Resumo: O objetivo geral do ensaio é examinar como os aspectos sociais do comportamento humano se conformam no processo de identificação das necessidades, da busca e do uso de informação, na perspectiva de ampliar o debate na Ciência da Informação (CI) sobre perspectivas teórico-metodológicas do paradigma social. Em uma abordagem interdisciplinar, a análise tem seu suporte teórico epistemológico fundamentado em Bauman, especificamente, suas críticas às bases fundadoras do uso do conceito de cultura na sua dimensão social. Na área CI, o objeto de estudo são as teorias desenvolvidas por Chatman, especificamente suas análises sobre os fatores que agem como barreiras à informação em um contexto controlado por normas sociais. Esses referenciais sugerem deslocar a concepção de cultura para além do âmbito da reprodução de um conjunto de normas e valores compartilhados e aceitos coletivamente, para uma posição na qual a ação social é uma dinâmica de transformação do meio social.
Palavras-chave:CulturaCultura,Normas sociaisNormas sociais,Comportamento em informaçãoComportamento em informação,Contexto socialContexto social.
Abstract: The essay aims to investigate how the social aspects of human behavior shape the process of identifying the needs, the search and the use of information. The idea is to expand the debate in Information Science (IS) regarding the theoretical and methodological perspectives of the social paradigm. With an interdisciplinary approach, the analysis is based on the theoretical-epistemological contribution of Bauman, more specifically, on his critique of the fundamental bases of the culture concept in its social dimension. These assumptions are closer to IS based on the theoretical approaches of Chatman, which analyze the factors that operate as barriers to information in environments dominated by social norms. These referents suggest moving the concept of culture beyond the scope of reproducing a set of collectively accepted norms and values, to a position where social action becomes a dynamic transformation of the social environment.
Keywords: Culture, Social norms, Behavior in information, Social context.
Artigos
Práticas culturais e comportamento social em informação
Cultural practices and social behavior in information
Recepção: 25 Março 2017
Aprovação: 13 Maio 2017
O estudo social da informação é uma área que tem recebido cada vez mais atenção nas pesquisas desenvolvidas na área da Ciência da Informação (CI). Em um de seus estudos sobre epistemologia e sobre CI, Capurro (2003) observa que o predomínio de um paradigma científico está sempre, em parte, condicionado às estruturas sociais, extensivo, também, a eventos fora do mundo científico, cujo efeito multicausal não só é difícil de prever, como também é difícil de analisar a posteriori. É no âmbito do domínio do paradigma social que este ensaio se fundamenta, razão pela qual o trabalho enfatiza as relações sociais estabelecidas pelas pessoas nos processos de identificação de necessidades, busca, compartilhamento e uso de informação. Todavia, nesse se atribui importância ao caráter coletivo dessas relações, determinado pelas interações construídas.
Na área da CI, as pesquisas de Chatman (1996, 1999, 2000) têm se destacado por explorar populações dentro de um contexto social. Chatman (1996, 1999, 2000) se concentrou nas barreiras sociais do acesso à informação e delineou seu trabalho com conceitos e proposições para explicar o que ela observou. Uma das conclusões de Chatman (2000) considera que as pessoas, na sua vida cotidiana, vivenciam as informações em resposta às suas necessidades e preocupações diárias e que as circunstâncias pelas quais as necessidades de informações são percebidas dependem do contexto no qual essas pessoas estão inseridas e das relações sociais que lá se estabelecem.
Chatman (1996, 1999, 2000) descreveu e analisou as relações entre as zeladoras de uma universidade, entre as idosas residentes em uma comunidade de aposentadas e entre um grupo de presas de uma penitenciária de segurança máxima. Assim, desenvolveu uma estrutura conceitual, na qual insere o conceito de vida social, explorando o comportamento em informação na perspectiva da vida vivida em um mundo pequeno[1]. Além disso, usou uma variedade de abordagens teóricas, desenvolveu conceitos como pobreza de informação e recorreu às ciências sociais, a fim de analisar a visão de mundo, as normas sociais e o comportamento normativo em contextos sociais bem delimitados.
