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A produção de jogos eletrônicos para a educação: investigando os bastidores
Developing electronic games for education: Exploring the backstage
A produção de jogos eletrônicos para a educação: investigando os bastidores
Educação Unisinos, vol. 21, núm. 3, pp. 374-386, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Recepção: 20 Março 2017
Aprovação: 11 Setembro 2017
Resumo: Este artigo propõe uma análise dos bastidores de produção de Jogos Eletrônicos Educacionais. Para isso, acompanha o dia a dia da equipe envolvida em sua construção, suas negociações, suas falas, seus atos, na busca de observar a que eles reportam, que materiais utilizam, que noções sobre educação eles têm para “etiquetar” um jogo como educacional. Esses artefatos digitais são produzidos e chegam ao consumidor final como uma caixa-preta, na qual não está registrado o que aconteceu durante seu desenvolvimento. A proposta é abrir essa caixa-preta e investigar que noções educacionais circulam nos bastidores de produção. Têm-se como referencial teórico-metodológico os conceitos de ator, fachada e bastidores de Goffman para o estudo das equipes de produção; a Teoria Ator-Rede (TAR) de Bruno Latour para o mapeamento das redes que formam os produtos-caixas-pretas; e a descrição densa dos ambientes observados a partir das orientações advindas da experiência antropológica de Geertz. Verificamos, na instituição pesquisada, que as concepções circulantes sobre a natureza educacional dos jogos limitam-se à nomeação de poucos autores acadêmicos e à presença eventual de um pedagogo. Indicamos a relevância de um aprofundamento sobre os bastidores de produção de jogos eletrônicos rotulados como educacionais, apresentando e propondo um roteiro de questões para novos estudos.
Palavras-chave: jogo eletrônico educacional, bastidores de produção, concepções educacionais.
Abstract: This article presents an analysis of the backstage of Electronic Educational Games production. To this end, the first author accompanied the day to day of ateam involved in game construction, noting negotiations, talk and actions of team members, seeking to observe what they report, which resources they utilize and which educational conceptions they use as basis to attach the label ‘educational’ to a game. These digital artifacts are produced and reach the final consumer as a black box, devoid of registers on what happened during its development. The idea is to open this black box and investigate the educational notions that circulate in the backstage during production. We used as theoretical and methodological framework Goffman’s concepts of actor, facade and backstage for the study of production teams; the Actor-Network Theory (ANT) of Latour for mapping the networks that form the black-box products; and the idea of thick description of environments, following guidelines from Geertz’s the anthropological experience. We verified in the studied institution that current conceptions on the educational nature of games are limited to citations of a few academic authors and the occasional presence of a pedagogue. We indicate the relevance of a further study on the production backstage of electronic games labeled as educational, presenting and proposing a list of questions for future studies.
Keywords: educational games, production backstage, educational conceptions.
Introdução
O acesso a objetos e registros pictóricos, produzidos por nossos antepassados, evidencia a utilização de jogos em brincadeiras e também como forma de passar o tempo, desde as primeiras civilizações conhecidas por nós. Os jogos artesanais faziam parte das atividades de entretenimento e também na simulação de disputas e de obstáculos enfrentados cotidianamente para a sobrevivência. Nos últimos três séculos, sua produção passou do artesanal para a modalidade fabril, alcançando escalas na ordem de milhões de artefatos produzidos em série, o que marcou a presença dos jogos, em suas diferentes modalidades, em mercados de alcance mundial.
Percebe-se, há algum tempo, que escolas utilizam os jogos eletrônicos com a proposta de mediar o processo de ensino-aprendizagem. Alguns desses jogos são declarados jogos eletrônicos educacionais, ora por seus produtores, ora por seus utilizadores, ou ainda por ambos. Alunos e professores brincam com estes artefatos com o intuito de que estes atuem como coadjuvantes no processo de construção de conceitos e, consequentemente, de conhecimento. Como exemplo, temos o Colégio Bandeirantes, de São Paulo, e a Escola Sul-americana, de Salvador, que incluem, em suas atividades, jogos criados com intuito de recreação (Ribeiro, 2012).
Com a intenção de perceber a constituição de noções circulantes em ambientes de produção destes jogos, este estudo propõe investigar “etiquetas”, que são “coladas” pelos criadores/produtores de jogos eletrônicos quanto decidem situá-los na categoria educacional. Usamos aqui a expressão “etiquetamento” metaforicamente, como processo de atribuição de sentido através de uma construção cotidiana realizada socialmente.
Este artigo está divido em cinco seções. Na primeira, apresentamos uma breve introdução sobre jogos eletrônicos educacionais que carregam em si o propósito de serem intencionalmente educativos. Na segunda, escrevemos sobre jogos eletrônicos com propósito educacional. Depois, relatamos sobre o que é escrito nas pesquisas sobre o tema no Brasil. Na quarta seção apresentamos os procedimentos metodológicos da pesquisa. Na última parte trazemos alguns resultados, com base em métodos que se ajustam aos chamados estudos qualitativos. Ao fim, algumas conclusões e recomendações são tecidas, pois acreditamos que trabalhos qualitativos contribuem para situarmos o tema e provocar discussões para pesquisas posteriores sobre o assunto.
