PINA BAUSCH
O Teatro da Experiência coreografado por Pina Bausch
Le Théâtre de l’Expérience chorégraphié par Pina Bausch
O Teatro da Experiência coreografado por Pina Bausch
Revista Brasileira de Estudos da Presença, vol. 8, núm. 3, pp. 487-521, 2018
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Recepção: 02 Setembro 2017
Aprovação: 28 Março 2018
Resumo: Um teatro no qual o espectador é envolvido em todos os seus sentidos, oferecendo condições de acolhimento. Na obra de Pina Bausch, o comportamento do corpo cotidiano não será apenas uma questão de estilo; sua dança desenvolve conteúdo, com grafia própria e convida o espectador a experimentar uma realidade poética. Para isso, o artigo apresenta inicialmente uma linha histórica do Tanztheater, seus atributos e inter-relações, até chegar às características específicas de quatro obras da coreógrafa, criadas no período que abrange as duas primeiras décadas (1974-1989) de sua frutífera produção, e que foram assistidas ao vivo pela autora do texto.
Palavras-chave: Tanztheater, Pina Bausch, Teatro da Experiência, Coreografias.
Résumé: Un théâtre où le spectateur est impliqué dans tous vos sens, en offrant des conditions d’accueil. Dans l’œuvre de Pina Bausch, le comportement du corps quotidien ne sera pas seulement une question de style; leur danse développe contenu, avec une graphie propre, et invite le spectateur a expérimenté une réalité poétique. Pour cela, cet article présente d’abord une ligne historique du Tanztheater, leurs attributs et interrelations, jusqu’aux caractéristiques spécifiques de quatre œuvres de la chorégraphe, créées dans la période dês deux premières décennies (1974-1989) de leur fructueuse production, et qu’étaient regardé en direct par l’auteur du texte.
Mots-clés: Tanztheater, Pina Bausch, Expérience de Théâtre, Chorégraphiques.
Introduzindo
A arte dramática e a noção de representação estão associadas, historicamente, a rituais mágicos, religiosos e primitivos. Tendo alicerces em princípios interdisciplinares, o teatro vai se servir tanto da palavra como de outros signos não verbais. Em sua essência, essa expressão artística lida com códigos estabelecidos a partir do gesto e da voz, responsáveis não só pela performance do espetáculo, como também pela linguagem e expressividade. O uso dos gestos e da voz tornou o teatro um texto da cultura que reporta a outros códigos, com a utilização do espaço, do tempo e dos movimentos.
Pelo fato de a Alemanha não ter uma tradição muito grande com o ballet clássico1, e também por ter sido palco de vários movimentos anteriores que refletiam a relação do homem com a natureza2, são possíveis justificativas para o país ter sido o berço do Tanztheater3. Ou, ainda, como alguns historiadores consideram: os coreógrafos de Tanztheater seriam os herdeiros do Ausdruckstanz4 - Dança de Expressão.
O jornalista Jochen Schmidt (1992) sugere que tracemos uma linha:
Pina Bausch (1945-2009) pode ser considerada a herdeira direta de seu professor Kurt Jooss5 (1901-1979). Susanne Linke6 (1944) é considerada a sucessora de Mary Wigman7 (1886-1973) e de Dore Hoyer8 (1911-1967). Gehard Bohner9 (1936-1992), o seguidor de Oskar Schlemmer10 (1888-1943) e do movimento Bauhaus11. E que o ‘Teatro Coreográfico’ de Johann Kresnik12 (1939) tenha pontos em comum com as críticas sociais feitas por Valeska Gert13 (1892-1978) em seu trabalho (Schmidt, 1992, p. 10, tradução da autora).
Essa linha histórica com os nomes de artistas protagonistas, sugerida por Schmidt, não garante nenhuma ligação direta entre as duas formas de expressão, Ausdruckstanz e Tanztheater, aqui destacadas, mas percebemos que rastros foram deixados. Nas considerações pedagógicas, que são encontradas a partir das práticas docentes exercidas por Mary Wigman e Kurt Jooss, percebe-se que estes mestres não queriam ensinar um estilo ou uma estética, já existente, e sim pretendiam que cada aluno encontrasse em si mesmo ferramentas para que fossem conciliadas com as técnicas que iriam ser absorvidas ao longo dos seus estudos.
Kurt Jooss, especialmente, acreditava na possibilidade da fusão do ballet clássico com a capacidade de expressar todas as formas dramáticas, originárias do teatro; empenhava-se em criar uma nova dança que possuísse um texto, mesclando o desenvolvimento do seu pensamento metodológico entre criação e pedagogia do ensino da dança.
Tanztheater e Algumas Interrelações
Esteticamente o Tanztheater, que chega à contemporaneidade, descende das inter-relações entre protagonistas da Dança de Expressão alemã, da atividade de Kurt Jooss na Folkwang Hochschule14 na cidade de Essen - Alemanha, assim como da influência da dança moderna americana, já que os mais significativos coreógrafos de Tanztheater da primeira geração estudaram em New York. Como é o caso de Pina Bausch, que atuou, inclusive, por um certo número de anos, em diferentes companhias americanas.
Pode-se dizer que o Tanztheater possui várias faces e que a personalidade de cada criador, suas histórias e vivências pessoais irão caracterizar e imprimir a leveza e o peso de suas respectivas obras. Encontraremos nas obras de Tanztheater gestos associados com os gestos do cotidiano das pessoas que habitam diferentes cidades do mundo. Determinadas produções são bastante econômicas, vê-se apenas o intérprete, seu corpo, uma trilha sonora, a iluminação e um figurino simples. Coreógrafas como Pina Bausch, Reinhild Hoffmann15, ou Susanne Linke criaram obras que necessitam de grandes produções com efeitos mirabolantes, objetos que ocupam todo o palco ou cenários com elementos reais da natureza, como: água, terra, areia, algodão, flores, entre outros. E, ainda, projeções de filmes, música ao vivo e muitos outros subsídios. Existem, ainda, elementos que podem ser considerados como elementos de uso em comum, como se fossem regras que os coreógrafos de Tanztheater seguem, por exemplo, a não utilização de elementos do ballet clássico na sua forma original, mesmo que encontremos um personagem que venha a dançar com sapatilhas de ponta, mas isso seria em um contexto diferente do que se utilizaria no ballet clássico.
