Dossiê: Passado, presente e futuro das tecnologias na Educação
Amanualidade em Álvaro Viera Pinto: desenvolvimento situado de técnicas, conhecimentos e pessoas
Handiness in Álvaro Vieira Pinto: Situated development of techniques, knowledge and people
Amanualidade em Álvaro Viera Pinto: desenvolvimento situado de técnicas, conhecimentos e pessoas
Educação Unisinos, vol. 20, núm. 3, pp. 289-298, 2016
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Recepção: 10 Maio 2016
Aprovação: 18 Julho 2016
Resumo: Neste artigo, discutimos o desenvolvimento de pessoas, conhecimentos e técnicas pela noção de amanualidade, de Álvaro Vieira Pinto. Amanualidade é um conceito da relação entre consciência e realidade, que entende o existente humano como ser que se constitui ontologicamente com os objetos que possui "à mão". As pessoas produzem a si mesmas pelo trabalho e, ao produzir para si a materialidade de seus mundos, gradualmente desenvolvem relações mais elaboradas. O amanual é construção sócio-histórica, situada, sempre, em processo dialético de (re)elaboração, a partir dos quereres de cada sociedade, perante suas realidades. O grau zero enfatiza esse ponto, não definindo indivíduos pela ausência, mas pela diversidade de saberes e fazeres que possuem. Indicamos tal conceito para a problematização de fundamentos em Tecnologia e Educação, para uma compreensão horizontal das técnicas, que contemple a não contemporaneidade de conhecimentos e habilidades entre diferentes grupos sociais.
Palavras-chave: amanualidade, tecnologia, educação.
Abstract: This paper discusses the development of people, knowledge and techniques by the notion of handiness of Álvaro Vieira Pinto. Handiness is a concept of relationship between consciousness and reality, which understands the existing human being as a being that produces himself ontologically with objects that are "ready-to-hand." People produce themselves by work and by producing for themselves the materiality of their worlds, they gradually develop more sophisticated relationships. Handiness is a socio-historical framing, always situated in dialectical process of (re)elaboration from the desires of each society, towards their realities. The zero degree emphasizes this point, not defining individuals by the absence, but by the diversity of knowledge and practices that they have. We indicate this concept to the problematization of fundamentals in Technology and Education, to a horizontal understanding of the techniques, which includes the non-contemporaneity of knowledge and skills among different social groups.
Keywords: handiness, technology, education.
Introdução
Em um processo dialético, indivíduos em sociedade produzem e constroem suas existências por meio do manuseio e elaboração de suas realidades. Em processos contínuos e históricos de codeterminação, a existência, que sociedades projetam para si, de manda a elaboração e o desenvolvimento de novos artefatos. Nesse sentido, considerando que os conhecimentos e as habilidades entre diferentes grupos sociais se desenvolvem de modo não coetâneo, a pergunta que baliza este artigo questiona: qual é a função do desenvolvimento de artefatos, na constituição dos seres humanos, e como eles se entrecruzam? Em particular, como a criação e uso de artefatos, conhecimentos e técnicas podem se entrelaçar ao próprio desenvolvimento de potencialidades humanas, de diferentes grupos, considerando seus diversos contextos sócio-históricos?
O conceito de amanualidade, conforme elaborado por Álvaro Vieira Pinto, e a noção de 'grau' correlata a esse conceito, permite problematizar as relações entre uso e produção de artefatos, já que esses não nos aparecem 'dados', mas 'feitos', pois foram desenvolvidos e continuam em construção. A filosofia de Vieira Pinto indica caminhos para outra compreensão das técnicas, mais horizontal, situando conhecimentos e práticas, sem hierarquizar abstratamente os saberes e os fazeres, mas, também, sem perder como horizonte o desenvolvimento das capacidades humanas em relação ao mundo ao redor.
Álvaro Borges Vieira Pinto (1909-1987) foi professor, médico, pesquisador, filósofo e tradutor. Atuava como diretor do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), quando teve que sair do Brasil em exílio, em virtude da perseguição do regime civil militar, iniciado com o golpe de 1964. No exílio, aceitou o convite de Paulo Freire para morar no Chile, onde trabalhou no Centro Latino-Americano de Demografia (CELADE), realizando pesquisas, traduções e ministrando cursos sobre educação para adultos. Apesar de ter retornado para o Brasil em 1968, antes do AI-5, o filósofo não pode atuar publicamente, ficando afastado dos meios acadêmicos brasileiros. Isolado em seu apartamento com a esposa Maria Aparecida Fernandes, Vieira Pinto viveu de traduções até seu falecimento, em 1987, deixando diversos manuscritos inéditos, alguns já publicados, outros de paradeiro desconhecido. O interesse por sua produção intelectual vem sendo renovado com o lançamento póstumo do seu livro 'O Conceito de Tecnologia' (escrito em 1973, mas editado e publicado somente em 2005), que versa sobre diversos temas em tecnologia, como automação, cibernética e as relações entre ideologia, técnica, ciência e sociedade.
O estudo do pensamento de Álvaro Vieira Pinto tem sido um de nossos focos de trabalho no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE), em Curitiba, pois entendemos haver um profícuo potencial de contribuição à compreensão das tecnologias. As questões que apresentamos neste artigo têm origem nas reflexões iniciadas em pesquisa de mestrado, nas áreas de Design de Interação e Interação Humano-Computador (Gonzatto, 2014). Entretanto, o conceito permite o inter-relacionamento com outras áreas, visto que o próprio filósofo utilizou essa categoria como base para a compreensão de uma variedade de áreas e temáticas, a saber, a Educação, a Filosofia, a Demografia, a Ciência e a Tecnologia. A amanualidade e outros conceitos do pensamento de Vieira Pinto têm nos auxiliado a visualizar um escopo ampliado das interações mediadas por artefatos, apontando para suas dimensões sociais, culturais, técnicas, existenciais, políticas e históricas.
