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Diálogo sobre a mulher entre Madame Chrysanthème e Afrânio Peixoto na década de 1930 - Fronteiras
Dialogue about woman among than Madam Chrysanthème and Afrânio Peixoto in the 1930s - Boundaries
Educação Unisinos, vol. 20, núm. 2, pp. 185-200, 2016
Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Artigos


Recepção: 23 Janeiro 2015

Aprovação: 15 Julho 2015

DOI: https://doi.org/10.4013/edu.2016.202.05

Resumo: Este trabalho investiga as imagens sobre as mulheres nas obras literárias Eunice ou A Educação da Mulher, de Afrânio Peixoto (1936), e A Infanta Carlota Joaquina, de Madame Chrysanthème (1937). Em nossa percepção, os autores emitem concepções concorrentes sobre a condição da mulher na sociedade, ambas salientam modos de conduta distinguidos nos modelos que imprimem ou denunciam, colocando em causa modelos de educação às mulheres movimentando os debates sobre quais sancionar. Embora ouçam o que o outro diz, não dialogam diretamente, mas com seu tempo histórico, cada qual tentando intervir, a partir dos próprios pressupostos, nas mudanças em curso. As imagens produzidas pelos autores sobre as mulheres polarizam possibilidades de captura de expressões de práticas femininas na sociedade de então. Enquanto Afrânio Peixoto está comprometido com a permanência da alocação da mulher nos espaços tradicionalmente destinados a elas, Chrysanthème dedica-se a provocar desconfortos quanto aos espaços que lhes são naturalizados. Considerando que todo discurso implica a possibilidade desestruturação-reestruturação das redes e dos trajetos através dos quais se institui, colocando em causa os sentidos gerados, colocamos os autores em diálogo, observando os modos como arranjam seus discursos, tensionados pelos aparatos institucionais que os cercam. Desse modo, analisamos o escopo dos arranjos discursivos por eles forjados, os elementos contra os quais disparam e a respeito dos quais empreendem seus esforços. Assim, procuramos identificar interlocuções, interferências, modos de presença conjunturais, institucionais, educacionais, sociais e interpessoais, em jogo nas negociações operadas a respeito das representações sobre as mulheres no período, para refletir acerca dos enfrentamentos operados pelos autores.

Palavras-chave: Afrânio Peixoto, Mme. Chrysanthème, imagens das mulheres, anos de 1930.

Abstract: This work analyzes the images of women in the literary works Eunice or A Educação da Mulher, written by Afrânio Peixoto (1936), and A Infanta Carlota Joaquina, written by Madam Chrysanthème (1937). In our perception, the authors issue competing views on the on the women's status in society, both stress modes of conduct distinguished models that imprint or denounce, calling into question educational models to women moving the discussions on what to sanction. Although listening to what the other says, they do not dialogue to each other directly, but to their age, each one trying to intervene, from their own assumptions, in the ongoing changes. The images about women produced by the authors bring together possibilities of expressions that capture the female practices in the society of that period. While Afrânio Peixoto is committed to the permanence of women's allocation in the spaces traditionally intended for them, Madam Chrysanthème is dedicated to cause discomforts for these naturalized spaces. Taking into consideration that all speech implies the possibility of destructuring-restructuring networks the ways through which they are established, putting into cause the meanings generated, we made the two authors converse, observing the ways how they organize their speech, tensioned by institutional mechanisms that surround them. Thus, we analyzed the scope of the discursive arrangements forged by them, the elements they trigger against and the ones they direct their efforts towards. In this way, we seek to identify dialogues, interferences, institutional, educational, interpersonal and social ways of presence, which are in game in the negotiations about the representations of women in that period, in order to reflect about the clashes operated by the authors.

Keywords: Afrânio Peixoto, Madam Chrysanthème, image of woman, 1930s.

Introdução

Os homens não encontram a verdade. Fazem-na como fazem sua história, e ela os recompensa largamente (Paul Veyne, 1984).

Sobre Madame Chrysanthème, pseudônimo de Cecília Moncorvo Bandeira de Mello Rebello de Vasconcellos (1869-1948), jornalista e escritora carioca com presença ativa na imprensa e no mercado editorial brasileiro por mais de quarenta anos, é difícil encontrar registros. Os exemplares dos seus livros sob a guarda da Biblioteca Nacional estão em tão precário estado de conservação que o funcionário da biblioteca aconselha a não consultar, por exemplo, o único exemplar do romance Enervadas, escrito em 1922. Os romances da escritora não tiveram reedição4. Por outro lado, os escritos de Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947) tiveram inúmeras reedições, sendo ainda possível comprá-los nos sebos virtuais com certa facilidade, pois a oferta de diferentes títulos e edições é considerável. É certo que sua participação na cena nacional se fez por múltiplos expedientes e de lugar diverso ao ocupado por Chrysanthème na sociedade, o que aumentam as chances de encontrar seus escritos. Afinal, exerceu uma infinidade de funções e escreveu com autoridade em tantas e diferentes áreas (medicina, história, educação, política, literatura, psiquiatria, medicina-legal...), sendo considerado pelos seus contemporâneos como um "homem de gênio"5.

Neste trabalho, estamos cientes de que o exercício proposto, fazer dialogar as imagens da mulher produzidas por Afrânio e por Chrysanthème, a partir, respectivamente, dos livros A Educação da Mulher (1936) e A Infanta Carlota Joaquina (1937) é, sob vários aspectos, desigual, pois, enquanto existe farta documentação sobre Afrânio Peixoto, entre documentação6 e mais biografias, críticas, teses, ensaios, entre outros, quase nada há sobre a escritora. Encontramos uma tese de 2006, defendida na Faculdade de Letras da UFRJ, cuja pesquisadora inventaria as crônicas de Chrysanthème, até onde foi possível fazê-lo7, como recurso para facilitar futuras pesquisas sobre a romancista. De certo, um exercício louvável. Alguns outros poucos trabalhos citam a escritora, em geral antologias. Boa parte deles escritos na última década, eles retratam, de modo genérico e coletivo, a participação das escritoras brasileiras ou parte delas nos fins do século XIX e início do XX, mas nada especificamente sobre Madame Chrysanthème. Tais iniciativas, que tentam retirar do apagamento esta e outras autoras e ao menos investigar seu valor literário e histórico para considerar incluí-las no panteão de autores nacionais reconhecidos, têm de escavar em desertos de silêncios.

Estamos diante de trabalhos que se anunciam de modo muito dessemelhante quanto ao gênero discursivo, mas que guardam uma proximidade essencial: a liberdade de escrita como espaço para expressão da subjetividade da autoria. Enquanto Afrânio escreve, conforme ele mesmo o define no próprio livro, um "ensaio" (A Educação da Mulher, prefácio, 1936); Chrysanthème, por sua vez, anuncia escrever um "romance histórico" (A Infanta Carlota Joaquina, segunda capa, 1937). Se o ensaio consiste em um texto no qual os rigores da fundamentação teórico-metodológica são mais flexíveis do que no texto estritamente científico, e nele cabe exposição da opinião pessoal com julgamento e interpretação, feitos abertamente pelo autor, sem obrigatoriedade de apresentação de documentação comprobatória ou amparo bibliográfico - como a circunscrição e as fronteiras disciplinares não estão em causa, assim como os seus métodos, não há interdição à presença declarada da subjetividade da autoria na narrativa (Severino, 2000) -, o romance histórico, por seu lado, também implica em grande liberdade de configuração narrativa. Nele, os eventos históricos participam, às vezes, como personagens, porém, ele tem questões bem mais complexas a incidir sobre ele, enquanto gênero discursivo, histórico ou não, frente à construção da narrativa histórica. Falaremos, brevemente, das que elegemos para estabelecer interlocução.

Comecemos pela definição da autora do seu trabalho como um romance histórico. Sabemos que a história e a literatura somente deixam de estar entrelaçadas quando Leopold Von Ranke, no século XIX, define os princípios da história como ciência. Cabia a ambas as disciplinas, consorciadas até então, a construção de uma narrativa ordenadora que orientasse a realidade caótica sob o capricho de uma verdade eleita. A cisão realoca a história em um domínio no qual somente o factível comprovado passa a adquirir chancela de pertencimento. A literatura, por seu lado, não rogada, mantém autoridade para conceber povos e nações, tal como o romantismo lhe consentia, à época:

O romantismo, desenvolvendo reflexões de pensadores como Vico e Herder, impôs uma concepção histórica do homem e das suas atividades, transferindo-os do espaço abstrato e permanente em que a ordem clássica os situava para um espaço e um tempo concretos e mutáveis (Sinder, 2000, p. 254).