Breve introdução sobre jogos
A palavra jogo vem do latim iocus e significa brinquedo e divertimento. Um jogo pode ser qualquer artefato que entretém e diverte ou a própria relação desenvolvida pelos participantes com suas regras e convenções de cenário. O jogo, de forma geral, apresenta uma gama de situações que envolvem e entretém as pessoas. Huizinga (2005, p. 6) nos esclarece que o jogo é uma atividade universal e anterior à própria cultura:
Ao tratar os problemas do jogo diretamente como função da cultura, e não tal como aparece na vida animal ou da criança, estamos iniciando, a partir do momento em que as abordagens da biologia e da psicologia chegam ao seu termo. Encontramos o jogo na cultura, como elemento dado existente antes da própria cultura, acompanhando-a, marcando-a desde as mais distantes origens até a fase da civilização em que nos encontramos agora.
De forma geral, na educação vê-se os jogos de forma otimista, como ambiência favorecedora ao desenvolvimento humano. Com os jogos, as pessoas, a princípio, adquirem novos conhecimentos e, mesmo sem perceber, desenvolvem algumas funções cognitivas. Sutton-Smith (2006), um autor de viés mais crítico, usando a Teoria da Argumentação (retórica moderna), chama esta atribuição de função aos jogos de retórica do jogo como progresso, mais associada ao uso dos jogos durante a infância com fins de socialização e desenvolvimento moral e cognitivo.
A produção de jogos eletrônicos declarados educacionais cresce a cada dia. O mercado possui centenas destes produtos disponíveis para compra, download gratuito, ou mesmo para jogar diretamente em ambiente online. O jogo eletrônico, mais conhecido como videogame ou console, é um artefato (hardware mais software) em que o sujeito (jogador) interage com imagens reproduzidas em uma tela, como as da televisão, do monitor de computador e dos dispositivos móveis, resultantes de cenários eletronicamente e matematicamente simulados, com base ou não em situações reais. São muitas as categorias de jogos e podemos classificar de diferentes formas, de acordo com seu objetivo. Como exemplo, podemos citar os jogos de ação, os estratégicos, os de aventura, de adivinhação, os esportivos, os de simulação, os role-playing games (RPG), entre outros.
Esses jogos são altamente atrativos, proporcionando a imersão em ambientes e atividades diversas com alto grau de interação reativa4 a partir dos cenários e personagens previamente programados e cada vez mais realistas em suas cores, texturas e sombras. São inúmeras as marcas e artefatos existentes atualmente dedicados a jogos eletrônicos, sendo alguns dedicados somente a esta tarefa, como o consoles Playstation e Xbox, outros usam os nossos computadores de mesa e computadores móveis, tablets e celulares, para funcionarem.
Huizinga (2005, p. 3-4) define jogo da seguinte maneira:
O jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo, existe algo em jogo que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação.
Sob esse enfoque, podemos entender o jogo como algo que provoca e instiga a vontade de se superar, em uma contínua necessidade de ir além, materializada em desafios crescentes que podem envolver jogadores solitários ou em grupos. O jogo então é ancorado na ludicidade, no divertimento acarretado pelo ato de brincar, mobilizando o uso do raciocínio lógico e/ou de atributos sensório-motores, além de entreter e desenvolver habilidades nos jogadores.
Este conjunto de pressupostos (ou concepções de desenvolvimento humano) podem ser entendidos como basilares para os educadores acadêmicos partidários do jogo como forma de desenvolvimento da aprendizagem e da socialização. Segundo Henricks (2008), a metáfora desse tipo de abordagem é a do veículo que ajuda as pessoas (especialmente em sua infância) a atingirem novos patamares progressivos de habilidades, conhecimentos e compromissos de valor. Autores que estão entre a educação e a psicologia do desenvolvimento, como Jean Piaget e Lev Vygotsky, seriam representantes desta concepção.
Sobre o desenvolvimento mercadológico dos jogos eletrônicos, os dados fornecidos pela Abragames - Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Digitais, cujos principais objetivos são “organizar, coordenar, fortalecer e promover a indústria brasileira de jogos digitais”, são reveladores. A associação catalogou, no ano de 2005, 55 empresas desenvolvedoras de games digitais no Brasil (Abragames, 2005). A entidade identificou algumas categorias no mercado de jogos, como aqueles dedicados ao “entretenimento puro, o de middlewares (ferramentas necessárias para o processo de desenvolvimento e manutenção de jogos), o de advergames (jogos com vocação publicitária) e o de business games (simulações de negócios com fim de aprendizado)” (Abragames, 2005, p. 7).
Em seu outro estudo realizado em 2008, a Abragames descreveu a existência de 42 empresas que produziam software para jogos eletrônicos, sendo 43% desta produção destinada ao mercado externo (Abragames, 2008). Em 2013, a CMConsultoria - empresa de consultoria para instituições de ensino superior - divulgou um salto significativo de empresas associadas à Abragames, chegando a 220.
Neste conjunto de jogos eletrônicos, estão os jogos eletrônicos educacionais. Estes, aparentemente, possuiriam as mesmas características dos jogos anteriores, mas diferenciando-se pelo foco em conteúdos classificados como escolares e a consequente sua aprendizagem por alunos, sendo então, em tese, norteados por concepções educacionais. Praseres Júnior (2010, p. 37) define os jogos eletrônicos educacionais como aqueles que “são utilizados nas escolas como mediadores de aprendizagens e veiculam conteúdos ou habilidades exigidos pelo currículo escolar”, denominados schoolgames. Desta forma, professores podem utilizá-los como coadjuvantes em sua prática pedagógica, combinando aspectos educacionais com entretenimento (Tarouco et al., 2004inAnacleto et al., 2008).
