 2021; Curseu et al., 2021).

Neste estudo, assume-se como premissa que a análise da cidade enquanto contexto de influência às carreiras é possível a partir da perspectiva de uma ocupação cujo exercício está imbricado às características da cidade. A literatura destaca duas dimensões fundamentais que caracterizam o papel das cidades como contexto relevante às carreiras (Montanari et al., 2021; Tams et al., 2021). A primeira se refere às propriedades estruturais e econômicas, como a alta densidade de organizações em setores relevantes; oportunidades de trabalho disponíveis (Montanari et al., 2021); infraestrutura material e tecnológica, como sistemas de comunicação, eletricidade, qualidade do ar, disponibilidade de área verde (Tams et al., 2021). A segunda, refere-se aos aspectos subjetivos vinculados à cidade, como estilo de vida, cultura, incluindo o que algumas perspectivas entendem como identidade da cidade – sistemas de crenças e entendimentos compartilhados coletivamente entre os constituintes de uma cidade (Montanari et al., 2021; Jones & Svejenova, 2017).

Frente ao exposto, a análise das carreiras no turismo é considerada, neste estudo, uma alternativa interessante para analisar a influência das cidades nas carreiras, uma vez que o exercício deste setor ocupacional está imbricado ao contexto do destino (Candela & Figini, 2012). O turismo é uma atividade resultante do somatório de recursos naturais do meio ambiente, culturais, sociais e econômicos (Beni, 1990), sendo as cidades-destino pontos centrais para essas relações (Tams et al., 2021).

Este estudo objetiva analisar a cidade enquanto contexto que influencia a sustentabilidade das carreiras. O foco da pesquisa são profissionais que atuam com turismo receptivo em Porto Alegre, capital na Região Sul do Brasil que apresenta orientação turística voltada ao segmento de negócios e eventos (The United Nations Tourism, 2008). Essa perspectiva difere substancialmente do turismo tradicional, em que a viagem é motivada principalmente ao lazer e entretenimento nas férias (Candela & Figini, 2012). Esse cenário traz implicações interessantes para a análise de contextos que atravessam as carreiras e interferem na sua sustentabilidade.

Foram entrevistados 25 profissionais por meio de entrevistas narrativas, método que possibilita o explorar temporal e contextual das carreiras (Chudzikowski et al., 2020). Para acessar os contextos, foi adotado o conceito de carreira sustentável em suas dimensões: tempo, espaço social/contexto, agência (individual) e sentido (Van der Heijden & De Vos, 2015; De Vos et al., 2020). Seguindo recomendações de estudos anteriores (Tams et al., 2021; Curseu et al., 2021) a cidade será abordada como influência contextual transversal aos achados, e não como objeto principal de análise.

Os resultados contribuem especialmente para duas lacunas na pesquisa em carreiras: a) a necessidade de estudos que adotem perspectivas contextuais que vão além da capacidade de agência individual das carreiras (Tams et al., 2021; Van der Heijden & De Vos, 2021); e b) a lacuna de pesquisas empíricas sobre carreiras sustentáveis (De Vos et al., 2020).

Carreiras Sustentáveis: Analisando as Dimensões Centrais do Conceito

Van der Heijden e De Vos (2015) entendem carreira sustentável a partir de quatro elementos centrais: tempo, espaço social/contexto, agência e sentido. Esses elementos são inseridos na definição de carreira sustentável como “a sequência de diferentes experiências de carreira de um indivíduo, refletidas por meio de uma variedade de padrões de continuidade ao longo do tempo (tempo), atravessando diversos espaços sociais (espaço social/contexto), caracterizadas pela agência individual, além de fornecer sentido ao indivíduo (Van der Heijden & De Vos, 2015, p. 7). As dimensões se mostram imbricadas entre si, e em seu conjunto sistêmico representam o conceito de carreira sustentável, tal como apresentadas a seguir.

Tempo

O “tempo” remete ao pensar sobre carreiras que se transformam em resultado da interação entre pessoas e sociedade, refletindo características sociais e históricas do trabalho. Com o aumento da expectativa de vida, as carreiras se tornam mais longas (De Vos et al., 2016). A busca por empregabilidade implica, também, em sequências de experiências mais curtas entre organizações e tipos de trabalho, e uma maior imprevisibilidade sobre os futuros das trajetórias (Van der Heijden & De Vos, 2015). Assim, essa dimensão caracteriza a perspectiva dinâmica sobre como indivíduos contextos se modificam conforme interagem com diferentes eventos. Carreiras sustentáveis são, então, apresentadas como ciclos dinâmicos de aprendizagem e reajuste das necessidades individuais às demandas contextuais de carreira, igualmente mutáveis e relacionais à realidade vivenciada (De Vos et al., 2016, 2020).

Como lente teórica, a sustentabilidade permite uma perspectiva temporal sobre como experiências no passado e presente são mobilizadas para facilitar trajetórias futuras. O conceito de carreira sustentável não indica, assim, um “estado final”, mas um parâmetro para compreender a “variedade de padrões de continuidade” no curso do tempo (Van der Heijden & De Vos, 2015, p. 7). Carreiras podem ser mais sustentáveis quando condições contextuais são favoráveis para que esse padrão ocorra; e apresentar padrões menos sustentáveis após o experienciar de algum evento percebido, inicialmente, como negativo. Contudo, períodos mais sustentáveis podem ocorrer após o enfrentamento e superação de adversidades. Experiências vividas no passado podem, inclusive, ser ressignificadas, constituindo um movimento constante de produção de sentido que afeta a sustentabilidade das carreiras. A perspectiva temporal da sustentabilidade foca, portanto, na dinamicidade desses processos, a partir das constantes interações entre indivíduo-contexto.