No Brasil, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838 com o objetivo de fazer a história da nação brasileira, lança mão da escrita literária romântica praticada então, entre outros expedientes, em razão dos princípios de comprometimento dessa escrita com a construção da nacionalidade. Esse modelo de escrita se depara com o positivismo do século XIX, e, entre ciência e ficção, a história oficial brasileira passa a ser contada:

A narrativa da nação será realizada em conjunto pela escrita da história e da literatura. Onde fatos e fontes não puderem ser utilizados, caberá à ficção preencher as lacunas do nosso passado mediante a criação de tramas ficcionais (Sinder, 2000, p. 256).

Essa prática é acirrada com a entrada dos cientistas sociais em cena, que reivindicam o exclusivismo da palavra (pelo rigor do método, da análise, da seleção e da observação do objeto) para sanção de modelos e representações do nacional, mas:

No que diz respeito à literatura, essa competição irá produzir um veto a todo tipo de ficção que não estiver atrelada à formação de uma identidade brasileira. Acompanhar a história desse veto permite mapear a história da emergência da "racionalidade" política da nação (Sinder, 2000, p. 256).

Consideramos que a história contada no romance de Madame Chrysanthème nos dá uma amostra dos contornos periféricos da racionalidade política nacional estabelecida, tal como vista pela escritora. Do mesmo modo, o ensaio de Afrânio o faz do hipocentro. Não porque ela fosse alheia ao núcleo social detentor do poder, ambos os autores estão situados nesse núcleo - ela, por nascimento, ele, pelas conquistas profissionais -, mas porque ela fez um caminho incomum às mulheres de sua origem. Ela perfaz um trajeto que a põe em rota de colisão com as engrenagens que dão sustentação à sociedade na qual ela usufrui de privilégios que são parte de sua herança familiar, ela se mostra pouco conciliadora e muito desafiadora aos homens - mas também às mulheres - de seu tempo. E é nesse sentido que chamamos de periférico o lugar de onde ela fala, porque o modo como se põe a combater em várias frentes não lhe assegura permanência no hipocentro, enquanto sua rede de nascença e suas relações sociais a sustentam.

Uma segunda questão refere-se à certa estrutura normativa necessária ao romance dito histórico para que possa ser reconhecido nessa categoria. Nesse caso, o manejo da configuração contextual e simbólica necessário à produção do imaginário social, a partir do qual a recriação do real poderá suportar os aportes ficcionistas (Maestri, 2002), requer pesado investimento na investigação histórica, a fim de que se possa assegurar o verossímil frente à imaginação criativa. O maior risco aqui é o do anacronismo, que concorre para invalidar o romance nessa categoria ou envelhecê-lo a partir das novas investigações do campo da história. Não nos referimos às polêmicas suscitadas após o advento dos escritos da micro-história, em particular, após os Queijos e os Vermes, de Carlo Ginzburg, cujas marcas diluem as fronteiras entre literatura e história e tangenciam outro elemento importante para nossas considerações, que é o gênero biográfico, adiante brevemente discutido. Referimo-nos ao estrito domínio da literatura, onde a trama, nos moldes aqui considerados, clama por um cenário que a qualifique e acolha.

A terceira questão reporta-nos ao entendimento do romance como fonte para a história, resultado da virada historiográfica promovida pela história cultural. Nesse caso, o que está em causa não é o romance em si mesmo, restrito ao estatuto de documento pela história positiva, ou, conforme certa tradição da crítica literária, sua compreensão nos termos da investigação formalista, que o considera como autodeterminado pela estrutura da linguagem, em cuja base somente se vê o elemento linguístico ou, ainda, a perspectiva hermenêutica que sublima o subjetivismo autoral em detrimento dos expedientes normativos (Bakhtin, 1988), mas a necessidade de analisar os fenômenos literários como fontes à luz dos procedimentos de ação da cultura (Bakhtin, 2014), levando em conta, ainda com esse autor, a relação dialógica que o romance estabelece com o meio cultural no qual se inscreve. Uma vez tomado como estratégia de interação social, como atitude responsiva da autoria frente às condições sociopolíticas, torna-se possível analisar um romance nessa perspectiva do diálogo estabelecido com seu tempo.

Essas considerações implicam outra questão, que diz respeito ao contexto de produção dos textos e, como diz Chartier (2002), à "historicização da especificidade da literatura", observando as variações entre as representações literárias e as realidades sociais. Nesse sentido, os cânones estabelecidos, as relações de hierarquia que guardam os textos entre si em uma dada época e as categorias que instruem a instituição literária, assim como as condições de possibilidade de leitura e de produção dos leitores precisam ser relevados quando se pensa a análise de textos literários pela história. Nesse caso, o debate se desloca para a compreensão de que:

[...] é preciso lembrar que a leitura, também ela, tem uma história (e uma sociologia) e que a significação dos textos depende das capacidades, dos códigos e das convenções de leituras próprios às diferentes comunidades que constituem, na sincronia ou na diacronia, seus diferentes públicos (Chartier, 2002, p. 257).

A quarta questão, e para concluir este ponto, consiste em levar em conta, quanto ao escrito de Chrysanthème em tela, seu potencial para ser abordado como um trabalho biográfico. Uma biografia, certamente o romance A Infanta Carlota Joaquina da autora o é, mas não é histórica, no sentido que a disciplina requer ou tem problematizado. Jacques Revel (2010), ao falar sobre os trabalhos escritos que classifica como "biografia reconstituída em contexto", ou seja, aqueles explicados a partir dos contextos de referência no qual se inscrevem, lembra que as biografias de Lutero, Rabelais e Marguerite de Navarre, feitas por Lucien Febvre, constituem exercícios de apreensão de "conjuntos culturais globais":

Mas, precisamente, suas biografias não são nunca a narrativa de uma trajetória individual estudada em si mesma. Ela consiste antes em interrogar-se sobre o que tornou possível e pensável tal trajetória em um dado contexto que é necessário reconstruir (inRevel, 2010, p. 244).

O romance de Chrysanthème não se enquadra nesse conjunto, mas nossa recuperação do exercício da escritora procura fazê-lo. Neste ponto, é oportuno trazer à exposição o trabalho de Norbert Elias sobre Mozart (1995), não abordado por Revel, provavelmente por tratar-se de um sociólogo. Nesse trabalho, Elias observa como a personalidade de Mozart, em seu comportamento insolente e vulgar (pela norma vigente à época), em sua genialidade musical e em suas escolhas profissionais, resultou das contingências do tipo de vida que ele e sua família levavam, relativizando tanto sua genialidade quanto seu fracasso, amoldados às condições de sua origem e ao regime imposto pela sociedade cortesã aos homens da "pequena burguesia", prestadores de serviços à nobreza de corte, única consumidora de arte naquele momento, cujo gosto mediano impedia que talentos da envergadura de um Mozart pudessem se estabelecer, exclusivamente, pela arte. Mozart foi, para Elias, um outsider até o final de sua vida, especialmente por ter sido pioneiro no desafio de viver de sua arte autonomamente.

Neste ponto, interrogamo-nos sobre as escolhas de Chrysanthème em um universo literário dominado por homens, boa parte deles alojada na administração pública, o que lhes garantia sustento através do erário nacional, como é o caso do nosso outro autor, Afrânio Peixoto. Desde cedo, as escolhas de Chrysanthème a encaminharam para a rota oposta à da percorrida por Afrânio. Casou-se cedo, iniciou na escrita literária tarde e, sendo filha de ninguém menos do que Carmem Dolores8, herdou a vivência, desde tenra idade, com o mundo literário, mas, especialmente, herdou o amor e os dissabores de viver da escrita, tendo marcado com certo capricho e orgulho este último aspecto. Os círculos de amigos e desafetos são uma pequena demonstração desse libelo, adiante explorado. Por ora, fiquemos com a informação de que nossa escritora encontra-se praticamente esquecida e que não figura nas antologias literárias escritas no século passado, salvo algumas dentre as dedicadas às mulheres, enquanto nosso autor é um imortal. Ela está, portanto, fora dos cânones da literatura nacional, escritos, não podemos deixar de dizê-lo, com a colaboração de Afrânio Peixoto9. Nem mesmo as revisões acerca da literatura escrita por mulheres daquele período conseguiram alterar a situação de Chrysanthème. Quem a conhece não lhe nega personalidade aos seus escritos, mas seu talento, por outro lado, ainda está sub judice.

