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Habilidades cognitivas e o uso de jogos digitais na escola: a percepção das crianças1
Cognitive skills and the use of digital games in school: The perception of children
Habilidades cognitivas e o uso de jogos digitais na escola: a percepção das crianças1
Educação Unisinos, vol. 22, núm. 2, pp. 214-223, 2018
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Recepção: 16 Maio 2017
Aprovação: 10 Fevereiro 2018
Resumo: Este trabalho tem o objetivo de discutir as contribuições do uso de jogos digitais no contexto escolar para o aprimoramento das habilidades cognitivas, partindo da percepção das crianças e do referencial teórico sobre os jogos digitais e a cognição. Para tanto, realizou-se um estudo exploratório e descritivo, orientado por uma abordagem qualitativa, sobre uma experiência desenvolvida com duas turmas do ensino fundamental, envolvendo aproximadamente 50 crianças com idades entre 7 e 9 anos e utilizando os jogos da Escola do Cérebro, a qual integra jogos digitais para o exercício das habilidades cognitivas. Os resultados indicaram que as crianças conseguem identificar as principais habilidades exercitadas na interação com os jogos digitais, destacando-se a resolução de problemas, o controle inibitório, a atenção e a memória, bem como reconhecem contribuições à aprendizagem.
Palavras-chave: jogos digitais, habilidades cognitivas, aprendizagem, educação.
Abstract: This work aims at discussing the contributions of the use of digital games in the school context for the improvement of cognitive skills, considering the perception of children and the theoretical framework about digital games and cognition. For that, an exploratory and descriptive study was conducted, guided by a qualitative approach about an experience developed with two classes of Elementary School, involving approximately 50 children between the ages of 7 and 9 and using the Games of the Brain School, which integrate digital games for the exercise of cognitive abilities. The results indicated that children can identify the main abilities exercised in the interaction with digital games, highlighting problem-solving, inhibitory control, attention, and memory, as well as recognize contributions for learning.
Keywords: digital games, cognitive skills, learning, education.
Introdução
A noção de jogo é ampla e controversa, tanto por resguardar aspectos culturais e históricos que a tornam dinâmica, quanto por toda variedade e formatos de jogos existentes, incluindo os jogos digitais. Kishimoto (1994) afirma que é difícil elaborar uma definição de jogo que englobe a multiplicidade de suas manifestações concretas, pois todos os jogos possuem peculiaridades que os aproximam ou distanciam do próprio significado de jogo e não-jogo que são traduzidos em diferentes culturas. Algumas características do jogo podem ser mais evidenciadas na infância, considerando que as crianças interagem mais com esse universo e enfatizam a noção do jogo como atividade livre e espontânea. Segundo Huizinga (1971, p. 3) o jogo pode ser definido como “uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria”.
Considerando a relevância do jogo na infância e para o desenvolvimento (Kishimoto, 1994; Vigotsky, 1989; Winnicott, 1982; Seber, 1997), os jogos podem contribuir com o processo de ensino e aprendizagem no contexto escolar, fazendo parte das experiências de aprendizagem. Ao mesmo tempo, envolve o exercício das habilidades cognitivas das crianças e colabora para uma aprendizagem mais motivadora e significativa.
O uso dos jogos no contexto escolar pode auxiliar no desenvolvimento e aprendizagem da criança, por meio da vinculação de conteúdos e do exercício das habilidades (Oliveira, 1999), promover a associação do prazer ao conhecer, tendo em vista o fato de agregarem um caráter lúdico a mediação de conteúdos (Abreu, 2002) e estimular o interesse do aluno, ajudando-o a construir novas descobertas (Domingos, 2008).
Em nosso estudo destacamos os jogos digitais caracterizados pelo uso da multimídia e interatividade para criar uma “atividade lúdica composta por uma série de ações e decisões [...] que resultam em uma condição final” (Schuytema, 2008, p. 7). Os jogos digitais criam um conflito artificial que envolve o jogador, norteando suas ações por regras e desafios que resultam em um desfecho quantificável (Salen e Zimmerman, 2012).
