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Trajetórias de professoras assistentes do Instituto de Educação do Rio de Janeiro nos anos 1960

Assistant teachers' professional careers at Instituto de Educação do Rio de Janeiro in the 1960s

Sonia Castro Lopes 1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brazil

Trajetórias de professoras assistentes do Instituto de Educação do Rio de Janeiro nos anos 1960

Educação Unisinos, vol. 20, núm. 3, pp. 359-366, 2016

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Recepção: 06 Julho 2015

Aprovação: 07 Janeiro 2016

Resumo: Este artigo analisa a trajetória de professoras assistentes do Instituto de Educação do Rio de Janeiro na década de 1960, cuja única formação, geralmente, ocorria em escolas normais, de nível médio. O ingresso dessas docentes justificava-se pela carência de profissionais mais qualificados e pelo aumento do fluxo de normalistas em razão da expansão da rede pública escolar. A abordagem teórica incorpora estudos sobre trajetórias de acordo com Giovani Levi e Claude Dubar, considerações a respeito da socialização realizada pelo programa institucional segundo a visão de François Dubet, além do conceito de experiência, na acepção de Edward P. Thompson, enquanto a metodologia baseia-se na análise documental e produção de entrevistas à luz da história oral. Conclui-se que o trabalho docente, apesar de possuir forte carga de subjetividade, pressupõe uma ação que depende da adesão dos sujeitos ao projeto escolar.

Palavras-chave: História da Educação, Instituto de Educação, professoras assistentes.

Abstract: This article aims to assess the professional career developed by assistant teachers at Instituto de Educação do Rio de Janeiro in the 1960s, a teacher qualification middle school. This type of program was the only type of qualification available then. These assistant teachers were hired due to the lack of more qualified teaching staff to cater for the increasing numbers of student teachers enrolment as a consequence of state school expansion. Theoretical approaches comprise career studies according to Giovani Levi and Claude Dubar, considerations about socialization promoted by the institutional program in the view of François Dubet, in addition to the concept of experience as conceived by Edward P. Thompson. The study methodology used document analysis and interviews in the light of oral history. It may be concluded that despite the typical subjectivity that features the teaching profession, every teaching action is directly dependent on the teaching staff's adhesion to the school curriculum and syllabus.

Keywords: History of Education, Instituto de Educação, assistant teachers.

Apresentação

A profissão docente constitui hoje um dos principais eixos temáticos dos estudos sobre História da Educação, tanto no que se refere ao conhecimento sobre modelos e práticas formadoras quanto em relação às dimensões práticas do trabalho e condições sociais do ofício do professor. A pesquisa histórica vem sendo cada vez mais solicitada, não apenas para explicar como se configurou o papel dos docentes no passado, mas também para ajudar a entender as inúmeras situações que hoje condicionam a formação desses profissionais, bem como o exercício de sua atividade.

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa que propõe investigar a estrutura e o perfil identitário do corpo docente do curso normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro entre as décadas de 1950-1960, seus percursos de formação e trajetórias profissionais. Ao longo da investigação, foi possível mapear três categorias distintas de professores, por nós denominados:

Este artigo discute, particularmente, a trajetória dessa última categoria,constituída exclusivamente por mulheres, quase sempre convidadas pelos professores catedráticos para lecionar disciplinas pedagógicas, face ao grande aumento do contingente de normalistas a partir dos anos de 1950-60. Serão destacados, nos limites deste artigo, aspectos identitários da categoria por meio do estudo da trajetória de duas professoras assistentes.

O recurso à abordagem biográfica tornou-se ferramenta útil, na medida em que tentamos reconstituir percursos de formação e trajetórias acadêmicas e profissionais das docentes retratadas. O gênero biográfico, frequentemente criticado por pretender dotar a história de vida de uma racionalidade que ela, efetivamente, não possui (Bourdieu,1996), vem sendo revigorado desde o final da década de 1970, em razão do advento das experiências no campo da história do cotidiano, das minorias, da cultura popular (Loriga, 1998). Ao pesquisar as trajetórias das duas professoras, pretende-se recolocar essas personagens no coração dos processos sociais para tentar compreender a maneira pela qual elas interferiram na produção desses processos (Revel, 1998).