Assim, nosso recorte é bastante preciso e pretende apresentar possibilidades de concepções sobre a educação da mulher nesses dois autores, a partir dos trabalhos citados. O que problematizamos diz respeito, portanto, às escolhas constitutivas das narrativas, não aos gêneros discursivos, mas a respeito do papel desses textos na construção da história dos modelos educativos para as mulheres em disputa na década de 1930.

Considerando que todo discurso implica possibilidades de desestruturação-reestruturação das redes e dos trajetos através dos quais se institui - o que coloca em causa os sentidos gerados (Bakhtin, 2014) -, nossa proposta é pô-los em diálogo, observando os modos como arranjam seus discursos, tensionados pelos aparatos institucionais que os cercam, analisando o escopo dos arranjos discursivos por eles forjados, os elementos contra os quais disparam e a respeito dos quais empreendem seus esforços. Assim, procuramos identificar interlocuções, interferências, modos de pertencimento institucionais, educacionais, sociais e interpessoais em jogo nas negociações operadas a respeito das representações sobre as mulheres instituídas no período para refletir acerca dos enfrentamentos operados pelos autores (Candido, 2005).

A Carlota Joaquina de Madame Chrysanthème

À Madame Chrysanthème cabe apresentação. Nascida Cecília Moncorvo Bandeira de Mello (1869-1948), no Rio de Janeiro, filha de Jeronymo Bandeira de Mello (1838-1886), advogado e funcionário público10, e da escritora Emília Moncorvo Bandeira de Mello, já mencionada, ela cresce na cidade e inicia sua carreira literária seguindo os passos da mãe. Era a segunda filha em uma família de sete irmãos. Casa-se aos 18 anos com Horácio Rebello de Vasconcellos, em 1888, com quem teve um único filho e passou a se chamar Cecília Moncorvo Bandeira de Mello Rebello de Vasconcellos. O pseudônimo veio do livro homônimo de Pierre Loti, publicado em fins do século XIX, e nos traz indícios claros do sarcasmo da autora, pois que várias escritoras utilizavam-se de pseudônimos masculinos para escapar aos preconceitos limitantes da época.

No prefácio d'A Infanta Carlota Joaquina (1937), Madame Chrysanthème afirma que, lendo o que havia sido escrito sobre a personagem,

"lembrou-se de defendê-la" pelas razões que se seguem: "Comprehendi então que a intelligencia, a generosidade e o temperamento da infanta hespanhola revoltaram a falsa fidalguia e a ignorante plebe desse tempo, arrancando-lhes calumnias, incomprehensões e perseguições..." (Chrysanthème, 1937, p. 5).

No romance histórico de Chrysanthème, a autora procura denunciar tais perseguições como sendo resultado de uma história escrita por homens que buscaram "ennegrecer" a trajetória da rainha de Portugal e do Brasil, condenando sua independência e sensualidade. Sua missão é, pois, regastar a reputação da rainha infanta, vítima da inveja orquestrada por biógrafos, historiadores e contemporâneos, inclusive, seu marido.

Ao escrever A Infanta Carlota Joaquina, Chrysanthème tinha seus 68 anos. Nessa idade, ela estava ativa como escritora e jornalista. Maria de Lourdes Melo Pinto (2006), diz-nos que ela escreveu n'A Gazeta de Notícias até o ano de sua morte, 1948, com quase 80 anos, embora os registros em microfilme só existam até 1941 (Pinto, 2006). Foram pouco mais de quarenta anos dedicados à literatura, de 1907 até 1948 (Pinto, 2006, p. 37). A escritora era famosa pela força jocosa e ferina de suas palavras. Irônica quase sempre, tratou dos mais variados assuntos nas crônicas que escreveu nos diversos jornais, indo da condição da mulher à crítica dos costumes, passando pelas questões sociopolíticas. Entre os diários nos quais escreveu, citamos: A Imprensa (1907-1911), O Paiz (1914-1937); Correio Paulistano (1920-1934), O Mundo Literário (1924), Única (1925), Diário de Notícias (1936-1943), O Cruzeiro (1931), Gazeta de Notícias (1983-1948) (Pinto, 2006, p. 204-239). Ela publica também romances, contos infantis, romances biográficos e históricos, peças de teatro e crítica literária (Pinto, 2006, p. 126).

Pelas crônicas, é possível acompanhar as mudanças no pensamento da escritora quanto à condição da mulher na sociedade. Até a Primeira Guerra Mundial, ela acredita que o magistério é o campo profissional por excelência às mulheres. O Período Entreguerras, as mudanças sociais e suas demandas trazem, especialmente com o novo regime pós-1930, um quadro conjuntural que estabelece novas circunstâncias à educação infantil, a respeito do que a autora registra:

Sem feminismo a dementar-me o cerebro e sem ambições outras senão as de mulher, bem mulher, observo com piedade e inquietude, sobretudo o modo actual de se educar a nova geração, que se adextra para servir ao Brasil. Nessa malsã atmosphera carioca, palpitante de anceios politicos, de vaidades, não raro, futeis e infantis, de suggestões, quasi sempre, nefastas e contraproducentes, a infancia é a sua maior e indefeza victima (Chrysanthème, A atmosphera do Rio, Correio Paulistano, 12/08/1934 inPinto, 2006, p. 146).

A passagem também evidencia outro traço da personalidade de Chrysanthème importante de destacar, qual seja, o seu conflito com o movimento feminista. Em diversas crônicas, ela afirma, categoricamente, não ser feminista, fazendo coro com o discurso hegemônico que toma a profissão de professora como "natural" às mulheres. Essa posição não é nova para ela, contudo. Quando jovem, defendeu o magistério como profissão por excelência às mulheres, com o que discordavam as feministas, que reivindicavam igualdade entre mulheres e homens no quesito profissionalização. Seu intento era mostrar uma possibilidade de entrada da mulher no mercado de trabalho em uma sociedade em mudança, onde esse movimento se apresentava como inevitável por boas e más questões. Assim, ao mesmo tempo em que entrava em desacordo com as feministas, a autora também arremetia severas críticas às mulheres fúteis e ociosas, como na passagem a seguir:

Não dou o titulo do feminismo à essa natural e necessaria disposição das damas modernas, porquanto, os tempos mudando, ellas tiveram que mudar com elles. Outrôra a mulher, que trabalhava, era uma especie de desclassificada social. Actualmente, ella apparece como uma heroina, aureolada das nuvens claras da coragem, da valentia e do dever cumprido. A indolencia ancestral, os vicios de uma tradição collocando as mulheres entre os grilhões da escrava e as rendas da boneca, cahiram pelas forçadas circumstancias, imperando no mundo inteiro. E a mulher, presentemente, que só se ocupa de frivolidades e de interesses rasteiros, não merece ser catalogada no mundo dos seres, dignos de existirem (Chrysanthème, O trabalho feminino ou o credo moderno, Correio Paulistano, 24/08/1930, p. 3 inPinto, 2006, p. 151).

Chysanthème enviuvou cedo e, assim como a mãe, ela também teve que trabalhar para garantir o seu próprio sustento, o que a colocava, por um lado, em posição de empatia à causa das trabalhadoras e, por outro, de denunciadora e crítica da vacuidade e inépcia que apareciam como constituinte da natureza das mulheres. Seu alvo preferencial eram as mulheres das camadas mais abastadas, mas não somente. As desocupadas de todos os naipes foram alvo da escritora. Maria de Lourdes Eleutério arrisca sobre a escritora:

Talvez, Chrysanthème almejasse, além da satisfação de escrever e sanar problemas financeiros, tornar-se, através de seus textos, uma voz que repercutisse as perplexidades daquele momento. [...]

A mulher ganha, com Chrysanthème, uma conselheira polêmica, que, ao reivindicar um novo espaço para as mulheres, simultaneamente lhes recusava as frivolidades. Isso vendia muito... (Eleutério, s.d.).

Embora cativasse um público entre os leitores dos jornais nos quais escrevia, Chrysanthème amealhou muitos e notáveis desafetos pela vida: Gilberto Amado, Lima Barreto, Humberto de Campos, Rui Barbosa (Pinto, 2006). Sobre o primeiro, a indignação resulta do fato dele suceder sua mãe na direção da coluna "A Semana", no jornal O Paiz, anos após a morte desta. Ela esperava pelo convite que veio, enfim, mais tarde. Gilberto Amado, poeta e escritor renomado, assassinou o também poeta Aníbal Theófilo, em 19 de junho de 1915, em um evento público, diante de todos. Chrysanthème não se cala e dispara:

[...] Não ha bella phrase de chronista, nem lyrico pensamento de poeta, que possa dar uma idéa do que sentiu Annibal Theophilo, quando, num relampago, comprehendeu que sua vida se terminaria ali estupidamente cortada pela bala de um degenerado, [...]

