Resumo: Este artigo problematiza a dimensão epistemológica que sustenta a proposta da Base Nacional Comum Curricular. Para isso, discute as concepções de competências e de conhecimento que são apresentadas no documento do MEC, explorando o conceito de Economia do Conhecimento como matriz da proposta curricular. Isso possibilita estruturar e compreender a concepção curricular que se deseja implantar nas escolas brasileiras. A conclusão foi de que todo aparato discursivo de direito ao ensino não faz mais do que constituir a competitividade como fundamento da educação. O empobrecimento do conhecimento, reduzido a mera competência, não opera para a vida qualificada pela cultura, mas para o produtivismo econômico, pois toda uma dimensão ética e estética é alijada do processo educacional.
Palavras-chave: currículocurrículo,Base Nacional Comum CurricularBase Nacional Comum Curricular,economia do conhecimentoeconomia do conhecimento,epistemologiaepistemologia.
Abstract: This article problematizes the epistemological dimension that underpins the proposal of the National Curriculum Standard. In doing so, it discusses the conceptions of competences and knowledge that are presented in MEC’s document exploring the concept of knowledge economy as the matrix of the curricular proposal. This makes possible to structure and understand the curricular conception that one wishes to implant in Brazilian schools. The conclusion was that every discursive apparatus of the right to education does nothing more than constitute competitiveness as the foundation of education. The impoverishment of knowledge, reduced to mere competence, does not operate for qualified life by culture, but for economic productivism, since an entire ethical and aesthetic dimension is neglected in the educational process.
Keywords: curriculum, National Curricular Common Base, knowledge economy, epistemology.
Dossiê: Políticas de Currículo e Docência: significados, impasses e desafios no contexto Iberoamericano
A Base Nacional Comum Curricular e o conhecimento como commodity
The National Curricular Common Base and knowledge as a commodity
Recepção: 19 Setembro 2017
Aprovação: 19 Dezembro 2017
A pausa é germe do porvir, sem ela não existem as descontinuidades que proporcionam o aprendizado. É por ela que o aprender rompe com esquemas sensório-motores instituídos e acumulados, que regulam a ação-resposta; bem como destitui a autoridade de um Eu que sempre tem algo para desenvolver, reproduzir, representar. A pausa é processus do aprender, desde que o aprender não se diz de saberes fundados, onde se tramam procederes teleológicos, não se ajusta com o progresso, a utilidade, ou com uma boa vontade. Tem a ver, sim, com um processus interminável, como “O processo” kafkiano (Kafka, 1979), que não segue a Lei, mas um desejo móvel que se alastra, se conecta, cria (Fernandes, 2013, p. 18).
Este texto é movido pela ideia de que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) proposta pelo MEC, ao normatizar as competências necessárias e os conhecimentos que todos os estudantes brasileiros devem aprender (têm o direito de aprender, segundo a terceira versão do documento), reforça postulados universalizantes e partilha da ideia de neutralidade do conhecimento e reduz a educação a uma dimensão instrumental em favor das demandas de mercado.
A proposta de uma Base, elidindo o quanto já se avançou na compreensão do significado do currículo, suprime o debate sobre a não neutralidade do conhecimento e da própria educação. Debate este que já nos anos sessenta o campo curricular demonstrou com fartas pesquisas e importantes teorizações. Mas também fora do campo curricular, antes dos anos sessenta do século XX, Karl Popper (1991) já alertava que muitas das soluções científicas eram encontradas fora do campo da ciência, e mesmo Heidegger (1983) fazia ver o quanto nossos critérios científicos tinham muito pouco de científicos, ou mesmo Bachelard (1971), que desde o início do século passado nos ensinava sobre o pluralismo das ciências, teorizando sobre a natureza aberta do conhecimento, pois enredada dentro da história e dentro da cultura.
No campo curricular, Michel Young (1971), já na década de 70 do século XX - antes de seu atual pânico epistêmico, que o faz defender o conhecimento poderoso (2016) -, já incorporava as lições acima, e reivindicava o quanto o currículo não poderia ser encerrado em listagens de conteúdos e objetivos, pois havia vida nas escolas e nas salas de aula que mereciam ser estudadas, compreendidas. Também William Pinar (1975), com base na fenomenologia, defendia um outro conceito para o currículo e uma outra postura investigativa sobre a educação. Pelo método autobiográfico, Pinar nos instigava a pesquisar as formas pelas quais nossas subjetividades e nossas identidades eram formadas pelo currículo.
Foram para esses movimentos que o currículo se abriu a uma compreensão mais complexa quanto a seus sentidos e aos jogos de significação que produzia. Dando um passo adiante das teorizações críticas da reprodução e da resistência, o campo curricular entendeu que o currículo estava implicado na luta por significação e na produção de sentidos, posto que se tratava - se trata - de uma prática cultural, de uma prática de significação. E como prática de significação, o currículo é uma prática produtiva, constituída em relações de poder (Silva, 1999).