Nessa trajetória de desafios, ações e regras, ao jogar lidamos com várias metas, tarefas e outras variáveis simultaneamente e precisamos trabalhar de modo intencional e organizado, o que envolve o recrutamento de habilidades cognitivas como: lembrar, testar hipóteses, prever soluções e usar planos estratégicos (Ramos, 2008). Na interação com os jogos digitais as habilidades cognitivas são intensificadas a cada dia, o que permite às crianças a descoberta de novas formas de conhecimento, que hoje também ocorrem por meio da simulação de novos mundos (Alves, 2005).
Ao dar ênfase ao uso das habilidades cognitivas na interação com os jogos, passamos a denominar os jogos utilizados com esse objetivo como cognitivos. Os jogos cognitivos, analógicos ou digitais, podem ser definidos como um conjunto de jogos variados que trabalham aspectos cognitivos, partindo da valorização da intersecção entre os conceitos de jogos, diversão e cognição (Ramos, 2013). A cognição, nesse contexto, entendida como “a aquisição, o armazenamento, a transformação e a aplicação de conhecimento” (Matlin, 2004, p. 2), que envolve uma diversidade de processos mentais como memória, percepção, raciocínio lógico e resolução de problemas.
Assim, a dimensão educativa dos jogos pode ser pautada no exercício de diversas habilidades cognitivas como: a atenção, memória de trabalho, resolução de problemas e o autocontrole, dentre tantas outras que desenvolvemos enquanto jogamos. Diante disso, Kishimoto (2007) pontua que resolução de problema e jogo possuem elementos semelhantes, pois ambos se unem através do lúdico, quando as situações de ensino têm caráter mais descontraído e envolvente para desestruturar o aluno, proporcionando-lhe a construção de novos conhecimentos. Nesse caso, a questão lúdica relaciona-se com o interesse e a motivação dos alunos, os quais se revelam importantes aos processos de ensino e aprendizagem das crianças.
Considerando esses aspectos, o objetivo deste trabalho é discutir as contribuições do uso de jogos cognitivos digitais no contexto escolar para o aprimoramento das habilidades cognitivas, partindo da percepção das crianças sobre as atividades desenvolvidas e sobre sua aprendizagem com a utilização desses jogos. Dentre as habilidades cognitivas que podem ser exercitadas por meio dos jogos, destacamos cinco habilidades que foram analisadas a partir do registro das falas das crianças sobre a interação delas com os jogos, são elas: a atenção, a resolução de problemas, a memória de trabalho, o controle inibitório e a colaboração.
Jogos digitais e habilidades cognitivas
Ao considerarmos que as habilidades cognitivas se referem a capacidades que permite ao sujeito interagir com o meio, envolvendo processos mentais (Gatti, 1997) e que os jogos digitais propõem desafios, regras e ações que supõe o exercício dessas habilidades, passamos a destacar algumas que podem ser observadas na interação com os jogos digitais.
Inicialmente, destacamos a atenção por referir-se a um tipo de concentração mental, na qual selecionamos certos tipos de estímulos perceptivos para o processo posterior enquanto tentamos excluir outros estímulos interferentes (Matlin, 2004). Complementando esta ideia, Lima (2005) define atenção como a capacidade do indivíduo responder predominantemente os estímulos que lhe são significativos em detrimento de outros. Nesse sentido, Brandão (1995) ressalta que neste processo, o sistema nervoso é capaz de manter um contato seletivo com as informações que chegam através dos órgãos sensoriais, dirigindo a atenção para aqueles que são relevantes e garantindo uma interação eficaz como meio.
Destaca-se o exercício da atenção na interação com os jogos digitais porque ao jogar é preciso manter a atenção por longos períodos, focando no objetivo e gerenciando diversas tarefas simultâneas em um cenário de rápidas sucessões de estímulos (Rivero et al., 2012).
De outro modo, a resolução de problemas ocorre quando queremos atingir determinado objetivo, mas a solução não se apresenta imediatamente (Matlin, 2004). A partir disso, é uma habilidade cognitiva presente fortemente dentro de um jogo, pois o jogador comumente precisa resolver problemas em todas as fases de um jogo, explorando e interpretando-os.
Outra habilidade destacada é a memória de trabalho, a qual esta diretamente relacionada aos processos de aprendizagem. Uehara e Landeira-Fernandeza (2010) definem memória de trabalho como um sistema de capacidade limitada que permite o armazenamento temporário e gerenciamento de informações. Desse modo, tem como principal função manter informações que estão sendo processadas por um curto período de tempo. Na interação com os jogos é preciso manter as informações referentes às ações planejadas e as metas a serem atingidas, bem como gerenciar informações e ações para garantir que o desfecho final se realize da melhor forma.