[...]

O Sr. Gilberto Amado, no seu confortavel gabinete do quartel de cavallaria da brigada, tem naturalmente o coração pesado de remorso e de fundo terror! Não se mata impunemente um homem e não se transgride com o sorriso nos labios todas as leis da mais simples humanidade (Chrysanthème, O Paiz, Rio de Janeiro, 28/06/1915, p. 3 inPinto, 2006, p. 173).

Absolvido pela justiça, ele ingressa no Período Vargas na diplomacia brasileira, tendo sido embaixador em vários países. Em 1963, Gilberto Amado retorna ao país e é eleito à Academia Brasileira de Letras ABL, tornando-se um imortal.

Das rusgas com Lima Barreto, encontramos uma pista em 1922, na crônica de sua autoria "Feminismo e voto feminino", publicada na revista O Careta, em 07 de janeiro. Nesta, Lima Barreto distinguia os tipos de feminismos existentes no país, caracterizando-os como sendo "igrejinhas" criadas pelas mulheres abastadas, que ofuscavam as questões centrais da luta das mulheres, fazendo-as divergirem por minúcias. Ironizando abertamente suas principais lideranças, refere-se à Chrysanthème como sendo ela "quase uma basílica" entre as "igrejinhas" representadas pelas lideranças do movimento feminista de então (Lopes, 2008, p. 79).

Sobre as desavenças com Rui Barbosa, é emblemática a crônica da autora, intitulada "Um gesto desastroso", publicada na seção Palestra Feminina do jornal O Paiz, em 17 de março de 1919, na qual ela debocha da inflamada e zangada palestra do então senador, proferida na Associação Comercial do Rio de Janeiro. Comparando os melindres de Rui Barbosa ao de uma mulher, dispara:

Se alguma mulher lesada na sua vaidade ou na sua ambição clamasse contra isso com a fúria com que o Sr. Ruy Barbosa o fez diante da pura cohorte que fórma a Associação Comercial, todos, num grito unisono, apontar-lh-iam para um gabinete de meditação afim de nelle purgar pecados tão grandes e tão mesquinhos. [...] Como os homens se parecem com as mulheres quando se fazem birrentos e manhosos! (Chrysanthème inO Paiz, 1919, p. 3).

Nessa e em outras crônicas, a autora o retrata como arrogante e presunçoso e abertamente fez campanha contra sua candidatura à presidência da República, em 1919.

Mas fez amigos também. Do que se tem notícia, ela e o jornalista Paulo Barreto, o João do Rio, que dispensa apresentações, eram bastante próximos. Ele escrevera certa vez: "a legendária e desconcertante Chrysanthème" (Schwarcz, 2005). Ao que tudo indica, Alcindo Guanabara fora seu protetor no mundo literário, embora se insinue, aqui e ali, que era também seu amante. Desse fato, há rumores, mas ainda não encontramos nada que o comprove. João do Rio morre em 1921, três anos depois de Alcindo Guanabara morrer. Daí em diante, encontramos poucos indícios de amigos próximos, exceto a escritora de poesias eróticas Gilka Machado, a quem nossa escritora dedica um de seus livros, em 1933 - o livro Familias...

Já Humberto de Campos, em seu livro Crítica, de 1933, no capítulo intitulado "As mulheres e o amor", ataca ferozmente a escritora, acusando-a pregar às mulheres incredulidade ao amor dos homens. Dizia que a autora percebia uma sociedade de tipos disformes, especialmente de homens, mas também de mulheres sem classe e de linguajar vulgar. Na crítica que faz ao livro O que os outros não veem, no capítulo supracitado, ele destaca a passagem onde nossa autora diz "Irmãs, ódio ao homem!..." (Campos, 1933, p. 48). Defendendo os homens, que trabalham enquanto as mulheres passeiam e vão à manicure, ele dispara: "O homem não é, assim, nem bom, nem mau. Cumpre apenas o seu destino, obediente às leis naturais, às forças poderosas e irresistíveis que lhe traçaram um destino na terra" (Campos, 1933, p. 53). Acusando-a de escrever mal, dispara:

A Sra. Chrysanthème tem passado sua vida de letras a escrever crônicas para jornais. O seu estilo, pela continuidade do exercício, afeiçoou-se a esse gênero literário. E é nesse estilo singelo, rápido, sem rebuscamento de frases, às vezes descuidado em demasia, que nos dá o seu romance (Campos, 1933, p. 55).

E elenca uma sequência de passagens nas quais considera haver erros de concordância e de ortografia. Como se não bastasse acusar a escrita de pouco talentosa, lhe acusa ainda de exageros na liberdade de atribuição de significados aos estilos de vida da sociedade carioca. Citando o jeito atrevido da autora, conta que lhe disse, pessoalmente, sobre sua estranheza com o linguajar da personagem. Em resposta ao espanto dele com a elaboração de sua tão desclassificada personagem feminina no romance em questão, Chrysanthème assim devolveu:

- [...] Pois, não se espante, não. As mulheres que eu descrevo são apanhadas ao vivo.

E na sua ironia jovial:

- Aquilo é gente que lê os seus livros! (Campo, 1933, p. 56).

Após elencar brevemente a força das imagens de algumas belas passagens do romance, Campos insiste em dizer ser a autora capaz de construir personagens mais "asseadas de língua". E conclui: "O que os outros não veem foi escrito, evidentemente, mais para efeito moral do que literário" (Campos, 1933, p. 58). Isso pode ser uma pista bastante sólida a ser levada em conta na compreensão do apagamento da autora do panteão de escritores nacionais.

Esse gosto pelo tom irônico, Chrysanthème refina ao longo da vida. Cuidando assegurar a permanência de suas colunas nos jornais nos quais escreve, ela segue cativando o público com sua crítica mordaz entremeada por certo tom de dissimulação, segundo afirma Maria de Lourdes M. Pinto:

Chrysanthème passa a aperfeiçoar uma técnica de dissimulação: publicava textos polêmicos, mas sempre encontrando uma maneira de parecer subserviente, disfarçando suas intenções de desconstruir a memória coletiva que tinha sido construída (Pinto, 2006, p. 165).

Esse expediente, ela dispensava nos romances11 e na relação direta com seus pares escritores, conforme vimos. Seus escritos são desconcertantes para a escrita de uma mulher daqueles dias. Homens e mulheres adúlteros, fúteis e ociosos, tratantes e despudorados, amorais e inescrupulosos são traços da tipologia de personagens traçados em suas tramas. Polêmica, ela colecionava seguidores das suas colunas e detratores entre os pares. Em 1929, por exemplo, o jornalista Terra de Senna escreveu a respeito do mesmo romance do qual tratou Humberto de Campos:

Os homens e as mulheres, nos romances de Madame Chrysanthème

Não se assuste a brilhante escriptora: não vou tentar siquer um "ensaio critico". Venho somente em defesa dos homens e das mulheres, periodicamente acusados pela novellista de "Memorias de um patife aposentado". [...]

A sra. Chrysanthème acaba de publicar um livro: "O que os outros não vêem."

Mas, não li o livro, li o prefacio, ou melhor, um pedaço do prefacio, de sua própria autoria, em que mme. Chrysanthème investe contra os homens [...]

Alias, é flagrante e notorio que a sra. Chrysanthème, nos seus livros anteriores, jámais demonstrou essa incontida idiossincrasia pelos homens. [...]

Antes ella procurou sempre, na sua faina de tentar observar costumes de sociedade, colocar a mulher mundana, a mulher que frequenta bailes de embaixadas e chás de clubs de football, em situação inferior aos homens, taes as leviandades commettidas pelas suas gentilissimas personagens (A Manhã, 09/01/1929, p. 2).

Na perspectiva desse jornalista, era a escritora quem desrespeitava a mulher ao, reiteradamente, colocar suas personagens em "situação inferior aos homens". Toca-nos o fato de ele acusar a autora de criar tais situações e, com isso, circunscrever modos de tratamento, conduta e pertencimento às mulheres, como se as tramas da escritora em suas obras não espelhassem a vida e reiterassem apenas o que a sociedade quisesse superar ou ignorar, mas, de qualquer forma, não queria ver retratada em livros e crônicas.