Minimamente, ao estabelecer a ideia de uma Base Nacional Comum Curricular para escolaridade brasileira, o que se coloca em suspeita é o fato de que seus proponentes ignoraram todo esse deslocamento conceitual e epistemológico que o campo construiu, cujo pressuposto é a radicalização das relações democráticas dentro das escolas.
Isso é uma face de um problema de várias faces. Todavia, nesse texto, vamos tratar da dimensão epistemológica da Base Nacional Comum Curricular.
Na apresentação da terceira versão da BNCC, o documento alerta que a Base “é fruto de amplo processo de debate e negociação com diferentes atores do campo educacional e com a sociedade brasileira” (Brasil, 2017, p. 5), e afirma que entre outubro de 2015 e março de 2016, recebeu mais de 12 milhões de contribuições, “além de pareceres analíticos de especialistas, associações científicas e membros da comunidade acadêmica” (Brasil, 2017, p. 15), bem como foi submetida à discussão “em seminários realizados pelas Secretarias Estaduais de Educação em todas as Unidades da Federação, sob a coordenação do Conselho Nacional de Secretários de Educação e da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Brasil, 2017, p. 5).
Embora seja um número curioso o de 12 milhões de contribuições, o discurso de legitimidade do documento é posto como uma espécie de chancela dos procedimentos democráticos adotados pelo MEC.
Na Introdução do documento, é anunciado seu caráter “normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica” (Brasil, 2017, p. 7, grifos do documento). E conclui afirmando que “a BNCC soma-se aos propósitos que direcionam a educação brasileira para a formação humana integral e para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (Brasil, 2017, p. 7).
Na seção seguinte - Os marcos legais que embasam a BNCC - aparece a justificativa legal sobre a necessidade das competências, cuja base se assenta na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Inciso IV, Artigo 9º.
As competências assumem a proeminência sobre os conteúdos. Estes devendo estar a serviço daquelas nos currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Por fim, o documento alerta, seguindo o artigo 26 da LDB, que a BNCC deve ser complementada localmente por uma parte diversificada, “exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos (Brasil, 1996; ênfase adicionada)” (Brasil, 2017, p. 9).
Esse discurso visa garantir a contextualização da Base nas realidades locais, sociais e individuais das escolas e dos indivíduos, incluir e valorizar as diferenças, a pluralidade e a diversidade cultural brasileira. De todo modo, não é possível esquecer a enorme complexidade exigida para se garantir essa dimensão de contextualização e de adaptação às características locais na operação de um currículo, muitas delas dependentes diretas da ausência de uma política de valorização do professorado e das escolas em quase todos os seus aspectos. Para dizer o mínimo, ainda não conseguimos, enquanto país, fazer com que se cumpra, na maioria das regiões do Brasil, a lei que estabelece o piso nacional do magistério, mas isso parece não importar aos formuladores da proposta.
Mas vamos entender o que o documento defende e define como competências e conhecimento.
Na seção ‘Os fundamentos pedagógicos da BNCC, Os conteúdos curriculares a serviço do desenvolvimento de competências’, está escrito o seguinte:
Segundo a LDB (Artigos 32 e 35), na educação formal, os resultados das aprendizagens precisam se expressar e se apresentar como sendo a possibilidade de utilizar o conhecimento em situações que requerem aplicá-lo para tomar decisões pertinentes. A esse conhecimento mobilizado, operado e aplicado em situação se dá o nome de competência (Brasil, 2017, p. 15, grifos do documento).
E segue afirmado que:
No âmbito da BNCC, a noção de competência é utilizada no sentido da mobilização e aplicação dos conhecimentos escolares, entendidos de forma ampla (conceitos, procedimentos, valores e atitudes). Assim, ser competente significa ser capaz de, ao se defrontar com um problema, ativar e utilizar o conhecimento construído. A adoção desse enfoque vem reafirmar o compromisso da BNCC com a garantia de que os direitos de aprendizagem sejam assegurados a todos os alunos. Com efeito, a explicitação de competências - a indicação clara do que os alunos devem saber, e, sobretudo, do que devem saber fazer como resultado de sua aprendizagem - oferece referências para o fortalecimento de ações que assegurem esses direitos (Brasil, 2017, p. 16).
Competência é então a expressão da utilização do conhecimento aprendido na educação escolar (no currículo?), que deve ser mobilizado e aplicado frente a problemas das mais variadas ordens: da cognição a questões de ordem cultural, social, política, ética, comportamental etc. Assim considerada, as competências adquirem um valor instrumental e prático, em uma palavra: utilitário. Esse é, ao fim e ao cabo, o sentido de dar proeminência às competências.