O controle inibitório, por sua vez, como uma dimensão das funções executivas que desempenha importante papel nas relações sociais, se faz necessário na interação com os jogos, pois é necessário esperar o momento certo para agir e controlar os impulsos para responder de forma mais adequada e garantir melhor desempenho para cumprir o desafio. O controle inibitório envolve a capacidade de controlar a atenção, o comportamento, os pensamentos e emoções para controlar os impulsos e agir de maneira mais apropriada ou necessária (Diamond, 2013).
Por fim, outro aspecto destacado no trabalho é a colaboração, que entendemos como uma habilidade social que supõe várias dimensões das funções executivas. De acordo com Ramos (2007) a colaboração caracteriza-se como uma ação na qual os objetivos e os problemas são partilhados, visando atingir uma solução ou a construção do conhecimento. De acordo com McGonigal (2012) os jogos digitais podem ajudar a perceber a interação social como mais recompensadora, favorecendo o desenvolvimento das emoções pró-sociais, ou seja, emoções de bem-estar dirigidas a outros.
A indicação das habilidades cognitivas destacadas e o uso dos jogos digitais para o seu exercício apoiam-se em resultados de vários estudos que tem apontado que a interação com os jogos digitais na infância, principalmente, pautadas em atividade direcionadas e orientadas, pode melhorar o controle inibitório em crianças nos anos pré-escolares (Healey e Halperin, 2015), resultar na ativação da rede de atenção executiva de forma mais rápida e eficiente (Rueda et al., 2012); oferecer ganhos significativos no desempenho da memória de trabalho (Nouchi et al., 2013; Castellar et al., 2015).
Nessa perspectiva, ao realizar um levantamento sobre as pesquisas desenvolvidas que analisam intervenções para o aprimoramento das funções executivas, as quais se referem a um conjunto de habilidades cognitivas que se integram, incluem a flexibilidade cognitiva, o autocontrole e a disciplina, bem como o planejamento das ações que se contrapõe a respostas impulsivas e a manutenção do foco, Diamond e Lee (2011) destacam os jogos digitais como alternativas para o aprimoramento dessas funções, por envolverem uma prática repetida, o aumento progressivo dos desafios e seu caráter motivacional.
De modo geral, ao analisarmos o exercício dessas habilidades cognitivas, como atenção, memória de trabalho e resolução de problemas, a partir da interação com os jogos digitais estamos discutindo o potencial que estes podem oferecer aos contextos escolares. Segundo Prensky (2012), a aprendizagem baseada em jogos digitais trata da diversão, do envolvimento e da junção da aprendizagem séria ao entretenimento interativo em um meio recém-surgido e extremamente empolgante. Ao mesmo tempo em que se propõe o uso de tecnologias, como tablets, tão presentes no cotidiano de muitas crianças, jovens e adultos, o que possibilita problematizar, orientar e discutir o seu uso de modo a contribuir para que tenhamos um uso mais construtivo, ativo e consciente.
Metodologia
O estudo foi caracterizado como exploratório e descritivo, pautou-se na abordagem qualitativa, tomando como principal objeto de análise a narrativa das crianças participantes. Nesse caso, entende-se por pesquisa qualitativa aquela que é vista como uma maneira de dar voz às pessoas, em vez de tratá-las como objetos (Gaskell e Bauer, 2002). Desse modo, as narrativas expressas oralmente e sua análise são as principais fontes para interpretação e discussão.
A amostragem foi composta por conveniência e incluiu duas turmas do Ensino Fundamental, uma turma de 2º ano e outra de 3º ano, contabilizando a participação de 50 alunos com idades entre 7 e 9 anos. Por envolve seres humanos, a pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética, por meio do parecer 902.620.
As atividades foram desenvolvidas com base no uso de uma primeira versão da Escola do Cérebro (escoladocerebro.com), que se configura como um aplicativo que tem sido desenvolvido a partir de pesquisas realizadas na Universidade Federal de Santa Catarina e atividades desenvolvidas no LabLudens (cognoteca) do Colégio de Aplicação (UFSC). Esse sistema tem o objetivo de integrar jogos cognitivos a uma base de dados que permite tanto o exercício das habilidades cognitivas como o acompanhamento e a orientação sobre o desempenho e características cognitivas dos jogadores (Figura 1).
