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Os Estados Tônicos como Fundamento dos Estados Corporais em Diálogo com um Processo Criativo em Dança
Tonic States as the Basis of Bodily States in Dialogue with a Creative Dance Process
Les États Toniques comme Fondement des États Corporels en Dialogue avec un Processus Créatif en Danse
Os Estados Tônicos como Fundamento dos Estados Corporais em Diálogo com um Processo Criativo em Dança
Revista Brasileira de Estudos da Presença, vol. 5, núm. 3, pp. 596-621, 2015
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Recepção: 31 Maio 2014
Aprovação: 03 Novembro 2014
Resumo: O presente artigo propõe refletir acerca do conceito de estados corporais na dança a partir de investigações artístico-acadêmicas com as corporalidades e as danças da manifestação popular pernambucana do Cavalo Marinho. Por meio de análises do processo de investigação artística, englobando pesquisas de campo no contexto da expressão cultural estudada, procura-se realizar um diálogo com abordagens teóricas sobre gesto e percepção. Assim, os conceitos de pré-movimento e de estados tônicos se mostram de grande valor para a compreensão de um processo criativo fundamentado na relação entre percepção, memória, imaginação, estados e movimentos.
Palavras-chave: Estados Corporais, Pré-Movimento, Processo Criativo, Educação Somática, Dança.
Abstract: This article aims to reflect on the concept of bodily states in dance through artistic and academic investigations of corporeality and dance in the traditional Pernambuco cultural performance Cavalo Marinho. By analysing the artistic investigation process, encompassing field research in the context of this cultural expression, we aim to conduct a dialogue with theoretical approaches to gesture and perception. Thus, concepts of pre-movement and tonic states have significant value in understanding a creative process based on the relationship between perception, memory, imagination, states, and movements.
Keywords: Bodily States, Pre-Movement, Creative Process, Somatic Education, Dance.
Résumé: Cet article propose de réfléchir sur le concept d'états corporels dans la danse à partir de recherches artistiques et académiques sur la corporalité et la danse du Cavalo Marinho, expression populaire de Pernambuco. À partir de l'analyse du processus d'investigation artistique, impliquant des recherches de terrain dans le contexte de l'expression culturelle mentionnée, nous cherchons à mener un dialogue avec les approches théoriques sur le geste et la perception. Ainsi, les concepts de pré-mouvement et d'états toniques montrent une grande valeur pour la compréhension d'un processus créatif basé sur la relation entre la perception, la mémoire, l'imagination, les états et les mouvements.
Mots-clés: États Corporels, Pré-Mouvement, Processus Créatif, Éducation Somatique, Danse.
Introdução
Entre 2009 e 2011, realizei pesquisas prático-teóricas em dança com base em investigações sobre as corporalidades e o samba do Cavalo Marinho, manifestação popular tradicional ou brincadeira1, como seus agentes - da Zona da Mata Norte de Pernambuco - o chamam. De 2004 a 2008, estive envolvida em estudos de campo, priorizando o convívio com os brincadores e a vivência na brincadeira em seu meio juntamente com os integrantes do Grupo Peleja2, do qual faço parte como dançarina e pesquisadora. Logo depois, no ano de 2009, iniciei um processo criativo no âmbito de uma pesquisa de doutorado. Nesse processo, voltei-me às investigações corporais utilizando padrões de movimento e as sonoridades do Cavalo Marinho como ponto de partida em busca de novas experiências de movimento. Tais experiências não se limitavam às estruturas coreográficas da brincadeira ou de seus padrões de movimento em torno de sequências. Elas eram, antes de tudo, conduzidas por estados que emergiam da relação entre movimento e memórias da vivência do trabalho de campo. Memórias emergentes do movimento que traziam as imagens dos brincadores e das paisagens do campo para a sala de ensaio, configuradas não apenas visualmente, mas por meio de sensações e emoções que se materializavam no corpo.
No percurso entre investigação teórica e os dados emergentes do processo criativo, o diálogo com teorias da Educação Somática, vindas sobretudo do pesquisador Hubert Godard, mostrou-se imprescindível para a compreensão do conceito de estados corporais e da abordagem criativa em questão. Assim, inicio este artigo com o objetivo de pensar uma dança de estados corporais por meio de questões relacionadas à percepção, tendo como base uma trajetória artística específica. Contudo, procuro tratar de conceitos e trazer problemas que estão muito além dessa trajetória.
Os estados corporais vêm sendo analisados a partir de obras coreográficas por meio de diferentes abordagens. Muitos artistas também, conduzidos por processos de criação particulares que resultaram em distintas propostas estéticas, desenvolveram diferentes pensamentos sobre o tema3. Entretanto, entendo que o problema, antes de ser um conceito a ser definido teoricamente, é uma experiência vivida e experimentada de forma particular. Portanto, sua conceituação, aqui apresentada, guarda as particularidades de um processo criativo específico, que teve como resultado um espetáculo solo estreado em 2011, intitulado Cordões4. Uma das singularidades dessa obra está justamente na reinvenção da corporalidade e do samba do Cavalo Marinho a partir de modos de operar articulados com perspectivas da Educação Somática. Thomas Hanna, ao definir o campo da Educação Somática, diferencia corpo e soma (palavra grega que designa corpo). Segundo o autor, o que constituiria o soma seria a observação de si mesmo e o fato de que, quando alguém se observa de forma consciente, não o faz de forma passiva, pois, simultaneamente à observação, o sujeito age sobre si mesmo, "[...] está sempre engajado no processo de autorregulação [self-regulation]" (Hanna, 1995, p. 342). Durante o processo criativo, ao explorar as danças do Cavalo Marinho através da repetição que visava a sua transformação, minha atenção voltava-se constantemente ao meu próprio corpo em movimento provocando mudanças sutis na minha corporalidade. Essa ação da percepção atrelada à emergência de memórias do campo gerava novas sensações e novas mudanças na movimentação e nos estados corporais. O trânsito entre movimentos/estados, percepção, sensação e imagens do campo conduziu, assim, o processo criativo que foi ganhando materialidade a partir da consciência sobre as mudanças sutis provocadas por esses entrecruzamentos. Paralelamente à investigação prática, a teórica também se desenvolveu ao ser impulsionada por questões em torno do que seriam os estados corporais que se configuravam como princípio criativo no percurso de uma trajetória poética em andamento.