Da segurança que tínhamos de um currículo orientado por objetivos e por conteúdos, passamos agora - ou desde os Parâmetros Curriculares Nacionais e de suas Diretrizes -, a um currículo baseado em competências.
Como alerta Gimeno Sacristán:
Si el currículo lo formaban objetivos y contenidos que considerábamos seguros, hoy - ante la dispersión de la información - se buscan las competencias básicas, como si este concepto, con una vieja historia, viniese a decirnos con claridad lo que debíamos haber estado enseñando. Al profesorado se le da a entender que los contenidos no importan, sino unas competencias que no se adquieren ni a corto plazo, ni se le dice cómo proceder para conseguirlas (Sacristán, 2008, p. 81-82).
O professor espanhol destaca que esse conceito tem uma dimensão desqualificadora sobre aquilo que as escolas e o professorado vinham fazendo ao longo de muitos anos e, ao mesmo tempo, põe luz sobre seu alto grau de indefinição, bem como as misteriosas formas de proceder sobre sua lógica.
Gimeno Sacristán escreveu esse texto em 2006 e foi publicado no Brasil em 2008, muito antes do debate sobre a BNCC, mas já na vigência dos Parâmetros Curriculares Nacionais que habitavam o Brasil e a reforma espanhola no início dos anos 2000.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais, sob forte influência das pedagogias construtivistas de base psicologizante, centravam suas ações em testes cognitivos para criar uma taxionomia de competências, como se nossas escolas fossem uma espécie de laboratório clínico belga. De toda forma, os conteúdos já eram deslocados ou ficavam - ficam - subsumidos às competências, pois o importante era - é - “aprender a aprender”. Nada mais de acordo com as novas exigências da produção capitalista. Nada mais de acordo com a vontade de padronização dos processos de ensino desejados pelo capitalismo globalizado. Nada mais de acordo com a formação de “escolhedores livres”.
Na mesma direção caminha a BNCC, que defende as competências como centro do processo educacional, mas elide como é possível saber que os alunos se tornarão competentes para mobilizar e aplicar os conhecimentos escolares frente a problemas novos. Se já é difícil compreendermos a noção de competência no documento, mais difícil ainda - frente a realidade de nossa escolarização - é saber se nossos alunos se tornarão competentes. Por isso o documento, em cada área específica de escolaridade (Etapas, segundo o texto oficial), não se furta em reerguer taxionomias, oscilando a todo o momento entre o que significa conhecer e ser competente.
Na dúvida, o documento, em suas páginas 18 e 19, estabelece as 10 Competências Gerais da Base Nacional Comum Curricular, e então podemos ver como elas se transformam em objetivos de aprendizagem e como, por isso mesmo, estabelecem qual conhecimento deve ser valorizado ou considerado como válido no processo de escolarização, quais conteúdos valem à pena ser aprendidos e como podem ser aferidos, centralmente através de avaliações internacionais: o Programa Internacional de Avaliação de Alunos, a partir da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), via Laboratório Latino-americano de Avaliação da Qualidade da Educação para a América Latina.
A imprecisão do conceito de competência torna-se ainda mais relevante quando aplicado à escolarização no Brasil, posto que em nossa realidade encontramos uma escola compartimentada em disciplinas estanques, com um professorado trabalhando em condições precárias, em mais de um turno, em mais uma escola etc. De toda forma, colocar o conhecimento escolar a serviço do desenvolvimento de competências é uma forma de redução dos saberes sociais à condição de simples objetos a serviço da sociedade de mercado - conhecimento como mercadoria.
O que o documento da Base parece instituir ao tornar as competências como proeminentes, é fazer com que o currículo transforme o conhecimento em informação a ser transmitida e renovar o ciclo produtivo do capital. “O conhecimento tácito precisa ser codificado, transformado em informação capaz de operar como um tipo de commodity, um bem negociável, capaz de fazer gerar ou girar capital” (Feijó, 2016, p. 55), e, no caso da proposta curricular, instrumentalizar uma força de trabalho apta às flutuações do mercado.
Em seu documento de 1996 sobre a Economia do Conhecimento (The Knowledge-based Economy), a OCDE reafirma a crescente importância do conhecimento como fator direcionador e propulsor do crescimento econômico, argumentando que as políticas para ciência, tecnologia e indústria devem ser formuladas no sentido de maximizar a performance e o bem-estar numa economia que está diretamente baseada na produção, distribuição e uso do conhecimento e da informação. Isto, segundo a OCDE (1996), está refletido na tendência das economias dos países ditos desenvolvidos, em direção ao crescimento dos investimentos em alta-tecnologia, implantação de indústrias de alta-tecnologia, mais trabalhadores altamente qualificados e ganhos de produtividade associados. Diz o documento que hoje os economistas estão explorando meios de incorporar mais diretamente conhecimento e tecnologia em suas teorias e modelos.
