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Culturas musicais religiosas: problematizações sobre o ensino de música nas escolas
Religious musical cultures: Reflections on music teaching in schools
Culturas musicais religiosas: problematizações sobre o ensino de música nas escolas
Educação Unisinos, vol. 21, núm. 2, pp. 195-202, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Recepção: 15 Dezembro 2014
Aprovação: 16 Maio 2017
Resumo: Tendo como base a concepção de educação multicultural na contemporaneidade face à obrigatoriedade do ensino de música no ensino curricular das escolas brasileiras, o texto procura discutir aspectos relacionados com as culturas musicais religiosas. Algumas linhas teóricas em educação musical, informadas pelo olhar do cotidiano musical dos alunos, têm debatido os desafios e as possibilidades de um ensino de música plural e aberto às diferentes formas de produzir, circular e consumir música(s). As questões aqui abordadas tratam de uma reflexão teórica sobre as possíveis tensões do ensino de música na escola, tendo em vistas as especificidades das culturas religiosas e de suas práticas e vivências musicais.
Palavras-chave: educação musical, culturas musicais, religião.
Abstract: Considering the conception of multicultural education in the contemporaneity in the face of the compulsoriness of the music teaching in the curriculum of Brazilian schools, this work intends to discuss some aspects concerning religious musical cultures. Some theoretical tendencies in musical education, informed by the students' everyday view, have debated the challenges and the possibilities of a plural music teaching, which may be opened to the different ways of producing, surrounding and consuming music. The questions developed here deal with a theoretical reflection on the possible tensions of music teaching in schools, looking upon the specificities of the religious cultures and their practices and musical experiences.
Keywords: music education, musical cultures, religion.
Introdução
Pretende-se, no âmbito do seguinte texto, problematizar questões sobre o ensino do conteúdo de música no sistema escolar, obrigatório a partir das Leis 11.769/2008 e 13.278/20162, e a(s) identidade(s) religiosa(s) dos alunos, sendo a educação pública no Brasil considerada de caráter laico e a liberdade de expressão religiosa garantida por lei. Embora de cunho teórico, as reflexões aqui apresentadas se inserem como resultado de uma rede de pesquisas empíricas em educação musical que têm como linhas de orientação o estudo das práticas, memórias e culturas musicais religiosas (Torres, 2004; Reck, 2011; Lorenzetti, 2012; Cattelan, 2012).
A compreensão da multiplicidade e da diversidade cultural e social, assim como o diálogo às diferenças, tem sido amplamente discutida e apontada como desafio e fator decisivo de qualidade da educação contemporânea. Todavia, embora a discussão acerca do assunto tenha gerado experiências e contribuições teóricas, ainda não podemos considerar que uma "orientação multicultural numa perspectiva emancipatória costume nortear as práticas curriculares das escolas e esteja presente, de modo significativo, nos cursos que formam os docentes que nelas ensinam" (Moreira e Candau, 2003, p. 156-157).
A Educação Musical, compreendida aqui como uma área que se articula com outros campos do conhecimento, como sociologia, antropologia e etnomusicologia, (Kraemer, 2000) tem debatido possibilidades de uma educação plural, ultrapassando os métodos tradicionais de ensino musical baseados principalmente em modelos eurocêntricos. O contexto sociocultural dos alunos, suas identidades musicais e suas experiências cotidianas têm promovido debates que prevêem uma postura dinâmica do professor de música, atentando para as múltiplas formas de produzir, significar e consumir música(s).
Os diferentes mundos musicais e os distintos processos de transmissão de música em cada sociedade nos fazem perceber que a educação musical está diante de uma pluralidade de contextos, que têm múltiplos universos simbólicos. Dessa maneira, somente criando estratégias plurais e entendendo a música como algo que tem valor em si mesmo, mas que também nos traz outros sentidos e significados, podemos pensar num verdadeiro diálogo entre educação musical e cultura (Queiroz, 2004, p. 106).