Espaço Social

Indivíduos transitam por diversos espaços sociais com os quais interagem e constroem experiências com base nas interações vividas. O conceito de espaço social tem sido historicamente abordado em distintas epistemologias (Friedman, 2011), com fortes raízes na psicologia das organizações com Lewin (1951) e sociologia reflexiva com Bourdieu (1992). Na análise de Friedman (2011) essas perspectivas convergem ao pensar sobre a realidade social a partir da consciência sobre a influência de espaços, ou campos. O espaço social existe, portanto, no processo de pensar, agir e reagir aos relacionamentos, às regras do jogo, e aos significados atribuídos nas relações sociais. Considerando estar-se vivenciando uma realidade social inerentemente complexa, atualmente as pessoas participam em diferentes espaços sociais, a qualquer momento temporal, moldando e sendo moldadas por esses espaços (Friedman, 2011). Essas ideias estão presentes no conceito de carreira sustentável:

Carreiras refletem as relações entre pessoas, organizações ou instituições, e como essas relações flutuam ao longo do tempo. As carreiras estão na intersecção entre esses elementos, e, como tal, são influenciadas por fatores que provêm das esferas de vida dos indivíduos (família ou contexto de vida mais amplo) e por fatores situados na organização. Por sua vez, ambos estão situados em um contexto social mais amplo que também afeta as experiências de carreira individuais. Ou seja, uma vez que as carreiras se referem ao movimento das pessoas também entre espaços sociais, as carreiras não podem ser estudadas sem considerar o contexto no qual estão intrinsecamente conectadas (Van der Heijden & De Vos, 2015, p. 3)

Assim, a influência dos espaços sociais refere-se aos contextos que moldam as trajetórias. Isso fica mais evidente ao analisar o entendimento de agência individual nas carreiras, discutido a seguir.

Agência

A agência individual se refere às ações no processo de construção das carreiras, sendo frequentemente analisada a partir dos mecanismos psicológicos de enfrentamento às mudanças do mundo do trabalho (De Vos et al., 2020). O conceito de carreira sustentável traz uma nova perspectiva para o potencial da agência, entendendo que não depende, apenas, do comportamento em si, mas, principalmente, da interação sistêmica entre indivíduo, contexto e aspectos temporais. A agência é, portanto, entendida como dependente dessas interações, sendo, portanto, imbricada ao contexto (De Vos et al., 2020; Akkermans et al., 2021).

Desse modo, o modelo processual expande o entendimento de “espaço social” para incluir explicitamente a noção de contexto (De Vos et al., 2020). Contextos são “influências transversais nas quais um estímulo ou fenômeno em um nível ou unidade de análise impacta em outro nível ou unidade de análise”, constituídos por interações multidirecionais em que todas as partes envolvidas são afetadas entre si, ao mesmo tempo que constituem propriedades contextuais (Johns, 2001, p. 32). Diferentes eventos perpassam a relação indivíduo-contexto, impondo novas estruturações na capacidade de agência individual das carreiras (De Vos et al., 2020). Como um tipo ideal, uma carreira sustentável é apenas possível com a cooperação de diferentes atores que promovam contextos que facilitem comportamentos proativos na construção das trajetórias profissionais (De Vos & Van der Heijden, 2017).

O modelo conceitual de carreira sustentável situa “proatividade” e “adaptabilidade” como elementos da agência individual como fundamental para a interação do indivíduo com o contexto (De Vos et al., 2020). A proatividade se refere à postura ativa na condução das carreiras que facilitaria a construção de trajetórias sustentáveis; e adaptabilidade no que tange à capacidade de adaptação às mudanças que afetam as carreiras (Akkermans et al., 2021). Partindo desses elementos, De Vos et al., (2020) apresentam duas principais tipologias de agência individual: (1) reativa e adaptativa, comum em contextos de adversidade e pouca colaboração entre atores na promoção de contextos que facilitem a sustentabilidade das carreiras; e (2) proativa, mais próxima das condições de um tipo ideal de carreira sustentável, possível de ser realizada em contextos com maior oportunidade e colaboração de atores. Ao longo do desenvolvimento das carreiras, os sujeitos alternam entre as tipologias conforme as demandas contextuais se apresentam (De Vos et al., 2020).

Sentido (meaning)

O modelo processual de carreira sustentável utiliza o conceito de “person-career fit” (PC fit) - ajuste pessoa-carreira - (De Vos et al., 2020) para compreender o processo constante de produção de sentido envolvido na construção das trajetórias. O conceito faz referência à compatibilidade entre as necessidades individuais (expectativas, valores pessoais) com as condições contextuais (Cha et al., 2009). A sustentabilidade das carreiras resulta, assim, de constantes processos de person-career fit, constituídos por experiências percebidas como recompensadoras (ciclos mais sustentáveis) ou desestimulantes (ciclos menos sustentáveis).