Com relação ao conhecimento como um capital, um bem intangível que integra a criação de riqueza, Toffler e Tofller (2012) definem algumas de suas características específicas:
- o conhecimento é inerentemente não-rival: mesmo sendo utilizado por muitos, o conhecimento não se desgasta nem diminui;
- o conhecimento é um bem intangível: não podemos tocá-lo, mas manipular;
- o conhecimento é não-linear: breves insights e ideias simples podem gerar resultados surpreendentes;
- o conhecimento é um fator relacional: trechos de conhecimentos adquirem significado só quando justapostos a outros;
- o conhecimento combina com outros conhecimentos: quanto maior o conhecimento, mais indiscriminadas, numerosas e variadas serão as suas possibilidades de uso e combinações com outros conhecimentos;
- o conhecimento é mais facilmente transferível do que qualquer outro bem ou produto: uma vez internalizado, o conhecimento pode instantaneamente ser transmitido;
- o conhecimento pode ser resumido e condensado em símbolos ou abstrações: conhecimentos podem ser traduzidos em números e símbolos;
- o conhecimento pode ser armazenado em espaços cada vez menores: podendo logo chegar a dispositivos em nanoescalas;
- o conhecimento pode ser explícito ou implícito, expresso ou não-expresso, partilhado ou tácito: não existe bem tangível com estas características;
- o conhecimento é difícil de “engarrafar, empacotar” ou conter: espalha-se e difunde-se com mais facilidade do que qualquer outro bem (Toffler e Toffler, 2012, p. 143-144).
Investimentos no conhecimento e sua distribuição através dos meios formais e informais são essenciais para a performance da economia atual. Um dos mecanismos fundamentais para esta otimização da produtividade refere-se à crescente transformação, por meio da codificação, do conhecimento em informação, o que permite sua transmissão por meio de redes de computadores e de comunicação, constituindo a chamada sociedade da informação. A dinâmica deste processo, parte da produção do conhecimento tácito, produzido pela pesquisa, o qual é codificado para que possa ser transmitido e utilizado como informação na otimização da eficiência do processo produtivo. O resultado procurado é o crescimento da produtividade e da competitividade.
Como destaca o documento da OCDE (1996), a “Nova teoria do crescimento reflete a tentativa de entender o papel do conhecimento e tecnologia no comando da produtividade e do crescimento econômico” (OCDE, 1996, p. 7). Nesta perspectiva, aponta o documento, investimentos em pesquisa e desenvolvimento, educação, treinamento e novas estruturas de gerenciamento do trabalho são elementos fundamentais.
Conforme Lundvall (2011), ao se falar em investimento para educação e produção de conhecimento, algumas questões importantes devem ser colocadas, como as que questionam se o conhecimento é um bem público ou privado, bem como sobre qual o significado do conhecimento e de sua produção, ou mesmo quais distinções entre diferentes tipos de conhecimento úteis para a compreensão da interação entre aprendizagem, conhecimento e desenvolvimento econômico.
Procurando responder a essas questões, Lundvall (2011) vai argumentar que no atual modelo econômico o conhecimento é percebido como um bem, atuando tanto como competência (input) como inovação (output) no processo produtivo. E mais ainda, em certas condições, pode ser uma propriedade privada e, em função disto, podendo ser produzido e reproduzido como um produto tangível e, dessa forma, ser comprado ou vendido no mercado, como uma commodity.
Nessa perspectiva do conhecimento como um bem, um ativo, torna-se central a análise de suas propriedades em termos de possibilidades de sua transferência através do tempo e do espaço, afirma Lundvall (2011). Um dos motivos pelos quais se busca constituir uma resposta sobre a questão de o conhecimento ser um bem público ou privado, segundo este autor, é que essa resposta será crucial para a definição do papel do governo na produção do conhecimento. Se o conhecimento é um bem público que pode ser acessado por qualquer pessoa, então não haverá nenhum incentivo para que os agentes privados venham a investir na sua produção, argumenta o autor. Em sua argumentação sobre a importância do caráter privado na produção do conhecimento, Lundvall (2011, p. 3) traz como exemplo o fenômeno dos distritos industriais e sua importância na produção e circulação do conhecimento, e faz a seguinte pergunta: “por que certas indústrias especializadas localizadas em determinadas regiões permanecem competitivas por longos períodos históricos”?