Pesquisas realizadas em diferentes espaços e contextos da sociedade têm contribuído para uma abertura discursiva do ensino musical, ampliando as concepções pedagógicas e as estratégias educativas. Queiroz (2004, p. 102) ressalta que temos muito o que aprender com os processos informais, "não no intuito de transportá-los para as instituições formais, mas sim com o objetivo de, a partir deles, entender diferentes relações e situações de ensino e aprendizagem da música".
Considerando a bagagem do cotidiano musical, "ao analisar o sujeito imerso e envolvido numa teia de relações presentes na realidade histórica e prenhe de significações culturais" (Souza, 2008, p. 7), as seguintes reflexões se inserem nessa perspectiva, tomando como problemática as relações musicais e religiosas enquanto parte do horizonte de significados que os alunos constituem a partir de suas experiências no dia a dia. Considerando esse enfoque específico, cabe salientar que não se pretende aqui compreender as significações e funções sociais da fé religiosa, do ponto de vista teológico, mas analisar de que maneira essas significações podem influenciar nas relações e no espaço escolar público, mais especificamente nas aulas de música.
Falar de uma perspectiva religiosa, segundo o antropólogo Clifford Geertz, implica falar de uma perspectiva entre outras, ou seja, "uma forma particular de olhar a vida, uma maneira particular de construir o mundo, como quando falamos de uma perspectiva histórica, uma perspectiva científica, uma perspectiva estética, uma perspectiva do senso comum" (Geertz, 1989, p. 81). Esse desenho específico prevê interações entre os sujeitos que se estabelecem a partir de uma unidade religiosa, implicando em significações próprias, tanto individuais quanto coletivas. Essas significações, estando presentes na maneira como os sujeitos interagem, atravessam também os processos em que eles produzem e desenvolvem seus conhecimentos, inclusive no sistema escolar.
Partindo de um olhar que leva em consideração a educação frente aos desafios do multiculturalismo; a religião, através da compreensão dos significados; e a música, nos processos que envolvem práticas musicais cotidianas, podemos sugerir algumas reflexões de como triangular essas dimensões, produzindo uma prática docente que, se não possui uma resposta definitiva, mantenha-se atenta às possíveis tensões que podem emergir entre elas.
Desafios de uma educação multicultural
Para pensar os efeitos e as condições de uma sociedade multicultural, talvez seja necessário investigar os processos que têm, de uma forma ou de outra, intensificado esse caráter na contemporaneidade. Dentre esses processos, Silva e Brandim (2008, p. 53) citam os aspectos econômicos da chamada globalização mundializada, que se caracterizam pela internacionalização do capital, tendo por base a produção, distribuição e consumo de bens e serviços, "organizados a partir de uma estratégia mundial e voltados para um mercado mundial, visando atender, de forma padronizada, o gosto de consumidores em todos os recantos do planeta".
Segundo os autores, destaca-se também o ideário político neoliberal, que critica a intervenção estatal na economia, a fim de fortalecer os empresários, seus negócios lucrativos, a liberdade de mercado e o livre comércio em todas as esferas da vida privada. Por sua vez, no plano cultural verifica-se o avanço das tecnologias, mídias, informática e diluição das fronteiras geográficas, de modo a acelerar o intercâmbio cultural (Silva e Brandim, 2008).
A partir da intensificação desses processos, o mundo assume, definitivamente, "as feições e as marcas da multiculturalidade, da diversidade cultural", provocando-nos a "pensar a unidade humana na base de sua diversidade cultural e nos desafiando a desenvolver a capacidade de conviver com as diferenças" (Silva e Brandim, 2008, p. 53).
Por conta da complexa diversidade cultural que marca os tempos de hoje, Moreira e Candau (2008, p. 7) apontam que há significativos efeitos "que se evidenciam em todos os espaços sociais, decorrentes de diferenças relativas a raça, etnia, gênero, sexualidade, cultura, religião, classe social, idade, necessidades especiais ou a outras dinâmicas sociais".
Assim, a emergência e a constatação inevitável do caráter multicultural das sociedades contemporâneas envolve a discussão sobre a pluralidade das identidades culturais, que devem ser levadas em consideração nas práticas pedagógico-curriculares pensadas dentro de um contexto democrático.