É essa senhora que, com sua verve apurada pela rotina do ofício, escreve na maturidade sexagenária, A Infanta Carlota Joaquina. Os colegas de profissão registraram o lançamento do livro, já demonstrando divergências de opinião:

Esta sendo exposto nas [...] livrarias mais um volume da brilhante escriptora e [...] distinta collaboradora Chrysanthème. Como a propria autora affirma no prefacio dessa obra, o espirito que orienta o livro é [...] contrario a quasi tudo quanto até agora se tem publicado em torno da discutida personalidade da esposa de D. João VI. Chrysanthème estuda no seu novo livro, uma Carlota Joaquina diferente, defendendo-a, mesmo, dos continuos ataques da maior parte dos nossos homens de letras e historiadores. Todo elle escripto naquelle estylo simples e incisivo que constitue um dos encantos dos livros de Chrysanthème, "A infanta carlota joaquina", certamente alcançará o exito que merece (Diário de Notícias, 05/08/1937, p. 2).

Ou ainda:

O livro de Madame Chrysanthème "A infanta Carlota Joaquina", que acabou de apparecer, merece ser lido, pois é uma habil reconstrução historica do meio em que viveu e operou essa primeira (e unica) rainha do Brasil. [...] Intentou Madame Chrysanthème rehabilitar a memoria de Carlota Joaquina, apresentando-nol-a como creatura "viril, intelligente e esforçada". [...] Eu creio que a maior homenagem que posso fazer á illustre autora é discordar da sua opinião, mas discutilla com o respeito que ella me merece. [...] Como mullher, Carlota Joaquina deveria ter soffrido em extremo, porque era honestissimamente feia e muito tentada do terceiro inimigo de alma.

Eu prefiro, longe, a pacatez e a gelatinosa bondade de D. João VI, que Madame Chrysanthème ataca bastante, fiada no que dizem os livros de Gastão Penalva e do Pedrino Calmon. [...] Seu livro é esplendido. Merece ser lido, porque se lê com prazer e de um jacto. Isso, na literatura Nacional da época é raro (Goldin da Fonseca in Correio da Manhã, 05/08/1937, p. 2).

Madame Chrysanthème justifica que a escrita do romance visa defender Carlota Joaquina dos ataques da historiografia contra a rainha. Ao longo do texto, ela vai citando e contestando historiadores, memorialistas, biógrafos que escreveram sobre Carlota Joaquina (Quadro 1). Contudo, seu rebatimento não está respaldado em documentação ou qualquer outro registro. Além da leitura dos detratores da rainha, não houve pesquisa de outra fonte ou relato de empenho nessa direção. O seu empreendimento denegatório recorre à consulta dos mesmos relatos dos fatos contidos na literatura que refuta, porém, interpretando-os de modo diferente.

Quadro 1
Historiadores, biógrafos e memorialistas citados por Mme. Chrysanthème no livro A Infanta Carlota Joaquina.

Nota:(*) Julián Maria Rubio, autor de La Infanta Carlota Joaquina, escrito em 1920.

A liberdade da autora para compor a personagem e retratar os eventos demonstra sua intenção declarada de se propor a recuperar a reputação maculada de Carlota Joaquina:

Existisse Carlota Joaquina no momento presente, e a todas essas suas desqualidades, há muito tão censuradas ao chicote das penas dos escriptores moralistas, seriam rendidas homengens, sob os titulos e sub-titulos de elegancias, raffinements e... fidalguices. E o meu amigo Gastão Penalva, no capitulo do seu lindo livro "Mulheres", em lugar de chamar Sua Magestade infidelissima, intitulal-a-ia "Sua Magestade interessantissima (Chrysanthhème, 1937, p. 25).

Decidida a demonstrar o quanto o rei ofuscava a personalidade da rainha, ela constrói uma narrativa na qual a positividade da personagem se faz na medida da negatividade da personagem do rei, seu principal antagonista e motivo de sua trágica vida. O conjunto de adjetivos de que a autora lança mão para construir a cadeia narrativa da trama, dos quais separamos alguns, dá mostras do tom irônico e também ressentido que a autora usa para caracterizar suas personagens (Quadro 2).

Quadro 1
Conjunto de adjetivos atribuídos aos personagens centrais do livro A Infanta Carlota Joaquina, de Mme. Chrysanthème.

Na trama, todas as iniciativas de Carlota são sabotadas pelo marido e seus assessores. Mesmo odiando o Brasil por seu clima, seus costumes e suas gentes, a autora desculpa-lhe tais aversões, porque teriam sido fomentadas pelo excesso de rejeição sofrido pela rainha. A autora está visceralmente comprometida com a construção de uma memória positiva da rainha e com a altercação da historiografia até então produzida. Assim, dispara:

O rebanho de Panurge da pena e da critica habituou-se a envilecer a memória da pobre rainha, acusada de crimes que, hoje, constituem, entretanto, o encanto e o triunfo das damas modernas (Chrysanthhème, 1937, p. 16).

E arremata:

...esmeraram-se em cobri de opprobrios a rainha que agiu e amou á moderna num tempo em que a hypocrisia e a tatufice eram obrigatorias como as... virtudes domesticas não o são actualmente (Chrysanthhème, 1937, p. 25).

Ainda sobre essa historiografia difamante da rainha, enceta:

A imitação e a monotonia têm, impulsionado varios escriptores a se copiarem uns aos outros, quando se trata de escrever a historia de Carlota Joaquina, infanta da Hespanha e depois rainha de Portugal e do Brasil. Afastando sempre para o lado a viva intelligencia e a personalidade curiosa dessa mulher, elles atacam, infatigaveis e illogicos, a sua sensualidade e a sua independencia, certos de assim agradarem aos virtuosos e aos... falsos castos de espirito ou de materia (Chrysanthhème, 1937, p. 27).

No seu projeto de resgate, a autora afirma que um olhar mais atento cuidaria de colocar Carlota Joaquina no panteão das heroínas nacionais:

Na vida dessa mulher, intelligente, energica, ambiciosa, vida ao lado de um marido remellento, guloso e astuto, dessa mulher vinda da Hespanha em tenros annos para Portugal, nota-se a procura instinctiva ao amor e á satisfação de uma vontade mascula e continuada. Hoje, Carlota Joaquina seria uma creatura superior, um espirito invulgar, uma dama interessantissima (Chrysanthhème, 1937, p. 49).

A autora não consente que os historiadores e escritores consagrem a "lenda negra" sobre a rainha, que a diz ninfomaníaca, traidora do Brasil, adúltera, terrivelmente feiosa e de pouca fé. Considera que tais epítetos ofuscam o brilho da rainha e, mais grave, consagram uma visão preconceituosa e irreal da infanta, enquanto a "lenda dourada" seja desconsiderada: "percorrendo algumas obras de neutralidade dignas e simples, admiramos a infinita bondade dessa princesa, roubada, altiva e sempre perseguida como um animal feroz" (Chrysanthème, 1937, p. 6). Chrysanthème toma para si o papel de denunciar as injustiças sofridas por Carlota Joaquina que fora, tal como a própria autora, mal compreendida em seu tempo, por causa da personalidade forte, resultante da autonomia das vontades e pensamentos. A rainha Carlota Joaquina encarna, portanto, as mulheres injustiçadas pelo mundo misógino, que, em última instância, é aquele que registra a história, seleciona a produção material e imaterial que terá sobrevida, atribuindo valor e sentidos às coisas e às pessoas. Talvez ela presumisse que, assim como aconteceu à sua mãe, seu destino seria o esquecimento ou a injúria. Coincidência ou não, no atestado de óbito de Chrysanthème, registra-se como ocupação a de "doméstica".

A Eunice de Afrânio Peixoto

No ano anterior ao lançamento do livro de Chrysanthème, 1936, Afrânio Peixoto escrevera A Educação da Mulher, seu tratado pedagógico em defesa da emancipação da mulher em moldes conservadores, no qual reafirmava suas funções naturais de mãe, esposa e devota. A esse respeito, ele dissera: "Se o lar não é feliz a culpa é das mulheres. Das mulheres não educadas, não educadas para esposas e para mães, para o lar... A mulher educada é como a mulher forte das Escrituras: pode tudo" (Peixoto, 1944, p. 36). Esse dado nos parece um elemento inicial importante para colocar em pauta as fronteiras que delimitam a possibilidade de diálogo entre os dois autores.