Amanualidade: à mão e ao alcance da mão
O conceito de amanualidade trata da relação entre consciência e realidade, ou seja, do ser humano em situação e os objetos disponíveis 'à mão', em seu entorno. A referência ao 'manual', no termo 'amanualidade', não se refere apenas à própria mão, mas ao ato de 'manusear' o mundo pela percepção sensível, com o corpo e com o pensamento. Está relacionada com a ideia de 'agarrar', de 'preensão', já que compreende que o ser humano é ativo perante sua realidade.
Álvaro Vieira Pinto explica que o ser humano conhece o mundo mediante "a amanualidade com que se apresentam a nós os entes circunstantes preexistentes à ação" (Vieira Pinto, 1960 [I], p. 68). 'Entes', como os objetos, dizem respeito àqueles dispostos ao redor, que configuram a realidade envolvente. A noção de circunstância é concebida, aqui, tendo a pessoa e o seu entorno como históricos e inseparáveis. Para entender o ser humano, é preciso também entender o que o envolve, não como um corpo isolado, mas como um ser em situação. Desse modo, o manuseio é uma questão ontológica e, por isso, está ligado às questões existenciais do ser: o que são as coisas e quem sou está diretamente ligado a onde estou, a qual realidade me identifico e ao trabalho realizado e que se realiza. Cada uma dessas trata de uma configuração única do mundo, que é compartilhada socialmente e que muda historicamente. As pessoas são inseparáveis de suas circunstâncias: o modo de ser do existente humano se define pelas suas ações com os artefatos ao seu redor, que conformam sua realidade envolvente.
A ideia de que o ser humano existe em transformação (e não como uma essência fixa, a-histórica e imutável) é também fundamento existencial do pensamento de Vieira Pinto, pois enfatiza que tanto o indivíduo quanto os coletivos encontram-se sempre em construção de si mesmos, elaborando sua existência por meio do trabalho, que transforma a realidade existente em seu entorno (o que, em Vieira Pinto, vai do local ao nacional), ou seja, a sua amanualidade.
Proveniente das filosofias fenomenológico-existenciais3, o termo amanualidade4(handiness ou ready-to-hand em inglês; Zuhandenheit em alemão) aparece na obra de Martín Heidegger (2012), para quem o mundo da pessoa é o mundo das coisas enquanto utensílios. Um martelo é, antes de mais nada, a ação de "martelar", e não apenas um objeto com um cabo ou de determinado tamanho e peso: "Mas o que é característico do utensílio? A "amanualidade' que significa 'estar à mão' [...] Se algo é algo que pode me servir, se converte em utensílio" (Vieira Pinto, 1957, p. 48, tradução nossa). Quando utilizamos um artefato 'à mão', em nosso cotidiano, não distinguimos sujeito e objeto, visto que pessoa e artefato configuram um único ser. Isso significa que a percepção do mundo é, antes, a utilitária (de uso, em ação), e não a teórica.
As coisas que não são utensílios seguem meramente estando aí, chama isto de "estar à mão" (Alguns traduzem como "estar frente aos olhos".). Heidegger não admite que um utensílio tenha saído de um estado vago prévio, que tenha sido concebido previamente, não, a primeira relação com o mundo é diretamente com o utensílio. O que vem depois é o que "está à mão" (Vieira Pinto, 1957, p. 48, tradução nossa).
Quando em uso, a amanualidade diz respeito à pessoa e ao artefato em ação. A aparição dos artefatos como 'objetos' externos ocorre apenas em outra atitude da consciência, frente à realidade (relação denominada como 'quebra', em português; ou breakdown, em inglês), como em situações e operações que exijam seu reparo, sua análise teórica ou científica. Quando a atitude frente ao objeto requisita a reflexão sobre as características e substâncias dos objetos, e o sujeito se vê como distinto do objeto, temos outra relação, denominada 'ao alcance da mão'5 (present-at-hand em inglês; Vorhandenheit em alemão).
Amanualidade: trabalho
Álvaro Vieira Pinto busca na reflexão de Heidegger a consideração da existência humana em situações concretas de vivências. Em ambos os filósofos, o existente humano é compreendido como ser que manifesta sua existência por meio da ação de manuseio do mundo. Por isso, a atitude prática de uso ('à mão') é considerada sempre anterior à atitude teórica ('ao alcance da mão'). Entretanto, a concepção de amanualidade em Vieira Pinto possui divergências com o conceito do pensador alemão: uma das principais é que o filósofo brasileiro parte de uma noção dialética de trabalho, em um viés histórico. É a partir da categoria marxista de 'trabalho'6 que Vieira Pinto irá elaborar suas ideias de mediação, de desenvolvimento e de técnica no conceito de amanualidade. A noção de trabalho é utilizada para apontar que a existência se transforma, também, pela produção que faz de si mesma. Aliando sua remodelação de conceitos de Heidegger e sua interpretação do pensamento de Marx7, Vieira Pinto irá conceber o amanual em uma abordagem dialética da existência.
Dessa maneira, a amanualidade é caracterizada por Vieira Pinto não só pelas duas formas de relação com os objetos circundantes, mas inclui também o trabalho - a produção dos artefatos. Sobre essa terceira modalidade de amanualidade, explica:
Cremos ser útil iluminar a noção do trabalho pela noção de amanualidade [...] A associação desses dois conceitos poderá conduzir-nos a perceber o processo de formação da consciência autêntica da realidade (Vieira Pinto, 1960 [I], p. 61).