Deste modo, uma educação multicultural voltada para a incorporação da diversidade cultural no cotidiano pedagógico tem emergido em debates e discussões nacionais e internacionais, buscando-se questionar pressupostos teóricos e implicações pedagógico-curriculares de uma educação voltada à valorização das identidades múltiplas no âmbito da educação formal (Canen, 2000, p. 136).
Partindo de uma perspectiva da interculturalidade crítica, Canen (2000, p. 136) propõe a desnaturalização de concepções em que os currículos nacionais são apontados como "instrumentos de controle, pautados por conceitos de qualidade e produtividade que desconhecem sujeitos, saberes e formas de conhecimento plurais".
Ao analisar e problematizar categorias como "identidade nacional", "cultura nacional" e "pluralidade cultural", que permeiam o documento "Pluralidade Cultural" dos Paramêtros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997), a autora procura fornecer pontos de partida para se repensar a educação multicultural em propostas curriculares que se articulem com uma cidadania crítica e participante em sociedades marcadas por desigualdades e práticas de exclusão sociocultural (Canen, 2000).
Silva e Brandim (2008, p. 56) nos alertam que além de pensar em formas de "reconhecer, valorizar e incorporar as identidades plurais em políticas e práticas curriculares", é necessário também "refletir sobre mecanismos discriminatórios que tanto negam voz a diferentes identidades culturais, silenciando manifestações e conflitos culturais, bem como buscando homogeneíza-las numa perspectiva monocultural".
Tais questões nos levam a situar o multiculturalismo na esfera da educação, na tentativa de repensar conceitos, teorias e práticas pedagógicas, tomando como base o caráter multicultural das sociedades contemporâneas. Tais configurações sobre multiculturalismo podem ser distintas, conforme seus contextos e interesses. Enfatizando a polissemia do termo, Candau (2008, p. 19) aponta que expressões como multiculturalismo conservador, liberal, celebratório, crítico, emancipador, revolucionário podem ser encontradas na produção sobre o tema e se multiplicam continuamente.
Com uma relevante acentuação na década de 1970, as discussões em torno de uma exigência de educação multicultural passam a se evidenciar na pauta dos movimentos sociais. Tomando como exemplo o movimento negro nos EUA, Silva e Brandim (2008) apontam que "há um relativo avanço das lutas multiculturalistas" procurando garantir igualdade de oportunidades educacionais, de integração e justiça social a grupos culturais diversos, tais como os não-brancos, do sexo feminino, deficientes, alunos de baixa renda etc.
Nos anos 80 e, especialmente, nos anos 90, são fortalecidos os estudos sobre o multiculturalismo em decorrência da ampliação da influência pós-moderna no discurso curricular, que valoriza a mistura e o hibridismo de culturas, a pluralidade e as diferenças culturais. A celebração da diferença se constitui uma de suas ideias básicas. É nessa época também que se acentuam os estudos relacionando cultura/educação escolar nas sociedades contemporâneas (Silva e Brandim, 2008, p. 57).
Levando em conta a educação brasileira, Candau (2008, p. 13) afirma que não há educação que não esteja imersa nos contextos culturais em que se situa, de modo que "não é possível conceber uma experiência pedagógica 'desculturizada', isto é, desvinculada totalmente das questões culturais da sociedade". Se por um lado tem se evidenciado o caráter homogeneizador e monocultural da escola, por outro tem crescido a "consciência da necessidade de romper com esta e construir práticas educativas em que a questão da diferença e do multiculturalismo se façam cada vez mais presentes" (Candau, 2008, p. 13).
Assim, na esteira histórica dos debates que problematizam a questão cultura/educação, este trabalho busca lançar algumas provocações sobre o ensino de música nas escolas públicas, levando em conta as múltiplas culturas musicais com ênfase nas religiosidades.
Educação musical, cultura e sociedade
A importante ampliação do conceito do estudo da música na cultura para o estudo da música como cultura, proposta pelo antropólogo musical Alan Merrian, nos anos 1960, ilustra algum dos esforços em compreender a relação entre música e cultura. Dessa forma, a música é, ao mesmo tempo, determinada pela cultura e determinante desta (Queiroz, 2004). Assim, pensar a multiculturalidade em educação a partir de uma perspectiva crítica envolve a discussão sobre as culturas musicais e suas formas de legitimação/desvalorização nos currículos escolares.