O reconhecimento das fontes orais como documentos históricos, por sua vez, veio auxiliar os historiadores na composição de eventos em que a documentação é escassa. Entende-se, portanto, que as fontes escritas e orais não são mutuamente excludentes; elas possuem características autônomas e funções específicas que somente uma ou outra pode preencher. Em texto clássico, Portelli (1997) detalha as especificidades da história oral e acentua que a importância desses testemunhos não se situa em sua aderência ao fato, mas justamente em seu afastamento dele, como imaginação, simbolismo e desejo de emergir. Nesse sentido, é possível inferir que a memória não se reduz a um depositário passivo de fatos, mas constitui-se como um processo ativo de criação de significados.

A base conceitual

Entende-se, nesta pesquisa, que, muitas vezes, por meio do estudo da trajetória de um personagem, é possível interpretar a rede de relações na qual ele se insere, o que pode contribuir para a percepção do funcionamento efetivo das regras e normas em determinado contexto social. Nessa perspectiva, Giovani Levi (1996) refere-se a uma modalidade narrativa por ele denominada "biografia de contexto". Nesse caso, a biografia conserva sua especificidade, "todavia a época, o meio e a ambiência também são muito valorizados como fatores capazes de caracterizar uma atmosfera que explicaria a singularidade das trajetórias" (Levi, 1996, p. 175). O que o autor quer dizer é que a reconstituição do contexto histórico e social pode facilitar a compreensão de acontecimentos que inicialmente podem parecer inexplicáveis ou incoerentes. E ainda: o contexto pode preencher lacunas documentais quando se compara a trajetória de determinado personagem a outros cujas vidas apresentem alguma semelhança, daí a importância de se ampliar a rede de sociabilidade nas quais o personagem se insere.

Uma das principais referências teóricas do trabalho ampara-se nas reflexões do sociólogo François Dubet a respeito das profissões que se dedicam ao trabalho sobre o outro, nas quais se percebe uma participação ativa no processo de socialização dos indivíduos. Nessa perspectiva, o autor confere destaque aos profissionais que se voltam para a educação, saúde e assistência social. Dubet (2006) defende a hipótese de, que durante muito tempo, o "trabalho sobre os outros" foi concebido como um programa institucional por meio do qual se processava uma forma de socialização realizada pela própria instituição em relação aos sujeitos que a integram sob a forma de transmissão/inculcação de valores, princípios e tradições. No caso específico da instituição escolar, essa socialização não se efetiva apenas na relação dos docentes com seus alunos, mas nas condutas e comportamentos que os próprios sujeitos (alunos, professores, gestores, funcionários) incorporam e que os fazem sentir mais ou menos comprometidos ou prestigiados por fazerem parte daquela instituição.

O recorte temporal aqui considerado circunscreve-se a um período no qual a identidade dos professores encontra-se fortemente vinculada a um programa institucional que ensejava promover a socialização desses docentes, ao estabelecer normas, comportamentos e ações a serem seguidas (Dubet, 2006). O declínio de instituições como a escola provocará, segundo a visão desse autor, a ruptura entre os atores e o sistema a partir dos anos 1970, fragilizando essa sensação de pertencimento tão presente nas gerações mais antigas.

Foram também relevantes para a pesquisa as contribuições de Claude Dubar (2005) sobre identidade social, ou seja, a identidade que se constrói na relação entre a dimensão social e a dimensão individual ao longo da trajetória do sujeito. A teoria apresentada pelo autor tem como ponto de partida a articulação entre esses dois processos identitários. O primeiro trata da atribuição da identidade e decorre da interação das instituições e agentes com o indivíduo e deve ser analisado no interior dos sistemas de ação nos quais ele se insere; nesse caso, são legitimadas categorias que são impostas coletivamente e conferem ao sujeito uma identidade social virtual. O outro se refere à incorporação da identidade pelos próprios indivíduos, levando-se em conta as trajetórias por meio das quais eles constroem a identidade para si, também denominada identidade social real. Nesse segundo processo, a legitimidade irá depender daquilo que tem significado "subjetivo" para o indivíduo. Dessa forma, a identidade social resultaria da articulação entre essas duas dimensões, já que ambas se encontram presentes na trajetória dos indivíduos.