O trabalho, em Vieira Pinto, não diz respeito apenas às ações realizadas pelas pessoas em seus ofícios ou fora dos momentos de ócio, descanso ou lazer. Por 'trabalho', entende o tipo de ação que modifica e transforma a realidade externa. O trabalho é uma questão social, econômica, epistemológica, moral e, ainda, uma categoria existencial,
[...] já que não se trata de acidente do ser humano, de condição adjetiva, embora permanente, da sua realidade, mas de um modo de ser que, entre outros, revela a essência do ente que o produz (Vieira Pinto, 1960 [I], p. 60).
A relação de fabrico é importante, pois aponta não apenas para o uso das coisas, mas também para sua projetação (design). Assim, o trabalho é o modo de amanualidade pelo qual o ser humano "instrumentaliza os objetos que lhe são amanuais e os transforma em recursos para a ação sobre a natureza" (Vieira Pinto, 1969, p. 341).
Vieira Pinto parte da categoria de 'trabalho' para indicar que a existência humana está sempre em construção, produzida mediante o manuseio feito com os artefatos (seu uso, a mediação pelos artefatos) e nos artefatos (o trabalho, uso de artefatos para transformar outros artefatos).
[...] os objetos que se revelam como coisas [...] São dados à capacidade de manuseio do sujeito, mas para isso tiveram antes de ser produzidos. E só puderam ser produzidos porque a matéria de que são feitos e todos os demais ingredientes se apresentaram à ação do agente criador segundo uma forma de manuseio mais primitiva, a forma das substâncias brutas (Vieira Pinto, 1960 [I], p. 68-69).
O trabalho é "a forma de criação do homem pela natureza e da criação da natureza pelo homem; [...] conversão do meio natural bruto em espaço de convivência humana" (Vieira Pinto, 1969, p. 339). Pelo trabalho, o ser humano se propõe a elaborar novas condições de existência para si. É uma atividade de transformação do mundo e, ao mesmo tempo, um processo de construção do ser humano, já que, ao trabalhar a realidade, transforma-se o próprio mundo que tem disponível 'à mão'. Vieira Pinto cita Engels (1952 inVieira Pinto, 2005 [I], p. 189) para explicar que "a mão não é somente o órgão do trabalho, é também o produto do trabalho". Mão, corpo, ideia e pensamento são produções e mediações socioculturais.
Pelo trabalho se estabelece uma relação dialética de transformação da realidade (enquanto a conhece) e de conhecimento desta (enquanto a transforma). Nesse sentido, trabalhar a realidade também possui uma dimensão epistemológica. Ao transformar o mundo, o ser humano age no ritmo de mudança inerente a toda realidade: a consciência se torna mobilidade para compreender a mobilidade que é o próprio mundo.
[...] o caráter, necessariamente transfigurador, do trabalho é a via de acesso à realidade. [...] De fato, não há outro modo de captar o real senão introduzir-se na sua mobilidade, esposando-lhe a dinâmica: o meio único de realizar a união do homem com o mundo é a ação. Supor que a consciência discerne num átimo a realidade exterior, é fazer dela um aparelho fotográfico, limitado a tomar imagens que, como os instantâneos da arte fotográfica, reproduzem tudo, menos o essencial, o movimento do objeto (Vieira Pinto, 1960 [I], p. 61).
Aproximando ontologias existencialistas e marxistas, Vieira Pinto concebe o trabalho como práxis, uma relação dialética entre a mediação de um objeto 'à mão', que permite conhecer outro, 'ao alcance da mão', enquanto o modifica. Esse é um modo relacional que permite ao ser humano a produção e o conhecimento do mundo, realizado pela transformação desse pelo 'trabalho'. Os fundamentos conceituais em Vieira Pinto, tal como na pedagogia crítica de Paulo Freire, posicionam o conhecer como uma atitude ativa, de ação, e nunca como um ato meramente passivo: "Pensar e agir, só para fins de exposição didática são coisas distintas [...] Pensar é desde logo agir, como a ação é o pensamento que se conclui" (Vieira Pinto, 1960 [II], p. 187).
Questões da técnica
Álvaro Vieira Pinto (2005) critica e se opõe ao entendimento heideggeriano de que a existência é avassalada pela tecnologia moderna e de que o ser humano deveria fugir da técnica para buscar abrigo na "força do simples". Para Vieira Pinto, técnica e amanualidade são conceitos interconectados. A técnica é um existencial do ser humano, uma dimensão humana que existe desde que se humanizaram e se humanizam. Não é possível conceber a ação sem a técnica, nem as descolar do ser humano. É o ser humano que
[...] inventa a técnica, com isso carregando-se da responsabilidade dos atos executados com esse caráter. A técnica ingressa, como fator, na constituição de sua essência, porquanto ao se incorporar à cultura existente no momento torna-se um legado que outras gerações recolherão e irá contribuir para possibilitar diferentes tipos de relações de trabalho entre os homens, na tarefa comum de agir sobre a natureza e de organizar a sociedade (Vieira Pinto, 2005 [I], p. 191).
A técnica é definida como "a mediação na obtenção de uma finalidade humana consciente" (Vieira Pinto, 2005 [I], p. 175), pois é um ato humano, uma ação que se origina e se conserva no pensamento de quem age, mas realizada objetivamente no mundo material. Para Vieira Pinto, a criação técnica trata da realização de algo melhor por um novo modo, para o desenvolvimento de um grupo social em um determinado momento.