Alguns jogos classificados como educacionais foram disponibilizados no mercado nacional. Dentre muitos, podemos citar os jogos Cabanagem, Estrada Real, Viacorpo, Quimgame, Tríade, O que é o que é, Dimus, Kinble - “em busca de conhecimento”5 . Eles realmente veiculam conteúdos escolares/curriculares, porém a questão crucial - que não encontramos explicações suficientes em estudos anteriores - relaciona-se às noções que circulam sobre educação nos bastidores de produção da equipe que os criou, levando-os a “etiquetar” um jogo como educacional (atribuição de significado).
A produção de jogos eletrônicos com propósito educacional
Na área educacional compartilha-se a ideia de que os jogos têm a possibilidade de desenvolver funções cognitivas em crianças e adultos, evocando-se, para isso, estudiosos como Vygotsky, Piaget e Freinet. Estes autores concordam que em algum momento os jogos trabalham o desenvolvimento sensório-motor, a imaginação e seu aspecto simbólico, a aprendizagem significativa e preparam as crianças para a vida e o trabalho.
Dos jogos citados na seção anterior, todos são declarados educacionais por seus produtores. São jogos que entretêm, e, sobretudo, veiculam conteúdos curriculares. Estes jogos podem estar repletos de possibilidades (trilhas, caminhos, modos de uso) que objetivam a construção do conhecimento pelos sujeitos que os utilizam. Vejamos alguns desses jogos e uma breve descrição sobre seu conteúdo e local de produção:
Cabanagem - trata da “Revolta da Cabanagem” ocorrida no Pará no século XIX. Foi desenvolvido no Laboratório de Realidade Virtual (LaRV) da UFPA (LaRV, 2009).
Estrada Real (Sourceforge, 2016) - aborda a História da Estrada Real e das cidades coloniais ao turismo do século XXI e elementos culturais como culinária e o Congado. Foi desenvolvido em parceria entre o Departamento de Ciência da Computação da UFMG e o Centro de Convergência de novas mídias.
Viacorpo (Fabro et al., 2009) - Game 2D, em estilo narrativo e Puzzles (quebra-cabeças), aborda conteúdos da disciplina de biologia para estudantes dos 7º e 8ª anos. Foi desenvolvido pela UNIOESTE.
Quimgame (Marinho, 2010) - jogo que ensina a Química Orgânica para alunos do ensino médio. Desenvolvido em parceria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IFSUL).
Tríade (Tríade, 2008) - insere os alunos do ensino fundamental e médio no universo do século XVIII, especialmente na Revolução Francesa, despertando o desejo de aprender de forma lúdica e prazerosa, desenvolvido na Universidade do Estado da Bahia.
O que é o que é (Lia UFSCar, 2011) - trabalha conteúdos gerais. Este jogo possui como característica o ambiente colaborativo e educacional, via web. Foi desenvolvido pelo Laboratório de Interação Avançada (LIA) no Departamento de Computação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Nossa pesquisa tomou por base quatro jogos desenvolvidos por um laboratório de uma Instituição Federal de Ensino, referido nesse texto com nome fictício de LABJOG.
Jogo 1 - aplicativo para dispositivos móveis constituído de dez fases e cada uma delas gera seis quizzes aleatórios de acordo com o banco de dados pré-definido.
Jogo 2 - jogo educacional 3D com acesso a banco de dados de questões. O principal objetivo deste jogo é preparar alunos do Ensino Médio para o vestibular.
Jogo 3 - tem como objetivo ensinar algoritmos.
Jogo 4 - voltado para o ensino da matemática.
Estes jogos, escolhidos dentre outros disponíveis no LABJOG, foram declarados educacionais pelos seus criadores, pois, segundo eles, além terem como objetivo o desenvolvimento do aspecto lúdico e o raciocínio lógico, veiculam conteúdos escolares. Nesse contexto, - acompanhando o dia a dia da equipe, analisando a negociação, as falas, a que se reportam, a que materiais pesquisam, ou seja, que noções de educação circulam nos bastidores de produção para a equipe declarar o jogo educacional - nos compete entender como a “etiqueta” educacional é atribuída ao jogo, analisando os bastidores de produção, sendo a noção de “bastidor” inspirada nos estudos de Erving Goffman.
O conceito de bastidores “pode ser definido como o lugar [...], onde a impressão é sabidamente contradita como coisa natural, ou seja, local onde os fatos suprimidos aparecem” (Goffman, 2008, p. 106). Assim, entendemos por bastidores, o local em que a equipe de produção trabalha o desenvolvimento de um artefato6, interagindo durante o seu desenvolvimento, no qual nascem concepções e modos de trabalho que não transparecem depois para aqueles que fazem o uso de seus produtos.