Na educação musical as marcas do debate multiculturalista são perceptíveis, por exemplo, nos temas propostos pelos congressos nacionais da ABEM3 (Associação Brasileira de Educação Musical), nos diferentes estudos e enfoques (Queiroz, 2004; Penna, 2005; Souza, 2007; Frega, 2007; Lazzarin, 2008), mas também pelas discussões que emergem em fóruns, programas de educação musical e formação de professores, no dia a dia escolar ou nos corredores das universidades.
Hoje assistimos a uma proliferação de debates sobre cultura e diversidade. Seja nos espaços da mídia, das políticas públicas ou das discussões científicas de outras áreas. Refinar esses conceitos, participar das discussões contemporâneas e entender os sentidos que diversidade e cultura adquirem no campo da música pode ajudar-nos a identificar nossos desafios (Souza, 2007, p. 19).
Como professores universitários, lecionando disciplinas como Pluralidade Cultural e Educação, Sociologia da Música, Música Popular ou Folclore Musical, pudemos perceber de forma intensa tanto a reverberação de determinados discursos musicais que privilegiam uma abordagem eurocêntrica de pensar e ensinar música, assim como propostas plurais de compreender as músicas como produtos de práticas culturais específicas.
No contexto da América Latina, marcado não somente pelas diferenças geográficas, mas também pelas suas múltiplas manifestações culturais (Souza, 2007), o Brasil apresenta-se como diverso e multifacetado, problematizando as noções de identidade musical nacional ou música nacional, enfim de uma única "cultura musical".
Pensar sobre a música brasileira hoje significa analisar as trocas culturais que hoje atravessam o país e que fazem com que os limites entre litoral/sertão ou morro/asfalto se dissolvam. Dessa forma, a música brasileira produzida nos últimos anos parece distanciar-se definitivamente das oposições entre música culta e música popular. Os criadores e intérpretes da atual música popular brasileira tornam- se intérpretes privilegiados do nosso cotidiano. Como cronistas, cantam as questões de seu tempo e espaço (Souza, 2007, p. 17).
Na pauta da educação musical, a diversidade cultural tem promovido discussões e problematizações sobre o ensino da música, que podem ser sintetizados por Penna (2005) ao questionar: "como reconhecer, acolher e trabalhar com a pluralidade cultural no processo pedagógico?" (p. 7); ou promovendo considerações sobre "como a educação musical pode trabalhar com a diversidade de manifestações musicais presentes no mundo de hoje, que expressam diferentes poéticas" (p. 10).
Contextualizando com nossa realidade, a autora vai além, incorporando as políticas educacionais na construção do debate:
Se esse é um desafio constante, ele se renova, atualmente, diante das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, instituídas pela Resolução no 01/2004, do Conselho Nacional de Educação/CNE (Brasil, 2004). Essas diretrizes atendem à Lei no 10.639/2003, que altera a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDB (Lei 9.394/1996), acrescentando-lhe o artigo 26-A,1 que torna "obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira" nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, indicando que a área de Arte tem papel especial no tratamento de tais conteúdos (Penna, 2005, p. 7-8, grifos no original).
A música assume um papel chave na produção das identidades culturais. Dessa forma os usos que os grupos sociais fazem dela são múltiplos e variáveis, e sempre há um valor atribuído pelos sujeitos que vivem daquela prática e nela se reconhecem. Pensar a relação desses valores nos desafia a entender que na situação escolar, "as músicas vêm carregadas de significados e enredadas pelo contexto social aos quais os sujeitos-alunos se remetem" (Santos et al., 2012, p. 225).
Embora variadas, as abordagens para pensar a educação musical em termos da relação música-cultura têm contribuido sobretudo para a abertura de diferentes modos de entender os processos pedagógico-musicais. A própria multiplicidade em pensar e discutir as concepções de multiculturalismo em educação musical nos leva ao recorte da seguinte pesquisa: pensar a pluralidade religiosa musical no Brasil a partir da educação escolar.