Por fim, consideramos como categoria relevante na pesquisa o conceito de experiência formulado por Edward Palmer Thompson (1981). A obra aqui considerada - A miséria da teoria- faz uma crítica contundente a Althusser, na medida em que a construção do filósofo sobre a "teoria da história" não contempla nem a experiência nem o processo, quando considerado como prática humana. No entender de Thompson, a experiência é um meio termo necessário entre o ser social e a consciência social, é a experiência (muitas vezes a experiência de classe) que dá cor à cultura, aos valores e ao pensamento. Para ele, as normas, regras, expectativas são aprendidas no habitus3 de viver, aprendidas na família, no trabalho e na comunidade imediata. Sem esse aprendizado, a vida social não se sustentaria (Thompson, 1981, p. 194).

Trajetórias docentes

O estudo das trajetórias imbrica-se a duas dimensões do processo biográfico: a trajetória "objetiva" - sequência de posições sociais ocupadas durante a vida - e a trajetória "subjetiva", expressa em relatos biográficos pelos quais os indivíduos tentam dar conta de seus percursos familiares, escolares, profissionais, por meio de uma narrativa que, não raro, apoia-se na coerência e na linearidade (Dubar, 1998). Nesse sentido é que se justifica a crítica formulada por Bourdieu (1996) à qual já nos referimos4.

Uma das categorias de professores mapeadas na pesquisa mais ampla que realizamos sobre o corpo docente do Instituto de Educação compõe-se daqueles que iniciaram a carreira na instituição apresentando como formação apenas o nível médio realizado em escolas normais. Em função da expansão das matrículas verificada desde o início dos anos 1950, o contingente de alunas do curso normal quase quintuplicou no espaço de dez anos.5 Ademais, a partir de 1950, o Instituto não era mais a única instituição pública destinada a formar professores na cidade, tendo em vista a criação da Escola Normal Carmela Dutra no bairro de Madureira, subúrbio do Rio. No início dos anos 1960, a demanda pelas escolas normais cresce ainda mais e surgem quatro novas instituições: Escola Normal Sarah Kubitscheck, Escola Normal Julia Kubitscheck, Escola Normal Heitor Lira e Escola Normal Inácio Azevedo Amaral. Em face dessa demanda, o Estado recorria a esses professores que, mesmo sem possuir qualificação em cursos superiores, ingressaram no Instituto e nas demais escolas na condição de cedidos da rede de ensino pública para ministrar as disciplinas de prática de ensino, bem como as diversas didáticas.

Que critérios pautavam essas escolhas? Quem autorizava as cessões? Como tais professoras foram incorporadas ao corpo docente efetivo? Essas e outras questões foram parcialmente respondidas por meio de análise das fichas funcionais e entrevistas produzidas pela pesquisa. Escolhemos como representantes dessa categoria as professoras Carmen e Maria Alice, que lecionaram, respectivamente, Didática da Matemática e Didática da Linguagem no Instituto durante a década de 1960.6

Ao ingressar no Instituto de Educação em 1966, Carmen declarou possuir instrução média, obtida no curso normal da Escola Carmela Dutra no ano de 1951. Iniciou a carreira como professora primária na Prefeitura do Distrito Federal em março de 1952 e na década seguinte foi convidada a lecionar na Escola Normal Sarah Kubitscheck, situada em Campo Grande (zona oeste da cidade, à época denominada zona rural). Em seu depoimento, afirmou que, após dez anos de exercício efetivo como professora primária, foi convidada a lecionar no curso normal, uma vez que não havia professores concursados para todas as disciplinas. Portanto, desde a criação das diversas escolas normais públicas na cidade, essa estratégia vinha sendo utilizada pela Secretaria de Educação para contornar a ausência de professores com a titulação exigida para esse ramo de ensino. Transferida para o Instituto de Educação, lecionou Didática da Matemática durante muitos anos, até se aposentar, em 1983.