Toda ação está obrigada a seguir certos caminhos, reconhecidos úteis no correspondente momento do progresso humano. Tal modo de proceder é o que se chamará técnica. A escolha dos materiais e a forma a eles dada obedece às finalidades a que os objetos se destinam, as quais por isso só podem ser aquelas efetivamente proveitosas, apenas abandonadas quando se descobrem outras de maior proveito (Vieira Pinto, 2005 [I], p. 65).
Entretanto, não existe uma 'melhor técnica' universal, abstrata, já que nenhuma obtém os mesmos resultados em todos os tempos e lugares. É por isso que se desenvolve e, da mesma maneira, deve sempre ser considerada historicamente e em virtude de suas circunstâncias. Em uma concepção dialética, a técnica 'velha' é um modo estabilizado de trabalho, o que, em um determinado momento, uma sociedade conhece como melhor para chegar a um resultado desejado e que configura a amanualidade de um determinado momento. Já a técnica 'nova', produto das técnicas anteriores, exige considerar o novo produzido por ela, pois, ao criar a técnica nova, com ela também emergem novos artefatos e novas possibilidades do ser humano.
Vieira Pinto denuncia os discursos que posicionam uma determinada tecnologia como essencialmente "superior" ou "avançada". Apesar de considerar que toda técnica possui conteúdo ideológico, denomina alguns discursos sobre a tecnologia como uma "ideologia da técnica", buscando evidenciar a operação de posicionamento de um grupo de técnicas de um povo como as únicas que recebem o status de "tecnológicas". O emprego do termo 'tecnologia', apenas como referência a um determinado conjunto de técnicas ou artefatos, é uma estratégia para inferiorizar outras práticas, produções e trabalhos humanos, como "não técnicos". Um exemplo atual é a utilização de 'tecnologia' para fazer referência exclusivamente a equipamentos eletrônicos e digitais, como se só esses fossem tecnológicos, ignorando que outros artefatos, como o caderno, a fala ou o quadro-negro também o são. Os artefatos digitais, tais como os computadores, podem ser úteis em determinadas situações e em certos grupos sociais, mas não são a técnica universalmente mais avançada e nem sempre serão a técnica que um coletivo necessita para seu desenvolvimento em um certo momento histórico. Os computadores que existem hoje representam apenas alguns dos modos como computadores podem ser feitos, e não uma essência "finalizada". Representam o desenvolvimento da técnica em certos contextos, no entanto, nem nessas circunstâncias são objetos acabados ou 'últimos', visto que estão passíveis de outros desenvolvimentos. Vieira Pinto preocupa-se com a constituição ideológica que se utiliza de artifícios discursivos sobre a tecnologia, para dominação e criação de dependência, por meio da desvalorização das demais técnicas e sua utilização para justificar a introdução forçada e colonizadora de certos artefatos, como condição necessária para todos os povos que buscam se desenvolver.
Não é possível posicionar tecnologias como 'superiores', de modo universal e genérico, como se fossem exigências do desenvolvimento. Contrariando a ideia de que certos equipamentos e maquinários são uma necessidade - por se viver, supostamente, uma 'Sociedade da Informação', em uma 'Era da Informática', causada por uma 'Revolução Tecnológica', ou outras caracterizações deterministas da história - a tecnologia não é agente externo do desenvolvimento (Gonzatto e Merkle, 2012). É o ser humano que desenvolve tecnologias para se desenvolver. Todas as eras do ser humano foram informacionais e tecnológicas, mas assumem diferentes formas e relações concretas, ou seja, se desenvolvem a partir da amanualidade de uma sociedade, e não apesar dessa. Para o filósofo, não é possível afirmar que, em alguns lugares, 'exista tecnologia' e, em outros, não, assim como é ingênuo acreditar que apenas algumas nações tenham a capacidade de desenvolvimento tecnológico. O desenvolvimento de uma sociedade (e, no caso, Vieira Pinto se refere especialmente às nações subdesenvolvidas) tem que partir como continuidade de seu próprio processo histórico, e não pela mera sequência do caminho traçado por quem realizou seu desenvolvimento, o qual, na atualidade, se encontra como centro das relações internacionais.
Como exemplo, o desenvolvimento de uma técnica manual artesanal existente pode ser uma produção mais útil para a transformação da realidade e da criação de novas potencialidades humanas, em um coletivo que vive de artesanato, do que a instalação repentina de uma fábrica por uma multinacional, em uma região na qual tal tipo de sistema de produção não represente uma continuidade do desenvolvimento da amanualidade dos sujeitos que ali vivem. O desenvolvimento da técnica como desenvolvimento do ser humano se realiza não apenas pela introdução ou acesso a certos equipamentos, mas pelo relacionamento amanual que as pessoas fazem dos referidos equipamentos, que leva à superação das formas não produtivas de trabalho por aqueles que trabalham e para o desenvolvimento daqueles que trabalham. Transformar a realidade material deve estar ligado à criação de novas condições de vida, úteis e desejadas por aqueles que vivem naquela condição (o que Vieira Pinto chama de "trabalho para si", para as finalidades do grupo social que trabalha; em oposição ao trabalho alienado, "para o outro", do trabalho explorado exclusivamente para finalidades alheias). Essa concepção está atrelada à compreensão da técnica como produção social e coletiva (e, consequentemente, à certa divisão do trabalho):
[...] a técnica não se confunde com a distribuição horizontal de conhecimentos pragmáticos no grupo social. É, antes de tudo, o esforço que a comunidade empreende, a fim de melhorar o modo de fabricação dos bens necessários, mediante a alteração dos procedimentos que tem por hábito empregar. É criação do novo a partir do antigo, é, pois, desenvolvimento (Vieira Pinto, 1960 [I], p. 79).