Culturas musicais religiosas
Se nas ciências sociais, como na etnomusicologia, por exemplo, podemos perceber um grande número de pesquisas, com diferentes enfoques e metodologias, voltadas para a relação música-religião (Braga, 1998; Teixeira Júnior, 2005; Guérios, 2005; Ribeiro, 2013), no campo da educação musical essa evidência não tem sido tão clara. Embora algumas tratativas tenham se iniciado a partir de encontros e de discussões em grupos de trabalho, ainda não podemos falar de uma reflexão aprofundada, principalmente sobre os aspectos que envolvem as religiosidades musicais e sua inserção na problemática do ensino curricular.
Nesse sentido procuro sublinhar algumas pesquisas que tratam do tema música-religião a partir de um olhar da educação musical. Se essas pesquisas não são homogenêas em suas questões teórico-metodológicas, e nisso reside a riqueza da multiplicidade de olhares sobre o tema, elas têm em comum a inserção da religiosidade como elemento cultural significante no horizonte de significados dos sujeitos. Em sintonia com as linhas do cotidiano, essa perspectiva problematiza e critica o ensino de música desvinculado das experiências vividas pelos atores sociais.
Partindo de pressupostos que consideram a cultura como um sistema de símbolos interpretativos, procura-se compreender a dimensão cultural da análise religiosa, a partir da perspectiva proposta por Geertz (1989). Dessa forma os símbolos4 religiosos são compreendidos como padrões culturais ou complexos de símbolos, que podem ser interpretados e que dão significado às práticas sociais de determinados grupos.
Na educação musical, talvez possamos situar o início de uma literatura sobre o assunto no trabalho de Torres (2003), que ao entrevistar um grupo de alunas da pedagogia sobre a construção das suas identidades musicais a partir das memórias, reconheceu nas narrativas considerações importantes sobre o papel da religião nesse processo. Num recorte sobre o tema, a autora desenvolve suas reflexões:
A partir da questão que formulei, "Quais as lembranças da música e os entrelaçamentos com as práticas religiosas: primeira comunhão, grupos de jovens, missas, encontros de casais e cultos, por exemplo?", surpreendi-me com a multiplicidade de fatos e lembranças musicais que emergiram juntamente com as práticas religiosas, compondo diferentes cenas e aspectos da religiosidade (Torres, 2004, p. 64).
Considerando a influência das práticas religiosas na construção das identidades musicais, Torres (2004, p. 64) percebeu na memória das participantes lembranças como "melodias sussurradas, letras de músicas cantadas nas ocasiões dos cultos, vozes dos corais masculinos nos serviços religiosos" ou das aprendizagens musicais com os "grupos e movimentos jovens, as aulas de música nas escolas confessionais, o repertório das catequistas e as trilhas das missas e casamentos". A autora ainda acrescenta as falas que trouxeram as "orações cantadas na igreja e em casa, as músicas para a primeira comunhão, batizados e as tocatas e fugas executadas no órgão da igreja".
Pude conhecer e até ficar surpresa com a variedade e intensidade dos sons das igrejas e rituais religiosos, com muitas trilhas e repertórios para acompanhar os diferentes momentos e comemorações. Ouvi os sons do harmônio executando os hinos nos cultos, os violões e as músicas que entoavam nas missas e reuniões de grupos jovens. Em outras lembranças as vozes infanto-juvenis nas aulas de catequese misturavam-se a tantas outras sonoridades que permearam os espaços das diferentes igrejas e manifestações religiosas (Torres, 2004, p. 67).
Assim como sentimos a importância das lembranças evocadas pelas entrevistadas, de caráter cristão, podemos também nos questionar sobre os silêncios que muitas vezes operam na fala sobre algumas religiões 'marginalizadas'. Caputo (2008), ao investigar o preconceito religioso contra o candomblé em escolas, registra "o silêncio, ainda utilizado por muitos candomblecistas em alguns espaços como estratégia contra a perseguição" (Caputo, 2008, p. 170). Essa perspectiva coloca as políticas de identidades culturais nas possibilidades das discussões sobre o ensino de música.
