Patrimonio cultural, hegemonía y mediaciones sociales en América Latina

Patrimônio Cultural, Memória Social e Informação: a cidade de Porto Alegre na palma da sua mão?

Cultural Heritage, Social Memory and Information: the city of Porto Alegre in the palm of your hand?

Marina Leitão Damin 1
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Vera Dodebei 2
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Valdir José Morigi 3
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Luis Fernando Herbert Massoni 4
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Patrimônio Cultural, Memória Social e Informação: a cidade de Porto Alegre na palma da sua mão?

Em Questão, vol. 24, núm. 2, pp. 388-403, 2018

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Recepção: 27 Outubro 2017

Aprovação: 14 Dezembro 2017

Financiamento

Fonte: V. J. Morigi é bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento e Pesquisa (CNPq), modalidade pós-doutorado.

Beneficiário: V. J. Morigi

Resumo: Reflete sobre os vestígios memoriais colecionados por uma cidade, Porto Alegre (Brasil), a vida social dos objetos inseridos nessa coleção, no sentido não só de sua patrimonialização, mas de sua dinâmica de memoração, bem como da visibilidade desse conjunto de objetos que estão em constante movimento de criação e transformação. O corpus de análise considera dois objetos digitais: o aplicativo Porto Alegre Guide, como um suporte à consolidação ou à criação de memórias sobre a cidade de Porto Alegre e o site da Prefeitura Municipal, que reúne equipamentos e espaços valorizados como patrimônios da cidade. Objetiva, a partir dessa análise, compreender a relação entre memória, informação e patrimônio cultural. Conclui que as múltiplas identidades e polifonias existentes na cidade de Porto Alegre e que têm potencialidade para emergirem como patrimônio cultural não são divulgadas pela Prefeitura Municipal, nem pelo aplicativo Porto Alegre Guide.

Palavras-chave: Memória, Patrimônio cultural, Porto Alegre, Coleção, Aplicativo, Porto Alegre Guide.

Abstract: Aims to produce an observation on the memory traces collected by a city, Porto Alegre (Brazil), the social life of the objects inserted in this collection, in the sense not only of its patrimonialization, but also of its dynamics of memory, as well as visibility of this set of objects that are in constant movement of creation and transformation. Our analysis corpus considers two digital objects: the Porto Alegre Guide application as a support for the consolidation or creation of memories about the city of Porto Alegre and the website of the Municipality of Porto Alegre that gathers equipment and spaces valued as patrimony of the city. Attempt to understand the relation between memory, information and cultural heritage. As conclusion, observes that the multiple identities and polyphonies existing in the city of Porto Alegre and that have the potential to emerge as cultural heritage are not disclosed by the City Hall, nor by the Porto Alegre Guide application.

Keywords: Memory and Cultural Heritage, Porto Alegre, Collection, App, Porto Alegre Guide.

1 A cidade como colecionadora de memórias

Se para Pomian (1984) uma coleção deve ter, no mínimo, duas condições – 'objetos' e um 'colecionador' –, poderíamos considerar como coleção os equipamentos e os espaços que a cidade valoriza como patrimônio? Partindo do pressuposto de que os vestígios memoriais de um grupo se materializam e se organizam em objetos que têm o poder de trazer à tona lembranças individuais, poderíamos também supor, ainda que metaforicamente, a cidade investida na figura do colecionador de memórias coletivas. Morais (2013) alega que Knauss (1998; 2003; 2006)

[...] nos ajuda a olhar a cidade na sutileza do termo imaginário urbana, que contribui para compreendermos as imagens urbanas como produto simbólico das relações sociais, suportes de memória que materializam o passado na construção do patrimônio cultural (MORAIS, 2013, p. 23-24).

Morais (2013) reforça ainda a ideia do município como colecionador, sujeito social e coletivo, "[...] na medida em que ele acumula objetos escultóricos que trazem referências significativas que sacralizam o passado e, nesse sentido, carregam o atributo de semióforos.” (MORAIS, 2013, p. 24). Benjamin (2016) nos sugere uma Paris colecionadora ao falar sobre os objetos de admiração de Nadja, em André Breton:

Ora, o que são estes objetos? [...] as primeiras estações de ferro, os primeiros edifícios industriais, todas as primeiras fotos, os objetos que começam a desaparecer, os pianos de salão, as roupas com mais de cinco anos, os lugares de reunião mundanos quando eles começam a passar de moda. [...] No centro deste mundo de objetos encontra-se o mais sonhado entre todos, a cidade de Paris, ela mesma. (BENJAMIN, 2016, p. 23, tradução nossa).[1]

Compreendemos, deste modo, que a coleção representacional deste estudo são os pontos tombados e mapeados pela prefeitura de Porto Alegre (nosso objeto de análise), somados a um equipamento digital, o aplicativo Porto Alegre Guide, sendo nosso objeto de desejo (como colecionadores) a cidade de Porto Alegre.