Pesquisas sobre jogos educativos no Brasil: o trinômio antes-durante-depois
O crescimento das publicações online facilita o acesso aos trabalhos acadêmicos disponíveis para consultas em bases de dados acadêmicas, bem como a páginas relacionadas com jogos eletrônicos educacionais. São artigos, dissertações, teses, encontradas em sites de revistas científicas, congressos e seminários. Observamos nesses estudos que o desenvolvimento destes artefatos vem sendo feito, em parte, em laboratórios de pesquisa e grupos de estudos em unidades acadêmicas.
Segundo revisão bibliográfica capitaneada por Alves (2013) abrangendo teses e dissertações brasileiras no período de 1994 a 2010, as áreas de Educação e Comunicação estão liderando as investigações nesse campo, havendo um crescimento numérico de estudos a partir de 2006, sendo que os temas predominantes nestes estudos são ludicidade e aprendizagem. Quanto à educação, o percurso mais comum seguido é o das teorias psicogenéticas (psicologia do desenvolvimento), com os autores Vygotsky e Piaget liderando o quadro de referências.
Mas o que nos inquieta é a questão da etiqueta educacional atribuída a alguns desses jogos, os significados que circulam em suas equipes de produção. Geralmente os trabalhos acadêmicos falam do “antes” e do “depois” do processo de produção. Alguns pesquisadores investigam o “antes”, o planejamento dos jogos, como devem ser construídos, como deverão ser as interfaces destes produtos para atrair a atenção dos usuários, como no trabalho de Cruz (2013, p. 15) que “objetiva descrever como as empresas desenvolvedoras de jogos eletrônicos, da cidade de Florianópolis, gerenciam o design” para atingir um público específico. Os estudos de Schuytema (2008) ensinam as técnicas para se tornar um game design, desde o planejamento do jogo até como escalonar desafios, além de ensinar a linguagem de programação Lua. Tavares (2005) ensina noções básicas de game design para que educadores e pessoas não especializadas possam escolher jogos a fim de utilizá-los com seus alunos, sem interferir negativamente no processo ensino-aprendizagem.
Outros pesquisadores investigam o “depois”, o jogo já finalizado e suas possibilidades de interferência no processo ensino-aprendizagem, como nos estudos de Grübel e Bez (2006) e Rosa et al. (2006). Eles apresentam as vantagens e possibilidades do jogo educacional como ferramenta coadjuvante no processo de construção do conhecimento. Outros discutem sobre a importância da utilização de jogos educacionais na educação, como forma de motivação do aluno, com a utilização de ferramentas na construção do jogo, como no trabalho de Tarouco et al. (2004). Há também estudos que testaram os produtos, apresentando o resultado da pesquisa. Algumas pesquisas falam do processo de desenvolvimento destes jogos, a exemplo de Tarouco et al. (2004), que ressalta a necessidade de escolher bem o tema, planejar os objetivos do jogo, selecionar as imagens e mídias, e, após isso, procurar uma ferramenta adequada. Aranha (2005) diz que a elaboração de jogos educacionais não pode ser vista apenas pelo paradigma da emissão e recepção direta de conteúdos, precisa ser vista como um processo argumentativo, reflexivo e interativo.
O que não encontramos, em nossa revisão de literatura, são pesquisas que aprofundem os estudos sobre os bastidores de produção com intuito de investigar que noções sobre educação circulam entre os componentes da equipe de desenvolvimento, a que materiais eles recorrem durante a produção dos jogos, como são as negociações do grupo para atribuírem ao jogo a “etiqueta” educacional. Ou seja, faltam mais estudos sobre o “durante”, levando-se em consideração o trinômio antes-durante-depois.
Diante deste dado, não queremos investigar como o jogo desenvolve o aspecto lúdico ou se ele é eficaz para a aprendizagem de conteúdos curriculares. Nosso foco está no entendimento dos pontos que os atores envolvidos no processo de produção se baseiam para rotular o jogo de educacional, ou seja, que noções sobre educação eles possuem, se consultam alguma fonte de referência, como livros, documentos governamentais, pesquisas acadêmicas; se pesquisam sobre algum autor da área de educação ou se sabem definir o que é “ser educacional”.
O trabalho que mais se aproxima da proposta deste artigo foi “Ambiente para criação de jogos educacionais de adivinhação baseados em cartas contextualizadas”, de Anacleto et al. (2008). Este jogo é uma parceria do Laboratório de Interação Avançada (LIA) da UFSCar com o MediaLab do Massachusetts Institute of Technology (MIT), e trata da criação do jogo O que é o que é. Este jogo possui algumas fases desenvolvidas com base nas teorias pedagógicas de Piaget, Vygotsky e Ausubel, porém difere de nossa proposta, com intuito de fazer uma descrição densa das relações que ocorrem na rede formada pela equipe de produtores humanos com os objetos (coisas) não-humanas.
Procedimentos metodológicos da pesquisa
Inicialmente procuramos identificar quais jogos foram desenvolvidos no LABJOG, quem participou de sua produção e avaliar o que entendiam por educacional. Para isso, enviamos um primeiro questionário para 49 alunos e cinco professores orientadores, dos quais responderam 26 alunos e todos os cinco professores. Identificamos oito alunos e três professores orientadores que participaram do desenvolvimento de jogos declarados educacionais. Para esses alunos e professores foi aplicado um segundo questionário que teve como objetivo compreender como o jogo foi “rotulado” de educacional.