Sem dúvida, existe entre ballet clássico e o Tanztheater uma zona de intersecção muito extensa e, dentro dessa intersecção, podem ser encontrados alguns dos fenômenos que inspiraram as diferentes modalidades de danças vistas na contemporaneidade.
Schmidt escreve que:
Tanztheater tem a ver com a postura espiritual de cada coreógrafo. Com a sua relação com determinadas convenções, e estéticas, que durante o desenvolvimento dos fatos contados por eles, fazem com que brotem livremente como um novo filme, ou um novo romance (Schmidt, 1992, p. 25, tradução da autora).
As estruturas cênicas encontradas nas peças de Tanztheater podem ser solos, colagens de cenas ou sequências dançadas em grupo. Os solos servem para apresentar o intérprete ou mostrar uma especificidade de sua movimentação. As colagens cênicas podem acontecer em diferentes partes do palco, falam do mesmo tema ou de temas diferentes; em tais colagens, algumas vezes as cenas se sobrepõem. As sequências que são dançadas em grupo apresentam a força do coletivo, mas os intérpretes mantêm suas individualidades.
A palavra cantada ou falada não pertence necessariamente ao Tanztheater, mas começa a ser experimentada já na metade da década de 70 do século XX, como que para aumentar as possibilidades de expressão. Porém, é somente na década de 80 que a palavra alcança outra dimensão, quando coreógrafos descendentes da linhagem Folkwang começam a desenvolver, em algumas de suas obras, a utilização de textos como partner da dança.
O uso da música no Tanztheater não obedece a nenhuma regra. As opções são muito livres e individuais, abrangem a música de jazz, passando por músicas étnicas, músicas contemporâneas, indo até o silêncio. Muitos desses coreógrafos trabalham com uma colagem musical, outros trabalham com música composta especialmente para as suas peças e outros, ainda, trabalham com obras musicais completas já existentes. Os intérpretes dançam em algumas peças suas histórias pessoais, mas estas aparecem na cena como referências coletivas e, às vezes, podem se relacionar, de algum modo, às histórias de vida das pessoas que estão na audiência também.
Como na obra de Brecht16, o Tanztheater, especialmente o de Pina Bausch, retira tudo do gesto, gesto este que estará focado no campo das ações corporais, ele falará por si só.
Bausch, quando questionada, por Lothar Schmidt-Mühlisch (2000) em entrevista, se tinha consciência que a assinatura que ela produzia com o seu trabalho havia revolucionado o Tanztheater, respondeu:
Eu sei, naturalmente, quais os efeitos que o meu trabalho teve. Mas nunca foi isso o que me preocupou, porque eu nunca trabalho a partir de uma razão externa, ou teórica. Funcionou e tem funcionado porque volto a me perguntar sempre: Como posso expressar o que sinto? (Schimidt-Mühlisch apud Koldenhoff; Pina Bausch Foundation, 2016, p. 238, tradução da autora)17.
Pistas sobre a Criadora
Eu não pensei muito sobre isto. Possivelmente isto acabou acontecendo por si só. Na verdade, eu sempre tive muito medo de fazer alguma coisa, mas eu gostava muito de fazer dança. E mais ou menos no final da escola quando a gente pode ou deve escolher o que vai ser, porque sabe que a escola vai terminar - então já estava claro para mim: iria estudar dança (Bausch apud Schmidt, 1998, p. 28, tradução da autora).
Pina Bausch alargou o conceito já existente de Tanztheater, revolucionou e redefiniu a dança na sua totalidade. Da mesma forma, o seu Tanztheater, que nos aproxima de um Teatro da Experiência, no qual o espectador é envolvido em todos os seus sentidos, tem influenciado as artes, em especial a ópera, o teatro e o cinema.
A menina Philippine Bausch, natural da cidade de Solingen, na Renânia do Norte Westfalia - Alemanha, disse em várias entrevistas que, na sua infância, ficava de baixo das mesas do restaurante de seus pais, ouvindo as histórias dos visitantes e observando-os.
O quê que eu faço: eu olho. Talvez seja isto. Eu sempre observei somente as pessoas. Eu sempre só vi as relações humanas, ou procurei vê-las, para falar sobre elas. Isto é pelo que eu me interesso. Eu não conheço também nada mais importante do que isto (Bausch apud Hoghe, 1986, p. 8, tradução da autora).
Pina Bausch decidiu, logo aos 15 anos, dar continuidade aos seus estudos de dança na Folkwang Schule, na vizinha cidade de Essen, onde cursou dança e pedagogia da dança, e, de lá para atuar pelo mundo, tudo foi acontecendo um passo após o outro, mas sempre com certo êxito.
Na Folkwang Schule, conviveu com a herança dos ensinamentos de mestres como Laban18 e Leeder19, mestres que buscavam expressividade na dança.
Seu primeiro mentor, ainda na Folkwang Schule, foi Kurt Jooss. De Jooss, Bausch diz ter aprendido a sinceridade e como dar ferramentas para que fossem lapidadas as qualidades já existentes nos corpos de seus futuros intérpretes-colaboradores, vindos de diversas partes do mundo e protagonistas de suas 47 peças e 1 filme, ao longo de sua fértil trajetória criativa. Em um segundo momento, trouxe para as suas criações pistas do realismo com que Jooss tratava as questões sociais nas suas peças.
Seus estudos em dança tiveram continuidade em New York (EUA) entre 1959 e 1962, a partir de uma bolsa de estudos recebida pelo DAAD (German Academic Exchange Service), inicialmente como special student na renomada Juilliard School, onde estudou com Antony Tudor, Donya Feuer, José Limon, Paul Sanasardo, entre outros. E, na sequência, teve possibilidade de ser contratada como bailarina em companhias americanas de dança moderna. Com certeza, toda essa confrontação com a dança moderna americana, que Bausch teve oportunidade de experimentar no seu corpo, influenciou diretamente o modo da dança que viria a compor e protagonizar nos anos seguintes, quando voltou à Alemanha.
Pina Bausch retornou à Folkwang Schule, em 1962, a pedido de Jooss, para lecionar na escola e para atuar como solista no Folkwang-Ballett. E, como a companhia não tinha, naquele momento, muitas apresentações, Bausch iniciou-se no exercício da coreografia para ocupar o seu tempo livre. Com a aposentadoria de Kurt Jooss, em 1969, Pina Bausch, com 29 anos de idade, somou às atividades que vinha exercendo em Essen o cargo de diretora do Folkwang-Ballett, que depois troca o nome para Folkwang Tanzstudio, nome mantido até a atualidade.