O argumento central da resposta a essa questão, segundo ele, é o fato de que o conhecimento estava localizado nesta região e enraizado tanto na força de trabalho local quanto nas organizações e instituições locais, e cita como exemplo o Vale do Silício como um fenômeno de compartilhamento de conhecimento, tanto dentro das empresas quanto entre elas. A partir deste exemplo, ele volta a colocar a questão da natureza pública e privada do conhecimento e sua produção, perguntando se ele pode ou não ser transferido, o quão difícil pode ser sua transferência e quais seriam os mecanismos de transferência e, por fim, o quanto é importante a ampliação do contexto sociocultural para a transferência possível do conhecimento.
A resposta a questões como essas são fundamentais para se especificar o que constitui a economia baseada no conhecimento e seu papel nesta mesma economia, podendo assim ser melhor compreendido o que sustenta o discurso do documento da BNCC.
Se o conhecimento fosse inteiramente público, argumenta Lundvall (2011), significaria falar de uma base de conhecimento comum para a totalidade da economia, e haveria uma forte necessidade de se coordenar os investimentos para a produção de conhecimento em um nível global. Por outro lado, ele diz, se o conhecimento fosse completamente individual e privado não haveria uma base comum de conhecimento e os investimentos na produção do conhecimento deveriam ser deixados para os próprios indivíduos. Como podemos ver, argumenta Lundvall (2011, p. 4), este tema é complexo sendo que boa parte do conhecimento tem por característica não ser nem completamente público, nem completamente privado: “sua base é fragmentada e pode ser ilustrada como constituída por uma quantidade de ferramentas cujo acesso é partilhado regionalmente, profissionalmente e através de redes”.
Lundavall (2011) propõe quatro diferentes tipos de conhecimento, proposição esta que será utilizada posteriormente pela OECD em seu documento de 1996, sobre economia baseada no conhecimento. Os quatro tipos de conhecimentos propostos são: saber o que; saber por que; saber como e saber quem.
Saber o que: refere-se ao conhecimento sobre os fatos. Neste sentido, conhecimento está muito próximo do que chamamos de informação, assim o conhecimento pode ser reduzido a bits de informação, ou seja, mínimas porções de informação com as quais se pode trabalhar. Em algumas áreas complexas, os especialistas necessitam muito deste tipo de conhecimento para realizar seus trabalhos.
Saber por quê: refere-se ao conhecimento científico; aos princípios e leis do movimento na natureza, na mente humana e na sociedade. Este conhecimento desempenha papel extremamente importante no desenvolvimento tecnológico e em certas áreas cuja atividade está ligada à ciência como, por exemplo, as indústrias químicas e eletroeletrônicas. A produção deste tipo de conhecimento ocorre em instituições e organizações especializadas, como laboratórios de pesquisa e universidades. O acesso a este conhecimento se dá tanto por meio da interação, da atividade conjunta das empresas com estas instituições e organizações quanto pelo recrutamento de pessoal treinado nestas atividades de produção de conhecimento.
Saber como: é o conhecimento que diz respeito às habilidades, competências necessárias para fazer algo. É um conhecimento que sempre foi mais relacionado com o trabalho dos artesãos e trabalhadores da produção, mas atualmente tem um papel importante em todas as atividades econômicas. Assim, quando um homem de negócios avalia as perspectivas de mercado para um novo produto ou faz uma seleção e treinamento de pessoal, utiliza seu saber como para otimizar seus resultados. “O mesmo é verdadeiro para um trabalhador hábil operando uma máquina-ferramenta complicada” (OCDE, 1996, p. 12), O saber-como é um conhecimento tipicamente desenvolvido e contido dentro dos limites da firma individual. É por esta razão, afirma a OCDE (1996), que se torna muito importante a constituição de redes industriais para que as empresas possam partilhar e combinar elementos do saber-como. Isto nos leva ao quarto tipo de conhecimento e vai justificar a necessidade de um crescente aumento na sua produção.
Saber quem: este conhecimento vai envolver informações sobre quem sabe o que e quem sabe fazer o que. Também diz respeito à “formação de relações sociais, as quais podem tornar possível o acesso aos experts e ao uso eficiente de seus conhecimentos” (OCDE, 1996, p. 12). O documento da OCDE argumenta que este tipo de conhecimento é significativo em economias nas quais habilidades são dispersas em função da elevada divisão do trabalho entre organizações e experts. “Para o administrador moderno e organizações, é importante a utilização deste tipo de conhecimento em resposta à aceleração das mudanças” (OCDE, 1996, p. 12). E isto também porque o conhecimento saber-quem é um conhecimento interno num grau mais elevado do que os demais conhecimentos, afirma a OCDE.