A noção dialética de ação em Vieira Pinto (2005) aponta sua inerente contradição de ser, ao mesmo tempo, conservadora e revolucionária. A técnica é conservadora quando a repetição dos mesmos atos permite alcançar os mesmos objetivos. Porém, a produção das coisas não se interrompe no estágio em que se encontra em cada momento, visto que não haveria surgimento do novo se os métodos e as máquinas manejadas tivessem sempre resultados abundantes e não houvesse o risco de insucesso. Dessa maneira, é justamente pela prática conservadora que emerge a técnica como prática revolucionária, já que, pelo surgimento de novas contradições, do estabelecimento de novas finalidades e da consequente busca por outros objetivos, são objetivadas formas mais rendosas e eficientes de trabalhar com a realidade. O caráter revolucionário da técnica é um aspecto da ação humana sobre a realidade, que nunca chega a um termo final, por encontrar no próprio sucesso o estímulo para a sua negação. Essa dialética ocorre sempre situada em cada momento histórico e com a realidade concreta em que as pessoas vivem:
O homem primitivo, depois de haver inventado o arco e a flecha não consegue, é claro, enviar nenhum satélite artificial ao espaço, mas consegue caçar animais que até então estavam fora de seu alcance; o homem neolítico, que descobriu a roda do oleiro, não era capaz de fabricar substâncias sintéticas, mas fabricava vasos e artefatos de cerâmica, antes inexistentes. Em todos estes exemplos, vemos o implemento natural, que nada mais é do que uma ideia cultural convertida em instrumento, retornando à natureza, em forma de força relativamente original, autônoma e distinta das demais, para atuar no mundo inanimado, modificá-lo e criar objetos ou resultados inéditos (Vieira Pinto, 1969, p. 532).
Nesses exemplos, Vieira Pinto torna explícita a relação entre a amanualidade, realidade circundante, e a criação do novo, que são os objetos e, consequentemente, a própria cultura e existência humana. É a partir do manuseio da realidade, da utilização, tanto do mundo em que está situado quanto da experiência acumulada, da cultura produzida e das suas finalidades desejadas, que o ser humano produz sua realidade. É essa mediação social, intencional, que Vieira Pinto denomina como 'técnica'. Uma concepção que recupera, do marxismo e do existencialismo, noções para conceber o humano como ser ativo, perante sua realidade, e histórico, por transformá-la pela técnica.
Desenvolvimento: grau de amanualidade e grau zero
O desenvolvimento de técnicas entre coletivos diferentes é questão que pode ser analisada a partir das noções de 'grau de amanualidade' e 'grau zero'. Para Vieira Pinto, a relação entre pessoa e realidade se dá a partir de um grau de amanualidade, ou, em outras palavras, significa considerar que a amanualidade se desenvolve. O que distingue as diferentes gradações de manuseio dos objetos é o trabalho que já foi e que está sendo feito. Essa questão é exemplificada no seguinte trecho:
O caráter de amanualidade implica a gradação nos tipos de manuseio e não se mostra, conforme deixa crer a teoria, como propriedade unívoca. Mas, que se esconde por trás desta gradação do "amanual"? O trabalho. Uma coisa é mexer-se em um pouco de barro, outra é segurar uma vasilha para beber, e outra ainda é tomá-la nas mãos para apreciar a beleza dos desenhos e do colorido que lhe foi dado pela arte cerâmica. Nos três casos, [...] temos a mesma matéria, mas três graus distintos de manuseio, representando três modalidades de ser, com tudo quanto de significado particular há para cada um; e o que determina a diferenciação entre esses três modos é a operação do trabalhador, que imprime em cada caso à substância bruta original propriedades que condicionam as diferentes possibilidades de manuseio. Com efeito, é o trabalho que eleva a realidade a um outro grau de amanualidade. E com essa elevação surgem concomitantemente novas características do objeto (Vieira Pinto, 1960 [I], p. 69).
Para Vieira Pinto, em cada situação, se estabelece um grau de amanualidade, que se trata de uma construção histórica e social realizada por meio do trabalho. O trabalho, acumulado no processo histórico e social de transformação dos artefatos, leva a relação entre pessoa e realidade a outro grau de amanualidade, novas formas de compreensão da realidade e novas características do artefato, assim, novas formas de manuseio e de modalidades de ser. No exemplo de Vieira Pinto, podemos identificar algumas dessas relações de manuseio (modos de amanualidade): transformar o barro (produção, trabalho), utilizar a vasilha produzida para agir (mediação entre sujeito e objeto 'à mão') e a sua apreciação (sujeito analisando o objeto 'ao alcance da mão').
A acumulação do trabalho ('trabalho morto', na terminologia marxista) é fundamental ao desenvolvimento da amanualidade. Considerar que os objetos acumulam trabalho quantitativamente e se transformam qualitativamente em novos objetos é base da noção de que novas formas de manuseio são um fenômeno cultural, social, existencial e histórico, um desenvolvimento das percepções (e da materialidade) e do próprio ser do existente humano.
A relação de amanualidade entre pessoas e os objetos disponíveis 'a mão' se dá de muitos modos. Um mesmo objeto é manuseado de formas diversas, na interação com diferentes pessoas, pois se inclui na amanualidade a historicidade dos sujeitos e das construções da realidade. As mediações emergem da codeterminação entre materialidade do trabalho acumulado e intencionalidade de quem o usa, e que aprende sócio-historicamente.
Cada grande façanha técnica realizada pela humanidade engendra outras condições de vida e portanto estabelece o fundamento para a instituição de uma nova essência para os seres humanos que vierem a existir em tempos posteriores (Vieira Pinto, 2005 [I], p. 191).