2 Percursos memoriais, uma cartografia da coleção

Quando chegamos a uma nova cidade, os percursos – sejam eles espontâneos ou planejados – criam uma cartografia própria, uma narrativa que, mesmo quando compartilhada, é impossível de ser sentida e vivenciada da mesma maneira entre duas pessoas diferentes. A “leitura de mundo” (FREIRE, 1989) de cada um faz com que essa trajetória se associe às memórias, criando um cenário distinto entre turistas e viajantes.

Mesmo quando essa experiência é pensada no âmbito da memória coletiva (HALBWACHS, 2006), algo de particular se cria no jogo entre lembranças e esquecimentos. A cidade, como uma experiência coletiva e pessoal, carrega, ao mesmo tempo, diferentes camadas de significados, em uma dinâmica entre narrativas oficiais e construções culturais subjetivas, instituições e moradores, patrimônios materiais e imateriais.

Segundo Castriota (2009), se por um lado se percebe atualmente o ressurgimento de tradições culturais que se acreditava desaparecidas, por outro, passou-se de um discurso patrimonial consolidado na ideia de monumento artístico e histórico para uma “[...] concepção de patrimônio entendido como conjunto de ‘bens culturais’, referentes às diversas identidades coletivas” (CASTRIOTA, 2009, p. 12).

As grandes narrativas nacionais perdem seu espaço, dando lugar aos patrimônios culturais que procuram traduzir essas identidades diversas e polifônicas, presentes no tecido social e no território. Alinhados a esse discurso, Abreu e Chagas (2009) afirmam que são “[...] as narrativas urbanas, regionais e locais, que o jogo da construção de uma identidade específica é capaz de articular outras tantas narrativas.” (ABREU; CHAGAS, 2009, p. 15). Também cabe ressaltar que “[...] na formação das nações modernas, a noção de patrimônio associou-se à ideia de bem coletivo e público expressando um tipo de sociedade como coletivo de indivíduos e indivíduo coletivo.” (ABREU, 2012, p. 46).

O discurso de um patrimônio nacional assegura que o patrimônio cultural “[...] permaneça ilusoriamente como algo coerente, íntegro e idêntico a si mesmo.” (GONÇALVES, 1996, p. 24). Assim, as múltiplas identidades culturais não são contempladas nesse processo de homogeneização, mas colocadas à margem. Se pensarmos que o discurso pode se aproximar ou se distanciar, na prática, da pluralidade cultural que existe em uma cidade, o meio online pode ter um papel importante na propagação da diversidade sociocultural e de suas memórias.

Desse modo, refletir sobre a relação entre a memória e o patrimônio cultural de uma cidade no meio online faz com que outros fatores e características estejam na equação. De acordo com Hine (2015), costumávamos tratar a internet como um espaço separado das experiências offline, mas a sociedade contemporânea a vivencia como algo incorporado ao cotidiano da maioria das pessoas que a acessam. Ou seja, não pensamos “vamos entrar na internet”, apenas entramos na internet, assim como não pensamos “vou digitar os números do telefone, apertar o botão de ligar, aguardar o tom de discagem”, apenas digitamos os números e ligamos, sem pensar no processo. Desse modo, a tecnologia se mostra integrada e não separada de nossas ações.

Outra característica é a de que, conforme Dodebei (2012, p. 12), “[...] memória e patrimônio constituídos no ambiente virtual são sempre mediados por objetos informacionais [...]”, estes formados por códigos numéricos, os quais são transformados em conteúdo legível – como imagens e textos, por exemplo – para o usuário final. Para Miller e Horst (2012), bem como para Hine (2015), a tecnologia se tornou uma extensão do nosso corpo a ponto de que só percebemos que existe uma materialidade quando algo se quebra. Essa materialidade é composta por esses circuitos eletrônicos, códigos, “zeros e uns”.

Considerando que temos no meio online uma representação, por meio de códigos numéricos traduzidos em imagens e textos do patrimônio cultural e que, ao mesmo tempo, o que representamos online é parte do que somos offline, podemos entender os objetos informacionais como mediadores da memória.

Van Dijck (2007) reforça essa afirmação abordando o conceito de objetos de mediação de memória[2] – fotos, vídeos, textos, que não são somente mediadores do passado, mas também de relacionamentos entre indivíduos e grupos. Assim, podemos pensar que o patrimônio cultural é representado online por meio de objetos de mediação de memória, sendo estes um reflexo da relação entre indivíduos e grupos, que dialogam constantemente com os diferentes matizes da própria cidade.