Quando Lundvall propõe esta distinção entre os diferentes tipos de conhecimento ele faz, em uma nota de rodapé, a comparação entre estas distinções e os diferentes tipos de conhecimentos em Aristóteles:
O conhecimento tem estado no centro do interesse analítico desde o princípio da civilização. Aristóteles fez distinções entre: Epistèmè: conhecimento que é universal e teórico, Techinè: conhecimento instrumental, relacionado com um contexto específico e prático. Phronesis: o qual é normativo, baseado na experiência, num contexto específico e relacionado com o senso comum: “sabedoria prática”. Pelo menos duas de nossas categorias têm raízes nestas três virtudes intelectuais. Saber-por que é similar à espistèmè e saber-como à techinè. Mas a correspondência é imperfeita pois [...] as atividades científicas sempre envolvem uma combinação de saber-como e saber-por que. A terceira categoria de Aristóteles, phronesis, que está relacionada com a dimensão ética, estará refletida sobre o que é dito no que se refere à necessidade de uma dimensão social e ética na análise econômica e sobre a importância da confiança (trust) no contexto da aprendizagem (Lundvall, 2011, p. 4).
Nessa correlação com o pensamento de Aristóteles, quanto à distinção dos conhecimentos, três delas, como bem colocou Lundvall, dizem respeito à atual distinção preconizada pela OCDE para se pensar as políticas educacionais na atual Economia do Conhecimento. Mas desejamos salientar a importância da correlação apontada entre phronesis e a dimensão ética nas análises econômica, pois é exatamente esta dimensão ética que vai operar na constituição de modos de existência e seus sujeitos considerados como microempresas, objetivo primeiro e último do modelo curricular proposto no documento da BNCC.
Também podemos argumentar que a atual demanda de conhecimento pelo sistema produtivo, cuja ênfase recai sobre a techinè, ou seja numa instrumentalização do conhecimento e da cultura, tem como resultado um empobrecimento, um estreitamento do próprio campo de conhecimento. Somente o conhecimento útil à produtividade e competitividade é priorizado em detrimento da riqueza cultural que constitui o universo humano.
Ainda com relação a esta classificação das diferentes formas de conhecimento, Arundel et al. (2008), faz referência a outros métodos igualmente relevantes para o desenvolvimento de indicadores da Economia do Conhecimento. Ele inclui a diferença entre conhecimento tangível e intangível, conhecimento genérico e específico, conhecimento individual e coletivo, e entre conhecimento tácito e conhecimento codificado, sendo que esta última diferença desempenha um papel importante nas atuais políticas econômicas e educacionais propostas pela OECD e Banco Mundial, tendo efeitos essenciais nas propostas curriculares, cuja ênfase recai sobre a produção de conhecimento técnico-científico e sua codificação, visando sua transmissibilidade. Isto é perfeitamente transparente na ênfase dada ao desenvolvimento e avaliação das competências para a leitura, a matemática e as ciências, no documento do MEC consideradas competências fundamentais na produção do conhecimento útil para a produtividade e competitividade econômica.
Houghton e Sheehan (2000) efetuaram uma definição das características da Economia do Conhecimento as quais passamos a elencar abaixo no sentido de que venham logo seguir ancorar a leitura da produção destes tipos de conhecimento preconizados pelas políticas de educação da OCDE e UNESCO.
Segundo esses autores a Economia do Conhecimento se caracteriza por:
- um grande aumento na codificação do conhecimento, o qual juntamente com as redes e a digitalização estão levando a um crescente processo de comoditização (commodication) do conhecimento;
- a crescente codificação do conhecimento está gerando um deslocamento na balança do estoque de conhecimento - conduzindo a uma relativa diminuição do conhecimento tácito;
- a codificação está promovendo um deslocamento na organização e estrutura de produção;
- as crescentes tecnologias de informação e comunicação favorecem a difusão da informação, da re-invenção, reduzindo o investimento necessário a um dado quantum de conhecimento;
- a crescente taxa de acumulação de estoque de conhecimento é positiva para o crescimento econômico, visto que o conhecimento não se exaure no seu consumo;
- a codificação está produzindo uma convergência, unindo diferentes áreas de competência, reduzindo a dispersão do conhecimento e incrementando a velocidade de rotatividade (turnover) do estoque de conhecimento;
- o sistema de inovação e seu poder de distribuição de conhecimento é criticamente importante;
- crescente taxa de codificação e coleção de informação estão conduzindo a um deslocamento no foco com relação às habilidades (handling) tácitas;
- aprender está se tornando cada vez mais central tanto para as pessoas quanto para as organizações;
- aprender envolve tanto a educação formal quanto o aprender-fazendo, aprender-pelo-uso e aprender-pela-interação;
- aprendizado nas organizações se dá cada vez mais por meio de organizações em rede;
- iniciativa, criatividade, solução de problemas e abertura para mudanças tornam-se cada vez mais habilidades importantes;
- a transição para um sistema baseado no conhecimento pode causar uma falência sistêmica no mercado;
- uma economia baseada no conhecimento é tão diferente do sistema baseado no recurso do século passado que a compreensão da economia convencional deve ser reexaminada (Houghton e Sheehan, 2000, p. 9).