Uma das concepções fundamentais das filosofias da existência, importante para a compreensão da amanualidade, é a de que "a existência precede a essência" (Sartre, 2010, p. 23), ou seja, estamos em um mundo que nos é anterior e existimos nesse mundo antes de compreendê-lo. Enquanto existentes, as essências são produzidas por nós. No contexto da alfabetização, Paulo Freire (2011, p. 19) reformula essa expressão, indicando que: "a leitura do mundo precede a leitura da palavra"8. A pessoa que não lê palavras possui uma leitura do mundo em que essas palavras estão. Desse apontamento desdobram implicações na maneira como entendemos as questões da educação e da técnica e encontramos um aprofundamento nas passagens em que Vieira Pinto afirma que analfabetismo é um grau da alfabetização:
O analfabetismo não é o estado inicial, natural do ser humano, pois não tem sentido dizer-se que uma criança em idade pré-escolar é analfabeta. A criança torna-se analfabeta, em virtude do particular processo de educação que a sociedade pobre lhe destina. O analfabeto não possui como essência ser analfabeto, mas é o resultado, o termo de um processo educacional, tal como o letrado. O analfabeto é educado pelas condições da sociedade para se tornar analfabeto, não nasce tal. Alfabetizar e analfabetizar são duas formas de educação que a sociedade está constantemente destinando a duas classes de seus infantes, de acordo com a situação de trabalho e de nível econômico que lhes oferece (Vieira Pinto, 1960 [II], p. 383).
O analfabetismo não possui uma essência diferente da alfabetização, pois é um grau desta. Assim, Vieira Pinto mostra que esta não é uma questão binária ou de oposição, mas de desenvolvimento. A alfabetização está sempre situada em um processo sócio-histórico:
A etapa histórica vivida pela sociedade determina: (1) a formação do educador; (2) as possibilidades quantitativas da educação, ou seja, o número de membros da sociedade aos quais pode ser distribuída, em seus diversos graus; (3) as possibilidades qualitativas da educação, ou seja, o conteúdo e a forma do saber que é dado aos alunos em todos os graus do ensino; (4) a distribuição do ensino escolarizado entre os membros da comunidade, desde o grau zero (o analfabetismo) até as modalidades avançadas de investigação científica, de especialização técnica, de instrução universitária. (Vieira Pinto, 2010, p. 113-114).
Vieira Pinto questiona a ideia de 'analfabetismo' ao propor a compreensão da alfabetização 'em grau zero'9. O autor não ignora as pessoas que não conseguem ler e escrever palavras. No entanto, evidencia que existem pessoas que não agem no mundo por essa leitura e escrita.
[...] o analfabetismo é um grau do processo de educação, e não ausência de educação, grau que é preciso evidentemente superar, sendo para isso o primeiro requisito entendê-lo na sua verdade. O analfabeto é um indivíduo educado nas condições que a realidade nacional lhe oferece. Sabe numerosas coisas de que necessita para subsistir, e só não sabe ler e escrever porque nas condições de trabalho estas não são exigências de subsistência. O erro fundamental da pedagogia erudita e simplista [...] está em supor que tem por objeto indivíduos não educados, num grau nulo de conhecimento (Vieira Pinto, 1960 [II], p. 383).
Considerar o 'grau zero' também implica o entender que ser alfabetizado vai além da habilidade específica de ler e escrever. Sobre o aspecto político dessa compreensão, Alexandre Bandeira (2011, p. 112) explica que noção de grau zero torna explícito que "não basta o país alcançar o grau de uma nação totalmente alfabetizada no papel, mas na realidade ser 'alfabetizada em escala zero'".
Colocando dessa maneira, Vieira Pinto aponta que toda pessoa está em uma relação amanual, pois sempre há um manuseio do mundo que é estabelecido. Analisando qualitativamente, diferenciar uma pessoa de outra, ou uma geração de outra, como letrada ou iletrada, implicaria em uma naturalização de sua condição e uma consequente hierarquização, o que, axiologicamente, é questionável. Uma pessoa que não saiba partir do alfabeto para compreender as palavras de um texto escrito, ainda assim, lê a realidade que lhe circunda. Se palavras escritas fazem parte de seu entorno e essa pessoa precisa se relacionar com as palavras para sobreviver, mesmo sem acesso ao alfabeto para mediar sua leitura, as manipula de algum modo, a partir de outras mediações. Todo sujeito está no mundo e tem uma leitura desse mundo. Freire nos oferece um exemplo:
Daí que também não pudesse reduzir a alfabetização ao ensino puro da palavra, das sílabas ou das letras. Ensino em cujo processo o alfabetizador fosse "enchendo" com suas palavras as cabeças supostamente "vazias" dos alfabetizandos. Pelo contrário, enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo da alfabetização tem, no alfabetizando, o seu sujeito. O fato de ele necessitar da ajuda do educador, como ocorre em qualquer relação pedagógica, não significa dever a ajuda do educador anular a sua criatividade e a sua responsabilidade na construção de sua linguagem escrita e na leitura desta linguagem. Na verdade, tanto o alfabetizador quanto o alfabetizando, ao pegarem, por exemplo, um objeto, como laço agora com o que tenho entre os dedos, sentem o objeto, percebem o objeto sentido e são capazes de expressar verbalmente o objeto sentido e percebido. Como eu, o analfabeto é capaz de sentir a caneta, de perceber a caneta e de dizer caneta. Eu, porém, sou capaz de não apenas sentir a caneta, de perceber a caneta, de dizer caneta, mas também de escrever caneta e, consequentemente, de ler caneta. A alfabetização é a criação ou a montagem da expressão escrita da expressão oral. Esta montagem não pode ser feita pelo educador para ou sobre o alfabetizando. Aí tem ele um momento de sua tarefa criadora (Freire, 2011, p. 29).