Indagada sobre os critérios da escolha, alegou ter sido sempre "excelente professora" de ensino primário, e, em sua opinião, o que prevaleceu foi "mérito e experiência". O convite para lecionar no Instituto de Educação partiu do professor Manoel Jairo Bezerra7, catedrático de Didática da Matemática e coordenador de um grupo de estudos que agregava diversas professoras em situação similar a de Carmen. Talvez constrangida pela irregularidade da situação, passou a cursar Pedagogia em uma universidade privada, sendo então enquadrada no cargo de professora de ensino médio, função que lhe conferiu maior legitimidade para continuar a desenvolver suas atividades docentes8.

Acrescentou, ainda, que sua ida para o Instituto fora autorizada pela Congregação, pois "ninguém entrava naquela instituição sem o aval dos catedráticos que eram membros da Congregação". Entretanto, ressaltou que sabia de muitos professores que tiveram acesso à instituição por "apadrinhamento político" ou "por conhecerem alguém da Secretaria de Educação" (Carmen, 2014). No caso de Carmen, o peso do capital social obtido em função de relações familiares9, o que possivelmente contribuiu para sua requisição, não foi o fator determinante de sua exitosa trajetória na instituição, pois, de fato, a professora possuía bom conceito entre os alunos, como atesta a homenagem a ela prestada pela turma de formandos de 1968.10

Na opinião da professora, a irregularidade da situação podia ser explicada pela expansão demasiada das matrículas do curso normal para fazer frente à expansão da rede escolar, sobretudo a partir dos anos de 1960. Sentia-se absolutamente segura no desempenho de suas funções e afirmou não se sentir preterida pelos professores titulados ou catedráticos. "De que vale a teoria sem a prática?" indagou a docente durante seu depoimento, demonstrando confiança em sua experiência e orgulho por pertencer ao quadro docente de uma renomada instituição de ensino.

Em meados da década de 1980, mais especificamente em 1983, solicitou aposentadoria, declarando-se "decepcionada com a instituição, especialmente com o alunado".

No dia em que eu resolvi que me aposentaria, eu estava muito decepcionada. Porque a gente preparava as aulas, estudos dirigidos... formavam-se grupos na sala de aula, pra você debater com grupos diferentes. Ai, você vai de grupo em grupo... Porque elas reclamavam o tempo todo: 'Ah, eu queria uma aula diferente. Eu queria uma aula diferente'. Eu falei com Jairo: 'Nós podemos fazer de maneira diferente. Fazer grupos de estudo, dentro da sua própria aula'. E fizemos. Fizemos vários grupos. Quando você chega para ver um grupo, para ver se elas estão precisando de alguma coisa, elas estavam fazendo as unhas, lendo revistas (Carmen, 2014).

Inúmeras pesquisas, dentre elas as de Mello et al. (1985), Mediano (1988) e Lelis (1989), apontam para essa crise de identidade sofrida pela escola normal no período, tendo em vista o impacto da Lei n. 5.692/1971, que tornou obrigatoriamente profissionalizante o ensino de segundo grau (Brasil, 1971). A essa altura, o curso normal passou a denominar-se Habilitação Específica para o Magistério (HEM) e passou a ser mais uma dentre as opções técnico-profissionais ao nível de segundo grau. Chegou-se mesmo a pensar na sua desativação ou, ao menos, na sua reestruturação, na medida em que a situação se agravava pelo descaso das políticas nacionais e estaduais com a formação de professores.