Todas essas características elencadas por estes autores estão presentes de modo muito firme no atual paradigma econômico que rege as políticas de educação no sentido de otimizar as condições de operacionalidade, de produtividade e desenvolvimento da atual economia baseada no conhecimento. A dinâmica da educação como ferramenta de produção e transmissão de conhecimento passa a ter uma dimensão global na existência, já não mais significando tão somente uma atividade formal, institucional, acadêmica, mas um processo que começa ainda no útero da mãe e desenvolvendo-se ao longo da vida. Educação e informação tornaram-se elementos de consumo vitais, assim como o ar que precisa ser renovado (poderíamos dizer inovado?) em nossos pulmões, a cada instante ao longo da existência. Aprender é o verbo essencial na atual economia, e inovação como seu mantra onipresente.
Sobre a dinâmica de produção do conhecimento e sua transmutação em informação, os teóricos da Economia do Conhecimento argumentam, como pontuamos acima, a partir de duas formas básicas de conhecimento: o tácito e o codificado. O conhecimento tácito é aquele que ainda não foi documentado e é construído exclusivamente por quem o utiliza e o controla, e pode ser transformado em conhecimento explícito por meio de um forte incentivo no sentido de codificá-lo tornando-o compartilhável. O saber sobre as coisas do mundo, da natureza, pode, numa certa extensão, ser tornado explícito, uma vez que o saber-o-que pode ser introduzido em uma base de dados, e o saber-por que pode se tornar explícito por meio de teoremas. Além das habilidades, outro tipo importante de conhecimento tácito diz respeito às crenças e modos de interpretação, que tornam a comunicação inteligente possível. Sua transmissão ocorre por meio de interações sociais semelhantes às relações de aprendizado. Isto significa que o conhecimento não pode simplesmente ser comprado nem tampouco vendido no mercado, sendo sua transferência extremamente sensível ao contexto social, conforme dizem Lundvall e Borrás (1998).
Porém, as habilidades inerentes às pessoas e as competências incorporadas pelas empresas podem ser documentadas num grau mais limitado. Assim, argumenta Lundvall (2011), existem limites naturais ao quanto é possível tornar explícito um saber-como corporificado nas pessoas que sabem fazer algo. Por isso, afirma este autor, se justifica o fato de que um expert em seu saber-como único e empresas cujas atividades estão baseadas numa competência única e permanente inovação, devem receber rendimentos extras por longos períodos. Este argumento está no centro da atual luta pelo incremento da produtividade por meio da inovação, o qual fabricará vantagens competitivas por um determinado tempo às empresas que inovam, como resultados da aplicação à produção dos conhecimentos produzidos e transformados em mercadoria.
Neste contexto de produção, a codificação do conhecimento tácito tem uma dimensão fundamental, pois significa transformar o conhecimento tácito em informação, a qual pode ser facilmente transmitida através da constituição de infraestruturas de informação. Codificar significa operar um processo de redução e conversão que tornam a transmissão, a verificação, armazenagem e reprodução do conhecimento mais fácil. “O conhecimento codificado é expresso num formato compacto e padronizado para facilitar e reduzir o custo destas operações” (Lundvall e Borrás, 1998, p. 31). Porém, afirmam esses autores, a codificação do conhecimento apresenta um limite: uma vez que conhecimento tácito e conhecimento codificado são complementares, coexistem ao mesmo tempo. Isto determina o fato da incompletude do processo de codificação, já que alguma forma de conhecimento tácito sempre se fará presente. Apesar disso, o fato é que, na atual Economia do Conhecimento, há sempre uma grande pressão para a codificação de habilidades e conhecimentos, pois a produtividade aliada à competitividade exige a produção e transmissão de conhecimento como uma commodity utilizável. É este conhecimento que dá sustentação à necessária destruição criadora para mover as engrenagens do capital e sua produção e é sobre isso que se ergue a proposta de uma Base Nacional Comum Curricular, embora não se admita como currículo.
Depois de mais de 50 anos que o campo da educação moveu-se para mostrar a ausência de neutralidade da escola, do conhecimento, da própria ciência, parece que o documento, tal como um caranguejo, anda para os lados ou, como um besouro, para trás.
Como é possível defender a ideia de um conhecimento universal, necessário, sem assumir os interesses que embalam tal discurso? Como é possível defender que determinado conhecimento, independentemente das diferentes realidades, é central para garantir a igualdade educacional sem assumir os interesses que embalam tal discurso?