Os jogos da Escola do Cérebro foram utilizados nas duas turmas participantes que realizaram atividades diárias, utilizando tablets Android, por um período que variou de 15 a 30 minutos durante um mês. Essas atividades eram acompanhadas pelo professor regente e, por pelo menos, um bolsista do projeto. Em cada semana era proposto o uso de um dos jogos da Escola do Cérebro: Conectome, Genius ou Joaninha. Os jogos utilizados propunham desafios distintos e envolvia de maneiras diferentes as habilidades cognitivas:
Conectome: o desafio era unir dois neurônios localizados nos extremos da tela, mudando a disposição dos neurônios para conectá-los de modo a formar um caminho. Essa tarefa envolve habilidades como: a atenção ao cenário e condições para identificar o caminho mais rápido que envolvia menos cliques; a resolução de problema na busca da melhor solução, considerando a disposição dos neurônios e as possibilidades de se efetivar o caminho; e a memória de trabalho para seguir a estratégia delimitada e os movimentos necessários a serem realizados (Figura 2).
Genius: o desafio é memorizar e reproduzir a sequência de cores apresentadas, a cada acerto, há um aumento no número das cores. Essa tarefa envolve fortemente a memória de trabalho, para guardar as cores apresentadas até o momento de reproduzir a sequência, bem como a atenção que é fundamental para reter e discriminar corretamente a sequência apresentada (Figura 3).
Joaninha: o desafio é movimentar e retirar obstáculos que impedem que a joaninha possa mover-se no jogo, para que ela complete o seu caminho. Essa tarefa envolve a capacidade de resolução de problema, pois é preciso analisar, identificar as possibilidades para movimentar os obstáculos, retendo na memória de trabalho a hipótese de solução para sua execução e mantendo a atenção sobre os aspectos presente no cenário que podem auxiliar ou dificultar que a joaninha seja libertada (Figura 4).
A atividade proposta foi organizada da seguinte forma: inicialmente eram distribuídos os tablets, cada aluno usava um específico e identificado por um número, no 3º ano, e pelo nome, no 2º ano. Após isso, os alunos eram orientados a fazer a conexão com a rede. Em seguida acessavam a Escola do Cérebro e o jogo acordado para a semana. Ao jogar podiam escolher os níveis de dificuldade (fácil, médio ou difícil).
A partir da atividade as crianças foram convidadas a fazer um desenho que representasse o que mais tinham gostado na interação com os jogos. Em seguida foram realizadas entrevistas em grupo com base em um roteiro semiestruturado, visando explorar as opiniões, crenças e motivações das crianças (Gaskell e Bauer, 2002). As entrevistas foram filmadas e transcritas para análise com base em alguns critérios como: as aprendizagens resultantes das experiências com os jogos cognitivos; a avaliação do uso dos jogos e as contribuições ao processo de aprendizagem.
Após a realização das entrevistas as crianças foram convidadas a fazer um desenho sobre a atividade do tablet, procurando registro do que foi mais significativo. A análise dos desenhos considerou o que foi desenhado e representado pela criança na atividade.
A análise dos dados transcritos das entrevistas foi realizada de acordo com as etapas descritas por Bardin (2007), a qual inclui a pré-análise por meio da realização da leitura flutuante das transcrições, a formulação de hipóteses e a elaboração das categorias e indicadores; a exploração do material, realizando as operações de codificação e enumeração com base nas categorias definidas; e por fim o tratamento de resultados pela inferência e interpretação, incluindo a organização das informações e a elaboração dos quadros.
É importante ressaltar que os resultados apresentados nessa pesquisa, são parte de um projeto de pesquisa longitudinal que vem sendo desenvolvido pela Professora Daniela Karine Ramos que tem como objetivo investigar as contribuições do uso de jogos cognitivos digitais para o aprimoramento das habilidades cognitivas e pautar o desenvolvimento da Escola do Cérebro.