A metodologia na hoje mundialmente conhecida Folkwang Universität der Künst, no departamento de Dança, foi e é até os dias de hoje bastante influenciada pelo pensamento de Jooss, que versa menos sobre o aprendizado de uma técnica, embora diferentes técnicas de dança sejam oferecidas no curriculum da escola, mas o motor do ensino é a ideia de que os estudantes devem encontrar o seu modo de se relacionar e se desenvolver dentro da dança. Talvez uma espécie de autoria criativa. E, com o sucesso da talentosa Pina Bausch e o seu Tanztheater Wuppertal sempre em turnês internacionais, a escola se tornou um grande centro de estudos que abriga estudantes originários de diversos países do mundo.
Mas voltemos à cronologia do percurso que está sendo contado aqui.
Na sequência, ao longo da década de 1970, Pina Bausch aceitou convites para lecionar em workshops em diferentes cidades, seguiu ensinando na Folkwang, incluindo classes para crianças, voltou a New York para dançar e desenvolveu algumas coreografias que entraram no repertório do Folkwang Tanzstudio. Após alguns contratos para realizar diferentes coreografias no Teatro da Ópera de Wuppertal, em 1973, aos 33 anos de idade, Pina Bausch foi nomeada por Arno Wüstenhöfer (1920-2003), diretor geral do Teatro, coreógrafa-residente, cargo que ocupou com grande êxito até o seu falecimento, em junho de 2009.
Eu achava que não seria de maneira alguma possível fazer alguma coisa individual dentro do sistema. Eu pensava na rotina e nas determinações e em tudo que existe. Achava que no Teatro tudo deveria ser feito como a direção já estava acostumada, eu tinha um grande medo (Bausch apud Schmidt, 1998, p. 42, tradução da autora).
Todas as regras existentes dentro do sistema teatro foram adquirindo uma grande flexibilidade para conviver com a criatividade inovadora de Pina Bausch e seu talentoso Ensemble. Ao longo de 36 anos desde seu ingresso na Ópera de Wuppertal, pode-se dizer que ela foi a única personalidade da cena teatral alemã que conseguiu transformar, possivelmente, todas as suas visões cênicas em realidade. Entretanto, seus primeiros trabalhos não foram muito bem aceitos pelo público que frequentava a Ópera de Wuppertal, acostumados que estavam a ballets clássicos e operetas colocados na cena de uma forma tradicional. Reagiam agressivamente, levantando e indo embora antes do término dos espetáculos, dizendo palavras rudes e batendo às portas do teatro.
Acreditamos que, a partir do apoio dado pelo Goethe-Institut20, inicialmente ao Tanztheater Wuppertal no início da década de 1980, levando o Ensemble para a América do Sul, Israel, Austrália, EUA e diversos países europeus, e com as críticas positivas recebidas no exterior, é que o público da pacata cidade de Wuppertal começou a tentar se relacionar com aquele tipo de concepção cênica.
É importante salientar que Pina Bausch, que sempre foi considerada extremamente talentosa, recebeu nos seus dois inícios de carreira como bailarina-docente-coreógrafa, e depois como coreógrafa-diretora, apoio incondicional e crédito de seus dois mentores: respectivamente, Kurt Jooss e Arno Wüstenhöfer. Jooss ofereceu espaço e confiança, indispensáveis para que Bausch crescesse na Folkwang Hochschule, e Wüstenhöfer ofereceu a ela liberdade para que desenvolvesse seu modo de trabalho. E, em determinados momentos de crise, quando integrantes do Ensemble queriam pedir demissão da companhia por se sentirem inseguros com relação ao tipo de trabalho que estavam realizando, ou pelas reações do público, era Wüstenhöfer quem conversava com os bailarinos, para que eles dessem mais uma chance para a coreógrafa e experimentassem mais um pouco. A arte irá precisar sempre de pessoas visionárias e instintivas que apoiem artistas talentosos, protagonistas que atuam com modelos que estão antes de seu tempo e, por isso, em um primeiro momento, podem ser incompreendidos.
Como já foi comentado, Pina Bausch, ao longo das quatro décadas de sua atuação como diretora e mentora do seu Ensemble Tanztheater Wuppertal (1974-2009), criou diversas peças as quais chamava de Stück. A seguir, apresentaremos dois quadros, em forma de tabelas, de duas fases específicas da criadora, para o leitor ter uma visão geral de todo o repertório que foi criado nesse período. Os quadros informam também o título original das peças, sua duração, o tipo de música utilizada, os realizadores partners de Bausch, o número de bailarinos vistos em cena, o local da estreia da peça, e alguma outra observação específica.
Escolhemos para abordar, aqui neste texto, obras que foram criadas nas duas primeiras décadas (1974-1989), e nos valemos para a escolha da cronologia das criações. Salientamos ainda, em cada uma das fases, aspectos gerais do período e alguns aspectos emblemáticos das criações escolhidas. No entanto, nosso intuito não será saciar todas as informações existentes sobre cada peça, e sim apresentar algumas pistas para o leitor se aproximar da vasta obra de Pina Bausch.
Pistas sobre as Criações - Fase I (1974-1979)
Não é sobre arte ou sobre ter habilidade. É sobre a vida e o encontrar uma linguagem para a vida. E é sobre o tempo e sempre o tempo, e sobre o que não é arte, mas talvez possa vir a ser (Bausch apud Koldenhoff; Pina Bausch Foundation, 2016, p. 255, tradução da autora)21.