Cliford Geertz (2012) nos ajuda a pensar sobre isso quando escreve sobre a antropologia do pensamento moderno. Diz o autor que os diferentes conhecimentos de diferentes campos de conhecimento são...
[...] modos de estar no mundo; ou formas de vida, para usar uma expressão wittgensteiniana, ou ainda variedades da experiência intelectual, adaptando James. Da mesma forma que os papuas ou os amazonenses habitam o universo que eles imaginam, também o fazem os físicos da alta energia, ou os historiadores do Mediterrâneo na época de Felipe II - ou, pelo menos, assim crê um antropólogo. É quando começamos a entender isso - ou seja, que quando decidimos decifrar o imaginário de Yeats, ou envolver-nos com buracos negros, ou medir o efeito que níveis de instrução têm sobre o padrão econômico, não estamos assumindo uma simples tarefa técnica, e sim trabalhando com uma estrutura cultural que define a maior parte de nossas vidas - que a etnografia do pensamento moderno começa a parecer um projeto altamente necessário. Os papéis que acreditávamos desempenhar, no fim das contas, são opiniões que descobrimos ter (Geertz, 2012, p. 161).
Se minimamente considerarmos como objeto de reflexão o que escreve Geertz, deveríamos nos voltar para o documento da Base com uma outra lente analítica - talvez uma que permitisse ver que seus pressupostos elidem a discussão de fundo sobre o conhecimento que “deve” ser ensinado em nossas escolas. Ademais, no documento os conceitos de competências e habilidades, conhecimentos e disciplinas, não são minimamente problematizados, tornando suas diferenças outra vez elididas. Novamente, todo um esforço analítico, que há muito vem sendo empreendido por muita gente envolvida com filosofia, educação e ciência, parece ser ignorado pela Base.
Desde meados do século XIX, e de maneira mais intensa durante o século XX, proliferam estudos enfatizando o caráter negociado do conhecimento, como destaca Lenoir (2004) ao demonstrar o quanto atitudes e valores acompanham áreas como a matemática, a teoria física e os princípios de engenharia no trabalho científico, por exemplo. Se considerarmos o que escreve Leonir, também temos que considerar que no próprio campo da ciência há uma falta de unidade, posto que seu envolvimento com as demandas sociais (muitas delas inventadas) estão dentro - e não fora - das relações de poder, que são históricas.
Ao dizer isso não estamos defendo uma postura externalista em relação à ciência e ao conhecimento, mas também não estamos partilhando - tal como a Base procura fazer - de uma posição internalista, que trata as disciplinas como produtos de teorias científicas desinteressadas, resultado de uma notável descoberta, de um programa de pesquisa ou do trabalho de uma escola (Lenoir, 2004). Nem as disciplinas encerram tal pureza, nem são constituídas somente por interesses políticos, dependentes mais da alocação de recursos do que do seu conteúdo cognitivo. Tal como Lenoir (2004), baseando-se em Bourdieu, pensamos que os conhecimentos estão em permanente disputa dentro do campo cultural, pondo em jogo o monopólio da autoridade científica, definida como capacidade técnica e poder social (Lenoir, 2004).
O que o documento da Base parece ignorar é a historicidade do conhecimento sempre em ato. Fora dessa compreensão, como alertava Bachelard (1971), o fato científico - o conhecimento - é fixado em uma pedagogia sem história, como parece ser o caso da Base, orientada por uma epistemologia dogmática em favor do mercado, pois não analisa como os próprios problemas que formula se resolvem na prática efetiva de nossas salas de aula.
Custa aceitar como esse debate foi desconsiderado pelas comissões que compuseram a Base. Tanto quanto é difícil de aceitar que também foi desconsiderado uma das mais importantes metas do Plano de Educação para o ano de 2016: a necessidade de carreira e de piso nacional para o magistério. Ao fim e ao cabo, toda a energia posta nessa proposta de Base Nacional Comum Curricular - e isso precisa ser dito - está sendo gasta para favorecer as editoras de livros didáticos, as complicadas ONGS empresariais e ajudando - alguns com boa fé -, a construir mais um muro para cercar a autonomia profissional do professorado da Educação Básica.
A proposta da uma base nacional comum curricular, além de sua limitada compreensão do sentido e significado do que seja currículo, ajuda no empobrecimento do conhecimento, que se torna reduzido à mera competência, e não opera para a vida qualificada pela cultura, mas para produtivismo econômico, pois toda uma dimensão ética e estética é alijada do processo educacional.
Universidade Federal de Pelotas. jarbas.vieira@gmail.comUniversidade Federal de Pelotas. jofeijo2011@gmail.com