Nesse exemplo, além de mostrar diferentes relações amanuais com o mundo, tanto em relação ao objeto "caneta" como pelo ler e escrever, percebe-se que as relações sociais - como a que existe entre alfabetizador(a) e alfabetizando(a) - são a base do desenvolvimento, da escrita, e, portanto, de técnicas (e, consequentemente, da amanualidade).
Assim, fica evidente que a alfabetização em Vieira Pinto e Paulo Freire estabelece um diálogo. Considerar o grau zero indica o que Freire (1987) denunciou com a sua crítica à educação bancária: educandos não são um vazio, não estão esperando passivamente que sejam depositados os conhecimentos, pois possuem uma relação anterior com o mundo em que se encontram e com o qual se defrontam. No contexto de produção dos objetos, considera que as pessoas não são apenas receptoras passivas da tecnologia. Entretanto, perceber o grau zero não significa que não há com o que se preocupar, como se fosse indiferente se uma pessoa realiza seu manuseio em graus elaborados ou em grau zero, ou que a resposta seja manter um imobilismo, já que 'as pessoas resolvem seus problemas por si mesmas'. Ninguém está 'prisioneiro' de sua relação amanual com os objetos. É nesse ponto que a categoria trabalho assume uma importante perspectiva no conceito de amanualidade em Álvaro Vieira Pinto, postulando que a realidade pode ser transformada. Reconhecer a existência de um grau zero é reconhecer que a amanualidade pode se desenvolver, mas sem ignorar os saberes e fazeres já existentes, assim como os quereres (finalidades) daqueles a quem interessa seu próprio desenvolvimento.
O termo 'grau zero' é uma expressão utilizada por outros autores. Em Barthes, o "grau zero da escritura" indica que:
[...] o grau zero não é, pois, a bem dizer, um nada (contrassenso corrente, no entanto), é uma ausência que significa; atingimos aqui um estado diferencial puro; o grau zero demonstra o poder de qualquer sistema de signos que, destarte, fabrica sentido "com nada": "a língua pode contentar-se com a oposição de alguma coisa com nada". O conceito de grau zero, oriundo da Fonologia, é de uma grande riqueza de aplicação; em Semântica, em que se conhecem signos-zero ("fala-se de "signo-zero" no caso em que a ausência um significante explícito funciona, ela própria, como um significante") (Barthes, 2006, p. 81).
Apesar disso, não temos referências de pesquisa que apontem exatamente o sentido de 'zero', do qual parte Vieira Pinto, tendo em vista que utiliza principalmente tal termo em seu livro sobre alfabetização (Vieira Pinto, 2010); assim, é possível que a ideia de "zero" tenha surgido a partir de referências da Linguística. No verbete do 'Pequeno vocabulário de linguística moderna' (Borba, 1976), temos:
Zero - Ausência de um elemento formal que, entretanto, caracteriza a presença de outro. Uma unidade pode ter função linguística porque se opõe à sua ausência. O grau zero [Ø] pode aparecer em todos os níveis da língua. Ex.: port. [...] Sintaxe - na frase - em cada coração, uma saudade - que é verbal, o verbo está em grau zero (haver, existir) (Borba, 1976, p. 125).
Quanto à ideia de 'grau', entendemos que Álvaro Vieira Pinto não deseja indicar uma sequência linear de desenvolvimento (como, por exemplo, grau um, dois, etc.), mas contestar a noção ingênua de ausência de relação entre o ser humano e o mundo. Nesse horizonte, também não é possível dizer que exista um grau 'final' ou 'último' de amanualidade, como um imaginário grau 10/10 ou 100%. A noção de grau não visa mera contagem em escala, tampouco institui uma métrica comparativa. Não existe algo como o "maior grau na escala". Não há quem tenha se desenvolvido por completo ou algo que esteja em um "estágio final", já que a amanualidade, a técnica e o ser humano estão sempre em construção contínua. Por 'grau' entendemos que a amanualidade se transforma (se desenvolve) de modo relacional, variando historicamente, não sendo propriedade estática ou fixa dos objetos ou das pessoas.
A noção de grau zero aponta e abre a perspectiva de que sempre há possibilidade de desenvolvimento e de transformação, mas não a determina, visto que nem sempre se têm as condições para tal. Passar de um modo de amanualidade para outro (modificar a relação amanual entre ser humano e mundo), de forma com que se possa manusear a realidade com recursos mais elaborados, significa se desenvolver pela transformação do modo de ser. A passagem de um modo de amanualidade para o outro se efetiva a partir do amanual preexistente, que se direciona para um novo modo.
A reflexão sobre a questão do desenvolvimento é recorrente no pensamento de Álvaro Vieira Pinto. O próprio pensador se propôs a elaborar uma filosofia do subdesenvolvimento10. Para Vieira Pinto, pensar e realizar o desenvolvimento da nação subdesenvolvida exige categorias diferentes daquelas que a realidade desenvolvida dispõe. Ao contrário, no subdesenvolvimento há a urgência de transformação de sua condição e o potencial para tal. A realidade subdesenvolvida não se encontra nessa situação por acaso, infortúnio, nem por uma suposta determinação geográfica, biológica ou tecnológica. O subdesenvolvimento está relacionado à divisão internacional do trabalho, na qual a periferia subdesenvolvida é mantida em uma relação de dependência dos centros desenvolvidos. Seguindo a compreensão de desenvolvimento cepalina11, Vieira Pinto postula que, para se desenvolver, não basta apenas seguir os caminhos percorridos por aqueles que já se encontram desenvolvidos, nem por modelos prontos, advindos das nações que, no momento, centralizam as relações internacionais. O desenvolvimento acontece pelo trabalho desalienado daqueles que trabalham em suas próprias realidades, mediante o desenvolvimento técnico (e apropriação das técnicas mais elaboradas) posto a serviço de suas próprias finalidades. O desenvolvimento tecnológico é o que objetiva as possibilidades de ação (elaboração do amanual), a partir da amanualidade, com a qual as pessoas se encontram. A amanualidade de Vieira Pinto, neste sentido, é um conceito que, modelado desde a realidade subdesenvolvida, se propõe útil para a conscientização das possibilidades de desenvolvimento.