A partir dessas respostas foram definidos três jogos, já produzidos, que seriam objeto de estudo de nossa pesquisa, juntamente com um quarto jogo, ainda em desenvolvimento. Esse último jogo foi acompanhado por um dos autores deste artigo, que realizou anotações em um diário de campo, entrevistas e análise documental com resultado exposto de forma resumida neste artigo. Além da observação participante, durante o acompanhamento do Jogo 4, os documentos utilizados pela equipe de produção foram analisados e, também, realizadas entrevistas com o professor orientador e os cinco alunos participantes do projeto.
Recorremos a autores que oferecessem suporte teórico ao tipo de investigação aqui pretendida. Optamos, então, por desenvolver um estudo de caso, em uma pesquisa descritiva, definido “como um estudo intensivo, exaustivo e profundo sobre um indivíduo, evento, instituição ou comunidade visando estabelecer relações entre aspectos relevantes para sugerir hipóteses explicativas para um fenômeno” (Castro et al., 2013, p. 13).
Fundamentação teórico-metodológica
O aporte teórico-metodológico para a compreensão da problemática posta recorre aos estudos e propostas conceituais de Erving Goffman, Bruno Latour e Clifford Geertz.
Para o estudo da equipe de produção, seu comportamento cotidiano e suas formas de representação, propomos a utilização da lente de observação das interações entre sujeitos e grupos de sujeitos desenvolvida nos trabalhos de Goffman (2008). Além do já citado conceito de bastidores, outros dois conceitos nos guiaram para o estudo das equipes de produção: o de ator e o de fachada. Por ator, entendemos aquele que representa, deixa traços e produz um efeito na rede - em nosso caso são membros da equipe de desenvolvimento do jogo - e por fachada, a representação de um indivíduo com o fim de definir a situação para os que observam a representação.
De Latour (1997), tomamos a Teoria Ator-Rede (TAR), uma teoria que postula que os atores humanos e não humanos (pessoas e objetos), denominados Actantes, estão interligados em uma rede de elementos (materiais e não materiais), referindo-se à noção de fluxos, circulações e alianças (Latour, 1997). Em nosso caso, a rede foi a equipe de desenvolvimento, os computadores, os materiais como livros, artigos, autores, ou seja, tudo que dê suporte para orientar a produção do jogo educacional. Assim pudemos pensar o mapeamento da informação que percorre a rede de relações dos atores que compõe os bastidores de produção dos jogos no LABJOG, redes que formam os produtos-caixas-pretas7; e a descrição densa dos ambientes observados a partir das orientações advindas da experiência antropológica de Geertz (1989), como uma descrição detalhada, minuciosa, atenta aos mínimos detalhes, que em nosso caso foi possível com a observação do ambiente para compor o diário de campo.
Todo este aporte teórico foi costurado com a intenção de obter definições e/ou conceituações sobre a temática em questão.
Incursão em campo
O cenário de estudo, representado por seus atores humanos e artefatos não-humanos, é o LABJOG, um laboratório de Multimídia Interativa que desenvolve produtos, como projetos cenográficos e multimídia, nas áreas de Educação, Entretenimento e Propaganda, situado no Departamento Acadêmico de Ciência da Computação de uma Instituição Pública Federal de Ensino.
No Laboratório, alunos e professores formam a base da rede de atores humanos e não-humanos envolvidos na produção de jogos eletrônicos de diversas categorias. No total são quinze integrantes alunos do ensino superior, mais cinco orientadores/professores, compondo os sujeitos-atores humanos. A Figura 1 mostra a rede de atores humanos e não-humanos do LABJOG, elaborada utilizando a ferramenta CmapTools.
A seguir, apresentamos extratos do registro das primeiras observações de campo realizadas por um dos autores deste artigo:
A primeira incursão no LABJOG foi por acaso. Estava passando em frente à porta do laboratório quando um professor que estava no laboratório me chamou. Entrei, assentei, fiquei conversando com ele, com os alunos, e observando o ambiente. Além do professor mais quatro alunos estavam no laboratório naquele momento. Os alunos estavam trabalhando em um artigo, e o professor os orientava quando era solicitado. Fiquei no recinto por cerca de trinta minutos. Durante o tempo que permaneci no LABJOG, fiz o primeiro mapeamento do ambiente. A sala do laboratório ocupa uma área de 25m2 aproximadamente. Tem dois banheiros e uma janela muito grande. O ar condicionado ainda não foi instalado, pois eles acabaram de chegar de mudança para esta sala em definitivo. Os atores não-humanos disponíveis na sala são oito computadores do tipo desktop, marca DELL, dois notebooks HP, e alguns tablets na caixa, além de internet, telefone, impressora multifuncional, e projetores. Perguntei a um aluno que software eles utilizavam no desenvolvimento de projetos, ele respondeu que dependia do projeto, mas normalmente são softwares para Computação Visual, Artes Gráficas e implementação de Sistemas de Tempo Real. São utilizados o software Unity 3D, 3D Studio Max, Corona, programação LUA, C# e JavaScript. Neste dia foi só.
Segundo nosso observador, nesse primeiro momento foi possível perceber a inexistência de um elo entre os jogos e aportes teóricos da área da educação. Apenas se falava em ferramentas de programação e desenvolvimento de softwares, não indo além desse aspecto.