De Vos et al. (2020) apresentam saúde, produtividade e felicidade como indicadores de sustentabilidade das carreiras. Saúde envolve a interação da carreira e as capacidades físicas e mentais do indivíduo, sendo uma dimensão que se torna mais visível no curso do tempo. Felicidade refere-se à percepção intrínseca de satisfação na carreira, estando, também, imbricada à própria vida dos sujeitos. Produtividade está relacionada à capacidade permanência no mercado de trabalho (empregabilidade) a partir do uso otimizado de competências (Van der Heijden & De Vos, 2015) e o desempenho na carreira; nos quais são mobilizados aprendizados e experiências de trabalho anteriores para a execução do trabalho atual (De Vos et al., 2020). A sustentabilidade envolve o constante processo person-career fit entre as necessidades individuais e as condições contextuais (Cha et al., 2009), sendo a análise do equilíbrio entre indicadores – isto é, o quanto são priorizados sem que um comprometa o outro; referências para indicar trajetórias mais ou menos sustentáveis. Dada a influência dos eventos no decorrer do tempo, esse equilíbrio não é linear, mas dinâmico, alterando-se conforme os sujeitos experienciam as carreiras, e priorizam aspectos considerados intrinsecamente importantes para a sustentabilidade das trajetórias (De Vos et al., 2020).

Procedimentos metodológicos

Nesta pesquisa, de orientação qualitativa, foram realizadas 25 entrevistas narrativas com profissionais de turismo em Porto Alegre. A pesquisa qualitativa estuda os fenômenos nos seus contextos naturais, em que os pesquisadores são responsáveis por dar sentido (make sense) ou interpretá-los a partir dos significados atribuídos pelas pessoas nele envolvidas (Denzin & Lincoln, 2011). Ontologicamente, se considera a ideia de realidades múltiplas, tanto das pessoas a serem estudadas, quanto dos leitores e dos próprios pesquisadores que conduzem a pesquisa. As evidências dessas múltiplas realidades são obtidas por meio de trechos de falas de diferentes indivíduos, as quais representam essas diversas perspectivas (Cresswell & Miler, 2000).

O uso de narrativas foi realizado com base nas recomendações de Chudzikowski et al. (2020) que associa as dimensões (tempo, agência e contexto) do conceito de carreira sustentável aos princípios fundamentais das narrativas. Ao contar uma narrativa, o indivíduo dá sentido à realidade contextual vivenciada. A temporalidade conecta os eventos no passado, presente e futuro, sendo relevante para análise da sustentabilidade por meio de padrões de experiências vivenciadas no curso do tempo (Van der Heijden & De Vos, 2015). Neste artigo, as narrativas refletem como os profissionais de turismo mantém a agência em relação à construção de espaço social onde experienciam estratégias e relacionadas aos diversos contextos em que interagem (Chudzikowski et al., 2020).

Coleta de Dados

Para coleta de dados foi utilizada a técnica de entrevista narrativa (Jovchelovitch & Bauer, 2000), a qual consiste em um esquema de estrutura semiautônomo, ativado por questões geradoras que desencadeiam conversas sobre uma situação específica. Seguindo as recomendações de Jovchelovitch e Bauer (2002), inicialmente, após a explicação sobre a pesquisa, realizou-se a seguinte pergunta geradora: “Poderia me contar sobre a tua história de vida e carreira e como o “turismo de Porto Alegre” aparece na tua trajetória?”. Foi elaborado um roteiro geral com pontos específicos para atender aos objetivos da pesquisa, os quais eram evocados sutilmente na condução do processo, com perguntas como: “Você pode me contar melhor sobre isso?”.

Quadro 1
Participantes da Pesquisa

Foram considerados elegíveis à pesquisa profissionais que atuam em atividades voltadas à promoção e atração de visitantes para as cidades, bem como aqueles que atuam com turismo em atividades de agenciamento, hospedagem, alimentação, recepção, eventos, recreação e entretenimento (The United Nations Tourism, 2008). Durante o ano de 2021, em razão da pandemia de Covid-19, buscou-se profissionais que atuavam em áreas estratégicas do turismo em Porto Alegre, incluindo atores do turismo na gestão pública, como associações profissionais e empresas tradicionais na cidade. Essas entrevistas permitiram a identificação de outros 14 profissionais, considerados referências importantes para o estudo, seja por sua importância em iniciativas voltadas à promoção da cidade, seja por atuarem em segmentos turísticos relevantes ou promissores para o futuro do turismo. Houve, assim, um novo período de coleta de dados realizada entre outubro de 2021 e janeiro de 2022, de modo presencial (5 entrevistas) e online (9 entrevistas). As entrevistas foram gravadas, gerando 26 horas e 18 minutos de áudios de dados. Procedimentos éticos foram empreendidos durante todo o processo, tendo os participantes assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Técnica de Análise dos Dados

Foi utilizada a análise temática proposta por Riessman (2012), que enfatiza o conteúdo das narrativas (o que foi dito) a partir de um processo indutivo (a posteriori) de identificação de temas comuns às narrativas dos participantes (Riessman, 2012). A análise foi conduzida em quatro etapas conforme recomendado por Chudzikowski et al. (2020): (1) leitura cuidadosa das narrativas transcritas, considerando a entrevista realizada como uma unidade de análise para identificar como as trajetórias relacionam ao turismo de Porto Alegre; (2) identificação das similaridades entre as temáticas abordadas nas narrativas. O software Atlas.ti foi utilizado como suporte nesse processo; (3) interação entre os dados encontrados com os fundamentos da teoria sobre carreira sustentável (Van der Heijden & De Vos, 2015; De Vos et al, 2020), clarificando fronteiras entre os temas. A nomenclatura dos temas foi decidida em consenso com duas pesquisadoras após a análise dos dados; e (4) revisitação dos temas pelas duas pesquisadoras, com vias a enriquecer as análises e adicionar informações quando necessário.