Resultados e discussão
A discussão sobre a aprendizagem baseada no uso de jogos digitais é um assunto que perpassa a inserção das tecnologias nas escolas (Alves, 2005; Prensky, 2012; Ramos, 2013; Moran, 2012) e adentra em seu caráter lúdico (Salen e Zimmerman, 2012) e motivacional (Olson, 2010). O lúdico relaciona-se, principalmente, com a diversão e o interesse das crianças para interagir com os jogos.
O caráter motivador e a novidade de se aprender jogando são aspectos que fascinam as crianças que além de aprender, exercitam habilidades importantes e se divertem. Nesse sentido, o principal aspecto investigado na interação com as crianças, envolveu tanto o que elas aprendem, como também o que mais gostaram de jogar e por quais motivos queriam jogar.
Além disso, a partir dos desenhos foi possível ter uma ideia do que foi mais marcante e significativo para as crianças, considerando que a representação feita através dos desenhos correspondia com às preferências em relação aos jogos utilizados, também relatadas oralmente. Destaca-se que a maior parte das crianças desenhou um dos jogos utilizados, destacando-se a presença do tablets, como nessa representação e em alguns outros desenhos onde era presente a representação da interação criança-tecnologia (Figura 5).

Ao total foram analisados 36 desenhos e a contabilização dos tipos de registros revelou: 11 desenhos do jogo Genius, 12 do jogo Joaninha, 3 do jogo Conectome, 6 representando a interação criança-tablet e em 4 desenhos tivemos outras elementos como: a representação do ranking que apareceu em 3 desenhos e a representação da Escola do Cérebro que apareceu em 2 desenhos. Destacamos, ainda, que quanto às representações 55,5% (n=20) das crianças desenhou o jogo juntamente com o tablet. A inclusão do tablet no desenho evidencia que a tecnologia utilizada também foi expressiva para as crianças ao ponto de ser destacada por algumas crianças como parte da atividade proposta (Figuras 6 e 7).


No momento da entrevista em que foram questionados sobre sua preferência de jogo, ao responderem já justificavam o porquê, descrevendo o motivo pelo qual gostaram mais de um determinado jogo. Diante disso, as escolhas das crianças podem ser associadas com as habilidades cognitivas que eram exercitadas em cada jogo e com o nível de dificuldade apresentado. Nos jogos Conectome e Joaninha a principal habilidade exercitada era a resolução de problemas (Matlin, 2004), já no jogo Genius temos fortemente presente a memória de trabalho (Uehara e Landeira-Fernandeza, 2010).
Desta forma, destacamos as habilidades identificadas através das falas transcritas, estabelecendo algumas categorias para análise dos dados. As categorias foram definidas a partir das transcrições das falas das crianças, embasando a discussão dos seguintes aspectos: atenção, colaboração, memória, resolução de problemas e controle inibitório. Ao analisarmos a transcrição das entrevistas pode-se distinguir dois pontos de vista das crianças sobre a resolução de problemas: um relacionado ao planejamento da ação para resolver o problema e outro com o nível de dificuldade envolvido na resolução do problema (Quadro 1).

Ao analisarmos a frequência com que as categorias foram codificadas, torna-se evidente que a resolução de problemas destaca-se na interação com os jogos cognitivos, seguida pelo controle inibitório, pela atenção, memória e colaboração. A percepção mais expressiva da interação com os jogos que envolvem a resolução de problemas pode estar relacionada aos desafios propostos pelos jogos e cabe esclarecer que na resolução de problemas outras funções estão envolvidas como a atenção, a memória e a tomada de decisões (Matlin, 2004). A memória de trabalho mantém informações disponíveis para que seja utilizada nas etapas envolvidas na resolução de problemas (Cosenza e Guerra, 2012). Já a atenção relaciona-se com a seleção e a decisão sobre quais informações são mais importantes e vão contribuir na resolução do problema e na toma de decisões (Matlin, 2004).
A categoria resolução de problemas aparece com bastante frequência ao longo da transcrição das falas das crianças, muitas vezes relacionando com a capacidade de planejamento ou ao nível de dificuldade dos jogos. Conforme Matlin (2004) o processo de resolução de problemas passa por três estágios definidos: (1) estado inicial - relacionada à situação antes da resolução do problema; (2) estado meta - objetivo relacionando a resolução de problemas; (3) obstáculos - refere-se às restrições e dificuldades. A resolução de problemas está presente em várias situações do jogo onde o jogador precisa resolver de forma eficiente os desafios para alcançar seus objetivos e ganhar mais pontos, conforme as crianças entrevistadas salientam: “Tinha que tirar todas as peças, até sair duas que não deixavam a joaninha sair, tinha que ver na memória porque não era só tirar reto tinha que pensar, não podia ser de qualquer jeito”, “Porque ia fazendo caminhos ia tentando acertar e ia ficando cada vez mais fácil” e “Tem que ficar movendo as peças e pensar bastante para salvar a joaninha”.