Em uma de minhas visitas, encontrei outro grupo no laboratório, e desta vez não havia professor. Entrei e perguntei pelo Coordenador, só para puxar assunto. Percebi que eles também trabalhavam num [sic] jogo e perguntei - que bacana! O que é isso? Eles responderam - é um jogo de dominó para deficientes visuais. É um jogo de dominó comum. Fiquei conversando com eles por cerca de uma hora e observando o trabalho.
Os dois jogos que o LABJOG está desenvolvendo neste primeiro semestre não são educacionais. O último jogo educacional feito por eles foi no ano passado e é chamado Jogo 68. É um jogo que ensina matemática a crianças. Segundo informações do Coordenador, eles iniciarão o desenvolvimento de mais dois jogos educacionais no segundo semestre deste ano, para isso estão fazendo reuniões para planejamento dos jogos, um será destinado a alunos do ensino médio de uma escola estadual e outro aos alunos da APAE.
Essas incursões iniciais, que somaram cinco visitas realizadas, ofereceram informações de grande valia como, por exemplo, a observação de que os alunos não se preocupavam prioritariamente com as teorias educacionais/pedagógicas a serem adotadas, apenas trabalhavam no desenvolvimento do jogo, preocupando-se em veicular conteúdos de alguma disciplina escolar.
Também foi observado que o orientador, embora afirmasse que se baseava em um teórico da área da educação, não citou referências que remetessem às obras de tal autor. Em síntese, foi possível perceber que a orientação da área pedagógica era frágil ou mesmo ausente.
A partir das incursões em campo e de alguns levantamentos sobre o LABJOG, pode-se elencar que, nos últimos três anos, alguns jogos eletrônicos com fins declaradamente educacionais foram produzidos no laboratório. Esses jogos têm como foco:
Anatomia do corpo humano, mais especificamente para o estudo de anatomia esquelética. Possibilita navegar em 3 dimensões no esqueleto, contribuindo para o aprimoramento da Didática de cursos como os de Educação Física e Fisioterapia;
Perguntas e respostas com acesso a um banco de dados de questões voltado à preparação de alunos de Ensino Médio para o Exame de Vestibular;
Desenvolvimento de um simulador para criação de frangos de Corte que aborde na prática os processos de criação, com o objetivo de fazer com que o jogador se habitue com os procedimentos práticos exigidos na criação de frango de corte, auxiliando no seu aprendizado;
Desenvolvimento de um aplicativo, para uso em dispositivos móveis que executam Android, voltado à tradução para a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS);
Conteúdo da disciplina algoritmos e estrutura de dados, que auxiliam no ensino de programação para alunos do Curso de Ciência da Computação.
Em outro momento, percebemos que alguns alunos estavam trabalhando na montagem de um carrinho robô. Então foi questionado o que eles faziam e obtivemos a resposta que era um jogo para o desenvolvimento do raciocínio lógico em crianças. O material para montagem havia acabado de chegar. A partir desse momento, e por 4 semanas, em novembro de 2014, acompanhamos o desenvolvimento do jogo até sua finalização. Por meio da observação direta do cotidiano de produção desse jogo, conseguimos seguir a rede de atores envolvidos e seus desdobramentos.
O nome do jogo é “Ensino de lógica para crianças com Lego Mindstorms”, e foi desenvolvido por um professor/orientador e cinco alunos, todos da área da Ciência da Computação. Destes alunos, um trabalhou na montagem do robô, outro o ajudou na montagem do tablado no qual o robô se movimenta, dois ficaram no desenvolvimento do código fonte do jogo, que é a estrutura lógica que faz o software funcionar, e uma aluna está trabalhando na documentação, baseado nos padrões da Engenharia de Software. A documentação não foi concluída por ela, pois a aluna formou-se no início do ano de 2015 e não deu continuidade à produção. Outra aluna ocupou seu lugar, porém a documentação ainda não havia sido concluída até o final da pesquisa.
Esta documentação é o manual do jogo com todas as informações necessárias, desde sua implementação até como o utilizar. Dois dos cinco alunos farão o teste do jogo em uma turma de uma escola de ensino fundamental que ainda será selecionada. Os alunos irão para o laboratório de informática da escola selecionada para testarem o jogo. O teste consistirá em deixar os alunos jogarem para ver se o jogo funciona, deixando que a criatividade do aluno crie os caminhos e faça o robô se movimentar na direção desejada, ultrapassando os obstáculos que o aluno decidir.
Em resumo, este trabalho consiste no desenvolvimento de um jogo de tabuleiro colorido baseado na construção de pequenos algoritmos9 para o controle do robô. Como o nome do jogo indica, o seu foco é o ensino de lógica para crianças do ensino fundamental.
Em uma conversa com orientador do projeto, ele disse que o jogo começou a ser planejado no primeiro semestre de 2014 na disciplina Inteligência Artificial (IA), por ele ministrada. Na ocasião, os alunos estudaram a linguagem de programação C# utilizada na implementação do trabalho.
Nesta disciplina foram estudados e consultados materiais sobre Inteligência Artificial (IA) e programação, como consta na ementa da disciplina que está no Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de Ciência da Computação da Instituição a que pertence o LABJOG.
Porém, para cursar a disciplina IA, os alunos já teriam de ter cumprido e possuir conhecimentos das disciplinas Banco de Dados, Algoritmos e Estruturas de Dados II, Introdução à Ciência da Computação e Engenharia de Software. Todas estas disciplinas são do curso de Bacharelado em Ciência da Computação.