Para os efeitos desta pesquisa, nós utilizamos duas edições do livro Educação da Mulher, de Afrânio Peixoto. A primeira edição, de 1936, e a quarta edição, de 1944. Nessa última edição, além de um anexo que não constava daquela primeira edição, o título foi modificado para Eunice ou a Educação da Mulher, indicativos da repercussão do livro, por um lado, e do aprimoramento da explicitação da mulher modelar de modo nomeado e distinguido, por outro.

Quando a primeira edição do livro vem a público, Afrânio está com 60 anos; quando a 4ª edição é publicada, 68 anos. São, portanto, obras, de um homem maduro e experiente, igualmente sexagenário como nossa autora, que contou com quase uma década de (boa) repercussão para refinar sua obra e torná-la ainda mais eficaz. A reedição do livro constata o sucesso da obra, o que é muito curioso, pois não se trata de um romance. Trata-se de um manual moderno, no qual as mulheres aprendem história, anatomia, psicologia, a biografia de mulheres ilustres, como Maria de Montessori e Greta Garbo e, embora o autor afirme no prefácio que "Este não é um livro didático sobre a educação da mulher" (Peixoto, 1936, p. 5), não há como concebê-lo na condição de leitura recreativa, pelo projeto editorial da obra.

O livro está dividido em duas partes. A primeira, intitulada, "O que foi", e a segunda, "O que deve ser". Sua construção de tempo suprime o presente no vácuo do devir de um tempo ansiado e operado para a educação da mulher nas diversas frentes onde atua, sendo a educação uma delas. Em "O que foi", embora antecipe no prefácio se tratar de um livro de "ensaio, às vezes polêmico, de propaganda e justificativa dessa educação [das mulheres]" (Peixoto, 1936, p. 5). O autor segue o roteiro de outro livro de sua autoria, Noções de História da Educação, lançado pouco antes deste. Condensado em relação àquele, ambos percorrem, desde a Antiguidade Oriental à atualidade de Afrânio, repetindo a abordagem cronológica, evolutiva e linear. Logo no início do Capítulo I, ele mostra o processo progressivo da educação da mulher na história: "A educação terá de percorrer, no tempo, o advento feminino á paridade real com o seu companheiro, na vida social" (Peixoto, 1936, p. 9), esse é o mote para o argumento central do livro, mostrar os avanços na conquista dos direitos pela mulher na sociedade e na responsabilidade que vem atrelada a tais direitos, a educação sendo o mais nobre dentre esses.

Elencando as diferentes propostas de educação às mulheres nas diferentes sociedades nos diferentes estágios da história, A Educação da Mulher segue considerando as propostas educativas forjadas pelos diversos contextos político-culturais. Na rubrica dedicada aos povos primitivos, equiparados aos índios brasileiros ao tempo da chegada dos portugueses, apresenta a mulher como "animal doméstico" e complementa o papel social delas afirmando:

Tinham estes selvagens idea do papel somenos da mulher na procriação: uma semente na terra... O homem era essencial e o padre Anchieta traduz esse conceito dizendo que, para os nossos índios, as mulheres eram "sacos de meninos", apenas (Peixoto, 1936, p. 10-11).

Segue ele, enumerando as diversas situações trágicas das mulheres de outras épocas. Na Índia, a mulher não tinha direito à educação, pois acreditavam que "a mulher letrada não obedece, nem quer trabalhar"; "Na China a mulher era apenas uma sombra do homem", no Oriente a mulher é escondida e desprezada; na Grécia, a finalidade social da educação, tria destinado apenas às cortesãs tal privilégio, as demais não recebiam nenhuma educação. Somente com Roma as mulheres tiveram direito à educação, mas não por si mesmas, senão pelos filhos e pela família. Ali, o Cristianismo dignificaria a mulher, tornando-a forte, dando a ela outra sorte. A instituição, contudo, contestará Erasmo, que a quer educada "até sem desigualdade do outro sexo" (Peixoto, 1936, p. 37). Instruída, insiste o humanista, "para aclarar o lar, com sua conversação e seu comércio" (Peixoto, 1936, p. 37) e, para isso, deve-lhe ser dado acesso ao latim e às línguas clássicas e até o cálculo.

Nesse ponto, Afrânio imputa ao reformador renascentista os projetos do seu próprio tempo: "A mulher instruída melhor dirigirá sua casa e será inspiradora de marido e filhos" (Peixoto, 1936, p. 37). Enquanto em Montaigne e Molière, educar a mulher não seja recomendável. Mas Afrânio rebate afirmando existirem mulheres sábias, algumas "eram geniaes" e que "Quando elas podem, e querem, são como os homens, mais do que os homens porque ainda ficam mulheres..." (Peixoto, 1936, p. 46). E entra nos reformadores modernos Fénelon, Mme. De Maintenon, Rosseau. Seguindo o modelo do livro, de enfileirar citações dos autores, segue recorte da seleção de Fénelon:

"Nada mais desprezado que a educação das meninas". "Julga-se que se deve dar, ao sexo, pouca instrução". "É preciso que não sejam sábias, a curiosidade as fazendo vans e preciosas; basta que saibam governar, um dia, suas casas". Não é assim, ou não deve ser assim? (Peixoto, 1936, p. 59).

A pergunta final do trecho apresentado, de Afrânio, atualiza o modelo educativo do abade Fénelon às mulheres. Rousseau, segundo ele, é beneficiado pela moda da educação e este de tal modo compila outros, que seu mérito passa pela ousadia, inclusive de escrever sobre educação como um romance, Emilio, mas não pela originalidade, conforme a ele se refere a literatura. Ao filósofo, Afrânio se permite crítica larga, como nas passagens a seguir:

Rousseau tinha poucas idéas próprias, sobre tudo: as suas são as dos outros...

[...]

As ideias de Rousseau sobre o ensino das línguas vivas, preferidas ao latim, já está em PLUCHE (1732), o preconicio da educação física, em BONNEVAL (1743); a aversão a LA FONTAINE, em LA CONDAMINE (1751). O Emilio será, pois, vulgar, ou se não, absurdo (Peixoto, 1936, p. 72).

[...]

Ideas justas de todo mundo, ideas próprias, originaes, absurdas ás vezes,..."Emilio" é o romance de uma educação [...] Romance estúpido, disse dele VOLTAIRE; romance, contudo, o que facilita a leitura: muita gente se lisongêa, cuidando instruir-se em pedagogia, ao ler romance (Peixoto, 1936, p. 72-73).

O romance Emilio de Rousseau é chamado por Afrânio de "excepcional, absurdo impossível" (Peixoto, 1936, p. 72) e o personagem é tomado por bobo, incompetente, um "revolucionário" que recebeu uma "educação de rico". Afrânio mostra-se seriamente incomodado com as "novidades" de Rousseau e o critica sem disfarce:

Idéas boas, exactas, ás vezes, embora velhas: "o que homens e mulheres têm de diferente é apenas o sexo"... "É das mulheres que depende a primeira educação dos homens; das mulheres ainda dependem os costumes deles, suas paixões, seus gostos, prazeres, até a felicidade"... Donde uma conclusão errada: a educação delas deve ser-lhes relativa, isto é, apenas criá-las e educá-las para os homens... "agradar-lhes, serem uteis, (vê-se que ROUSSEAU casou com sua criada) fazerem-se amar e se honrarem deles, criando os filhos, cuidando dos grandes, aconselhar, consolar, fazer a vida agradável e doce, eis os deveres das mulheres em todos os tempos"... Até o tempo de Rousseau... não agora! (Peixoto, 1936, p. 76).

A Sofia do Emílio, analisa Afrânio, é, como o protagonista, criada à solta. Mulher, existe para satisfazê-lo e segue a educação que lhe cabe ao sexo. E citando Rousseau, destaca: "as meninas se sentem feitas para obedecer"; "Sofia tem o espírito agradável, sem ser brilhante, e sólido, sem ser profundo", "o que sabe de melhor são os trabalhos do sexo..." (Peixoto, 1936, p. 77).