A partir da interpretação dos dados, podemos observar que a atenção também é um aspecto percebido pelas crianças como fundamental para o êxito dentro do jogo e que aparece identificada na fala das crianças, mesmo não utilizando a palavra atenção. Essa habilidade pode ser identificada na fala a seguir, na qual podemos relacionar a atenção à compreensão do que é para ser feito: “No conectome tinha que ligar uma peça na outra”, neste caso a criança manteve-se atenta ao encadeamento das peças do jogo. De outra perspectiva, a atenção aparece também associada ao monitoramento e avaliação das ações identificadas como: “porque precisa ter paciência e inteligência para poder resolver. Tem que ir vendo, vendo como se fosse um labirinto cheio de pedacinhos. Antes era bem difícil, mas agora que foi programado está mais fácil”.
A colaboração foi codificada duas vezes, destacando-se pelo trabalho coletivo em busca de um objetivo comum (Ramos, 2013). Dessa forma, as crianças puderam ajudar-se e puderam aprender juntos sobre os desafios do jogo, facilitando o interesse de uma das crianças sob o jogo. Um das crianças relata “eu consegui tirar a joaninha, quando meu colega ao lado explicou para o outro o que era para fazer” e outra narra que “Eu não gostava, mas daí depois o Pedro ficou me ajudando naquele joguinho, daí eu aprendi a passar todas as fases”. Esse aspecto apesar de não ser muito citado pelas crianças, talvez pelos questionamentos que nortearam as entrevistas, revela-se importante no contexto de sala de aula, pois as crianças ajudam-se mutuamente, oferendo dicas e orientando os colegas. Em outro estudo desenvolvido pautado em observações sobre o uso dos jogos digitais acessados por tablets em sala de aula revelou que a “ajuda mútua e dicas eram comumente observadas entre os alunos, mesmo cada um utilizando seu tablet” (Ramos et al., 2015, p. 301).
Outro aspecto exercitado pelo uso dos jogos refere-se à memória de trabalho, enquanto capacidade que permite o armazenamento das informações e gerenciamento delas (Uehara e Landeira-Fernandeza 2010). Essa habilidade fica evidente nas transcrições como: “no genius tinha que gravar coisas na cabeça” e “no Genius, tem que ser rápido para não esquecer”.
O controle inibitório (Diamond, 2013) destaca-se principalmente na referencia a necessidade de ter paciência, que apareceu com maior frequência na fala das crianças. A paciência, para eles, pode ser relacionada a manter a calma e pensar antes de agir. Segundo duas crianças: “Aprendi a ter mais paciência, habilidade e inteligência” e “no início demorava muito, tive que ter muita paciência. Aprendi que a gente não tem só que fazer, tem que pensar antes de fazer ou falar. Agora eu entendo porque a minha mãe fala: pensa antes de falar”. Essa categoria identificada reforça os achados obtidos em outro estudo também realizado com a Escola do Cérebro aplicado em turmas, que ao considerar a avaliação das crianças e das professoras sobre a atividade desenvolvida identificou que o uso dos jogos contribuiu com o aprimoramento do autocontrole, expresso por indicadores como paciência, respeito, pensar antes de agir e limites (Ramos e Rocha, 2016).
Dentre outros aspectos que surgiram das falas das crianças destacamos o respeito às regras do jogo, ilustrado por esta fala: “Aprendi que o jogo desenvolve a disciplina”. Esse aspecto pode ser relacionado ao jogo como atividade delimitada por regras (Salen e Zimmerman, 2012; Schuytema, 2008). Essas regras definem o que é certo ou não dentro jogo, orientando o jogador sobre suas ações (Prensky, 2012), criando um contexto em que é preciso respeitar as regras, o que envolve ter disciplina para guiar suas ações no jogo.