Na primeira semana seguiu-se a montagem do robô, que é composto por várias peças e cuja montagem foi trabalhosa. A Figura 2 mostra o início da montagem e as peças que comporão o robô.
Após a montagem do robô, iniciou-se a preparação do tablado no qual o robô se movimentaria. A Figura 3 mostra dois alunos elaborando a montagem do tablado.
A codificação do sistema começou na segunda semana de novembro de 2014 e durou 20 dias aproximadamente. A Figura 4 constata a elaboração do código fonte do jogo por um aluno e o orientador.
Por três semanas, os alunos, sob orientação de seu professor/orientador, desenvolveram o código que faz o robô se movimentar pelo tablado. Além dos conhecimentos adquiridos nas disciplinas citadas anteriormente, os desenvolvedores consultaram conteúdos do site “monobrick” (Monobrick, 2017) para codificar o jogo na linguagem C#.
Monobrick é um site pessoal e seu fundador se chama Anders. Ele reside na Dinamarca, possui mestrado em Tecnologia da Informação pela Universidade de Aalborg e, atualmente, ocupa o cargo de desenvolvedor de software na Foss Analítica. Seu site fornece uma biblioteca de códigos para serem usados por pessoas interessadas no assunto e o software, criado por ele e gratuito, permite controlar robôs pela internet. Estes foram os conteúdos consultados pelos desenvolvedores na implementação do jogo, acompanhado durante a observação participativa. A Figura 5 mostra a página principal do site “monobrick”.
Na última semana - a quarta - o jogo estava pronto e os testes iniciaram. Além de assistir a realização dos testes, tivemos a oportunidade de registrar alguns em vídeo.
Descrição do jogo
O jogo constitui de um tablado de cartolina com várias cores e obstáculos, em que cada cor representa um comando. Este tablado é previamente montado com as cores e obstáculos. A criança só vai digitar no computador o movimento que ela quer que o robô faça, como seguir em frente, virar à esquerda, e assim por diante. O algoritmo relaciona a direção (esquerda, frente, direita, etc) com as cores dispostas no tablado e envia uma mensagem ao robô dizendo o que ele deve fazer. A Figura 6 ilustra a concepção do formato do tablado.
As cores presentes no tablado são: preto, verde, amarelo, vermelho e azul. Estas cores cobrirão todo o tablado, para que a criança escolha o movimento que ela deseja que o robô faça. A cor preta diz ao robô que ele deve parar. A cor verde diz siga em frente. A cor vermelha diz vire à esquerda, e as outras também têm suas instruções. Alguns obstáculos também serão colocados para que o robô os ultrapasse. A Figura 7 é uma imagem de um dos vídeos gravados e mostra a tela do computador na qual o aluno ensina como são digitados os comandos, testando o jogo.
Os atores que constituem a rede
Durante nossa pesquisa, através da observação participante, mapeamos a rede de atores humanos e não-humanos que constituem o jogo. Cabe ressaltar que nossa intenção não é mostrar o jogo na íntegra, mas entender como ele foi declarado educacional. A Figura 8 mostra a rede de atores envolvidos no processo de desenvolvimento do jogo.
Apreensões gerais sobre o desenvolvimento do jogo
A equipe de desenvolvimento declara que o jogo é educacional por desenvolver o raciocínio lógico em crianças, conforme as falas dos desenvolvedores, mas não percebemos e nem foi fornecida nenhuma informação sobre materiais que falassem sobre desenvolvimento de raciocínio lógico relacionado com teóricos que oferecem suporte a este conceito na área de educação.
Segundo a equipe de desenvolvimento, o jogo é educacional por desenvolver o raciocínio lógico e por fazer com que as crianças prevejam a movimentação do robô para dar o comando de movimento. Isto quer dizer que as crianças pensarão e criarão um movimento para o robô andar, conforme sua vontade.
Entendemos que apesar de não haver uma consulta direta a teóricos da área de educação, este jogo se relaciona com a concepção pedagógica de construção do conhecimento do epistemólogo e biólogo Jean Piaget. Ele entende que a “construção do conhecimento ocorre baseada nas interações entre o sujeito e o mundo à sua volta” (Gauthier e Tardif, 2014, p. 356). Quando a criança interagir com o jogo, através dos desafios propostos nas tarefas requeridas para o seu uso, supõe-se que desenvolverá progressivamente as suas funções cognitivas.
Afinal, “o que faz” o jogo ser “educacional”?
Com base nas inserções em campo e informações obtidas por entrevista com um professor orientador do LABJOG, foi possível perceber que os jogos são declarados educacionais por veicularem conteúdos didáticos, por se apoiarem em algum teórico da área da Educação ou, ainda, por materiais consultados nos bastidores de produção dos jogos pela equipe de desenvolvimento.
Como exemplo, temos a declaração de um professor que participou do desenvolvimento de um jogo voltado para o ensino de Química. Ele declarou que o jogo produzido era educacional por conter conteúdos curriculares e por se aproximar da teoria desenvolvida por Vygotsky. Entretanto, apenas conter conteúdos de uma disciplina caracteriza um jogo como educacional? Houve também a ausência de maiores detalhamentos sobre os conceitos desenvolvidos por Vygotsky, não sendo informadas, com exatidão, quais fontes e obras do autor foram consultadas.