Apresentação e análise dos resultados

Ao encontro dos objetivos do estudo, as narrativas acessaram os modos como os indivíduos constroem e sustentam suas carreiras no curso do tempo, bem como revelam espaços sociais, contextos e atores que participam desse processo. A análise revelou quatro temas comuns às narrativas (Riessman, 2012): (1) Identidade cultural da cidade; (2) Carreiras ao acaso no turismo; (3) Agentes de mudança; (4) Retorno às origens. As temáticas não são categorias excludentes, estando presentes, em menor ou maior ênfase, no enredo das narrativas. A cidade de Porto Alegre, em suas particularidades, exerce uma influência que perpassa as construções das narrativas, se manifestando nos modos como os indivíduos orientam suas carreiras. Os achados refletem não apenas aspectos relacionados à história de vida dos participantes, como também capturam características do campo do turismo em que esses profissionais interagem.

Identidade Cultural da Cidade

O tema representa a influência cultural da identidade da cidade nas carreiras e na construção do campo do turismo (Quadro 2). A identidade da cidade pode ser compreendida como resultado de uma rede de significados referentes à história e às relações estabelecidas entre diferentes atores em Porto Alegre (Jones & Svejenova, 2017). A cultura se manifesta nos estilos de vida, visões de mundo e valores compartilhados produzidos nas interações estabelecidas entre diferentes atores no contexto urbano (Tams et al., 2021). O termo “grenalizou” (E8), inclusive, é uma expressão local evocada referência às dicotomias de posicionamentos, que remete à forte rivalidade entre os dois principais clubes de futebol da cidade (Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e Sport Club Internacional).

Quadro 2
Identidade Cultural da Cidade

Nota. Elaborado a partir dos dados da pesquisa.

As narrativas demonstram a polarização como característica das relações sociais de Porto Alegre desde os primórdios da sua colonização (E20). A polarização da cidade perpassa, em maior ou menor ênfase, todas as narrativas dos participantes, apresentando diferentes implicações para as carreiras. Uma representação importante está na dicotomia de perspectivas entre representantes da gestão pública e entidades da iniciativa privada. Exemplificado na narrativa de E18, há um descontentamento por parte dos entrevistados sobre a gestão pública do turismo pela falta de investimentos em infraestrutura e dificuldade para negociações. Do lado de órgãos públicos, os participantes relatam a dependência política como um dos principais entraves para o desenvolvimento do turismo enquanto atividade econômica relevante na cidade. A reestruturação na administração pública aparece como um agravante dessas condições ao culminar na redução de equipes de trabalho e orçamento para ações no turismo.

A falta de cooperação entre entidades contribui para fomentar o histórico direcionamento da prefeitura em captação de investimentos para o setor de eventos, que, na percepção dos entrevistados, implica em barreiras estruturais para a entrada em outros segmentos turísticos. As poucas empresas que conseguem se estabelecer enfrentam ampla concorrência em razão da necessidade de sobrevivência financeira, inibindo, ainda mais, a articulação entre atores diferentes atores do turismo para conquistar benefícios e direitos da categoria. É, ainda, observada a prevalência de profissionais autônomos, indicando um contexto precarizado de trabalho, com poucas garantias trabalhistas e incertezas. Como resultado, os participantes desenvolvem uma mentalidade individualista (cada um por si) que contribui para fomentar as dificuldades de articulação entre entidades. E22 expressa o caráter cíclico dessas relações, indicando contextos de insustentabilidade das carreiras (De Vos et al., 2020; 2016).

Por fim, a percepção crítica do morador de Porto Alegre a respeito dos atrativos da cidade é outro aspecto cultural que dificulta o fortalecimento do campo do turismo, tal como representado pelas narrativas de E1 e E11. Na pesquisa são constantes as menções sobre os impactos da percepção negativa dos moradores sobre a cidade serem um entrave para o desenvolvimento urbano, e, consequentemente, do turismo. Refletindo a polarização, contudo, ao mesmo tempo que a população espera melhorias de infraestrutura, são igualmente observados movimentos contrários de resistência quando projetos desse tipo são iniciados (E8). Essas situações são percebidas como barreiras simbólicas para a sustentabilidade das carreiras, desafiando constantemente os participantes que desejam prosperar com o turismo na cidade.

Carreiras ao Acaso no Turismo

Comum aos participantes do grupo é a ausência de formação ou qualificação prévia para atuação no turismo. O Quadro 3 apresenta essas relações. A menção ao “acaso” é referente aos eventos ou encontros não planejados, acidentais ou situacionais, imprevisíveis ou não intencionais que impactam no desenvolvimento e comportamento de carreira" (Rojewski, 1999, p. 269). Tais eventos mobilizam redes de relacionamentos e experiências prévias imbricadas aos espaços sociais, indicando a influência de fatores externos que oportunizam a entrada no turismo, alternativa até então impensada de carreira.