Nessa fase, que denominaremos de Fase I, estão listadas no Quadro 1 as obras de Pina Bausch realizadas entre 1974 e 1979, um período muito produtivo no qual a criadora chegou a criar três trabalhos por temporada. Nessa fase, observa-se também que a caligrafia de Bausch ainda estava com influências bastante perceptíveis dos mestres com quem havia trabalhado até então, a partir das estruturas apresentadas nas obras e que puderam ser detectadas por nós22. Nesse primeiro período de produção intensa, Bausch achava importante manter as criações no repertório, ou seja, qualquer produção poderia ser sempre reapresentada. Importante também salientar que o Ensemble não tinha mais do que 25 integrantes na ocasião e os bailarinos dançavam todas as obras.
| Título originalTradução | *Duração **Música ***Observações | Cenografia Figurinos (F) | Lugar de estreia | Ano | Número de bailarinos |
|---|---|---|---|---|---|
| . Fritz | * ---- ** Gustav Mahler, Wolfgang Hufschmidt *** A peça era parte do Programa com “A Mesa Verde”, de Kurt Jooss & “Rodeo” de Agnès de Mille | Hermann Markard | Wuppertal | 1974 | 18 |
| . Iphigenie auf Tauris . Ifigenia emTauris | * 2 horas ** Cristoph W. Gluck *** Ópera dançada | Jürgen Dreier Pina Bausch Rolf Borzik (colaboração) | Wuppertal | 1974 | 23 |
| . Zwei Krawatten . Duas Gravatas | * ---- ** Mischa Spoliansky | Wuppertal | 1974 | * | |
| . Ich Bring dich um die Ecke . Eu o levo até aesquina | * ---- ** Música para dançar *** A peça era parte do Programa com “Grande Cidade” coreografia de Kurt Jooss & Adágio, Cinco canções de Gustav Mahler de Pina Bausch | Karl Kneidl | Wuppertal | 1974 | 24 |
| . Adagio, Fünf lieder von Gustav Mahler Adágio, Cincocanções de GustavMahler | * ---- ** Gustav Mahler *** A peça era parte do Programa com “Grande Cidade” coreografia de Kurt Jooss & Eu o levo até a esquina de Pina Bausch | Karl Kneidl | Wuppertal | 1974 | 24 |
| . Orpheus und Eurydike . Orfeu e Eurídice | * 2h e 30 min. ** Cristoph W. Gluck *** Ópera dançada | Rolf Borzik | Wuppertal | 1975 | 22 |
| Frühlingsopfer: . Wind von Westen/ . Der zweite Frühling/ . Le Sacre du printemps Sacrifício àPrimavera:. Vento do Oeste /. Segunda Primavera. A Sagração da Primavera | * ---- ---- 35 min ** Igor Strawinsky | Rolf Borzik | Wuppertal | 1975 | 1) 23 (Cantata) 2) 06 3) Estreou com 26. Atualmente: 30/38 |
| . Die sieben Todsünden . Os sete pecados capitais | * 2h 25min. ** Kurt Weill, (Textos de Bert Brecht) | Rolf Borzik | Wuppertal | 1976 | 1ª. Parte 22 2ª. Parte 26 |
| . Blaubart, Beim Anhören einer Tonbandaufnahme von Béla Bartóks Oper “Herzog Blaubarts Burg” . Barba Azul-Escutando umagravação da óperade Béla Bartók“O Castelo doBarba Azul | * 1h 50min. ** Béla Bartók | Rolf Borzik | Wuppertal | 1977 | 25 |
| . Komm, tanz mit mir . Vem, dançar comigo | * 1h e 30 min. ** Canções do folclore | Rolf Borzik | Wuppertal | 1977 | 24 |
| . Renate wander aus . Renate emigra | *---- ** Canções populares, Evergreens *** Opereta | Rolf Borzik | Wuppertal | 1977 | 25 |
| . Er nimmt sie an der Hand und führt sie in das Schloss, die andere folgen… . Ele a levou pela mão ao castelo, os outros os seguiram… | * ----- ** Peter Raben, a partir de Textos de Shakespeare | Rolf Borzik | Bochum Em coprodução com Schauspielhaus Bochum | 1978 | 10 |
| . Café Müller | * 40 min ** Henry Purcel | Rolf Borzik | Wuppertal | 1978 | 06 |
| . Kontakthof . Pátio de Encontros | * 2h 50min ** Colagem musical | Rolf Borzik | Wuppertal | 1978 | 24 |
| . Arien . Árias | * 2h 05min. ** Colagem musical | Rolf Borzik | Wuppertal | 1979 | 21 |
| . Keuschheitslegende . A lenda da Castidade | * 3h ** Colagem musical e Textos de Ovid, Wedekind, Binding | Rolf Borzik | Wuppertal | 1979 | 22 |


Desde o seu início em Wuppertal, Bausch cria, com o seu jovem Ensemble, peças diversificadas, característica que se desdobrará ao longo de toda a sua rica produção.
Para desenvolver suas peças, Pina Bausch experimentou diferentes gêneros musicais como: opereta, ópera e também se utilizou de peças inteiras, como a ópera de Béla Bartók, O Castelo do Barba Azul; Os sete pecados capitais, de Brecht e Weill; Purcel; canções populares; textos de Shakespeare, até chegar nas colagens músicas, que se tornarão uma constante em seu repertório com o Tanztheater Wuppertal a partir do final dos anos 1970.
Norberto Servos, pesquisador que acompanhou ao longo de quatro décadas o trabalho de Bausch, sugere que:
O Tanztheater se assemelha muito mais aos princípios musicais, onde existe um pensamento com temas e contra tema (tese e antíteses), variações e contraponto a trabalhar. Início e fim não marcam o intervalo de tempo do desenvolvimento psicológico das pessoas. O Princípio dominante é a Dramaturgia, e a livre motivação, contudo muito cuidadosamente orquestrada a coreografia amarra o processo (Servos, 2012, p. 25-26, tradução da autora).
Hoje fala-se em dramaturgia do corpo, dramaturgia do corpo que dança; dramaturgia, termo que a dança tomou emprestado do teatro e nos dá pistas de algo como escrita de um texto, ou um modo de organizar e fazer. No Tanztheater, de Pina Bausch, percebemos sempre o corpo do intérprete, e as histórias nele contidas serão o tema principal de todas as suas peças. Através do corpo ou dos corpos dos intérpretes, as histórias serão contadas e essa rede de histórias tecidas em uma grande colcha de retalhos coreográficos é que dará vida a cada uma de suas peças (Stücke).
Da Fase I a reflexão, e os comentários, incluídos neste texto, serão apenas sobre a Sagração da Primavera, por ter sido a peça, que assistimos o maior número de vezes, dançada por distintos elencos, em diferentes espaços cênicos, inclusive com a orquestra tocando a música de Igor Stravinsky (1882-1971) ao vivo. E especialmente por ser a única peça, do repertório de Pina Bausch, que nos foi oportunizado experimentar e aprender algumas sequências corporalmente23.
A criação de Pina Bausch, a Sagração da Primavera (1975), com música de Stravinsky, é uma peça com grande dificuldade técnica, ao mesmo tempo de grande significado dentro do repertório do Tanztheater Wuppertal. A peça é realizada na tradição da dança de expressão e contém toda a matéria-prima da qual Pina Bausch, ao longo de seus próximos trabalhos, se utilizaria.