Estados Corporais e Estados de Presença
Pensando os estados corporais do ponto de vista de quem assiste a uma apresentação de dança, eles poderiam ser considerados as fontes daquilo que, no discurso cotidiano, é chamado de expressividade de um corpo em performance. Também poderia estar atrelado à presença ou à irradiação desse corpo, para utilizar termos presentes no discurso cotidiano de atores e dançarinos. Presença aqui não no sentido de estar presente, mas no de ter presença ou estar no presente5. Observo que, muitas vezes, as palavras expressividade e presença, usadas para qualificar a atuação de alguém em um contexto performático, aparecem na escrita ou na fala de teóricos, artistas da dança e do teatro quase como sinônimos. Assim, quando penso na dança compreendida a partir de estados corporais, estou identificando modos de estar em cena específicos, que geram "estados de presença6" (Louppe, 2007, p. 77). Um corpo em performance que trabalha é concebido de certa maneira, mesmo quando não há um planejamento consciente sobre essa concepção. A dança, sendo desencadeada pelos estados corporais, não se estrutura/organiza e não se apresenta por sequências de movimento, como dito anteriormente, e sim pelo fluxo dos estados. Constitui-se pela transitoriedade, pela característica processual dos modos de estar em cena e, além disso, é marcada pela singularidade do sujeito dançante. Os estados não se delimitam pelo movimento, pela forma do movimento - apesar de muitas vezes acompanhá-lo -, mas se constituem pelo caráter efêmero, processual e presente da dança.
É possível afirmar que danças de estados corporais vêm sendo praticadas e pensadas de diversas maneiras na dança contemporânea, estando ligadas aos estados de presença. Segundo Laurence Louppe (2007), a presença depende de um tipo de usagem de si mesmo, enquanto uma técnica corporal (Mauss, 2002), que seria gerada por uma certa aprendizagem em determinado contexto histórico, cultural e social. Portanto, há vários modos de estar em cena e produzir qualidades a partir desse estar, seja em termos estéticos, seja em termos de preparação que dependem do tipo de experiência pela qual o sujeito passou e do tipo de experiência pretendida a ser provocada no espectador, segundo cada projeto artístico. Outra definição que complementa a visão da autora relaciona a presença aos "[...] fenômenos de projeção, de ficções internas, de decomposições, de reconstruções imaginárias e orgânicas7" (Charmatz; Launay, 2002, p. 31 apud Louppe, 2007, p. 75, tradução minha). É justamente nesse ponto de conexão entre a presença e a imaginação, ou entre os estados de presença e a imaginação, que uma conceituação dos estados corporais pode começar a estruturar-se. Nesse sentido, busco a teoria de Hubert Godard e o campo da Educação Somática como suporte para pensar uma prática em dança que vai além de passos e sequências, além da coreografia.
Estados Tônicos como Fundamento dos Estados Corporais
A abordagem de Hubert Godard(19948, 1995, 2006) a respeito do movimento humano ajuda na compreensão do que acontece nos corpos quando se fala em expressão e presença, de forma precisa, em termos musculares, articulares, ósseos e perceptivos. O autor, atravessando tanto o campo da dança quanto o da saúde, cruzando informações cinestésicas, psicológicas, culturais e estéticas, desenvolve suas pesquisas sobre o gesto humano por meio de uma atuação nesses dois campos. Seu pensamento, formado mais no campo prático do que no teórico, vem sendo sistematizado pelo seu fazer e divulgado, sobretudo, por meio de entrevistas e artigos. Interessa-me aqui sua abordagem sobre o gesto a partir do que poderia ser abordado como uma teoria sobre a função tônica (Newton, 1995).
Em seu artigo Le Geste et sa Perception9 (1995), o autor descreve e analisa o processo operatório do gesto e a percepção sobre ele, evidenciando as diferentes nuances provocadas por dançarinos que fazem o mesmo gesto. Segundo o autor, pela forma, não se poderia compreender completamente o que se passa entre a execução e o processo perceptivo daquele que observa o gesto. Para isso, seria preciso considerar as dinâmicas internas do gesto responsáveis por seu sentido expresso, não exatamente intencional, ou consciente (Godard, 1995). A produção de sentido do gesto estaria, portanto, ligada ao processo de sua operação e entre ele e sua percepção, sempre se tratando de um aspecto relacional - do corpo com o espaço, da pessoa com seu próprio corpo, com sua própria história, por exemplo. O autor busca compreender, portanto, o que estaria por trás do gesto.