No caso específico do Rio de Janeiro, a procura pelos cursos normais públicos sofreu um abalo a partir de 1969, quando foi extinta a prerrogativa do acesso automático dos normalistas das escolas oficiais à rede pública estadual, equiparando os egressos dessas escolas às instituições de ensino congêneres de natureza privada para efeito de acesso ao serviço público11. A esse fato somou-se a política adotada pela Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro em meados da década de 1970, que decidiu priorizar o acesso às escolas normais públicas aos alunos carentes da rede municipal de ensino.12

Se a medida objetivou democratizar o ingresso de jovens das camadas populares às tradicionais escolas de formação docente, o que, em tese, seria uma atitude louvável, em geral, os cursos de habilitação específica para o magistério (HEMs) receberam muitas críticas, particularmente em razão das dicotomias entre teoria e prática, conteúdo e método, núcleo comum e parte profissionalizante. Além disso, registre-se o desprestígio social do curso e a sua inconsistência em termos de conteúdo, seja pela falta de preparo dos professores para lidarem com o novo perfil do alunado, seja pelos problemas relativos à realização dos estágios de prática de ensino. A verdade é que o curso parecia falhar tanto no processo de profissionalização docente quanto na preparação para o prosseguimento de estudos em nível superior.

Filha de funcionários públicos, moradores em Quintino, bairro próximo a Cascadura, subúrbio da Central do Brasil, Maria Alice (2014) iniciou sua carreira como professora primária formada pela Escola Normal Carmela Dutra, em 1953. Atuou apenas seis anos nesse nível de ensino quando, em 1960, foi requisitada pela professora catedrática Haidée Sanches para lecionar Metodologia da Linguagem no curso normal do Instituto de Educação. Segundo seu depoimento:

Não havia ainda um curso de formação de professores para o curso normal, era o professor formado em pedagogia ou era o professor primário que era convidado para o curso normal, como foi o meu caso. [... ] O professor primário era muito importante, porque ele tinha a teoria e a prática. Depois quando eu cheguei lá é que eu me animei pra fazer pedagogia na UERJ, antiga UEG (Maria Alice, 2014).

Cedida ao Instituto em 1960, manteve-se ali apenas por alguns meses. Na época, início da gestão de Carlos Lacerda no recém-criado Estado da Guanabara, a medida foi cancelada sob a alegação de "irregularidade funcional", o que acabou por inviabilizar a permanência desses professores na instituição. Em consequência, todos os requisitados tiveram que retornar à escola primária. Entretanto, segundo a entrevistada: "Havia um grupo que tinha certa força política... Os catedráticos se mexeram e conseguiram fazer os professores voltar. Quando retornamos, em 1962, já foi na categoria de professor de ensino médio" (Maria Alice, 2014).

Como ainda não possuía formação em curso superior, recebeu autorização do MEC para lecionar Trabalhos Manuais, embora tal medida fosse apenas uma estratégia para dar legitimidade aos professores de lecionar em uma escola de nível secundário.

Isso foi burocracia do MEC, nunca lecionei Trabalhos Manuais, sempre dei aula de Didática e Prática de Ensino... Era um "jeitinho", né? Mas, de fato, eu como professora primária, podia ser professora de uma disciplina do curso normal, porque ainda não havia formação de professores para o curso normal. Tudo era assim ajeitado, entende? E aí eu fiquei, não me lembro quantos anos, na Didática, mas fiquei um ano na Prática de Ensino e depois eu fui trabalhar na área de treinamento (Maria Alice, 2014).

Maria Alice lecionou Didática e Prática de Ensino no Instituto por aproximadamente sete anos; posteriormente, foi trabalhar na área de treinamento, um núcleo criado no próprio IE para promover a especialização de professores. Em seguida, esse centro de treinamento de pessoal saiu de lá e passou a funcionar na Escola Martin Luther King, na Praça da Bandeira, onde ela foi lotada.

Nessa ocasião, a professora desligou-se da formação inicial de professores e, tendo concluído a faculdade (Pedagogia), foi trabalhar na área de formação continuada, de treinamento e aperfeiçoamento de docentes. Permaneceu nessa função até 1975, quando houve a fusão do Estado do Rio com a Guanabara e foi criada a nova Secretaria de Educação, sob a gestão da professora Myrtes Wenzel, que já dirigira o Centro Educacional de Niterói. Na gestão dessa Secretária, Maria Alice foi mantida no setor de Assessoria de Recursos Humanos.