Com Condorcet, já teremos quase o programa atual de educação pública, afirma Afrânio. A instrução feminina, igual à do homem, impõe-se com a revolução, continua ele, "para que sejam dignas companheiras de seus maridos, se possam interessar pelos seus trabalhos e participar de suas preocupações" (Peixoto, 1936, p. 82). A revolução traz, ainda, a contribuição de pedagogas: Madame de Genlis, Madame Campan, Miss Hamilton, Madame de Suassure, Miss Edgeworth, Madame Guizot e Madame de Remusat. E com a frase desta última "[a mulher] era inferior, mas não subordinada", abre o penúltimo capítulo, onde a igualdade reivindicada abre espaço à misoginia provocada pelo celibato, às benesses da coeducação, à vocação feminina para o magistério e à Maria de Montessori, que, apesar de ter se tornado "individualista no ensino, ensino discriminado, sem programa", reconhece-lhe as técnicas do "sensualismo filosófico" e do "associonismo psicológico" (Peixoto, 1936, p. 100-101).

No último capítulo da primeira parte, dedicado ao Brasil, atravessa da Colônia dos jesuítas às escolas normais do Império e da República em cinco páginas. A assepsia da educação jesuítica marca os séculos: na Colônia, "a educação reduzia-se a restringir a vivacidade e a espontaneidade dos pupilos. Meninos e meninas andam nus, em casa, até a idade dos cinco anos" (Peixoto, 1936, p. 106). A escravidão trouxe depravação sexual e perversidades no trato: gritos, castigos, humilhações, as quais, ainda, identifica o autor como modo de educar e tratar no seu tempo. Ainda no Império, destaca o livro Cartas sobre a educação de Cora, de José Lino Coutinho, sobre o qual diz: "quanto difere a educação de Cora da de Sofia!" (Peixoto, 1936, p. 108). Segue-se menção aos conventos brasileiros e às escolas normais. Encerra na seleção para as escolas normais pela saúde e inteligência, enquanto "as que sobram têm a escola secundária". Sobre as demais mulheres que estudam e se formam, ele afirma:

A escola profissional, depois de Azevedo Sodré, dá productos, procurados nas indústrias femininas e no comércio da indumentária. As médicas, bacharelas, engenheiras não se recomendam, porque não foram orientadas profissionalmente, circunstâncias fortuitas decidiram por elas, são apenas tituladas... Mas está próximo o tempo da educação idônea, para o emprego idôneo. Ao menos já há a mulher educada (Peixoto, 1936, p. 111).

A segunda parte, intitulada "O que deve ser", o autor sai da história e volta à medicina, sua formação primeira. Há quatro capítulos reservados às questões do sexo:

  • I - O mistério do sexo: da insexualidade ao sexo puro

  • II - Caracteres dos sexos

  • III - Diversidade anatômica dos sexos

  • VIII - Educação sexual

Destinados a apresentar a anatomia sexual em suas variações, dimorfismo sexual, hermafroditismo, "missexualismo", "determinismo sexual" e as vantagens da mulher - gordura corporal, resistência à dor e à doença, menor acometimento por várias enfermidades, suicídios "três a quatro vezes mais frequente no homem do que na mulher, que resiste melhor, tanto ao sofrimento físico como ao moral" (Peixoto, 1936, p. 127), essa antropometria sexual que considera o tamanho dos ossos, órgãos (inclusive o peso do cérebro de homens e mulheres), condição hormonal, intenta dimensionar a diferença na igualdade pretendida pelas mulheres. Discutindo a proposta da igualdade entre os sexos do feminismo, conclui:

É verdade, mas o "feminismo", que não pode ter a pretensão de emendar a natureza, também se não deve iludir, com uma ilação social descabida dessa biologia... É como o sonho social, ou político, da igualdade entre os homens, dogma comunista, homens também desiguais entre si, física, intelectual e moralmente... O ideal será a igualdade relativa, a mesma sob a lei, de homens diversos, já sem os privilégios econômicos, de classes favorecidas e esbulhadas. O ideal do feminismo justo é a desigualdade relativa de funções de cada sexo na sociedade, hoje que as mulheres têm direito a não ter apenas filhos, como razão única de existirem. Há para elas, como para os homens, alguma coisa a mais... (Peixoto, 1936, p. 130).

Os capítulos a seguir são dedicados à comparação do desenvolvimento psicológico de cada sexo ou ao que ele chama de "confronto psicológico":

  • IV - Evolução psicológica

  • V - Tipos psicológicos

  • IX - Educação intelectual

Dessas diferenças, destaca a predominância relativa dos caracteres físicos, mentais, intelectuais, emocionais, etc., nos sexos. A priori, "as diferenças entre os do mesmo sexo são, raro, maiores do que a das médias comparadas dos dois sexos" (Peixoto, 1944, p. 164). Ou seja, homens e mulheres têm habilidades inatas e adquiridas diferentes, mas, sobretudo, diferem entre si mais do que, em média, diferem um do outro, porque "só há indivíduos de um e outro sexo" (Peixoto, 1944, p. 164).

No capítulo IV, sobre evolução psicológica, Afrânio cria um quadro qualitativo dos caracteres sexuais mais evidentes em ambos os sexos, em um conjunto de quinze características peculiares de cada um dos sexos, conforme demonstrado no Quadro 3.

Quadro 3
Evolução psicológica dos sexos de acordo com o manual Elementos de Medicina Legal, de Afrânio Peixoto.

Nos capítulos que se seguem, a seguir discriminados, entra em cena o Afrânio ensaísta, mais historiador de matiz sociológico, mas ainda médico higienista:

  • VI - A mulher e o trabalho

  • VII - Educação física

  • X - Educação e orientação

  • XI - Conclusão

Como traço comum com o médico temos o gosto pela estatística. Com base em dados, ele sustenta as conquistas da mulher no mercado de trabalho, apesar da pobreza, da diferença de salários entre os sexos e da equivalência na valorização do trabalho de homens e mulheres nas fábricas graças à chegada das máquinas, que dispensam o emprego da força bruta. As vantagens e desvantagens de um e outro sexo frente às condições concretas do trabalho e o aspecto moralizador deste, pois que a educação profissional afasta a ameaça da prostituição e se empenha no patrocínio da sociedade que não explora as mulheres pelo trabalho, segundo ele, está no programa da Sociedade das Nações (Peixoto, 1944, p. 173). Ao final, define que toda essa comparação entre homens e mulheres é relativa, pois:

Não há como negar que os sexos têm aparências, diversas, bem diversas, às vezes. Às vezes, porém essa diversidade se esbate e no detalhe dos caracteres e medidas não já o rigor dos casos individuais... Além da natureza, há a vida. Há o exercício. Há os desvios endócrinos, que alteram o corpo. Há pobreza e doença. Há velhice. E, se não o sexo, caracteres sexuais se esbatem. Fica o mais ou menos, mais e menos, das qualidades e quantidades (Peixoto, 1944, p. 191).

O mesmo vale para a educação intelectual, que livra as mulheres do tédio que leva aos vícios. O receituário higienista recobre os capítulos finais, nos quais faz defesa da educação orientada e organizada como única possibilidade de construir uma nação na qual as mulheres usufruam das conquistas que a modernidade traz, sem as ameaças que lhes vêm de roldão. Fator central de formação às mulheres, a educação deve ser coeducação, pois ajuda a formar ambos os sexos e já pode encaminhar para o casamento, e educação profissional, porque graças às inúmeras funções que concentra: maternidade, cuidados da casa, zelo ao marido e, às vezes, exercício de uma profissão. Diante de tantas atribuições, é preciso que se reconheça a inteligência promissora da mulher.

Como parte dos recursos de sua retórica, em A Educação da Mulher, Afrânio nos passa a ideia de que as mulheres são melhores do que os homens em vários aspectos.

Menos defeituosas, menos gagas, surdas, cegas, estropiadas, sofrem menos também de calvície, da hipertrofia do coração, das úlceras gastro-duodenais, da obstrução intestinal, do câncer nas localizações topográficas comuns aos dois sexos, da idiotia. O crime não é feminino (Peixoto, 1944, p. 179).

Se se depreende dessa passagem que o autor acredite que as mulheres levem certas vantagens sobre os homens, três páginas depois, ele explica, em termos médicos, que as meninas interrompem seu crescimento na adolescência, enquanto os meninos continuam seu desenvolvimento até a maioridade, com o que se estabelece uma diferença biológica natural e intransponível entre os sexos:

Êle vai indo e só aos 20, ou depois, é que é mesmo homem. O homem prosseguiu e chegou até o têrmo do seu possível desenvolvimento...A mulher ficou "acampada perto da adolescência" [...] A conclusão será que o homem terminou seu desenvolvimento; a mulher será hipo-evoluída... (Peixoto, 1944, p. 182).