Godard (1995) explica que a relação com a gravidade e a gestão específica de cada um sobre ela, seja na postura vertical ou durante um movimento, dão características particulares, psicológicas e expressivas a cada pessoa. Antes mesmo de qualquer movimento perceptível acontecer, existiria uma atitude contrária à gravidade fornecendo a carga expressiva do movimento, denominada de pré-movimento. Esse seria o micromovimento realizado pelos músculos antigravitacionais, que nos permitiriam estar na posição vertical, em equilíbrio. Tais músculos são acionados sem mesmo que a pessoa se dê conta de sua ação, pois não é preciso planejar para que o corpo sustente o próprio peso. Portanto, seu acionamento é realizado de forma involuntária, inconsciente. Dessa forma, os músculos antigravitacionais respondem pela organização do corpo todo em relação à gravidade e reagem ao peso a que constantemente precisamos nos opor na postura vertical parada ou em movimento e em deslocamento.
Em qualquer momento, é preciso fazer ajustes para manter-se em equilíbrio, e é por isso que o trabalho dessa musculatura se antecipa aos gestos. Como mostra o autor ao dar o exemplo de quando alguém ergue um braço a sua frente, o primeiro músculo a contrair-se - ao contrário do que é provável deduzir, como sendo os músculos dos braços, dos ombros ou das costas - seria o músculo da panturrilha, chamado de sóleo10. De acordo com Godard (1995), o ajuste tônico realizado, por exemplo, pelo sóleo durante o gesto de erguer o braço seria também responsável pelo tom do gesto e sua qualidade. Os estados de tensão registrados por esse tipo de músculo no momento em que é acionado corresponderiam aos estados afetivos e emocionais que qualificam, dão nuances e distinções pessoais aos gestos. Nas palavras do autor:
É o pré-movimento, invisível, imperceptível para o próprio sujeito, que faz funcionar, ao mesmo tempo, o nível mecânico e o nível afetivo de sua organização. De acordo com o nosso humor e imaginário do momento, a contração da panturrilha, que prepara, a nossa revelia, o movimento do braço, será mais ou menos forte e, portanto, mudará a significação percebida. A cultura, a história de um dançarino e sua maneira de vivenciar uma situação, de interpretar, induzirão uma 'musicalidade postural' que acompanhará ou despistará os gestos intencionais executados. Os efeitos desse estado afetivo - sobre os quais apenas começamos a compreender os mecanismos -, que dão a cada gesto sua qualidade, não podem ser controlados unicamente pela intenção11 (Godard, 1995, p. 224-225, tradução minha).
Na visão do autor, é o pré-movimento que diferencia gesto de movimento. O gesto é por ele concebido como o que se passa entre o movimento - que se restringe aos deslocamentos dos segmentos corporais pelo espaço - e o "[...] fundo tônico-gravitacional do indivíduo [...]", significando o "[...] pré-movimento em todas as suas dimensões afetivas e projetivas" (Godard, 2003, p. 17).
Os pré-movimentos são realizados pelos chamados músculos tônicos, também conhecidos como músculos posturais, responsáveis pelo equilíbrio. Exercem a função tônica definida pelo autor, como a habilidade que o corpo tem para auto-organizar-se na gravidade (Newton, 1995). Em conjunto com outras estruturas anatômicas, esses músculos formam o sistema tônico, que, segundo Godard, não está separado do sistema de expressão. As razões para essa integração entre os sistemas estaria na relação entre função e estrutura dos músculos.
Os músculos tônicos se diferem dos músculos fásicos por possuírem mais fibras vermelhas, maior densidade de fusos e maior proporção de fáscia e usarem como combustível mais oxigênio. Já os fásicos, que são usados em movimentos largos e atividades curtas e intensas, diferem-se dos tônicos por possuírem fibras mais brancas e usarem mais o açúcar como combustível. Os fusos dos músculos tônicos têm a importante função de trazer de volta para o sistema nervoso central informações sensoriais que estabelecerão o tom dos outros músculos, por isso são ferramentas sensórias fundamentais (Newton, 1995).
Por meio da sua soltura, eles também controlam e, ao mesmo tempo, dão condições para que o movimento dos músculos fásicos entre em ação, ou seja, orquestram, através da soltura e do controle, a integração dos movimentos, possibilitando sua coordenação. Ao anteciparem a ação de andar, por exemplo, os músculos tônicos chamados isquiotibiais (conjunto de três músculos formado por bíceps femoral, semitendinoso e semimembranoso), que ligam os ísquios à tíbia, relaxam, permitindo assim o movimento do quadríceps (músculo fásico da coxa) e a coordenação do movimento da outra perna (Newton, 1995).
Além disso, segundo Newton (1995), os músculos tônicos são responsáveis pela expressão de inibição. Quando bloqueios psicológicos afetam uma pessoa, por desejos contraditórios, por exemplo, esses músculos perdem sua sutileza na alternância entre soltura e contração, maneira pela qual organizam os movimentos dos outros músculos. Pela falta de uma resposta flexível, o controle muscular é afetado na mudança do timing feito durante essa alternância. Dessa forma, é possível constatar como a expressão está ligada à coordenação motora e à história psíquica de cada indivíduo.