A Sagração da Primavera marca ao mesmo tempo o final e o ponto de virada de um incremento, que se utiliza radicalmente dos meios oferecidos pelo teatro e que alarga o entendimento tradicional da dança. Posteriormente a esta peça pode se dizer que é encontrado um outro senso de coreografar e a partir dela segue a formação do conceito de Tanztheater que é associado a Wuppertal [grifos no original] (Servos, 1996, p. 24, tradução da autora).
Quando Pina Bausch, aos 35 anos, criou a Sagração da Primavera, demonstrava cada movimento, com o seu próprio corpo, para os bailarinos do seu Ensemble. Demonstrar pode-se entender aqui como passar de um corpo para outro corpo a movimentação, quase como um tipo de história corpo-oral.
Para que seja possível executar os movimentos que compõem a coreografia Sagração da Primavera é necessário que o corpo do intérprete possua registros de técnicas de ballet clássico e de dança moderna bastante avançados. E o aprendizado deve ocorrer por meio de repetições, em busca de uma precisão da qualidade do movimento juntamente com o encontro da música.
Stephan Brinkmann, bailarino que teve a oportunidade de atuar em Sagração da Primavera entre os anos de 1993 e 2010, comenta sobre a qualidade dos movimentos na peça em seu artigo:
Os movimentos da Sagração da Primavera são dramaticamente e musicalmente motivados e baseados em um conceito predeterminado. No entanto, a relação entre emoção e movimento não deve ser considerada como uma causa e efeito, mas como uma reciprocidade (Brinkmann, 2015, p. 160, tradução da autora)24.
As palavras-chave que poderíamos atribuir para essa peça seriam: ritual, grupo, luta entre os sexos, tensão, sacrifício/sacrificada, exaustão. Não vemos essas palavras cristalizadas, ao longo da peça, mas vemos a transformação delas na movimentação realizada pelos integrantes do Ensemble, dentro de uma música pulsante, arrebatadora, e que parece reger todas as ações vistas em cena.
Quando o diretor do documentário Les Printemps du Sacre (1993), Jacques Malaterre, pergunta à autora o que ela quer significar com a sua versão de Sacre, Bausch responde:
Não posso falar sobre a Sagração da Primavera. Ela é muito poderosa.
Eu não tenho as palavras.
Cada frase minha, toda minha intenção está presente em meus movimentos.
Eu tenho apenas a minha dança (Bausch apud Haitzinger, Jeschke, Karl, 2015, p. 177, tradução da autora)25.


Stephan Brinkmann (2015) conta ainda em seu artigo que o que movia a coreógrafa Pina Bausch, no início do trabalho, era a música. Em 1997, 23 anos após a estreia em Wuppertal, Bausch foi convidada a montar a sua Sagração da Primavera para os bailarinos da Ópera de Paris, e na primeira conversa com os bailarinos falou sobre isto:
A primeira coisa que eu fiz foi dizer a eles o que Sacre significava para mim. O ponto inicial é a música. Existem tantos sentimentos nela; e eles vão trocando constantemente. Também há muito medo nisso. Eu pensei, como seria dançar sabendo que você tem que morrer? Como você se sentiria, como eu me sentiria? A Escolhida/Sacrificada é especial, mas ela dança sabendo que o fim é a morte. Os dançarinos escutaram, com grandes orelhas, atentamente. Eles pareciam muito interessados (Brinkmann apud Riding, 15 jun. 1997, tradução da autora)27.
Na peça (Figura 1), como único aparato cênico encontra-se o palco coberto por uma camada de terra, que remete a um lugar arcaico, ancestral, sem com isso permitir identificar um período definido. A terra influencia diretamente a movimentação dos bailarinos, dificulta as suas ações, adere aos vestidos das mulheres no desenrolar da peça, aos torsos nus dos bailarinos, nos rostos e nos cabelos, misturada pelo suor dos corpos dos intérpretes.
No Tanztheater de Pina Bausch não acontece nada ‘como se fosse’, como que os bailarinos estivessem interpretando o seu cansaço. Eles estão realmente com os pés enterrados na terra, até a altura do osso maléolo. A energia que é exigida pelos bailarinos na Sagração atinge o público diretamente, sem nenhuma dissimulação (Servos, 1996, p. 25, tradução da autora).
Os bailarinos escolhidos para atuarem no rico repertório de peças do Tanztheater Wuppertal pertencem a um grupo de seres humanos que, através da direção de Pina Bausch, insistem em mostrar para o público como as pessoas realmente são, e não como elas deveriam ser. Pina Bausch conseguiu desenvolver com eles um novo tipo de teatro: um teatro que possui diferentes faces do mundo. Provavelmente muito disso tem a ver com a procedência de seus atores, que possuem nacionalidades diversificadas, oriundos dos cinco continentes e trazendo suas experiências de variadas culturas, temperamentos e mentalidades e, mesmo assim, mantendo a particularidade de suas identidades.
Pistas sobre as Criações - Fase II (1980-1989)
Nessa fase, que denominaremos de Fase II, estão as obras realizadas entre 1980 e 1989, fase em que Pina Bausch diminuiu suas novas criações para uma por ano, com algumas exceções, como é possível ver no Quadro 2. Década de chegadas e partidas na vida pessoal de Pina Bausch, que perdeu seu companheiro de vida e de trabalho Rolf Borzik (1945-1980), autor de parte da cenografia e figurinos da primeira década de atuação do Tanztheater Wuppertal. Além disso, Borzik atuava em Café Müller (1978), peça emblemática e muito significativa, que está no repertório do Tanztheater Wuppertal até os dias de hoje. Em Café Müller, Borzik criou as ações da personagem que realiza insistentemente a organização das cadeiras que fazem parte da cena e tenta amparar as pessoas que circulam por aquele café. Essa década foi também uma década de várias inovações, quando nasceu seu filho28 e quando os convites para que o Ensemble participasse de Festivais Internacionais ao redor do mundo cresceram significativamente. Ademais, Pina Bausch participou do filme E la Nave Vá, de Federico Fellini (1920-1993), no papel da Princesa Lherimia, em 1983, e dirigiu seu próprio filme com os integrantes do Wuppertal Tanztheater (Die Klange der Kaiserin / O Lamento da Imperatriz), ao longo de 1988, com estreia nos cinemas em 1989.