Mas como falar em superioridade ou inferioridade entre os sexos? Ao retoricamente perguntar sobre isso, Afrânio oferece uma avaliação comparada entre os sexos em relação, principalmente, aos aspectos psicológicos de cada um:

Por aí se vê que as meninas levam vantagem aos meninos em mais conscienciosas, tímidas, escrevem bem, em vulgaridade, inteligência... Ao invés, os meninos levam vantagem às meninas em vivacidade, consciência de si mesmos, e não mais esportivos e turbulentos. Mais ou menos, portanto e não muito mais ou muito menos... (Peixoto, 1944, p. 221).

E conclui dizendo:

Há mais ou menos, mais e menos... não qualidades diversas, quantidades não iguais, alternativamente maiores e menores, entre os sexos, entre os indivíduos, os indivíduos do mesmo sexo ou do outro sexo (Peixoto, 1944, p. 231).

De construção enciclopédica, perguntamo-nos: a quem se dirigia esse livro, tão enfadonho e técnico? Tal livro, certamente, não era leitura espontânea das damas, mais afeitas aos romances provocadores e impactantes que circulavam em profusão12. De certo, o civismo do Estado Novo o recomendava, e, por isso, devemos considerar a importância desse livro para os cursos de formação de professores, uma vez que ele (o autor), através de operações formais e informais, repete a fórmula de outros compêndios didáticos seus. Direcionada às moças, no intento de instruí-las para sua vida profissional e pessoal, tal obra corrobora com o projeto político da época, para o qual o mercado editorial apresenta seus mecanismos de adesão.13

Recorremos a Antônio Cândido (2005), quando propõe entender a dialética autor-obra-público afirmando que o valor e o significado de uma obra guardam relação com os modos pelos quais nela se exprimem ou ela se propõe a responder aos aspectos da realidade. Assim, analisamos o livro A Educação da Mulher, observando os expedientes pelos quais a obra e o meio se articulam nos projetos do autor.

Afrânio é bastante direto quanto às suas intenções. A espreitar as mulheres no vir a ser que fomenta, estão a loucura, o desregramento, a ignorância, a rudeza, a depravação, a pobreza, a desonra, a degenerescência, etc. O casamento, a maternidade, os bons costumes, o asseio e o labor corretos são virtudes que devem ser replicadas por todas as Eunices, as bem-educadas. A educação é o único meio eficaz de fazê-la alcançar esse patamar de progresso social.

O livro é um aviso às consequências da sublevação "irracional" a quais se expõem as mulheres no afã de conquistar um novo espaço na sociedade. Ao autor não escapam as mudanças bruscas que tomam a vida em seus dias. Seu intento é de minimizar o impacto da aderência a elas, traçando caminhos capazes de conciliar a mulher moderna com a sua Eunice.

Considerações provisórias

Mais do que discutir a respeito da condição da mulher na sociedade, o trabalho de Afrânio revela estratégias para conduzir a educação da mulher na sociedade, pois acredita que a condição social desta resulta da educação promovida na sociedade. O trabalho de Chrysanthème revela as respostas de uma mulher ante a percepção dessas estratégias civilizadoras, mas revela, ainda, de modo mais pujante do que o trabalho do Afrânio, a força aniquiladora da construção de uma realidade social comprometida em estabelecer um sistema de restrições e sanções às mulheres que o desafiam. Nesse sentido, tais representações sobre as mulheres parecem polarizar possibilidades de captura de expressões de práticas femininas na sociedade de então. Enquanto Afrânio Peixoto está comprometido com a permanência da alocação da mulher nos espaços tradicionalmente destinados a elas, pretendendo que estas passem de modo organizado ao espaço público e ao mundo do trabalho, Chrysanthème dedica-se a provocar desconfortos quanto a esses espaços de presença e pertença naturalizados às mulheres, abertamente conclamando enfrentamento aos homens.

Com esses endereçamentos, não é de estranhar que Chrysanthème tenha sido banida dos registros literários da nação. Seu exemplo é anti-Eunice. Embora bem-nascida, ela ignora o meio caminho andado por sua posição de nascimento e recusa a trilha fácil que poderia percorrer, se desejasse tão somente posição e dinheiro. Proscrita, mas útil à venda dos jornais, ela é mantida no limbo das repartições, onde pode alegrar-se em falar, ainda que dissimuladamente, o que matiza sua agressividade, ajudando a vender os periódicos. Sua produção é a medida do que há a combater e calar. E assim foi feito.

Afrânio, com sua fala eloquente e conciliadora, consegue ser irônico com o mínimo de beligerância, especialmente com seus críticos. Mas, talvez por ter se tornado um estabelecido, não lhes dedica demasiada atenção. E, já sabemos, vem do interior já de posse do receituário do arrivismo que o conduz ao hipocentro do poder. Ali se instala.

Entre ambos, travamos um diálogo no tempo-espaço por eles vivido, onde os autores, ao dirigirem suas falas aos seus interlocutores idealizados, seus leitores, inscrevem-se na cadeia enunciativa de seu tempo e, contemporâneos que são na escrita desses trabalhos, tencionam o imaginário social com as mulheres desejáveis e indesejáveis de seus trabalhos. Tal disputa atravessa o tempo e rebate nos dias atuais, quando às mulheres cabe a polifonia de imagens que ofertam caminhos de vida possíveis, mediados pela manutenção dos valores que alimentavam as contendas contra as quais assumiam posturas responsivas os nossos autores.

Referências

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BAKHTIN, M. 1988. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo, Hucitec, 240 p.

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Notas

1 Professora Adjunta da História da Educação na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã, 20550-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação de Ensino em Educação Básica do Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua Santa Alexandrina, 288, Rio Comprido, 20261-232, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
3 Graduanda do Curso de Pedagogia na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã, 20550-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
4 Trechos de seus romances Enervadas (1922) e Memórias de um Patife Aposentado (1924) foram publicados no livro de Beatriz Resende, Cocaína, literatura e outros companheiros de ilusão (2006). As razões da lembrança nos dão pistas do porquê da proscrição da autora.
5 Utilizamos o epíteto "genial" para seguir, em conformidade com seus biógrafos, sugerindo ser Júlio Afrânio Peixoto, entre seus contemporâneos e estudiosos, um homem de capacidade intelectual acima da média. Com isso, pretendemos aludir ao conceito "homem de gênio" de Cesare Lombroso, problematizando sobre as conveniências da apropriação das potencialidades de Júlio Afrânio Peixoto pelo establishment, de tal modo que lhe apagassem tais assombros em nome das compensações oferecidas por este autor àquele grupo. Para isso, estamos levando em conta a delimitação temporal deste trabalho, a década de 1930, na qual ainda reverberava entre nós os princípios da Antropologia Criminal.
6 A casa da família em Lençóis, na Bahia, por exemplo, foi reconstruída e transformada em museu: "Casa de Cultura Afrânio Peixoto", em 1970. Lá, seus diplomas, fardão da ABL e documentos pessoais e obras estão em exposição. Além disso, há documentos na Biblioteca Nacional, Academia Brasileira de Letras, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Instituto Médico Legal, Academia Nacional de Medicina, Instituto de Educação do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, etc.
7 A autora contabiliza 1.530 crônicas publicadas em diferentes jornais, mas avisa que está incompleto (Pinto, 2006).
8 Pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo (1852-1910), prestigiada escritora daquela virada de século. Embora se registre ter sido muito polêmica, sua obra recebeu maior acolhida entre os contemporâneos do que a da filha. Mas essa história ainda está por ser escrita.
9 Sobre literatura, Afrânio escreveu Noções de História da Literatura Geral, em 1932, e Panorama da Literatura Brasileira, em 1940.
10 Foi chefe de repartição na Secretaria de Estatística do Império (Gazeta de Notícias, 27/12/1886, p. 1, RJ, ed. 00361).
11 Vários de seus romances foram escritos como folhetim para os jornais, como Flores Modernas (1926) e Matar! (1927), por exemplo, mas não é o caso desse livro.
12 A poesia e a prosa modernista entram em nova fase a partir dos anos de 1930, com amadurecimento da proposta política e estética do movimento. Começam a publicar neste momento Raquel de Queiroz, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, entre outros.
13 Referimo-nos aqui às estratégias do mercado editorial da época de investir mais em livros didáticos do que em livros de literatura, porque o retorno era praticamente garantido (Roballo, 2012). Além disso, os livros de Afrânio Peixoto, tanto os manuais didáticos quanto os de literatura, tiverem inúmeras edições (Silva et al., 2014, p. 9-10).


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