A postura como eixo central da abordagem de Godard é o lugar onde se cristalizam as nossas atitudes em relação ao mundo. O pré-movimento seria o lugar de interferência em sua prática para atingir essa cristalização e provocar mudanças estruturais no indivíduo, pois este "[...] se apoia sobre o esquema postural, antecipa todas nossas ações, nossas percepções, e serve de pano de fundo, de tensor de sentidos, para a figura que constitui o gesto12" (Kuypers, 2006, p. 69, tradução minha). O autor define o conceito de esquema postural a partir do cruzamento entre esquema corporal13 e imagem corporal14 - duas categorias conceituais distintas, embora, desde Paul Schilder (1994), venham sendo usadas de forma intercambiável (Gallagher; Cole, 1998). Os esquemas e as imagens corporais se constroem de acordo com o conjunto de funções motoras de ordem inconsciente, as quais são acionadas na relação com o mundo e com as representações do corpo conscientes e inconscientes, sendo estas formadas na interação entre a história pessoal de cada um e a cultura. A interferência nesse esquema tem, para Godard, tanto a finalidade de ampliar o repertório gestual de um dançarino quanto de capacitar um deficiente a utilizar, de maneira mais ampla, as funções de seu corpo (Kuypers, 2006).
O esquema se estabelece sobre um certo modo de relação com o mundo através dos hábitos perceptivos e da história própria de cada um. Seguindo a imagem do corpo (em parte inconsciente) e os gestos permitidos, autorizados pela singularidade do espaço de ação que cada um desenvolveu em função de seu contexto físico, afetivo, cultural e geográfico15 (Kuypers, 2006, p. 71, tradução minha).
Além disso, o esquema postural se organiza através da conexão entre a função sensorial do pé (com seus captadores de pressão), a percepção visual e o ouvido interno (conhecido como labirinto). Esse conjunto de funções sensoriais é responsável por situar a pessoa em relação à vertical no campo gravitacional, funcionando de maneira interdependente. Assim, um olhar demasiadamente focado pode inibir a função do ouvido interno, que, por sua vez, pode fazer com que a função de garra dos pés aumente demasiadamente, causando a perda da qualidade da função palpatória do pé, tornando-se um pé cego. Ou seja, as disfunções de cada setor sensorial interferem na nossa autonomia em relação à gravidade.
É nessa base sensorial que a tensão dos músculos tônicos organiza a postura, estando estes constantemente em ação mesmo antes de fazer qualquer movimento. É essa tensão anterior ao movimento que forma os hábitos posturais de cada um, que dotará o corpo de qualidades, fornecendo um leque de possibilidades tônicas por fluxos de tensões particulares a cada indivíduo. Por esse motivo, cada um, no momento de realizar um movimento, acionará músculos diferentes, com graus de tensão diferentes, a partir de seus hábitos posturais. E, ainda, os primeiros músculos a serem acionados sempre serão aqueles que já estão em ação, tensionados pelo esquema postural particular de cada pessoa. Essas diferentes microtensões formadas no esquema postural de cada um levariam a diferentes maneiras de movimentar-se e, portanto, a diferentes qualidades expressivas.
Experiência Perceptual, Imaginação e os Estados Tônicos
Aprende-se com Godard (1995) que, da mesma forma que um processo somático terapêutico pode interferir no pré-movimento gerando transformações gestuais, a dança possui seus modos próprios de interferência na organização gravitacional do corpo. Uma das formas para alcançar o aumento da potência da carga expressiva e afetiva do gesto, segundo o autor, estaria na manipulação da distância entre o centro de gravidade e o centro do movimento. A habilidade para realizar as modulações dessas resistências seria própria do trabalho do dançarino: este desenvolveria um domínio particular sobre o gerenciamento da gravidade e, por consequência, de sua expressividade.
É na distância entre o centro motor do movimento e o centro de gravidade, dentro dessa tensão, que reside a carga expressiva do gesto. [...] As resistências internas ao desequilíbrio, que são organizadas pelos músculos do sistema gravitacional, induzirão a qualidade e a carga afetiva do gesto. O aparelho psíquico se exprime através do sistema gravitacional; é por seu viés que ele carrega de sentido o movimento, modula-o e colore-o de desejo, de inibições, de emoções16 (Godard, 1995, p. 225, tradução minha).

Segundo o autor, para o dançarino, só é possível acessar e manipular o sistema tônico, sendo ele inconsciente, por meio de um trabalho com sua percepção ou imaginação.
Essa afirmação, a meu ver, não se restringe ao corpo do dançarino cênico ocidental, mas pode referir-se a todos que adquirem técnicas de acesso ao imaginário. Sejam elas via padrões de movimentos singulares ou processos de transmissão de práticas corporais simbólicas - incluindo aí os rituais, as festas, as expressões artísticas, enfim, as práticas performativas de qualquer cultura. No Cavalo Marinho, por exemplo, manifestação popular estudada, os padrões de movimento presentes na brincadeira estruturam-se por meio de posturas constituídas por oposições. Tanto no tombo, apresentado na imagem acima, quanto no trupé, categorias nativas que designam tipos de movimentações específicas, o tronco se mantém inclinado para frente com flexão da coxofemoral a mais ou menos 45 graus, com pequenas variações segundo o brincador que a executa. A cintura pélvica se mantém estável e, mesmo ao elevar os pés do solo, não há quase nenhuma oscilação da altura do corpo em relação ao chão, pois os movimentos e o corpo se relacionam o tempo todo com o solo; não há movimentos de suspensão, aéreos. A estabilidade da cintura pélvica, portanto, é consequente de duas forças opostas: a abdominal, que a sustenta, vetorizada para cima, e outra, fornecida pela inclinação do tronco, que a mantém para baixo. O tronco vetorizado para frente permite o distanciamento entre os dois centros de gravidade - o superior, relacionado ao conjunto cabeça-tronco-braços, e o inferior, relativo ao corpo como um todo (Godard, 1994) -, provocando justamente as tensões internas, que, segundo Godard, são responsáveis pela força expressiva do gesto. Tal postura exige constantes microajustes do sistema gravitacional para sustentar um equilíbrio, que, no caso do Cavalo Marinho, é dinâmico. A maneira como cada brincador gera os ajustes, de acordo com seu esquema postural, deve dar as características expressivas particulares a sua dança.