Um mundo pequeno para Chatman (1999) é uma sociedade em que as opiniões e as preocupações mútuas são refletidas pelos seus membros, um mundo em que língua e costumes vinculam os seus participantes a uma visão de mundo comum e aceita. Recursos (materiais e intelectuais) são conhecidos e facilmente acessíveis. É um mundo em que há uma consciência coletiva sobre o que é importante e o que não é, quais ideias são relevantes e quais são triviais, em quem confiar e em quem evitar.
Na sua forma mais verdadeira, um pequeno mundo é uma comunidade de indivíduos que compartilham a mesma opinião da realidade social. Com o aporte de Solomon (1996), a preocupação de Chatman (1999) se move para além da busca, compartilhamento e uso de informação e inclui uma compreensão do comportamento em informação, ou seja, como as pessoas definem seus pequenos mundos e como se movimentam por meio deles.
A ideia de que os outros têm uma influência no modo como nos comportamos em um ambiente social encontra apoio na descrição de cultura no âmbito da sociologia, como foi apresentado por Hall (2011) e Bauman (2012). Segundo esses sociólogos, na medida em que as sociedades modernas se tornavam mais complexas, elas adquiriram uma forma mais coletiva e mais social. Em consequência, a sociologia desenvolveu teorias para explicar o modo como os indivíduos são formados subjetivamente por meio de suas participações em relações sociais mais amplas. E, inversamente, explicou o modo como os processos e as estruturas são sustentados pelos papéis que os indivíduos neles desenvolvem. Segundo Hall (2011, p. 31),
Essa ‘internalização’ do exterior no sujeito, e essa ‘externalização’ do interior, através da ação no mundo social, constituem a descrição sociológica primária do sujeito moderno e estão compreendidas na teoria da socialização.
Na análise de Bauman (2012), essas são as bases de uma concepção ortodoxa de cultura que somente se tornou dominante porque haviam numerosas áreas do globo com pouca ou nenhuma comunicação entre si que poderiam ser descritas como “totalidades fechadas em si mesmas” (BAUMAN, 2012, p. 30). E havia Estados - nação que promoviam a unificação nacional de línguas, padrões de educação, etc. - preocupados em homogeneizar costumes e memórias coletivas locais para “[...] um conjunto único, comum, nacional, de crenças e estilos de vida.” (BAUMAN, 2012, p. 30).
Com base no exposto, o objetivo geral deste artigo é examinar como os aspectos sociais do comportamento humano se conformam no processo de identificação das necessidades, busca e uso de informação. Partindo do pressuposto de que os padrões e as características culturais estão subjacentes e conformam o comportamento em informação das pessoas, examina-se, mais especificamente, a concepção de cultura desenvolvida nas ciências sociais, na perspectiva de debater perspectivas teórico-metodológicas adequadas para ampliar o debate na CI sobre o paradigma social.
As reflexões deste estudo fazem menção aos trabalhos desenvolvidos na área da CI por Chatman (1996, 1999, 2000), especificamente os resultados de suas pesquisas sobre o comportamento em informação de pessoas em seus contextos cotidianos. As descobertas dessa autora representam um importante potencial que a teoria traz às investigações empíricas sobre comportamento em informação. Na área da CI, seus fundamentos ampliam nossa compreensão naquilo que define um contexto social específico e fechado em si mesmo.
O conjunto dos conceitos elaborados por Chatman (1996, 1999, 2000) surgiu a partir das suas experiências de campo. Embora os pesquisadores das ciências sociais tenham utilizado bastante a pesquisa de campo como método de coleta de dados, o processo de descoberta de novos fatos ocorre por meio de contato pessoal prolongado com eventos, em um ambiente natural. A etnografia utilizada por Chatman (1996, 1999, 2000) permitiu a observação desses eventos e o exame dos fenômenos sociais enquanto eles estavam ocorrendo e a observação do comportamento dos respondentes enquanto estavam agindo. As populações estudadas por Chatman (1996, 1999, 2000) eram, na sua grande parte, formadas por mulheres, especialmente, aquelas que não faziam parte da população social dominante em seus ambientes mais amplos, mas eram dependentes ou controladas por ele.
No campo dos estudos culturais, a análise tem seu suporte teórico epistemológico fundamentado no debate entre alguns autores, com destaque para Bauman (2012), especificamente suas críticas às bases fundadoras do uso do conceito de cultura na sua dimensão social, principalmente na sua abordagem unilateral, na qual uma das suas funções é ordenar o ambiente humano e padronizar as relações entre os seres humanos.