Quadro 3
Carreiras ao Acaso no Turismo

Nota. Elaborado a partir dos dados da pesquisa.

Nesse processo, há especial influência de como amigos, pessoas próximas na comunidade, e dos pares, que podem ser indicados como atores no espaço social dos entrevistados (Greenhaus & Kossek, 2014). É observada a influência de interesses pessoais no movimento de carreira, exemplificado na narrativa de E20, que realiza caminhadas guiadas na cidade como inspiração criativa na composição de músicas, e E19 que, apaixonada por velejar, abre um negócio de aluguel de veleiros. Os participantes vivenciam, assim, processos de produção de sentido em que motivações intrínsecas são mobilizadas por meio da atividade turística, que se mostra um “meio” para alcançar seus objetivos pessoais, e não finalidade última de carreira.

Outro caso semelhante é o de E5, que encontrou no turismo uma alternativa de impulsionar os negócios de empreendedores no Distrito Criativo. A premiação, resultante na inscrição ao acaso em um concurso de inovação no turismo, desperta para os benefícios de seguir esse novo direcionamento estratégico como forma de promoção desses profissionais. A narrativa sugere a precarização da indústria criativa como justificativa para essa aproximação.

É difícil. É uma luta. Eles são muito trabalhadores. Eles se esforçam muito, sabe? Você vê desistências, vê gente que vai embora até de Porto Alegre [...] não é o país das maravilhas, sabe? É muita dureza. E eu não entrei pensando “vou fazer com que o turista tenha uma experiência”. Eu quero que o turista ajude os participantes do distrito criativo a continuarem, a irem em frente (E5)

Por fim, refletindo mudanças mais profundas, E17 discorre sobre a influência da recessão econômica brasileira em 1990 para a entrada no turismo. A proatividade tem um papel importante para reconstrução das trajetórias de carreira após o evento desestabilizador (De Vos et al., 2020). No caso analisado, E17 sustenta sua carreira no turismo com envolvimento em associações e representações de profissionais, vivenciando constantes obstáculos para a sustentabilidade da carreira com o turismo rural devido à falta de investimentos em infraestrutura da cidade e a baixa priorização da atividade por instâncias governamentais. Termos como “brigas”, “lutas” são, inclusive, frequentemente evocadas em diferentes categorias para se referirem aos embates com órgãos públicos para o investimento no turismo.

Retorno às Origens

O retorno às origens está associado às experiências passadas em Porto Alegre, ressignificadas no presente através da atuação com o turismo. A construção das narrativas é resultado da produção de sentido associada ao resgate da história de vida dos participantes, marcada por experiências com a família na cidade. Os três casos apresentados no Quadro 4 representam diferentes situações que caracterizam a temática.

A narrativa de E16 representa o caso de profissionais com empresas consideradas tradicionais no turismo da cidade, sendo precursoras em seus segmentos de atuação. Porto Alegre, à época da pesquisa com 250 anos, tem sua história no turismo iniciada no final da década de 1960 por profissionais que, ou ainda estão em atividade, ou delegaram para seus filhos a responsabilidade pela continuidade dos seus negócios. Para as gerações atuais, o turismo não é, inicialmente, uma alternativa de carreira. Contudo, em respeito ao legado familiar, em dado momento, adentram no turismo impelidos pelo movimento sucessório da empresa. O respeito pela tradição familiar é frequentemente evocado como um dos pilares motivacionais para permanecerem atuantes, mesmo diante das dificuldades estruturais encontradas.

O segundo caso, ilustrado pela narrativa de E13, representa participantes influenciados por familiares envolvidos com o turismo, que, em dado momento, se torna alternativa de carreira mobilizando, também, interesses pessoais. A participante, por exemplo, é formada em História, e realiza caminhadas históricas como parte do seu projeto de Mestrado, com o intuito de educar sobre a história da cidade. Outro desdobramento da temática se dá com participantes sem relação prévia com turismo, mas que encontram na atividade uma possibilidade para resgatar antigos interesses no processo de inserção profissional. A produção de sentido das narrativas ocorre em torno de lembranças de um passado com a família, mobilizadas no presente como alternativa de ressignificação de carreira. Como um exemplo extremo dessas relações, E24 encontra no turismo uma alternativa para ressignificação de vida após um período de drogadição e privação de liberdade, buscando uma reconexão com valores pessoais.

A ampla possibilidade de atuação em segmentos turísticos permite maior aderência de carreira aos interesses pessoais (person-career fit) (De Vos et al., 2020), como turismo ecológico e turismo histórico (The United Nations Tourism, 2008). O adentrar nesses segmentos turísticos pouco tradicionais em Porto Alegre é facilitado pela mudança de comportamento dos moradores com as restrições de locomoção para contenção da pandemia de Covid-19. Esse público passa a buscar entretenimento e lazer na própria cidade, usufruindo serviços comumente voltados para turistas. O papel da agência individual é importante para que ocorram essas transições, permitindo a identificação de possibilidades de atuação em segmentos turísticos inovadores que atendam às novas necessidades da cidade.

Quadro 4
Retorno às Origens

Nota. Elaborado a partir dos dados da pesquisa.