Entendo, assim, que os trabalhos corporais, seja no ambiente do Cavalo Marinho ou no ambiente da dança profissional ocidental, tenham suas aprendizagens próprias e que, por meio delas, desenvolvam capacidades diferentes de acesso ao sistema tônico. Essas capacidades de acesso determinadas por imaginários diferentes, por sua vez, constroem-se pela relação entre corpo e ambiente. Se as aprendizagens sensório-motoras são diferentes, assim como seus modos de percepção, também são produzidos estados tônicos particulares. Justamente aí me parece que encontro um dos motivos de meu interesse pela brincadeira do Cavalo Marinho e por que não me chamaram a atenção seus passos ou sua estrutura coreográfica, mas, sim, os estados corporais particulares produzidos por alguns de seus brincadores. A persistência em estudar a brincadeira tem origem na tentativa de compreender, a partir da prática, o que seria isso que despertava tanta atenção ao observar os brincadores. Assim, minha postura em campo revelou uma busca no sentido de compreender o que estava por trás de seus gestos, isto é, o que estava além dos códigos da dança, o que antecede e o que resta do movimento e, ao mesmo tempo, o que o acompanha. Mas o que me levou a notar nuances diferentes entre as maneiras de movimentar-se dos brincadores? Tal pergunta leva à tentativa de compreender um pouco do funcionamento da nossa percepção.
As técnicas do corpo, dentro da acepção de Mauss17 (2002), aprendidas através das gerações e por meio de treinamentos específicos - que englobam dançarinos e sambadores como aprendizes -, podem ser consideradas parte de um conhecimento sensório-motor que envolve também aquisições de habilidades perceptuais. É esse conhecimento que proporcionará uma experiência perceptual genuína, como explica Nöe em sua obra Action in Perception (2004). Segundo o autor, "[...] para a mera estimulação sensória constituir experiência perceptual - para que isso tenha conteúdo de presença-no-mundo [world presenting] genuíno -, aquele que percebe deve possuir e fazer uso do conhecimento sensório-motor18" (2004, p. 10 apud Zarrilli, 2007, p. 644, tradução minha). Sua concepção de percepção é definida enquanto ação perceptualmente guiada e origina-se na compreensão de uma cognição corporalizada, enativa, emergente da interação entre corpo e mundo:
Perceber é uma maneira de agir. Percepção não é algo que acontece a nós ou em nós. É algo que nós fazemos [...]; o mundo se torna ele mesmo disponível àquele que percebe através do movimento físico e do processo de interação. [...] O que nós percebemos é determinado pelo que fazemos (ou pelo que sabemos como fazer); é determinado pelo que nós estamos prontos para fazer. [...] Nós 'enatuamos' nossa experiência perceptual; nós a atuamos para fora19 (Nöe, 2004, p. 1, tradução minha).
Entretanto, como se daria esse conhecimento sensório-motor em níveis mais específicos, como no caso das atividades corporais de um dançarino ou de um brincador de Cavalo Marinho? Paul Zarrilli (2007) explica que, no caso de uma atividade complexa como ensaiar uma partitura corporal no teatro ou fazer ioga:
[...] a forma e a sensação da prática [de tais atividades] não são derivadas das ou intrínsecas às sensações por si, mas, antes, são ganhos do que se torna um conhecimento corporificado sensório implícito da organização e da estrutura da sensação-em-ação. Quando alguém aprende uma forma específica de movimento, tanto o padrão quanto a qualidade otimizada do relacionamento dele com a repetição de cada forma constituem uma forma de conhecimento sensório-motor20 (Zarrilli, 2007, p. 644-645, tradução minha).
O conhecimento sensório-motor seria, então, um conhecimento prático que envolve não apenas a habilidade de aquisição da forma pela reprodução de padrões de movimento, mas pelo domínio da maneira como a estimulação sensória varia. Ou seja, o aprender a dançar envolve uma sofisticação da percepção pela repetição, além de uma sofisticação motora. Isso confirma a quase óbvia noção de que repetir por repetir não leva necessariamente a uma progressão de qualidade, sendo a maneira como você repete essencial para que haja qualquer mudança qualitativa durante a aquisição de uma habilidade corporal.
No sentido que coloca o autor, é a relação que se estabelece durante a repetição, entre o que você sente e o que você realiza, que faz com que seja possível adquirir habilidades motoras e perceptuais conjuntamente. De maneira não tão óbvia assim, é possível concluir que o conhecimento sensório-motor, sendo um conhecimento perceptual, implica o saber dançar como uma maneira específica de perceber e agir sobre o mundo.
O autor ainda acrescenta que a habilidade de movimentar-se e perceber não significa apenas ter sensações, mas a percepção só ganha conteúdo quando compreende a sensação, o que o leva a afirmar que "[...] toda percepção é intrinsecamente pensante21" (Nöe, 2004, p. 3 apud Zarrilli, 2007, p. 644, tradução minha). Perceber, portanto, "[...] é ter sensações que se compreendem22" (Nöe, 2004, p. 33 apud Zarrilli, 2007, p. 644, tradução minha). Com base nessas afirmações, pergunto-me se o pensamento não seria apenas ligado à geração da compreensão pela sensação, mas à criação de sentidos gerados pela imaginação que se transforma em ação. Godard (1995) ensina que o dançarino é um habilidoso em transformar imaginação em percepção e em um tipo de engajamento postural observado pela variação dos estados tônicos. Não seria essa habilidade que alguns brincadores poderiam ter adquirido por meio de um imaginário coletivo transmitido pelas gerações?
