EDITORIAL

EDITORIAL

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo *
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brazil
Myriam Moreira Protásio **
Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro, Brasil
Victor Portavales ***
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brazil
Paulo Victor Rodrigues da Costa ****
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brazil

EDITORIAL

Estudos e Pesquisas em Psicologia, vol. 20, núm. 4, Esp., pp. 1015-1019, 2020

Universidade do Estado do Rio De Janeiro

Este dossiê, intituladoPsicologia & Fenomenologia, com publicação prevista para dezembro de 2020, ocorre no ano e mês em que comemoramos os 100 anos de nascimento de nossa emblemática escritora Clarice Lispector. No momento em que nos é incumbida a tarefa de redigir este editorial, homenagear Clarice se mostra como uma grande oportunidade. Lembramo-nos que Heidegger foi convidado a homenagear o compositor alemão Conradim Kreutzer, em 1959, quando esse compositor completava 100 anos de sua morte. O filósofo diz que a forma mais digna de homenageá-lo seria trazendo a sua obra, ou seja, deixar ver a obra seria a autêntica homenagem.

O leitor perguntará: Por que homenagear Clarice em um dossiê de Psicologia & Fenomenologia? Em um olhar apressado sobre essa homenagem em um dossiê de uma revista de psicologia parece bem estranho, no entanto, os motivos são muitos e acima de tudo complexos, misteriosos e enigmáticos. Lembremos que fenomenologia tal como postulada por seu criador Edmund Husserl é um modo de ir às coisas por meio da relação de quem vê com o que é visto. Isso quer dizer que fenomenologia diz sobre um modo específico de ver. Por isso, cabe nesse momento oportuno rememorar Clarice, ela foi exímia na arte do ver e ainda do fazer ver.

A nossa escritora, que escolheu o Brasil como sua pátria, via e nos mostrava como ver no sentido do verbo tal como apreendido pelos gregos antigos, mais especificamente Homero, em uma língua com expressões referentes ao concreto e sensível, expressavam a visão como olhar e ver que proporcionava ao homem impressões sensoriais segundo as diferentes modalidades do ato de ver. Ver, aqui, inclui sentir, saborear, ouvir etc.

A nossa escritora provoca esse ver em seu leitor em diferentes passagens de sua vasta obra. Por isso consideramos muito oportuna a homenagem a Clarice, que antes de qualquer método que ensina a ver por determinações, nos conduz a ver o concreto, o existencial, a vida tal como ela se mostra.

Agora vamos a uma segunda questão: O que tem a ver a homenagem a Clarice em uma revista de psicologia em um dossiê que se denomina também de Psicologia? Essa escritora era uma dedicada leitora da alma humana, melhor dizendo, era capaz de ver a alma humana com uma delicadeza e perspicácia que causaria inveja a qualquer restaurador de obras de arte. Ela viu em Miss Algrave o seu erotismo, de modo a acompanhar seu processo de libertação da moral que a consumia e não a deixava viver em liberdade. A romancista viu em Macabéa o seu conformismo, abnegação e esperança, que acaba com sua morte. Essa cronista emAmor e imorredouroretratou o luto do taxista espanhol que em sua dor guardava a vida que pungia. Enfim, ela via coisas que um psicólogo precisa de vários anos de estudo para aprender a fazer, ou seja, ver a alma humana.

Vamos comemorar o aniversário de Clarice Lispector trazendo escritos em que os autores deste dossiê se esforçaram para ver e que depois transformaram o visto em texto. Certamente não foi pelo caminho trilhado por Clarice e sim, na maioria dos textos, pela fenomenologia. Mas queremos lembrar que uma mulher, brasileira, também pode ser referência. E ao ver isso, nós mulheres conquistamos a nós mesmas, que mesmo não sendo homens, nem europeus, podemos fazer a diferença.

Vamos iniciar este dossiê, não por acaso, com três artigos que apresentam textos muito afinados com aquilo que vemos em Clarice, ao referir-me ao fato dela ver as almas, valorizar a vida em uma perspectiva da ação e se interessar verdadeiramente pela experiência concreta. Elisabete Sousa, com o artigo intituladoQuando o Bom Conhecedor de Almas se Torna Psicólogo Experimentante,nos ajuda com os textos de Sören Kierkegaard e de seus pseudônimos a identificar a tarefa do psicólogo, do experimentante, como diz Kierkegaard ao referir-se ao psicólogo como aquele que se dedica a conhecer almas. O segundo artigo deste dossiê, ao dar continuidade ao fazer como arte, foi colocado nessa posição por nos mostrar que, na perspectiva existencial, o método não é o que dita o caminho daquilo que queremos nos aproximar, mas ao contrário, o método se faz ao caminhar. Trata-se do texto intituladoPensando o Círculo Hermenêutico Como Um Caminho Para a Pesquisa Em Psicologia, redigido por Ana Andrade Barbosa Maux e Elza Dutra. Márcio Bogaz Trevisan e Josemar de Campos Maciel nos mostram seus interesses pela experiência e apostam todas as suas fichas no poder de transformação que a existência carrega, no texto intitulado Experiencia y transformacion de la percepción del mundo en Pierre Hadot.