Agentes de mudança

A temática reflete o esforço dos participantes para potencializar o turismo da cidade por meio da tentativa de desconstrução de crenças culturalmente disseminadas (Quadro 5). As narrativas são construídas por profissionais com perfil empreendedor, que valorizam a autonomia proporcionada pelo turismo para alcançarem seus objetivos pessoais e profissionais. O sentido da carreira aparece associado à relação dos participantes com a cidade. O grupo se caracteriza por adotar posicionamentos críticos em relação ao status quo do turismo, participando e liderando diversas iniciativas para que a cidade seja valorizada, indicando um potencial alto de agência individual de carreira (Chudzikowski et al., 2020; De Vos et al., 2020). Visitantes são o foco desse processo, mas, também (e principalmente) o próprio morador de Porto Alegre, que além de influenciar na construção da reputação turística da cidade, é um público consumidor importante de serviços turísticos locais. E11 representa essas questões.

Devido à falta de apoio coletivo, os entrevistados assumem posturas de agentes da mudança, sendo recorrente a utilização de termos como “brigas” e “lutas” para legitimar a relevância do turismo perante órgãos públicos e sociedade, como demonstra E17. O amor pela cidade é um direcionar intrínseco de carreira (Van der Heijden & De Vos, 2015) que motiva o desejo por empreender e facilita o enfrentamento das dificuldades. É perceptível, entretanto, momentos de desgaste psicológico manifesto em sentimentos de gradual desestímulo. A pandemia de Covid-19 é um agravante das percepções negativas, visto que, na época das entrevistas, restrições de mobilidade ainda estavam em vigor, fomentando as incertezas sobre o futuro das carreiras. A narrativa de E21 discorre nessa direção.

Quadro 5
Agentes de Mudança

Nota. Elaborado a partir dos dados da pesquisa.

Discussão

Os achados destacam a influência da cidade como um contexto que impacta a sustentabilidade das carreiras, analisada a partir das dimensões do conceito de carreira sustentável (De Vos et al., 2020; Van der Heijden & De Vos, 2015). As narrativas evidenciam a interação entre indivíduo e contexto (dimensões agência e contexto), dentro de uma temporalidade (dimensão tempo), e os modos como essas interações afetam a sustentabilidade das carreiras. Os contextos são construídos a partir dos significados (dimensão sentido) atribuídos pelos sujeitos às situações vivenciadas ao longo de suas trajetórias de vida e carreira. A influência da cidade não está apenas na oferta de oportunidades de trabalho (ou falta delas), mas, principalmente, por representar um sistema de crenças e entendimentos que afetam as possibilidades de carreira desses profissionais. Desse modo, a nível individual, a sustentabilidade das carreiras é moldada pelas histórias de vida dos indivíduos, e a nível coletivo, influenciada pelos contextos da cidade onde as carreiras se desenvolvem (Tams et al., 2021). O Quadro 6 apresenta um resumo dessas relações, discutidas a seguir.

Os contextos trazidos nas narrativas coexistem, material e simbolicamente, e influenciam em maior ou menor intensidade a construção das carreiras dos participantes. O tema “identidade cultural da cidade” representa a dimensão contextual, e, principalmente, temporal-histórica (De Vos et al., 2020) como uma influência persistente, que impacta o espaço social do turismo como um todo. A polarização, o conflito de interesses e o bairrismo destacado nas narrativas são manifestações dessa cultura às carreiras no turismo, revelando a construção das carreiras imbricada às características da cidade. Além disso, a disseminada crença sobre a incapacidade de articulação conjunta das entidades, e desvalorização da cidade pelos moradores (influência da comunidade), são indicativos de contextos pouco favoráveis à sustentabilidade das carreiras. A polarização, principal manifestação da cultura no caso analisado, implica em barreiras à sustentabilidade das carreiras, uma vez que leva a comportamentos individualistas que contrariam a premissa a responsabilidade compartilhada de entidades em diferentes níveis contextuais (governos, organizações e sociedade) na promoção de contextos que fomentem oportunidades para a empregabilidade, bem como a capacidade física, psicológica e social para o trabalho (De Vos et al., 2016).

Os achados também reforçam as premissas de que as carreiras não são construídas no vácuo contextual (Baruch, 2015; De Vos et al., 2016). Mesmo o “acaso” evocado nas narrativas revela uma teia de relações contextuais historicamente construídas e resgatadas por meio de processos de produção de sentido desencadeados por oportunidades circunstanciais que mobilizam aspectos intrinsecamente importantes (ex.: amor por velejar, desejo por ajudar trabalhadores da indústria criativa). Nesse processo, o turismo aparece como alternativa de carreira a partir da mobilização de afetos e aprendizados anteriores, com valores intrinsecamente importantes (ex.: amor por velejar, desejo por ajudar trabalhadores da indústria criativa), contribuindo para a emergência de novo padrão de carreira, mais sustentável que o anterior (De Vos et al., 2020). Essa temática demonstra a dualidade da capacidade de agência, que se manifesta de modo proativo quando o acaso é identificado permite uma oportunidade deliberada de ação (isto é, relativamente planejada); ou adaptativa, quando o indivíduo responde ao contexto utilizando os recursos disponíveis, sem qualquer planejamento prévio. Ainda assim, em linha a discussão de carreira sustentável (De Vos et al., 2020; Akkermans et al., 2021), atitudes de iniciativa e proatividade se mostram importantes para sustentar as carreiras no curso do tempo.