Revelando ter preferência por atuar na área mais ligada à administração, revelou que sempre "esteve às voltas com o magistério":

Atuei nos diferentes níveis, desde a escolinha primária, no bairro da Penha. Ali eu tive as primeiras turmas e dali eu já vim descendo para trabalhar em escolas mais próximas até que eu cheguei no Instituto, acho que com dez ou onze anos de formada. E ali no Instituto eu fiquei uns seis anos. Depois fui para o treinamento e já não saí mais da Secretaria de Educação. Fiquei sempre ligada ao trabalho na área de planejamento... de formação, de assessoramento na área de recursos humanos. Aí eu me tornei realmente uma especialista na área de recursos humanos (Maria Alice, 2014).

Ambas deixaram claro que sua cessão ao curso normal deveu-se, em primeiro lugar, à experiência demonstrada no ofício como professoras primárias da rede pública. Acrescentaram, ainda, o fato de não existirem cursos que formassem professores para o ensino normal. Na verdade, essa justificativa pode ser relativizada, uma vez que a criação do curso de pedagogia na cidade do Rio de Janeiro data de 1939, com a criação da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Universidade do Brasil (Brasil, 1939), embora a extinta Universidade do Distrito Federal (UDF), existente na cidade entre 1935 e 1939, já ofertasse cursos de técnicos em educação, de onde grande parte dos estudantes ali matriculados migraram para o curso de pedagogia mantido pela FNFi.13

Entretanto, vale lembrar que o número de licenciados em pedagogia, os quais, em tese, estariam aptos a lecionar disciplinas pedagógicas, era bastante inexpressivo. Se levarmos em conta a expansão das turmas do curso normal tanto no Instituto de Educação quanto nas demais escolas normais oficiais criadas entre as décadas de 1940 e 1960, podemos atribuir certa dose de credibilidade aos depoimentos aqui citados. Tanto que, na década de 1960, em função do Parecer Valnir Chagas (Chagas, 1963), o curso é definido em quatro anos, englobando bacharelado e licenciatura, esta com objetivo precípuo de formar professores para atuar em cursos normais (Brzezinski, 2008).

Pouco tempo depois, em 1965, o próprio Instituto de Educação toma a iniciativa de criar um curso em nível superior para formar professores para o curso normal. O CFPEN, como ficou conhecido, teve duração de dez anos e acabou entrando em rota de colisão com os cursos de pedagogia oferecidos pelas universidades cariocas, em especial a UERJ e UFRJ, e acabou sendo extinto em 1975.14

Considerações finais

Em razão da expansão de escolas normais e do crescimento exponencial do número de aspirantes ao magistério, a "irregularidade funcional" acabou por se institucionalizar e transformar-se em rotina nas escolas normais oficiais. Nos anos subsequentes, como vimos no caso da professora Carmen, as professoras assistentes já eram uma realidade no Instituto de Educação, totalizando um número bem maior do que os docentes concursados e catedráticos. Em 1965, por meio de um decreto, foi regularizada a situação funcional desses docentes, que alcançaram o cargo de professores do ensino secundário15.

Chamamos a atenção para o fato de que a trajetória profissional dessas professoras deveu-se, fundamentalmente, à experiência que demonstravam por sua prática em escolas primárias da rede pública local. Contrariando a regra geral do mundo acadêmico, que tem sempre muita dificuldade em reconhecer "o equilíbrio entre o rigor intelectual e o respeito pela experiência" (Thompson, 2002, p. 46), as especificidades do contexto pareceram justificar a singularidade das trajetórias.

Diante da oportunidade de lecionarem no curso normal de uma das mais prestigiadas instituições da cidade e, por que não dizer, do país, as duas professoras convidadas pelos catedráticos por seus méritos e pela experiência demonstrada em razão de sua função, perceberam as possibilidades de crescimento profissional e acabaram por investir na qualificação e certificação, a fim de fazer jus aos cargos que passaram a ocupar, compartilhando práticas e atribuindo novos sentidos à docência.