| Título original Tradução | * Duração ** Música **** Observações | Cenografia Figurinos (F) | Lugar de estreia *Residência artística | Ano | Número de bailarinos |
|---|---|---|---|---|---|
| .1980 - Ein Stück von Pina Bausch . 1980- Uma peça de Pina Bausch | Colagem Musical | Peter Pabst a partir de uma ideia de Rolf Borzik Marion Cito (F) | Wuppertal | 1980 | 19 |
| . Bandoneon | Tangos Sul-americanos | Gralf Edzard Habben Marion Cito (F) | Wuppertal | 1980 | 18 |
| . Walzer . Valsas | Colagem Musical | Ulrich Bergfelder Marion Cito (F) | Amsterdam Em coprodução com o Holland Festival | 1982 | 23 |
| . Nelken . Cravos | Colagem Musical | Peter Pabst Marion Cito (F) | 1a.versão -dezembro 1982 Wuppertal 2a.versão- maio 1983, Englischen Garten, Munique | 1982 1983 | 19 |
| . Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehörd . Na montanhaouviu-se um grito | Colagem Musical | Peter Pabst Marion Cito (F) | Wuppertal | 1984 | 24 |
| . Two Cigarettes in the Dark . Dois cigarros no escuro | Colagem Musical | Peter Pabst Marion Cito (F) | Wuppertal | 1985 | 11 |
| . Viktor | Colagem Musical | Peter Pabst Marion Cito (F) | Wuppertal *Cooperação com o Teatro Argentina e a cidade de Roma Roma | 1986 | 22 |
| . Ahnen . Antepassados | Colagem Musical | Peter Pabst Marion Cito (F) | Wuppertal | 1987 | 23 |
| Film: Die Klage der Kaiserin . O lamento daImperatriz | Colagem Musical *Martin Schäfer (Camera) *Detlef Erler (Camera) | Marion Cito (F) | Wuppertal | 1988/ 1989 | |
| . Palermo Palermo | Colagem Musical | Peter Pabst Marion Cito (F) | Wuppertal *Coprodução com o Teatro Biondo - Palermo/ Sicilia e Andreas Neumann Internacional | 1989 | 22 |

Pina Bausch, com sua relação inovadora com a dança, incluía nas suas criações, além dos bailarinos, atores e músicos que interagiam nas cenas. Nessa década, observamos que suas criações partem também de pensamentos, textos, repetições de células coreográficas, em conexão com fragmentos de histórias da vida pessoal, pequenos testemunhos de seu diferenciado Ensemble.
Sobre isso encontramos em Hoghe (1986) uma pequena conversa de Bausch após um ensaio com um de seus bailarinos-coautores:
Eu acho ótimo que cada peça tenha algo de vocês, um pedaço de suas vidas. Eu até acho outras coisas também ótimas, mas isto eu acho muito bonito [...]. Cada um deve poder ser assim como quer ou se desenvolveu (Hoghe, 1986, p. 124, tradução da autora).
Esse período inaugura o emprego das perguntas feitas por Bausch para os intérpretes durante a realização das produções. Os intérpretes podiam responder as questões de Bausch por meio de palavras, por movimento ou ambos. Os intérpretes só respondiam as perguntas que desejassem, mas todas as respostas eram gravadas em vídeo. Pina Bausch selecionava as respostas-cenas que julgava serem mais interessantes e retrabalhava-as individualmente ou pedia para que o bailarino-autor repassasse para outros colegas suas respostas, de texto ou movimento.
É importante também ressaltar que Pina Bausch não achava correto afirmar que esse procedimento fosse chamado de improvisação, pois na verdade os bailarinos tinham tempo para pensar e preparar as suas respostas-cenas e a coreógrafa revia todo o material inúmeras vezes.
Analisando as cenas e situações que são apresentadas nas peças criadas ao longo dessa movimentada década, percebemos uma coreógrafa observadora e interessada nas mudanças sociais, culturais e geopolíticas que estavam acontecendo no mundo. Através de suas observações sensíveis e das perguntas que fazia para os integrantes do seu Ensemble, em determinadas cenas, nota-se o surgimento de respostas em que alguns fatos reais eram apresentados. E, da forma que emergem na cena, encontraremos uma tensão entre realidade e ficção, entre o real e o fictício, mesmo que suas fronteiras não sejam, na maior parte do tempo, claramente definidas. Nas três peças desse período, que destacaremos, acreditamos que algumas dessas mudanças sociais, culturais e geopolíticas vieram à tona através da linha de condução de Bausch. Cada uma das peças criadas nesse período tem um aspecto especial, mas Bandoneon (1980), Cravos (1982) e Palermo Palermo (1989) talvez devam ser destacadas.
A peça Bandoneon foi nomeada fazendo referência a um instrumento comum na América do Sul e que tem muita importância em um estilo de música conhecida como tango. Tangos instrumentais ou tangos cantados integrarão a trilha sonora da peça do início ao fim, sugerindo em algumas cenas melancolia e, em outros momentos, certa sensualidade. O lugar onde a peça se desenrola é um grande salão, com mesas, cadeiras e, nas paredes, vemos quadros com diferentes figuras. Os homens do elenco usam terno e gravata, as mulheres usam vestidos festivos, trajes que passaram a ser típicos nas peças de Pina Bausch. Os trajes foram concebidos por Marion Cito (1938), a experiente ex-bailarina da companhia que, ao longo de três décadas, tem criado os figurinos para o Tanztheater Wuppertal.

A temática da peça não é dançar o tango, mas este gênero musical atravessa a peça inteira dando ao público oportunidade de, por meio das imagens cênicas apresentadas, fazer livres associações. Uma das cenas mais emblemáticas da peça é quando, aos pares, um homem e uma mulher entram pelo proscênio. O homem, muito lentamente, coloca a sua mão e o antebraço através do vestido da mulher e, vagarosamente, a suspende até esta montar no seu pescoço (Figura 4). O casal seguirá lentamente andando pelo espaço, até o próximo par entrar e realizar a primeira ação. Na continuidade da cena, todos os casais entram e realizam a primeira ação descrita. Mas é somente quando o nono e último casal entra e conclui a sua ação que acontece um forte acento musical, dando um alerta para os bailarinos, que despencam literalmente para o chão e lá iniciam a dançar, de uma forma nada convencional, um tango muito marcado e impactante. Nas diversas cenas de Bandoneon vemos rastros de uma dança que parece resistir e que tenta quebrar clichês de gênero humano e gênero estilístico, os quais estão instaurados na sociedade há muito tempo.