O tema “retorno às origens” evidencia os diferentes ciclos de experiências positivas e negativas resultantes da interação indivíduo-contexto ao longo do tempo (De Vos et al., 2016); De Vos et al., 2020). A influência contextual se manifesta, principalmente, em barreiras associadas à precarização do trabalho (ex.: baixos salários, garantias trabalhistas escassas), limitações provenientes da cultura, falta de investimentos na infraestrutura urbana, e o foco da gestão pública no segmento de turismo de negócios e eventos. Esses elementos dificultam a permanência dos profissionais no trabalho com turismo, o que indica a existência de condições pouco favoráveis à sustentabilidade das carreiras (De Vos et al., 2020). Por outro lado, o tema evidencia que as carreiras são influenciadas por ciclos positivos esporádicos, desencadeados por situações em que há a mobilização de aspirações de vida/carreira que geram sentimentos de felicidade e satisfação. A oscilação entre percepções favoráveis e desfavoráveis é resultado do ajuste indivíduo-carreira (De Vos et al., 2020; Cha et al., 2009), em que há o resgaste de boas memórias relacionadas à cidade (referente às histórias de vidas, o legado familiar no turismo, e o amor à cidade) que permitem a ressignificação das carreiras e, consequentemente, o enfrentamento dos contextos desestimulantes. Esse processo revela os modos como experiências no passado são mobilizadas no presente, a partir do processo de significação (dimensão agência, sentido e contexto) para facilitar trajetórias futuras (dimensão tempo). Isso demonstra que a agência proativa, embora tenha um papel importante para a reversão de impactos negativos, se mostra insuficiente para a sustentabilidade das carreiras diante de estruturas contextuais limitantes. Desse modo, como contribuição conceitual, evidencia-se empiricamente a operacionalização do conceito de carreira sustentável e a indissociabilidade de suas dimensões (Van der Heijden et al., 2020).

O tema “agentes de mudança” representa a tentativa de sobreposição ao contexto e mudança do status quo do espaço social limitado do campo do turismo na cidade de Porto Alegre. Isso se manifesta a partir de atitudes individualistas e utilização de recursos pessoais disponíveis (conhecimento, busca de alternativas para divulgar a cidade e o turismo, convencimento de grupos de influência sobre a importância do turismo). Esse processo é com a agência proativa que, no curso do tempo, assume um caráter responsivo (agência reativa) diante das dificuldades estruturais para a consolidação do turismo na cidade. Nesse processo, as barreiras contextuais persistentes para a prosperidade no turismo enfraquecem a motivação dos profissionais, o que indica tendências a trajetórias menos sustentáveis de carreira no médio e longo-prazo. Entende-se, ainda, que um cenário de cooperação entre atores (parceria público e privada, investimentos no turismo na cidade) ampararia a ação individual, produzindo contextos mais favoráveis para carreiras sustentáveis. Como contribuição à discussão da sustentabilidade das carreiras, esses achados reforçam a interdependência entre agência e contexto (Forrier et al., 2018; De Vos et al., 2020) e a importância da estrutura contextual da cidade nessas relações (Tams et al., 2021).

Por fim, os achados podem ser analisados a partir dos indicadores de sustentabilidade: saúde, felicidade e produtividade (De Vos et al., 2020). O contexto de polarização, impulsionado pela identidade cultural da cidade, é considerado o principal fator desencadeador da necessidade de produtividade, representada pelos esforços contínuos dos profissionais para permanecerem atuando no turismo. No longo prazo, a intensa produtividade compromete a saúde e a satisfação com as carreiras, indicando trajetórias menos sustentáveis. desmotivação diante da descrença na possibilidade de melhores oportunidades no turismo sugere o comprometimento da satisfação dos profissionais (indicador felicidade). No tema “carreiras ao acaso no turismo”, eventos externos impelem a transformação de interesses profissionais em alternativas de carreira, fortalecendo a percepção de satisfação e bem-estar (indicador saúde). Nessas situações, o turismo é percebido como uma opção de carreira mais rentável ou desejada do que a ocupação anterior – como no caso de E5, proveniente de um setor precarizado em Porto Alegre (indústria criativa), e E17, que é prejudicado por uma crise econômica. O tema “retorno às origens” ilustra a sustentabilidade como um processo de oscilação entre ciclos positivos e negativos, que refletem percepções variáveis de satisfação com as carreiras. Ciclos positivos são desencadeados pela memória afetiva a respeito das histórias vividas na cidade, e levam a um estado mental de maior satisfação com as carreiras. Essa condição atenua, ainda que momentaneamente, as percepções negativas sobre as trajetórias. Entretanto, com o passar do tempo, a dificuldade de realização das aspirações de carreira enfraquece a percepção de satisfação e, até mesmo, de bem-estar dos profissionais, indicando uma tendência a trajetórias menos sustentáveis. Por último, o tema “agentes da mudança” destaca a capacidade de ação individual por meio da produtividade – entendida como uso otimizado de competências para a sustentabilidade das carreiras (Van der Heijden & De Vos, 2015) – para desencadear mudanças positivas às carreiras. O comprometimento das dimensões saúde e felicidade ocorre gradualmente diante da falta de apoio entre pares, e, principalmente, quando a mudança esperada nas carreiras não se concretiza, conforme evidenciado nos relatos de cansaço e desânimo.

Quadro 6
Dimensões de Carreiras Sustentáveis nas Narrativas

Nota. Elaborado a partir dos dados da pesquisa.