Nos dois casos examinados, percebeu-se um investimento inicial na carreira de magistério do curso normal, muito em função do prestígio conferido pela instituição. A seriedade com que enfrentaram os desafios da nova carreira encontra-se presente nos depoimentos, talvez de forma mais enfática no caso de Carmen, que se manteve por mais de vinte anos em sala de aula. Entretanto, o processo de desinvestimento na profissão (Huberman, 2007) foi, também, mais doloroso, desiludida que estava com os resultados de seu trabalho e das malsucedidas políticas de formação docente. Sua rejeição ao comportamento das novas alunas, das quais estranhava os hábitos, soa como um lamento; daí sua opção pela aposentadoria. O depoimento de Maria Alice denota um desinvestimento mais racional quando afirma nunca ter-se afastado do magistério, embora, no auge da carreira, escolhesse ficar vinculada a funções administrativas, de planejamento, por entender-se mais especialista do que professora.

Neste ponto, estamos especificamente lidando com a definição de identidade, categoria analítica desenvolvida por Claude Dubar (2005). Para esse autor, a construção da identidade, ou seja, do modo de se definir a si mesmo e aos outros, não se dá apenas com base nas informações obtidas em determinado contexto e momento específicos. Ela é construída tendo como fundamento a história de vida de cada um e as experiências vividas em outras épocas, uma vez que cada ator social tem um passado que contribuiu para a construção de quem ele se tornou até aquele momento. Sendo assim, cada ator social possui uma identidade que tem sua estrutura fincada em uma dualidade social: uma identidade que parte de si mesmo e outra que parte daqueles com quem convive. Tais processos identitários são distintos e, embora não haja uma relação direta entre a visão que temos de nós mesmos- aquela que expressa uma identidade singular forjada com base em uma história de vida pessoal - e o que os demais pensam a nosso respeito, a identificação de si que um ator estabelece dentro de um espaço social é condição para que ele seja identificado pelos demais membros do grupo.

Nos dois casos estudados, ambas afirmaram sentirem-se legitimadas pela requisição dos catedráticos e reconhecidas pelos demais colegas e alunos, de um modo geral. Portanto, construíram uma identidade que objetivamente as qualificava como professoras de uma renomada instituição de ensino. Do ponto de vista subjetivo, ou seja, no processo de construção de uma identidade para si, Carmem demonstrou possuir uma ligação mais forte com a docência, enquanto Maria Alice preferiu definir-se como especialista, mais articulada à área administrativa, embora sempre ligada às questões do magistério, como fez questão de frisar.

O espaço profissional é um ambiente de natural socialização, onde as identidades são naturalmente construídas. Um indivíduo, no seu ambiente de trabalho, carrega, juntamente com sua própria visão de si, uma identidade profissional que lhe é atribuída, sendo esta não apenas uma identidade no trabalho, mas é também e, sobretudo, uma projeção de si no futuro, a antecipação de uma trajetória profissional (Dubar, 2005, p. 149).

Foi possível perceber, por meio do estudo dessas trajetórias, que a ação da escola e o trabalho do professor comportam limites, tensões e particularidades que conformam um modelo característico de funcionamento institucional e de comportamento profissional. Ou seja, o trabalho escolar pressupõe uma ação carregada de subjetividade e imprevisibilidade, mas que depende fundamentalmente da adesão dos sujeitos ao projeto escolar.16

Nesse sentido, poderíamos realizar uma aproximação entre a ideia de projeto escolar e o processo de socialização empreendido pelo programa institucional da forma como o entende François Dubet (2006). Aos olhos de hoje, esse programa pode nos parecer ultrapassado; porém, retrospectivamente, é visto como positivo por sua firmeza, sua coerência e sua capacidade de reduzir tensões. Assim, no relato das entrevistadas, a hierarquia entre docentes, as disputas e possíveis conflitos são, aparentemente, sublimados.

A partir da década de 1970, as bases de legitimidade desse programa institucional - racionalismo, regras, papéis demarcados- começam a ser questionadas. As instituições, em especial as escolas, não mais mostram-se adequadas às novas demandas sociais. Sobrevém, então, a nostalgia, o desalento, a fuga da sala de aula ou a opção pela aposentadoria, soluções encontradas pelas docentes aqui estudadas para o encerramento de suas trajetórias profissionais.

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THOMPSON, E.P. 2002. Educação e Experiência. In: E.P. THOMPSON, Os Românticos: a Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 11- 47.