A pesquisadora Eloisa Domenici (2004, 2009) propôs novos parâmetros para o estudo das danças populares, como, por exemplo, a relação entre estados corporais e metáforas compartilhadas - a partir do conceito de Lakoff e Johnson (1999) - pelos agentes dessas danças. Tal proposta se contrapõe à perspectiva que utiliza categorias vindas da dança ocidental, como coreografia e passo, para tratar de culturas locais que apresentam outras maneiras de viver, pensar e dançar. A partir da relação entre estados e metáforas, a autora aponta para a retroalimentação entre o imaginário compartilhado em dada comunidade e os aspectos tônicos envolvidos nas dinâmicas corporais das danças. Os padrões de movimento nomeados por expressões específicas carregariam em si toda uma rede complexa de imagens metafóricas e significações (Domenici, 2009). Assim, as metáforas encontradas nas manifestações, enquanto imaginação simbólica própria de uma comunidade, gerariam atitudes posturais e tipos de engajamento imagético-sensório-motor-perceptivo que poderiam proporcionar uma certa modulação sobre os estados tônicos.
Domenici (2004) também constata que, ao trabalhar com algumas dessas danças fora de seus contextos, mas de forma que seus aspectos tônicos e simbólicos estivessem presentes, elas provocavam a emergência de metáforas e imagens simbólicas que ultrapassavam o universo da cultura local. Ao dançar, emergiam as imagens de congregação, comunhão e pertencimento, normalmente encontradas nas manifestações. Isso evidenciou um fluxo nos dois sentidos: do universo simbólico para o movimento/estados tônicos e do movimento/estados tônicos para o universo simbólico. Em campo, minha experiência e do meu grupo corroboram a constatação da pesquisadora, pois, ao dançarmos juntamente com os brincadores, partilhávamos sentimentos em comum, em uma relação em que seus corpos pareciam exercer uma espécie de atração sobre os nossos.
Os Diálogos Tônicos durante a Pesquisa de Campo
Um aspecto importante da pesquisa deve ser ressaltado acerca das especificidades do processo de criação e da abordagem sobre as danças do Cavalo Marinho. Trata-se da perspectiva adotada em campo, determinante no modo como eu via e no que eu via na brincadeira - em direta relação com o modo como eu encaminhei meu processo de criação. Essa perspectiva produziu um tipo de aprendizagem das danças em campo e um modo de perceber as corporalidades e as danças nesse processo.
Como dito anteriormente, optei por observar e aprender a dançar com alguns brincadores que me chamavam mais a atenção. Juntamente com meu grupo, escolhi acompanhar, desde a primeira viagem à Zona da Mata, o brinquedo de mestre Biu Alexandre, o Estrela de Ouro de Condado, porque ali se encontravam bons figureiros23e bons sambadores24. Essa qualidade seria sempre identificada pela admiração que tínhamos pelo modo como os brincadores daquele grupo se movimentavam, como organizavam suas ações na roda (em cena) e, ao mesmo tempo, como seus gestos nos afetavam. Essa organização motora dos brincadores não tinha a ver com a amplitude, o vigor de seus gestos, ou a virtuosidade de seus movimentos. Identifico que o poder de afetação presente nessa relação se dava justamente por meio das qualidades tônicas que cada brincador produzia em seus gestos, dando nuances ao seu samba e às corporalidades de suas figuras. Portanto, o que sempre me motivou na pesquisa com a brincadeira foram os estados tônicos dos brincadores, de certos brincadores, e, por ter essa motivação, minha aprendizagem sobre suas danças também foi guiada pela troca de informações no nível tônico.
Essa motivação também explica meu interesse por aprender a dançar durante e fora das brincadeiras, sem mesmo estar dançando, pois, por meio da convivência no cotidiano dos brincadores, seria possível encontrar as respostas afetivas que nos ligariam, de alguma maneira, ao conhecimento corporal da brincadeira. Assim, seria determinante para mim e para o grupo a escolha por passar um mês em Condado (Zona da Mata Norte de Pernambuco), cidade sede de dois brinquedos de Cavalos Marinhos, morando em frente à casa de um dos brincadores e depois fazer visitas regulares à mesma cidade, optando pelo convívio com alguns deles. Dessa maneira, também observo que, ao optar pela convivência como procedimento de aprendizagem da dança, eu e o grupo estávamos buscando acercar-nos das sutilezas do movimento, materializadas por essa rede tônica, o pano de fundo de que fala Godard (2006), e constituídas por estados afetivos e expressivos manifestados pelos gestos dos brincadores.