Assim, fazer uma análise na dimensão social é compreender como o contexto social interfere na identificação das necessidades, busca e uso de informação. Segundo Capurro (2003), uma abordagem social na CI não concebe um indivíduo como um ser isolado, mas examina as relações sociais por ele estabelecidas.
Segundo Hall (2011), os grandes processos da vida moderna estavam centrados no indivíduo, “sujeito da razão”. Destacavam-se, dentre eles, as revoluções científicas que conferiam ao ser humano as faculdades e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da natureza.
Tratava-se, conforme Bauman (2012, p. 13), de “Uma filosofia que via o mundo como uma criação humana e um campo de testes para as faculdades do homem.”. Ou seja, o universo passava a ser entendido como o ambiente para as atividades, as escolhas, os triunfos e, também, os equívocos humanos.
No renascimento, o ritmo das mudanças fazia o mundo parecer cada vez menos algo feito à semelhança de Deus, cada vez menos eterno,
E o ritmo acelerado das mudanças revelava a temporalidade de todos os arranjos mundanos, e a temporalidade é uma característica da existência humana, não da divina. (BAUMAN, 2012, p. 14).
Assim, Bauman (2012) ressalta que o mundo e a forma como as pessoas nele viviam constituíam uma tarefa, e não algo dado e inalterável. O mundo foi assumindo uma forma cada vez mais humana, tornando-se, aos poucos, segundo Bauman (2012, p. 14), algo feito “à imagem do homem”.
No entanto, à medida que as sociedades modernas se tornavam mais complexas, elas adquiriram uma forma mais coletiva e mais social. Às faculdades racionais e ao impulso criativo do ser humano foram reconhecidas as faculdades sociais (BAUMAN, 2012). Assim, se antes o desafio era substituir sempre mais a ordem divina ou natural das coisas por uma ordem feita pelo homem de base racional, agora, essa preocupação convergia em uma outra mais pragmática, de construção da ordem.
Não obstante, o engrandecimento da liberdade humana era complementado pela preocupação com as fronteiras que precisavam ser impostas às ações das pessoas. O conceito de cultura tinha que abarcar a liberdade humana, mas devia abarcar, também, o mecanismo para limitar o escopo dessa liberdade e “[...] a ideia de ‘cultura’ serviu para reconciliar uma série de oposições – em suma, entre a autoafirmação e a regulação normativa.” (BAUMAN, 2012, p. 17).
Nessa concepção heterogênea de cultura, estavam presentes duas ideias distintas: criatividade e regulação normativa. A questão central, notada por Bauman (2012), é que entre essas duas forças, mutuamente estranhas e não relacionadas, se ramificaram dois discursos: o produto do primeiro discurso gerou a noção de cultura como lócus da criatividade e da capacidade de se elevar acima do comum - poesia, arte, e demais atividades artísticas; o produto do segundo discurso, por sua vez, apresentou a cultura como instrumento da rotinização, continuidade e ordem social e, nesse caso, liberdade soava como “desvio” e “rompimento da norma”. As duas noções de cultura estavam em total oposição, uma negava o que a outra proclamava, uma se concentrava nos aspectos humanos de liberdade que a outra apresentava como anormalidade e restrição.
Foi o segundo discurso que prevaleceu nas ciências sociais. E foi a sociologia a disciplina que teceu a maior crítica ao individualismo racional do ser humano cartesiano, considera Hall (2011). A sociologia localizou o indivíduo nos processos de grupo e nas normas coletivas e desenvolveu teorias para explicar o modo como os indivíduos são formados subjetivamente, por meio de suas participações em relações sociais mais amplas. E, inversamente, explicou o modo de como os processos e as estruturas são sustentados pelos papéis que os indivíduos neles desenvolvem.
Bauman (2012) observa que, durante o século XIX, com o conceito de fatos sociais de Durkheim (1858-1917), se partiu do princípio que o homem era apenas um animal selvagem e que só se tornou humano porque se tornou sociável, ou seja, foi capaz de aprender hábitos e costumes característicos de seu grupo social para poder conviver no meio deste.
A este processo de aprendizagem, Durkheim (2007)[2] chamou de “socialização”, tudo aquilo que serve para orientar como uma pessoa deve ser, sentir e se comportar. É esse conjunto de diretrizes ou normas que ele chamou de fatos sociais. Entretanto, um fato social, segundo Durkheim (2007), atende a três características: generalidade, coercitividade e exterioridade.