Na segunda seção do dossiê seguiremos em direção ao método fenomenológico, que passa a ser necessário na medida em que o homem esquece o poder ver. O homem moderno habituou-se à cegueira e só consegue enxergar as coisas a partir do que é representado. Husserl, no seu esforço para que o filósofo possa recuperar a capacidade de ver, cria um método que tem como máxima ir às coisas tais como elas se apresentam à consciência. E é nessa perspectiva que os artigos a seguir vão se encaminhar. O primeiro deles recebeu de seus autores, Fabiane Villatore Orengo, Adriano Furtado Holanda e Tomy Akira Goto, o título de"Psicologia fenomenológica" de Husserl - a (In)compreensão de psicólogos brasileiros. O outro, escrito por Paulo Coelho Castelo Branco, estabelece um diálogo entre aEpoquéproposta por Husserl e a consideração positiva incondicional tal como desenvolvida por Rogers. Sem dúvida, trata-se de um estudo inovador no que diz respeito à psicologia e a fenomenologia.

Em uma terceira leva de artigos estão elencados temas que contemplam a apropriação do método husserliano por outras perspectivas filosóficas ou teóricas. O texto de Hernani Pereira dos Santos, intituladoHusserl e Gurwitsch sobre a psicologia da Gestalt: um estudo sobre o sensualismodesenvolve o modo como Gurwitsch, renova a compreensão fenomenológica da organização perceptiva. Nessa mesma direção, Pedro Marangoni e Danilo Saretta Verssimo mostram como Gurwitsch desenvolve o conceito de autoconsciência e apontam para as críticas à posição assumida por Gurwitsch no artigo intituladoA autoconsciência na teoria de Aron Gurwitsch: posição e crítica.

Ainda sob o prisma da fenomenologia, no entanto em diálogo com Heidegger, Alexandre Trzan, sob o títuloEncontros e desencontros entre o pensamento de Husserl e Heidegger: fenomenologia em movimento, mostra-nos a influência de Husserl no pensamento de Heidegger, sobretudo emSer e tempo,naquilo que diz respeito à intencionalidade a ao método fenomenológico.

Sobre o modo como alguns teóricos se apropriaram da fenomenologia de Sartre e Merleau-Ponty e da fenomenologia-hermenêutica para pensar o social, bem como as suas clínicas, alguns textos traçaram uma perspectiva crítica sobre tal apropriação. EmUma análise crítica sobre o amor e o cuidado em Binswanger e Heidegger, Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo, Marcelo Frust de Feitas Acetta, Myriam Moreira Protasio, Paulo Victor Rodrigues Costa e Victor Portavales Silva apontam para os equívocos produzidos por Binswanger ao fazer uma inversão da proposta de Heidegger, colocando o amor como a tonalidade afetiva mais originária. As autoras do artigoA Situação Hermenêutica e a Clínica Psicológica: Caminhos Possíveis, Ângela Cardoso Andrade e Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto, mostram-nos toda uma perspectiva filosófica que esclarece com riqueza de detalhes o modo como, para as autoras, a fenomenologia é incorporada à hermenêutica pelo filósofo Martin Heidegger e apropriada pela clínica psicológica. Por fim, Jefferson Silva, com o títuloA mediação fenomenológica-hermenêutica em Paul Ricoeur: uma proposta psicoterapêutica frente ao imediatismo da consciência, também continua versando sobre a hermenêutica.

Merleau-Ponty foi tema de diferentes artigos em que o diálogo com o filósofo trouxe contribuições riquíssimas, principalmente, no que diz respeito ao momento crítico que estamos atravessando, como nos mostrou Mônica Alvim, emO estético-político em Merleau-Ponty e a fenomenologia crítica: notas preliminares sobre as relações raciais;Camila Pereira de Souza, Lucas Guimarães Bloc e Virginia Moreira, emCorpo, Tempo, Espaço e Outro como Condições de Possibilidade do Vivido (Psico)patológico. Gilberto Hoffman Marcon e Reinaldo Furlan discutiram o tema com o seguinte título -Self e autenticidade: dilemas conceituais sob a perspectiva de Merleau-Ponty.

E por fim, Jean-Paul Sartre foi tema em artigos que dialogavam com um modo de compreender fenômenos como o suicídio e a clínica por meio de concepções sartrianas. Com o títuloum caminho com Sartre: apropriações de seus métodos para uma clínica fenomenológica-existencial, Rodolfo Rodrigues de Souza apresentou com maestria seu texto. Carlos Ming-Wau, Georges Boris Janja Bloc, Anna Karynne Mello e Raimunda Magalhães Silva escreveramA decisão de tentar o suicídio sob a lente fenomenológico-existencial sartriana.Contribuições da psicanálise existencial à prática clínica: indicações teóricas e metodológicasé o título do texto de autoria de Fernando Gastal de Castro, André Resende e Mariana Gabriel em que eles discutem o desdobramento de uma situação clínica junto ao método progressivo-regressivo de Jean Paul Sartre.

Chegamos ao fim deste editorial homenageando Clarice tal como nos indica Heidegger, trazendo a sua relação com seus textos, que fica bem explicitada nesse diálogo: Por que você escreve?, perguntaram a Clarice. Por que você bebe água?, ela retrucou.

Autor notes

* Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo: Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
** Myriam Moreira Protásio: Sócia-fundadora do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (IFEN), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
*** Victor Portavales: Professor Substituto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
**** Paulo Victor Rodrigues da Costa: Doutorando da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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