Posso afirmar, então, que buscamos, enquanto procedimento criativo, um diálogo tônico entre pesquisadores e brincadores dentro e fora da brincadeira. Nesta última, tratava-se de um diálogo mais próximo, impulsionado pela "empatia cinestésica", quando, mesmo estando parado, o indivíduo se sente em movimento pela contaminação de "[...] intensidades e de mudanças do espaço corporal [...]" (Godard, 1995, p. 227). Segundo Godard (1995), essa sensação, também nomeada de contágio gravitacional, seria causada por uma experiência de perda momentânea do sentido do próprio peso enquanto os estados corporais do dançarino ressoam no seu próprio corpo. Seria isso que faria uma pessoa sentir, mesmo em posição estática, sendo levada pela movimentação e pelo deslocamento do dançarino ao assistir um espetáculo. Da mesma forma que a gravidade rearranja o movimento, dando qualidade e expressão particular ao gesto, ela intervém na percepção do espectador e interfere, de forma determinante, na produção dos sentidos observados no momento da performance. Nas palavras do autor:
O visível e o cinestésico, estando totalmente indissociáveis na produção de sentido durante um acontecimento visual, não deixariam intacto o estado corporal do observador: o que eu vejo produz o que eu sinto e, reciprocamente, meu estado corporal age sobre, sem que eu me dê conta, a interpretação disso que eu vejo25 (Godard, 1995, p. 227, tradução minha).
Durante a investigação artística, a experiência da primeira pesquisa de campo foi um marco para o desenvolvimento do treinamento do grupo. Um salto qualitativo para a execução das danças da brincadeira e um passo em direção a sua exploração mais criativa. A convivência diária com os brincadores deu a mim e aos demais integrantes do grupo a oportunidade de praticar o samba do Cavalo Marinho dentro do contexto da brincadeira, sendo constantemente expostos ao contágio gravitacional por meio do contato direto com os brincadores. Entretanto, essa constatação foi feita apenas quando o grupo saiu desse contexto, voltou para a sala de treinamento e pôde perceber como a memória corporal do campo impregnava suas movimentações. Isso ocorreu, num primeiro momento, sem a consciência dirigida para essa memória; ela simplesmente acontecia, era acionada pelo dançar. Isso era muito significativo para o grupo, pois preenchia o treinamento cotidiano de intensidades, colocando-nos em contato com estados afetivos que proporcionavam o trabalho com estados corporais. Esse tipo de trabalho, então, tornou-se possível somente depois da experiência de campo, quando justamente a memória corporal repleta de afetividade possibilitou a cada integrante do grupo o acesso a qualidades tônicas específicas. Tais qualidades também produziam estados de presença, de intensidades, por meio de um fluxo de sensações continuamente renovados pelo dançar.
Considerações Finais: os estados corporais a partir do samba do Cavalo Marinho
Considero que a abordagem sobre os estados corporais esteve presente ao longo da minha formação como dançarina, o que se tornou um princípio criativo característico de um projeto poético (Salles, 2009) mais abrangente. Esse princípio desencadeou uma relação específica com o samba da brincadeira, guiada por diálogos tônicos, e estes foram efetivados, de maneira mais estreita, com alguns brincadores. Portanto, é possível perceber que o ponto de vista adotado em campo correspondeu, assim, a um certo conhecimento sensório-motor sobre o qual fala Nöe (2004) e, logo, a um conhecimento ou uma capacidade perceptual ligada a essa história corporal que me permitia perceber os estados corporais do brincador e pô-los em relação com os meus. Corroborando as pesquisas de Domenici (2004, 2009) sobre as relações entre os aspectos simbólicos de manifestações populares, os estados corporais e a organização corporal das danças nesses ambientes, foi possível perceber que a movimentação de alguns brincadores pesquisados se fundamentava num trabalho tônico específico, combinando precisão, agilidade, prontidão, malícia, graça, força e leveza. Como já apontado também por outros pesquisadores (Acselrad, 2013; Oliveira, 2006a; Oliveira, 2006b; Guaraldo, 2010; Laranjeira, 2013), essas características se relacionam tanto com os sentidos e valores presentes na comunidade do Cavalo Marinho quanto com o tipo de trabalho corporal adquirido com a lida na cana-de-açúcar. Além disso, a organização postural dos brincadores, caracterizada pelo tronco inclinado à frente e estruturada na oposição entre centro motor e centro de gravidade, ao provocar no corpo brincador um jogo de tensões pela resistência ao desequilíbrio (Godard, 1995), evidencia um gerenciamento sobre a gravidade particular, implicando em nuances tônicas. Isso me leva a ponderar que não foi apenas a história da minha percepção um fator determinante para que eu me detivesse sobre esse aspecto da corporalidade da brincadeira.
Durante os laboratórios de investigação com a dança do Cavalo Marinho, no momento de criação do solo, a ênfase sobre os estados corporais também se estabeleceu ao experimentar variações do leque de tensões musculares que agem sobre a minha postura por meio de diferentes modos de pressão sobre os pés. Em um dado momento, a relação da pressão dos pés modificou a colocação da minha cabeça, provocando mudanças sutis no eixo de equilíbrio. Juntamente com as modulações tônicas produzidas por esse uso dos pontos de apoio dos pés, a memória do campo emergiu por meio de imagens dos brincadores caminhando. Tais imagens correspondiam ao movimento de ir e vir para frente e para trás (de costas) numa caminhada ritmada característica do mestre na dança dos arcos e continham a maneira como os brincadores se deslocavam, como imprimiam força, leveza e tensão ao movimento. Nessa experiência, houve um cruzamento entre a estimulação sensorial dos pés, a emergência de uma memória afetiva e a ação perceptiva, o que envolveu a compreensão pela ação e pela sensação de modificações causadas na minha corporalidade. Nesse cruzamento, foi possível perceber um modo de interferência no esquema postural que apontava para a teoria de Godard, a qual considera os mecanismos de pressão dos pés enquanto parte de uma estrutura sensorial que organiza as tensões musculares tônicas. Nesse caso, essa interferência me levou às imagens do campo e a uma memória corporal emotiva que carregou de sentidos um simples caminhar. A repetição dessa caminhada impulsionou uma corrida ritmada que se desdobrou por meio de improvisações nas movimentações das imagens abaixo, chamadas de carreira.