A generalidade significa que os fatos sociais existem não para um indivíduo específico, mas para a coletividade. A coercitividade é uma característica relacionada à força dos padrões culturais do grupo que os indivíduos integram. Estes padrões culturais são fortes de tal maneira que obrigam os indivíduos a cumpri-los. E, por último, a exterioridade é a característica que transmite o fato de esses padrões de cultura serem exteriores ao indivíduo, ou seja, ao fato de virem do exterior e de serem independentes da sua vontade.
Emergiu, então, uma concepção social do ser humano que passou a ser definida no interior de grandes estruturas sustentadoras da sociedade moderna. Segundo Hall (2011), a noção de sujeito sociológico refletia a complexidade do mundo moderno e a consciência de que esse núcleo interior do sujeito não era autônomo, mas formado na relação com outras pessoas que mediavam para ele os valores, os sentidos e os símbolos dos mundos que ele habitava. Ao examinar essa concepção de cultura como estrutura, Bauman (2012) salienta que a aproximação estruturalista à cultura resulta em um conjunto de regras generativas, historicamente selecionadas pela história humana que governam ao mesmo tempo a atividade mental e prática dos indivíduos, contemplados como seres epistêmicos e a gama de possibilidades nas quais essas atividades podem operar.
Todavia, cultura não é apenas a soma descritiva dos costumes partilhados coletivamente, como ela tende a ser abordada na teoria tradicional. A cultura, como vista por pensadores como Simmel (1968) e Lévi-Strauss (1975), entre outros, é tanto um agente de desordem quanto um instrumento de ordem. Segundo Bauman (2012, p. 28), “[...] um fator tanto de envelhecimento e obsolescência quanto de atemporalidade.”.
Na sociologia, Simmel (1968) preferiu extrair o conceito de cultura da tragédia grega e não do emaranhado puramente lógico. Segundo esse sociólogo, a cultura vem a ser criada pelo encontro de dois elementos, nenhum dos quais a contém por si mesmos: entre a vida subjetiva, que é agitada, mas temporalmente finita; e seus conteúdos que, uma vez criados, são estacionários. Em meio a esse dualismo vive a ideia de cultura.
Na concepção de Simmel (1968[3] apud BAUMAN, 2012), a cultura se expressa e se realiza na religião, na ciência, na tecnologia, nas obras de arte, nas leis e em uma infinidade de outras. Embora surjam a partir dos processos da vida, esses conteúdos não compartilham seu ritmo agitado, mas sim, adquirem identidades estáveis e legitimidade próprias. Todavia, a sedimentação das formas e a sua erosão é um processo que jamais cessa.
Para Bauman (2012), as ideias seminais de Simmel (1968) pressupõem que a sociedade vive sobre o caos e que ela própria é o caos. A cultura, nessa perspectiva, é tanto um agente de desordem quanto um instrumento de ordem. Como explica Bauman (2012), a cultura, nessa perspectiva, tende a ser vista como um fator tanto de envelhecimento e obsolescência quanto de atemporalidade, de maneira que o ponto não é tanto a perpetuação da cultura, mas em garantir as condições para futuras mudanças.
O paradoxo da cultura, segundo Simmel (1968), é entre sujeito-objeto: a vida subjetiva que, em seu fluxo contínuo pressiona a partir de si mesma no sentido de sua realização. Mas não pode alcançar, do ponto de vista da ideia de cultura, essa realização a partir de si mesma, mas somente através daquelas configurações agora totalmente estranhas e cristalizadas em uma unidade fechada em si mesma. A cultura nasce, enfatiza Simmel (1968), quando dois elementos se reúnem e nenhum deles a contém em si: a alma subjetiva e a criação espiritual objetiva.
Bauman (2012) também considera Lévi-Strauss (1975) como pensador que contribuiu para destruir a ideia ortodoxa de cultura. O grande mérito de Lévi-Strauss (1975) foi mostrar o fim da atribuição unilateral da cultura. Para Bauman (2012), Lévi-Strauss (1975) forneceu elementos teóricos para a cultura não ser mais vista como uma restrição à inventividade humana, nem como reprodução monótona da vida. A cultura para Lévi-Strauss (1975) era em si uma força dinâmica.
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