O impacto cenográfico da peça Cravos acontece quando o público entra na sala onde o espetáculo irá acontecer e depara-se com um campo de cravos rosados em tamanho natural espalhados por todo o palco. Como é de praxe nas peças de Pina Bausch, a quarta parede29 está aberta, fazendo a ponte entre o real e o teatral sem barreiras. Entre as cenas emblemáticas da peça está o solo, criado originalmente pelo bailarino Lutz Foster (Figura 6), que, com as mãos, em linguagem de sinais, traduz a canção The Man I love, dos compositores estadunidenses George e Ira Gershwin. O que parece ser muito pesquisado, ao longo da peça Cravos, pela coreógrafa e pelo Ensemble, é o motivo pelo qual a capacidade de ser feliz é tão difícil de adquirir ou preservar. Palavras como amor e ser amado, companheirismo, a busca da felicidade ou a frase o amor é forte como a morte são ditas pelos bailarinos ou em diferentes cenas são sugeridas.

É possível perceber, na linha condutora da peça, um certo humor provocativo, com relação aos elementos tradicionais da dança clássica. O bailarino Dominique Mercy, trajando um vestido preto, realiza repetidamente difíceis combinações, cheias de acrobacias oriundas do ballet clássico. Ofegante, entre uma combinação e outra, pergunta ao público se eles desejam ver mais e, sem esperar realmente uma resposta, já inicia uma nova combinação acrobática. Associando com o real, podemos, por um lado, perceber a crítica feita a uma sociedade que exige cada vez mais da população especializações e uma grande competitividade. E, especificamente ao Ensemble, uma forma de se contrapor a algumas críticas feitas, na ocasião, referentes aos resultados vistos em cena, que pareciam não exigir grande capacidade técnica dos bailarinos. Aqui é importante lembrar que o ano de estreia da peça foi 1982, quando a dança mais popular no mundo ainda era o ballet clássico e as companhias que eram consideradas de vanguarda, na época, eram companhias que se aventuravam por temáticas mais contemporâneas30, todavia, a maioria das coreografias eram realizadas com movimentos oriundos do ballet clássico.
Ao longo da peça, em algumas cenas, bailarinos e bailarinas vestem vestidos (Figura 7); em outras cenas, o tradicional terno para os homens e vestidos de noite para as mulheres. Em Cravos, teremos a combinação, hoje popularizada, em que todo o elenco desfila pela diagonal cênica, realizando gestos que podem ser identificados como as estações do ano, iniciando pela primavera, seguida pelo verão, pelo outono e, por último, o inverno; toda essa cena embalada por uma ritmada música de jazz tradicional e o bom humor contagiante de todo o elenco.


Palermo Palermo
Diferente de todas as peças realizadas por Pina Bausch para o Tanztheater Wuppertal, com cenografia de Peter Pabst, até então, Palermo Palermo inicia com a cortina fechada (Figura 11). Coreógrafa e cenógrafo desejaram que o muro, que é o grande partner dessa peça, estivesse atrás da cortina, para que a audiência não pudesse vê-lo inicialmente. Somente após a abertura da cortina é que a audiência via o muro que fecha todo o proscênio. Alguns instantes de admiração, o muro cai literalmente. Após o colapso, o barulho de muitos tijolos, seus restos e muita poeira pelo chão, uma nova paisagem estéril surge, marcada pela pobreza de alguns retratos referentes ao sul da Itália. No mesmo ano, no mês de novembro, o muro que dividia as duas Alemanhas foi derrubado. Tanto Bausch como Pabst negaram qualquer relação entre o fato de a unificação alemã com a peça, e que sua ideia de ter um muro como cenografia havia acontecido duas semanas antes do episódio histórico.

Palermo Palermo é o resultado de uma complexa composição dramatúrgica que tenta apresentar algumas associações de experiências vividas pelos integrantes do Tanztheater Wuppertal pela cidade que dá nome à peça. Ao longo da peça, aparecem diferentes grupos de mulheres que dançam ao som de música muito marcada e, em outros momentos, somente os homens. Característica esta que foi observada, pela cidade, em que os gêneros andavam separados. Solos são dançados pelas bailarinas e bailarinos, entre os escombros, cheios de dinâmicas, virtuosismo e muitas simbologias. Talvez seja, até esse período, a peça onde haja mais movimentação dos intérpretes na cena. Alguns críticos disseram na ocasião que Pina Bausch voltou a colocar dança em suas peças. Entre os temas tratados na peça, a eterna procura do amor e as saudades e, entre os fatos mais emblemáticos observados pelo elenco, na Sicília, e que pode ser visto em algumas cenas, é a carência de água na região.


O cenógrafo Peter Pabst, parceiro de trabalho de Pina Bausch ao longo de três décadas, em conversa com Wim Wenders (2010) sobre Palermo Palermo, diz que:
Eu não teria a coragem necessária para sonhar sozinho, ou para conceber e projetar algo. Suas fantasias teriam que ser permitidas para serem executadas. Eu gosto disso. Além disso, durante esta fase, muitas vezes eu prometia a Pina qualquer coisa e tudo sob o sol, sem saber se ou como o que prometi seria mesmo possível. Pina e eu éramos quase idênticos nesse sentido. Ela sempre inventou de forma desinibida, sem saber como tudo deveria ou seria eventualmente combinado. De alguma forma, nós dois sempre conseguimos posicionar-nos com as costas contra a parede (Pabst; Wneders et al., 2010, p. 15-16, tradução da autora)31.
Muitas buscas que a coreógrafa vinha fazendo ao longo dos últimos trabalhos, em termos de experimentações cênicas, confirmam-se aqui em Palermo Palermo, mas a longa procura de como decifrar as mensagens das sensações, vividas pelos intérpretes, Pina Bausch diz sorrindo em entrevista que ainda não sabe decifrá-las. Talvez o público, encantado com as criações da coreógrafa, tenha começado por sua parte a partir desse período, a encontrar algumas dessas respostas.
As perguntas não param e a procura também não para.
Há algo infinito nesta busca, e essa parece ser a beleza de tudo (Bausch apud Koldenhoff; Pina Bausch Foundation, 2016, p. 259, tradução da autora)32.