Cabe destacar, ainda, que quando lidamos com o público infantil o interesse pela aprendizagem pode acontecer de formas diferenciadas, muitas vezes pautadas em experiência lúdicas e prazerosas. Nos primeiros anos de escola, as crianças encontram-se em constante desenvolvimento e as contribuições dos jogos podem ser potencializadoras da aprendizagem, aliando o lúdico e a motivação. No contexto de sala de aula as crianças estão imersas em um ambiente de rico de estímulos visuais, auditivos, sociais e emocionais, ao mesmo tempo em que precisam em vários momentos direcionar o foco e manter a atenção seletiva (Matlin, 2004). Nesse estágio os processos de atenção passaram por diversas mudanças e podem agora ser classificados no estágio inclusivo, onde ela é facilmente distraída pelas inúmeras informações contidas no meio ambiente, atendendo a várias coisas ao mesmo tempo, não sendo capaz de separar as informações (Ladewig, 2000). Diante desses desafios, os jogos podem se apresentar como uma alternativa para o aprimoramento da capacidade de atenção e das funções executivas (Diamond e Lee, 2011; Rivero et al., 2012).
Nesse sentido, ao considerarmos a percepção das crianças sobre o que se aprende na interação com o jogos digitais e dos resultados que vem sido obtidos em vários estudos experimentais ou quase-experimentais descritos na literatura, os quais propõe intervenções e avaliam seus resultados (Quiroga et al., 2009; Rueda et al., 2012; Healey e Halperin, 2015), torna-se fundamental reconhecer a contribuição que os jogos digitais podem oferecer ao desenvolvimento de aspectos cognitivos, também no contexto escolar. Reforçando a defesa de Ramos (2013) para inclusão e o uso desse tipo de jogo na escola, por favorecer o desenvolvimento de habilidades que repercutem sobre o desenvolvimento dos alunos e seu processo de aprendizagem.
Ao mesmo tempo em que se reconhece, concordando com Kishimoto (2007), que o uso de jogos pode ter interferência positiva no processo ensino e aprendizagem das crianças, além de ser um suporte metodológico adequado a todos os níveis de ensino, desde que a finalidade deles seja clara, a atividade desafiadora e que esteja adequado ao grau de aprendizagem de cada aluno.
Considerações finais
O fato de que as tecnologias móveis e os jogos digitais fazem parte da vida de muitas pessoas, não pode ser ignorado. A facilidade das tecnologias móveis dentre eles smartphones e tablets, estão presentes no cotidiano das pessoas e, em especial, na vida de crianças e jovens que já nasceram imersos nesse contexto tecnológico onde há um fluxo acelerado de informações rápidas, gerenciamento de informações e produção de conhecimento. Nesse universo, os jogos digitais podem ser utilizados no contexto escolar de modo a oferecer contribuições ao desenvolvimento das crianças e à aprendizagem, por meio do exercício de habilidades cognitivas e da aquisição de conhecimentos relacionados ao uso das tecnologias digitais. Assim, pelo seu caráter lúdico e envolvente, os jogos podem contribuir se inseridos no ambiente escolar, trazendo contribuições tanto no campo intelectual, quanto no campo cognitivo e afetivo das crianças.
O uso dos jogos digitais no contexto escolar pode auxiliar as crianças a aquisição uma visão mais reflexiva e crítica sobre esses recursos. As atividades são mediadas e orientadas, o que favorece maior entendimento sobre as implicações da interação com essas tecnologias. Ao mesmo tempo, valorizar a opinião, a crença e as motivações das crianças convida-as a pensar e refletir sobre o que fazem, sobre o que os jogos envolvem e sobre as habilidades necessárias. Refletir sobre as habilidades e expressar como percebem o seu exercício nos jogos pode contribuir, ainda, com o desenvolvimento da metacognição.
De modo geral, nosso estudo reforça que os jogos podem exercitar diversas habilidades, dentre elas as cognitivas que foram ilustradas através da percepção das crianças ao jogar. Portanto, podemos utilizar os jogos em benefício da educação, trabalhando com os jogos digitais que proporcionam alternativas divertidas e motivadoras para brincar, estudar e aprender.
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Notas
Autor notes
Universidade Federal de Santa Catarina. dadaniela@gmail.comUniversidade Federal de Santa Catarina. brunaanastacio@hotmail.com