A atenção voltada à sensação do que acontece no próprio corpo enquanto dançava fez-me também perceber quais eram os primeiros grupos musculares a serem acionados durante o desencadeamento de certa movimentação. Com isso, essa atenção proporcionava consciência às ignições do movimento e aos estados emocionais gerados pela relação entre movimentar e perceber o movimento.
Outra forma de interferência nos estados tônicos deu-se pela vibração causada pela movimentação repetitiva e intensa, por exemplo, ao trabalhar com uma toada (música) específica do Cavalo Marinho correspondente ao trupé do momento do cavalo. Repetindo os gestos de um pequeno trote com os pés juntos, era levada a diminuir a movimentação externa aparente e manter a pulsação interna, pequena, quase imperceptível, o que fazia restar apenas a oscilação do peso correspondente ao trote por meio da pressão dos pés no chão (as fotos abaixo correspondem às movimentações desenvolvidas a partir desta pulsação). Identifico nesse momento do laboratório, entre outros, uma alteração da percepção, quando acontece uma espécie de condensação de sentidos e sinto-me descobrindo algo desconhecido por meio da sensação dos estados. Esses também seriam momentos de irradiação, quando o outro - no meu caso, os colaboradores com quem eu trabalhei - percebia os estados corporais reverberarem em seu próprio corpo.


As descrições e reflexões sobre o processo de criação de Cordões reafirmaram a potencialidade de um trabalho criativo a partir da técnica-expressividade das corporalidades e das danças da brincadeira do Cavalo Marinho, sob aspectos muitas vezes ignorados nos processos de reelaboração de danças tradicionais. Ao serem priorizadas as relações entre estados, movimentos e memória - sustentadas por um trabalho com a percepção singular -, foram sugeridos novos modos de lidar com tais danças diferentes daqueles que procuram reproduzir padrões de movimento e formatá-los em sequências. Essa maneira de coreografar, percebida não apenas nos trabalhos com danças populares, reduz toda a complexidade presente nas manifestações populares. Ao contrário disso, esta pesquisa procurou destacar a relação entre as corporalidades, o imaginário e o cotidiano dos brincadores, estando este expresso em visões de mundo que produzem jogos corporais, relações cênicas, movimentos, plasticidade e dramaturgias particulares. O contato direto com os brincadores e o seu contexto nesta pesquisa aponta para a possibilidade de gerar experiências na relação entre o cotidiano e o momento da festa que permitem o aprendizado de algo que está além de códigos e desenhos coreográficos correspondentes à sutileza de seus gestos a partir de diálogos tônicos. Os experimentos com as corporalidades produzidos nesta pesquisa são apenas uma das maneiras de reelaboração gerada pela imersão em campo. A brincadeira do Cavalo Marinho, especialmente pela diversidade de linguagens envolvidas e pelos múltiplos sentidos encontrados, expressos por críticas ou pela reafirmação de hierarquias sociais, é um campo fértil de pesquisas artísticas que ainda podem ser empreendidas.
Outro aspecto a considerar é a importância do diálogo entre teoria e prática e as possibilidades de retroalimentação entre esses lugares do conhecimento. Apesar de este artigo não tratar exatamente das reflexões sobre as dramaturgias da brincadeira, como foi apresentado em minha tese de doutorado, afirmo a importância das descrições e análises do processo criativo e de alguns dos procedimentos empreendidos para que elas tenham sido sucedidas. Ao pensar o processo de criação, foi possível compreender tanto as corporalidades da brincadeira como suas dramaturgias, além de circunscrever uma noção de estados corporais na dança. Neste artigo, procurei ressaltar a relação entre estados corporais e estados tônicos à luz das teorias de Godard (1994, 1995, 2006). Para o autor, os termos qualidade expressiva e qualidade afetiva se misturam e se cristalizam no esquema postural do sujeito, e o acesso ou a manipulação dessas qualidades seria permitido pela imaginação do dançarino. Por meio das experimentações no processo de criação, percebi que as relações simbólicas e o imaginário ligado à pesquisa de campo levaram-me a produzir novas corporalidades e possibilidades afetivas e expressivas. Ainda em diálogo com o mesmo autor, concluo que o trabalho com estados corporais na dança propõe uma poética concentrada na manipulação dos estados tônicos. Nesse contexto, importa a tentativa de reverberar os efeitos perceptivos causados pelas nuances de estados entre o corpo que dança e o de quem assiste à dança. Essa tentativa de reverberação parece ser, primeiramente, consequência da emoção do dançarino com seu próprio movimento, para que assim ele possa prolongar os efeitos do pré-movimento, deixando ecoá-los no gesto que o segue. Assim, sublinho que a dança dos estados corporais não se preocupa com os gestos em si, mas com os estados tônicos que os precedem e os acompanham; não são importantes a sequência ou a frase de movimento que são produzidas, mas a reverberação que causará as variações de tensões, impulsionando descobertas de novos estados e novos nexos de sentidos no corpo. São estados percebidos mais pela sensorialidade irradiante do que pelas construções de significados que possivelmente remeteriam à postura ou ao gesto. Não necessariamente decifráveis verbalmente, mas assimilados pelas sensações, que não estão separadas da imaginação e da razão e, portanto, são passíveis de constituição de sentidos; entretanto, sentidos que são próprios da experiência da dança.
Referências
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Notas
Autor notes