Durante a escrita deste artigo tivemos a oportunidade de rever vídeos de obras de Pina Bausch e de seu maravilhoso Ensemble. Reler escritos de autores que têm sua pesquisa ancorada na obra de Bausch, como Schmidt, Servos, Brinkmann, e ainda estar em contato com pensamentos da própria Bausch, que podem ser encontrados em bibliografia atualizada e lançada recentemente pela fundação que leva o seu nome. O que percebemos é que, como sua obra é tão vasta e rica, serão encontrados sempre novos rastros que possibilitarão alargar as pesquisas existentes.
Neste artigo, fizemos a escolha de discorrer apenas sobre alguns aspectos das obras Sagração da Primavera (1974), Bandoneon (1980), Cravos (1982) e Palermo Palermo (1989), situadas dentro das duas primeiras fases cronológicas (1974-1989) de criações de Bausch para o Tanztheater Wuppertal. Ademais, a partir da metade da década de 1980, o Tanztheater Wuppertal, além de realizar inúmeras apresentações a partir do seu amplo repertório, começou a receber muitos convites para realizar turnês internacionais, parecendo que a mensagem contida nas suas obras chegava mais perto do sensorial do público. A popularidade do Tanztheater Wuppertal cresceu tanto que mais pessoas passaram a se interessar pelo tipo de linguagem apresentada por este Ensemble. Desse modo, países como: Itália, Espanha, EUA, China, Portugal, Hungria, França, Brasil, Turquia, Índia e Chile, amparados por instituições culturais como: os Goethe Instituts locais, Teatros, Festivais, Universidades, entre outros, convidaram Pina Bausch e o seu Ensemble para realizar o que conhecemos hoje como residência artística. É a partir das experiências vividas nas residências artísticas que Bausch criaria suas novas peças, inspirada na cultura especifica de cada país partner nessa aventura.
As peças desse período (1991-2009) trazem à tona as variadas observações poéticas de Pina Bausch e dos integrantes do seu Ensemble sobre as cidades que os hospedaram e seus contrastes. Em nenhuma das peças Pina Bausch pretendeu descrever a cidade ou os fatos reais, e sim apresenta seus atores, que aparecem em sua totalidade humana, sem nenhuma proteção. Mostram seus medos, suas alegrias, as descobertas, a partir das vivências, e parecem não se envergonhar em se surpreender sempre, e mais uma vez.
Por meio dos cenários das peças, que nestas últimas duas décadas foram concebidos por Peter Pabst, é possível encontrar certas realidades em uma grande utopia. Principalmente nos cenários que se movimentam no espaço cênico, como na peça Como el Musguito... (2009), ou dificultam as ações dos bailarinos por conter uma montanha de flores, em Fensterputzer (1997), ou uma montanha de pedras, em Masurca Fogo (1998), ou pelos bailarinos terem que se mover tendo o chão coberto por água, em Voolmund (2006), só para citar algumas.
O resultado das pesquisas das últimas duas décadas (1991-2009), realizadas por Bausch e os integrantes do seu Ensemble, fizeram com que o conjunto de cenas, que compunham as obras, ganhassem cada vez mais vida e autonomia, através do seu conteúdo que falava do frágil, dos estranhamentos, da saudade, da inclusão dos desejos do outro, e sempre do amor.
Em entrevistas, lê-se a coreógrafa dizendo que nunca via suas obras como concluídas e, portanto, estava sempre procurando melhorias para fazer uma cena ficar ainda mais verdadeira e coerente, ou por aprimorar mais e mais cada um dos gestos realizados pelos integrantes do Tanztheater Wuppertal.
São suas as palavras que gostaríamos de deixar ecoando na finalização deste texto:
A experiência individual, é apenas um meio para revelar o que realmente ‘todos têm’, e que liga os atores no palco com o público. Ao expor-se para a experiência de chegar ao fundo das emoções, os dançarinos dão o primeiro passo, e eles convidam o público a segui-los em suas viagens em territórios desconhecidos (Bausch apud Koldenhoff; Pina Bausch Foundation, 2016, p. 256, tradução da autora)33.
Referências
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HAITZINGER, Nicole; JESCHKE, Claudia; KARL, Christiane. Die Tänze der Opfer. Tänzerische Action, Bewegungs Texte und Metatexte. In: BRANDSTETTER, Gabriele; KLEIN, Gabriele (Org.). Methoden der Tanzwissenschaft - Modellanalysen zu Pina Bauschs ‘Le Sacre du Printemps / Das Frühlingsopfer’ . Bielefeld/Deutschland: Transcript Verlag , 2015. P. 177-193.
HOGHE, Raimund. Pina Bausch Tanztheatergeschichten. Frankfurt am Main: Surkamp Verlag, 1986.
KOLDENHOFF, Stefan; PINA BAUSCH FOUNDATION (Hrsg). O-Ton Pina Bausch - Interviews und Reden. Schweiz: Nimbus. Kunst und Bucher AG, 2016.
LES PRINTEMPS DU SACRE. Diretor: Jacques Malaterre. Produção: La Sept/Arte e telmondis. França, 1993. (100 min.). 1 DVD.
PABST, Peter; WENDERS, Wim et al. PETER for PINA. Deutschland: Druck Verlag Ketttler, 2010.
PEREIRA, Sayonara. Rastros do Tanztheater no Processo Criativo de ES-BOÇO - Espetáculo cênico com alunos do Instituto de Artes da UNICAMP. 2007. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2007.
PEREIRA, Sayonara. Rastros do Tanztheater no Processo Criativo de ES-BOÇO - Espetáculo cênico com alunos do Instituto de Artes da UNICAMP . São Paulo: Annablume, 2010.
RIDING, Alan. Using Muscles Classical Ballet has no Need for. The New York Times, New York, 15 June 1997.
SCHMIDT, Jochen. Tanztheater in Deutschland. Frankfurt am Main; Berlin: Propyläen Verlag, 1992.
SCHMIDT, Jochen. Tanzen gegen die Angst-Pina Bausch. Düsseldorf & München: Econ & List-Taschenbuch Verlag, 1998.
SERVOS, Norbert. Pina Bausch - Wuppertal Tanztheater - Oder Die Kunst, Eine Goldfisch Zu dressieren. Seelze-Velber: Kallmeyer’s Verlag, 1996.
SERVOS, Norbert. Pina Bausch. Deutschland: K. Kieser Verlag, 2012.
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