Considerações finais

O estudo contribui teoricamente ao apresentar diferentes modos pelos quais as cidades influenciam a sustentabilidade das carreiras. Nas condições em que a cidade produz contextos estruturalmente limitantes para o desenvolvimento de trajetórias profissionais, a capacidade de agência individual é gradualmente comprometida, impactando a sustentabilidade das carreiras. O foco em profissionais do turismo não-tradicional (The United Nations Tourism, 2008) é um diferencial para capturar a influência contextual da cidade, dado que, nesse caso, a atividade turística depende dos serviços ofertados e das condições da infraestrutura disponível. Essas relações reforçam o caráter sistêmico de interdependência entre os atores – empresas e serviço público – (Beni, 1990) como um elemento importante para a promoção de contextos que facilitem a sustentabilidade das carreiras no turismo. Nesse sentido, os achados somam-se a pesquisas anteriores que tensionam a agência individual (Akkermans et al., 2021; Forrier et al., 2018; Van der Heijden et al., 2020) ao demonstrar empiricamente que comportamentos individuais proativos e adaptativos se mostram insuficientes para sustentar padrões positivos de carreira; e aos estudos sobre carreiras e cidades (Curşeu et al., 2021; Tams et al., 2021).

À discussão de agência de carreiras, os resultados contribuem ao demonstrar empiricamente as dinâmicas da interação indivíduo-contexto a partir de diferentes tipologias de agência individual – proativa e agência reativa (De Vos et al., 2020; Akkermans et al., 2021) acrescentando o papel da cidade enquanto influenciador. Os achados sugerem que uma cultura de cidade pautada no apoio e cooperação entre atores (governo, organizações, grupos profissionais) facilita uma capacidade proativa de agência, e, na ausência dessas condições, impele a uma agência reativa que gradualmente enfraquece a sustentabilidade das carreiras. Nesse sentido, os achados também contribuem ao reforçar a associação entre a adaptabilidade – como resultante da agência proativa – e ciclos de menor sustentabilidade (De Vos et al., 2020); processo no qual os esforços para enfrentar as adversidades contextuais levam a percepções de desgaste mental (indicador saúde) e insatisfação com o trabalho (indicador felicidade).

Por fim, os achados trazem implicações práticas para os profissionais do turismo. Um passo importante para a promoção da sustentabilidade das carreiras na área é o desenvolvimento de campanhas organizadas por agentes públicos, com foco na divulgação dos benefícios da formalização das empresas turísticas. O baixo custo de organização de atividades turísticas resultou em um cenário de informalidade no setor de turismo no Brasil (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, 2022) – situação reconhecida pelos entrevistados como um fator agravante nas dificuldades enfrentadas pelos empreendedores para estabelecer seus negócios. Também foi identificada a necessidade de ampliar a oferta de cursos superiores e técnicos voltados ao turismo local (turismo receptivo), uma demanda frequentemente negligenciada pelos profissionais devido ao fato de o turismo emissivo – ou seja, o envio de turistas para outras localidades – gerar receitas mais elevadas para pequenos negócios. Essa possibilidade é corroborada pelos achados da pesquisa e pelas análises da economia do turismo (Candela & Figini, 2012), que demonstram o potencial do turismo local para oferecer serviços direcionados não apenas a visitantes, mas também aos residentes. No entanto, para serem bem-sucedidas, essas práticas devem envolver cooperação entre diferentes entidades do turismo, que pode ser estimulado por meio de ações de conscientização ou projetos colaborativos entre as diversas entidades relevantes para o turismo na cidade.

A cooperação entre os atores está no cerne da perspectiva da sustentabilidade das carreiras, um conceito que pode servir como guia para ações de estímulo ao turismo. Uma iniciativa semelhante foi implementada no projeto de pesquisa Career and Age, Generation, Experience (AGE), desenvolvido pelo Fundo Social Europeu. O projeto AGE aplicou os fundamentos do conceito de carreira sustentável em 10 países e regiões da União Europeia (De Vos et al., 2016). Essa abordagem está alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que têm ganhado destaque nas agendas governamentais e empresariais. Mais especificamente, o conjunto estruturado de ações para promover carreiras sustentáveis no turismo converge com o ODS 8 – que visa promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, oferecendo emprego pleno e produtivo, além de trabalho decente para todos (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, 2024).A coleta de dados realizada durante períodos em que as restrições da pandemia de Covid-19 ainda estavam em vigor e o turismo severamente prejudicado traz limitações ao estudo.

Como limitações do estudo, assume-se que as perspectivas, por vezes, pessimistas dos entrevistados podem ter sido agravadas pela incerteza do momento, culminando na percepção de contextos pouco sustentáveis. Contudo, entende-se que o objetivo de identificar a influência contextual das carreiras, foi, ainda assim, realizado, abrindo-se espaço para novos estudos que investiguem outros recortes temporais do turismo na capital gaúcha.

Para futuros estudos, é recomendável explorar contextos ocupacionais diversos, bem como articular o conceito de carreira sustentável com outras perspectivas que fortaleçam a análise contextual das carreiras. Uma abordagem promissora é a interlocução com a teoria do ecossistema de carreira (Baruch & Rousseau, 2019; Baruch, 2015), que propicia o olhar sistêmico para a identificação de atores e contextos relevantes às carreiras.

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