Outro exemplo é a afirmação de um aluno de que um jogo produzido por sua equipe foi considerado educacional, pois a equipe contou com a participação de uma pedagoga que distribuiu alguns materiais sobre Vygotsky e Piaget para os alunos estudarem e aplicarem no desenvolvimento do jogo. Entretanto, não foi esclarecido o grau de entendimento sobre os textos e detalhes sobre a orientação recebida.
Desta forma, a declaração de que um jogo é educacional é um processo, até certo ponto, simples, havendo um conjunto de ideias subentendidas nessa atribuição de sentido ao jogo produzido. Entretanto, quando seguimos a rede de atores humanos e não humanos para entender como o jogo foi concebido na categoria educacional, em que momentos tal processo se constituiu, percebemos que há diversas formas de atribuir e declarar este pertencimento, tendo ou não maior aprofundamento a respeito dessa atribuição, o que torna o processo de atribuição complexo, envolvendo intenções e sentidos que muitas vezes estão sobrepostos.
Considerações finais
Os questionamentos que surgiram a partir de observações e entrevistas nos levaram a uma reflexão crítica sobre o que a equipe de produção e desenvolvimento de jogos entende por “ser educacional”.
Nosso estudo, brevemente descrito neste artigo a partir dos registros sobre o Jogo 4, nos indica que é preciso ir além dos discursos declarados pelos sujeitos e aprofundar o conhecimento sobre os bastidores de produção, no sentido goffmaniano, destes jogos eletrônicos, classificados como educacionais por seus produtores. Afinal, afirmar que um jogo é educacional por veicular conteúdo curricular, ser lúdico (entreter) ou por se basear em algum teórico da área da educação (e de ciências afins) não nos parece ser suficiente, sendo necessário seguir a trilha de artefatos usados/consultados (ou não) pelos atores envolvidos em sua produção, neste caso, basicamente alunos e professores. Conforme Latour, entendemos aqui que os artefatos não-humanos exercem e recebem influência dos atores humanos na rede de confecção dos jogos eletrônicos e se tornaram muito importantes ao longo de nossa investigação.
Verificamos que as concepções circulantes sobre a natureza educacional dos jogos limitam-se a nomeação de poucos autores. Elas não são desenvolvidas com a devida profundidade, evidenciada, por exemplo, na ausência de referências concretas/nominais a obras de autores citados verbalmente pelos produtores - seriam artefatos ausentes que nunca fizeram parte da rede de produção? Que consequências esse fato acarreta para a consistência dos jogos - fundamentação teórico-conceitual? Por qual motivo os atores humanos são impelidos a preencher lacunas teóricas com tais referências, muitas vezes, superestimadas e pouco estudadas? Percebemos, a partir de Goffman, a construção de uma fachada que não resistiu por muito tempo às incursões em campo realizadas pelo nosso primeiro autor, revelando aos poucos os bastidores de produção desses jogos.
Tais processos nos levam a refletir sobre a crescente onda de termos e conceitos técnicos na área de tecnologias educacionais, tais como mobile learning, personal learning enviroment e gameficação, e o apelo a termos já consagrados, mas nem por isso plenamente conhecidos, tais como aprendizagem colaborativa, construção do conhecimento, construtivismo, raciocínio lógico e ludicidade. É certo que estamos falando de um laboratório universitário com alunos de graduação da área tecnológica, porém a responsabilidade quanto às teorias e conceitos utilizados se torna maior quando tais produções são testadas, após sua confecção, com crianças em escolas de ensino fundamental. A imersão neste laboratório indicou a necessidade de constituição de equipe interdisciplinar, pelo menos nas duas áreas principais, a Informática e a Educação, o que ajudaria na ampliação da consistência do projeto, podendo se agregar áreas afins como a Psicologia, para estudos específicos sobre o processo de desenvolvimento cognitivo de crianças e jovens.
Este artigo deixa como desdobramentos a proposta de aprofundamento de algumas dimensões que envolvem a produção de um jogo eletrônico categorizado (“etiquetado”) como educacional: o que circula, entre noções e conceitos, nos bastidores de produção de jogos eletrônicos quando o tema é educação? A que materiais os integrantes da equipe de desenvolvimento se reportam? A que autores se referem e se integram seus pressupostos? O que consultam durante a produção do jogo para etiquetá-lo de educacional? Estas questões servem, também, como roteiro de pesquisa e indicações sobre quais trilhas seguir nos bastidores de produção.
Para conduzir tal empreitada, o estudo de caso, exploratório, descrito no presente trabalho, composto por mais outros três casos de produção analisados em nossa pesquisa (Carvalho, 2015), além de possibilitar uma aproximação com o campo, permitiu avaliar positivamente a pertinência da metodologia original - de inspiração antropológica e sociológica - com que foi conduzido. Acreditamos que este modelo pode ser replicado em futuros estudos sobre os bastidores de produção de jogos eletrônicos e outros artefatos aplicados e destinados à educação.
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Notas
Autor notes
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais. sandro.paiva@ifsudestemg.edu.brUniversidade Estácio de Sá. smpedrosa@gmail.comInstituto Nacional de Educação de Surdos. alexandre.rosado@gmail.com