Em relação às práticas musicais religiosas e seus processos educativos, podemos mencionar os trabalhos de Lorenzetti (2012), Cattelan (2012) e Nogueira (2012), que tomam como foco de análise as práticas musicais no ambito do Catolicismo. Cattelan (2012), a partir de suas narrativas musicais na igreja católica, aponta o aprendizado nas práticas religiosas cristãs como um contexto no qual os significados são gerados para professores de música. Por sua vez, Louro et al. (2011) relacionam algumas experiências musicais dentro das atividades religiosas desenvolvidas na igreja e consideram o "transbordamento" que os conhecimentos adquiridos tiveram em suas práticas profissionais ou acadêmicas.
Lorenzetti (2012), ao investigar as experiências pedagógico-musicais de dois grupos católicos em Porto Alegre (RS), destaca a voz na liturgia e a didática do ensino de música na igreja. Considerando tal espaço de interações humanas e de vivências afetivas, a autora estabelece relações entre o fazer musical na igreja e as identidades musicais constituídas a partir dessas experiências, impregnada de significados:
A música não é um simples acessório, mas algo essencial. É um espaço que não é neutro, pois exige uma "roupa apropriada" para as ações litúrgicas [...]. É um espaço que envolve os sentidos; o olfato, por meio de incensos; a audição, pela música e pela leitura; a visão, com imagens e cores; o tato, pelo aperto de mão. É um espaço feito de muitas pessoas, de muitos momentos, de muitas celebrações. Cada espaço, e a igreja inclui-se nisso, corresponde a um tipo de identidade (Lorenzetti, 2012, p. 12).
Além de perceber o espaço como um lugar antropológico (Levy, 1998), Lorenzetti (2012) complementa com a multiplicidade de situações musicais e suas dimensões pedagógicas. Tais considerações nos ajudam a pensar que a igreja é um contexto complexo, no qual a música está presente em diversos ambientes (nas salas de paróquia, em reuniões, nos corais, dentro da igreja - nas missas e em outras celebrações, no pátio) (Lorenzetti, 2012).
As práticas musicais e as construções de identidades musicais na cultura gospel, com ênfase no neopentecostalismo evangélico, são temas da investigação de Reck (2011), ao realizar um estudo de caso num grupo de louvor no Rio Grande do Sul. Assim como a constatação de diferentes abordagens músico-pedagógicas, foi possível complexificar as relações de identidade do músico gospel, para além dos binômios tradicional/contemporâneo, profano/cristão, erudito/popular.
A diversidade de formas em que a música gospel passou a ser produzida, distribuída e consumida oferece um quadro complexo da influência dessas condições na construção da identidade musical gospel. Dizer que um músico é gospel é ao mesmo tempo dizer muito e dizer pouco. Se por um lado significa que ele faz parte de uma unidade de valores e crenças de caráter religioso que lhe estabelece uma identidade generalizante com outros músicos gospel, ao mesmo tempo essa categoria não dá conta das inúmeras influências musicais que lhe atravessam o cotidiano (as vivências musicais em família, a escolha por determinado instrumento ou gênero musical, as mídias) e como esses valores musicais são ressignificados e negociados, a partir de uma cultura gospel (Reck, 2011, p. 84).
As formas contemporâneas da cultura gospel têm deslocado e multiplicado os espaços musicais, borrando fronteiras entre o sagrado e o profano, de modo que a cômoda idéia de entender a música gospel como aquela que é realizada dentro do espaço da igreja já não apresenta consistência, visto a multiplicidade dos espaços em que ela tem sido produzida e divulgada. A diversidade de identidades e práticas musicais que se produzem em cada comunidade evangélica possibilita uma crítica à visão generalizante da música gospel, fazendo-se necessário entendê-la como múltipla e complexa, produzida a partir de relações sócio-culturais específicas (Reck, 2011).