Considerações finais
A compreensão de técnica de Vieira Pinto considera a não contemporaneidade dos conhecimentos e saberes. Posiciona que cada momento histórico possui técnicas mais elaboradas para determinados fins, não sendo possível comprimir toda a historicidade em uma perspectiva linear, tampouco considerar um grupo restrito de artefatos como técnica 'universal' ou 'mais eficiente'. A horizontalidade na análise da técnica concebe que as técnicas e artefatos não podem ser caracterizados como essencialmente 'avançados' ou 'atrasados'. Nesse sentido, em tempos passados, reconhece-se que a magia foi "a única técnica possível nas condições em que floresceu" (Vieira Pinto, 2005 [I], p. 194), ao mesmo passo que "a técnica sempre foi científica, no estado em que era possível a ciência em cada época" (Vieira Pinto, 2005 [I], p. 290).
A técnica é um existencial do ser humano, que existe desde que o ser humano se faz humano. Cada sociedade desenvolve-se em um processo histórico de transformações, no qual, simultaneamente, coletivos moldam a tecnologia que necessitam e as técnicas de cada momento moldam as relações sociais. O manual do mundo é social; é o manual do conjunto de utensílios que determinado grau do processo cultural chegou a produzir:
Qualquer que seja o grau de seu desenvolvimento, todo grupo social tem uma tecnologia suficiente para enfrentar a natureza e dela obter a produção necessária para viver. A função social da tecnologia pobre não se distingue em essência da possuída pela tecnologia rica. Ambas são formas em que assenta a existência de populações humanas desiguais. A técnica avançada, mesmo assim sempre imperfeita e transitória, constitui também a modalidade pela qual a sociedade altamente desenvolvida trava, a seu modo, a batalha pela sobrevivência, tornada em termos relativos menos dura graças ao aperfeiçoamento das armas de que dispõe. Consequentemente, por este ângulo de apreciação ambas desempenham o mesmo papel, o que não significa serem equivalentes na produtividade e na capacidade de domínio da natureza, que outorgam ao homem (Vieira Pinto, 2005 [I], p. 297).
Kleba (2006) entende que Vieira Pinto combina relativização e hierarquia, quando posiciona, por meio de exemplos, que
[...] a forma de conservar a carne através da secagem sob a sela do cavalo, a produção de carne seca, como em geral populações desprovidas no Brasil o fazem, equivaleria, em sua finalidade e função, ao frigorífico [pois] [...] Ambas as técnicas aplicam os conhecimentos disponíveis, naquele momento, perseguindo a mesma finalidade (Kleba, 2006, p. 81).
Entretanto, a comparação de técnicas visa assumir uma perspectiva crítica, e não apenas considerá-las idênticas. É ingênua a interpretação de que a técnica mais elaborada de uma sociedade possa ser simplesmente substituída por outra qualquer ou vice-versa. Como o próprio autor afirma, quanto ao exemplo anterior:
Não havendo ninguém que defenda a conservação da técnica primária, evidentemente terá de ser substituída. Mas isso não seria feito pela simples instalação de alguns modernos e grandes frigoríficos [...] enquanto prevalecer a ausência de compreensão crítica e global do problema da alimentação popular, motivada pela predominância de outros tipos de interesses na produção, como por exemplo a prioridade dada à exportação do produto [...] o que terão de fazer as forças desejosas de substituir a técnica do jabá pela frigorificação será [...] tirar, em totalidade, o contexto atrasado da situação de pobreza em que vegeta (Vieira Pinto, 2005 [I], p. 304).
Vieira Pinto deseja manter como horizonte o questionamento sobre o desenvolvimento técnico e a quem isso beneficia. Longe de um ingênuo 'relativismo' das técnicas, o conceito de amanualidade evidencia suas diferenças e posiciona tensões entre diferentes modos de interagir com os artefatos. Não há técnica ou artefato que, por si só, seja de melhor ou maior qualidade que outro, pois não se podem descolar os artefatos daqueles que os manuseiam e do manuseio que é realizado. A análise deve ser sempre entendida como situada sócio-historicamente, e não como uma generalização abstrata, a exemplo do que é comum em algumas das compreensões sobre artefatos interativos ou educacionais. Nesse sentido, diferentes disciplinas e áreas do conhecimento fazem usos diferenciados do digital, do computar, conforme necessitam para se constituírem enquanto áreas. Não se trata de terem maestria ou não do digital em sua transformação, mas, sim, de manusearem o computacional em diferentes graus, conforme suas necessidades e projetos.
Por fim, acreditamos que os conceitos discutidos ao longo deste artigo têm potencial para o debate, seja em tecnologias analógicas ou digitais, seja em manuais ou mecânicas, embora ainda precisem ser articulados outros aspectos. Diversas questões do pensamento de Álvaro Vieira Pinto sobre a amanualidade ainda carecem de investigações, como do "para si" e "para o outro", sua compreensão histórica, a questão das máquinas e da cibernética, as noções de projeto, mediação e atividade, assim como, também, da identificação das relações entre os conceitos de Vieira Pinto e Paulo Freire.
Referências
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Notas