Notas

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação. Av. Pasteur, 250, Campus Praia Vermelha, 22295-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2 Convencionou-se denominar esta categoria pelo termo "notáveis" ou "inesquecíveis" a partir de entrevistas produzidas com alunas da instituição que demonstraram profundo orgulho pelo fato de terem sido alunas de alguns professores renomados e prestigiados em âmbito nacional.
3 Refiro-me ao conceito de habitus na acepção que lhe confere Pierre Bourdieu (2000): um sistema de disposições, ações e percepções que os indivíduos adquirem com o tempo em suas experiências sociais tanto na dimensão material, corpórea, quanto simbólica, cultural, entre outras.
4 Ver a respeito Pierre Bourdieu em A ilusão biográfica (1996).
5 No ano de 1948, formaram-se cerca de 200 novas professoras, distribuídas por seis turmas de terceiro ano normal. Em 1958, o número de turmas se amplia para 25, totalizando um grupo de aproximadamente 900 formandas, conf. Livros de Formandos - décadas de 1940-1950. Centro de Memória da Educação Brasileira - CMEB, localizado no Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro - ISERJ.
6 Os depoimentos foram concedidos à pesquisa em 26 de novembro de 2014, e os nomes aqui utilizados são fictícios.
7 Manoel Jairo Bezerra foi professor catedrático de Didática da Matemática no Instituto de Educação entre 1961 e 1986. Licenciado em Matemática pela Faculdade Nacional de Filosofia em 1954, Bezerra tornou-se famoso por dirigir um dos mais prestigiados cursos preparatórios para o ingresso no curso normal das escolas oficiais. O curso do professor Jairo Bezerra funcionava no Colégio Metropolitano, no Méier, e era um dos que mais aprovavam candidatos àqueles concursos, considerados dificílimos à época.
8 Ao examinar a ficha funcional de diversos professores em situação semelhante à de Carmen, observa-se uma anotação em relação ao registro obtido junto ao Ministério da Educação. Em geral, nesse item, consta autorização do MEC para lecionar as disciplinas Economia Doméstica e Trabalhos Manuais, presentes no currículo da escola secundária. Dessa forma, legitimava-se a presença de tais professoras em um curso de nível médio, como o curso normal. Arquivo CMEB-ISERJ.
9 A professora Carmen relacionava-se socialmente com o Professor Jairo Bezerra, uma vez que seu marido era irmão da esposa daquele catedrático. 10 Carmen recebeu homenagem especial dos formandos da turma de 1968, conforme pode ser comprovado no Álbum de Formatura, cedido por uma ex-aluna ao Projeto Memória ISERJ.
10 Carmen recebeu homenagem especial dos formandos da turma de 1968, conforme pode ser comprovado no Álbum de Formatura, cedido por uma ex-aluna ao Projeto Memória ISERJ.
11 A partir desse ano, todos os aspirantes ao magistério público carioca deveriam prestar concurso para se tornarem professores da rede estadual de ensino.
12 A medida foi adotada em 1975 durante a gestão da professora Myrtes Wenzel à frente da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro.
13 Nos primeiros anos de existência da FNFi (até 1946), o curso de pedagogia se integralizava em 3 anos para formar bacharéis (técnicos em educação) e quem desejasse cursava mais um ano de Didática para se habilitar a lecionar disciplinas pedagógicas em cursos normais. Ver a respeito Lopes (2012).
14 Ver a respeito a pesquisa de doutorado (em andamento) de Fabiana Rodrigues (2013).
15 Trata-se do Decreto "P" n. 8.766. BOE n. 374, de 26 de novembro de 1965. Fonte: Arquivo CMEB/ ISERJ.
16 A expressão projeto escolar remete a uma ideia cara a Dubet, para quem o modo de socialização escolar compõe uma espécie de programa institucional que corresponde a uma concepção geral da socialização e apresenta características suficientemente estáveis para constituir-se em um modelo aceito por todas as instituições escolares que são orientadas para inculcar normas que configuram o indivíduo, mas, simultaneamente, o tornam autônomo e livre. Cf. Dubet (2006, p. 22).
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