Algumas das problematizações finais da pesquisa de Reck (2011) são encaminhadas para o debate aqui proposto ao tratar das implicações do ensino de música na escola pública:
Tomando cuidados para não correr o risco de negar ou desvalorizar significações musicais pessoais, ou de reduzir e classificar a música gospel como uma forma de música 'diferente', recorrendo assim a uma interpretação restrita de multiculturalismo, o educador musical deve estar aberto ao diálogo, promovendo uma maior aproximação entre o ensino musical e as vivências musicais pessoais dos alunos, podendo a partir daí estabelecer novos significados musicais, que ampliem a concepção de música numa perspectiva plural e complexa (Reck, 2011, p. 132).
Tais pesquisas, brevemente abordadas5, apesar dos diferentes enfoques, estão longe de possibilitar um conhecimento amplo e profundo sobre as identidades religiosas dos sujeitos e suas implicações com o ensino de música na escola. Mas permitem, ao menos, abrir o dialógo sobre algumas questões importantes, que podem integrar as discussões sobre a pluralidade cultural na educação musical. Alguns elementos desse debate podem ser anunciados a seguir, a partir das considerações finais desse texto - mas podem apresentar-se, ao mesmo tempo, como o início de conversas futuras.
Encaminhando possíveis debates
Podemos pensar que a dimensão religiosa no âmbito social é um aspecto complexo e se apresenta de várias formas, desde maneiras de representação da realidade até princípios éticos. Para Geertz (1989, p. 95), "um conjunto de símbolos sagrados, tecido numa espécie de todo ordenado, é o que forma um sistema religioso"; sendo que para os que se comprometem com ele, "tal sistema religioso parece mediar um conhecimento genuíno, o conhecimento das condições essenciais nos termos das quais a vida tem que ser necessariamente vivida".
Existem relações entre a música e determinadas denominações religiosas que merecem cuidados específicos, correndo o risco de ofender a expressão religiosa de algum aluno se ignoradas ou mal interpretadas. Dessa forma, o professor atento a essas tensões, ao conhecer mais sobre a realidade musical do aluno, pode abrir-se ao diálogo, propondo outras possibilidades de repertório ou instrumentais, por exemplo. Esse diálogo necessita, ao menos de uma maneira geral, de uma compreensão por parte do professor sobre algumas implicações envolvidas na relação música-religião.
Seguindo perspectivas de uma educação musical baseada no cotidiano (Souza, 2008), o educador musical, ou o responsável pelo ensino do conteúdo musical, ao trabalhar na escola, deverá levar em consideração a experiência pessoal que o aluno tem com a música. A dimensão religiosa pode surgir nessas experiências em torno de questões fundamentais, colocadas como geradoras de concepções e modos de ser que levam em conta a própria significação da vida e da morte.
Através dos símbolos sagrados a religião ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica e projeta imagens da ordem cósmica no plano da experiência humana. Compreender uma prática religiosa inscrita no contexto cultural é compreender todo um conjunto de crenças que se movimentam entre uma concepção idealística de valores e disposições, e a possibilidade de realização dessas concepções no fazer empírico (Reck, 2011, p. 21).
Muitas vezes os conflitos que se criam são justamente pelas tensões entre as diferentes crenças presentes entre os alunos numa sala de aula. É possível uma comparação com as tensões geradas quanto aos diferentes repertórios musicais provenientes dos vários grupos sociais, como já foi estudado na literatura da Educação Musical (Green, 1997; Penna, 2012; Quadros Júnior e Lorenzo, 2013). Da mesma maneira como o(a) professor(a) gerencia os debates considerando o respeito aos diferentes gostos musicais, ele(a) poderá buscar um diálogo que admite o valor que cada pessoa dá a sua experiência musical religiosa, quando o tema em questão for a apreciação, composição, execução ou simples relato de uma vivência musical cotidiana.
Mais do que prescrições sobre como lidar com as religiões no ensino de música na escola, as reflexões aqui desenvolvidas se tornam ponto de partida para novos debates sobre o tema. Nesse sentido são convites feitos para pensarmos em uma realidade de educação musical que leve em consideração as experiências do mundo vivido, suas potências, seus medos, desejos, sonhos, crenças, estranhamentos e (re)significações.
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Notas
Autor notes
Universidade Federal de Santa Maria. andremreck@hotmail.comUniversidade Federal de Santa Maria. analoock@hotmail.com