Quando tratamos de uma memória de grupos que formam uma cidade, interagindo por meio de seus espaços sociais de convivência, é necessário tratar das noções de memória individual e memória coletiva. Para Erll (2008), é necessário marcar dois níveis no qual há a interseção entre memória e cultura: o cognitivo e o social. O primeiro estaria ligado à memória biológica, mas a autora constata o fato de que nenhuma memória é somente individual, pois ela é moldada por contextos coletivos e socioculturais. O segundo nível, da memória cultural, seria de ordem simbólica, construída por instituições, a mídia e práticas que proporcionam aos grupos criarem um passado compartilhado. De acordo com a autora, o segundo nível moldaria as memórias individuais, mas a memória somente pode ser atualizada em um contexto sociocultural, pelos indivíduos.

A informação produzida pelo objeto se transforma, na medida em que a relação entre sujeito-objeto e o coletivo-objeto se dá de formas distintas, promovidas pela mudança do meio. O novo significado informacional transmitido pelo objeto é, assim, o resultado de um processo de construção, de acordo com a sua trajetória histórica e através do caminho percorrido. A informação está sempre em processo de construção. (RIBEIRO, 2016, p. 296).

Ao pensarmos no patrimônio cultural como um reflexo da cidade – e, consequentemente, de seus habitantes – formando uma coleção memorial de espaços e práticas culturais, a informação sobre ela se constrói e reconstrói. Na era moderna, segundo Rigney (2005), o papel das mídias é inegável como fator integrante na produção da memória cultural, mesmo quando a qualidade da informação entra em julgamento. Conforme Erll (2008), as mídias que usamos fazem com que possamos adquirir esquemas que auxiliem a relembrar o passado e codificar novas experiências.

Por meio do processo de mediação realizado, não só pelo aplicativo Porto Alegre Guide, mas também pelas pessoas que alimentam nele os locais, textos e imagens, é possível refletir que a memória cultural, além de representada, está em processo permanente de (re)criação e ressignificação em sua forma e conteúdo. Assim, procuraremos traçar um panorama entre as informações disponíveis online na instância Municipal e o aplicativo Porto Alegre Guide, com a intenção de descobrir se a multiplicidade social e cultural da cidade encontra reverberação nesses meios.

3 O aplicativo Porto Alegre Guide e o site da Prefeitura Municipal: como o patrimônio cultural é apresentado?

Porto Alegre Guide (POA Guide) é um aplicativo grátis para celular, disponível nas plataformas dos sistemas operacionais Android e IOS, que tem como função ser uma espécie de “guia de bolso” para os visitantes da cidade de Porto Alegre. Ele (Figura 1) apresenta a navegação por dois menus principais, além de um mapa, mostrando as principais atrações da cidade, bem como especificidades da cultura portoalegrense e gaúcha.

O aplicativo Porto Alegre Guide
Figura 1
O aplicativo Porto Alegre Guide
Fonte: POA GUIDE (2017).

No artigo As Narrativas da cidade no aplicativo Porto Alegre Guide, Massoni e outros (2017) averigua o fluxo informacional do aplicativo, trazendo, por meio da narratologia, uma análise dos enredos, episódios, personagens, cenários e sequências cronológicas que formam a cidade narrada pela funcionalidade. A figura 2 nos auxilia a compreender melhor a divisão informacional feita pelo aplicativo.

Fluxo de informações no aplicativo
Porto Alegre Guide
Figura 2
Fluxo de informações no aplicativo Porto Alegre Guide
Fonte: Massoni et al. (2017, p. 151).

Após analisar as categorias e o fluxo informacional, o artigo referenciado chega à conclusão de que Porto Alegre é uma cidade que “[...] agrega às tradições do passado, o vanguardismo do presente, ao mesmo tempo em que se mantém aberta às transformações do futuro” (MASSONI et al., 2017, p. 158). Mas, em determinado ponto, salienta que os bairros sugeridos para o visitante são centrais (Centro, Bom Fim, Moinhos de Vento e Cidade Baixa), tornando invisíveis as outras áreas de Porto Alegre. Na navegação por bairro, foram listados os seguintes destaques:

Considerando a invisibilidade de outras áreas da cidade no aplicativo Porto Alegre Guide e, com o intuito de observarmos se o mesmo ocorre no âmbito governamental, no meio online, nos propusemos a buscar informações sobre o patrimônio cultural da cidade de Porto Alegre.

A primeira dificuldade com a qual nos deparamos foi a de encontrar informações no âmbito municipal. Como ponto de partida, estabelecemos a seção da Secretaria Municipal de Cultura no site da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (2017a). Esta possui um site antigo – o novo está em construção – com informações dispersas e se constitui, em sua maioria, de textos explicativos sobre cada área de atuação e contatos. Algumas seções, como o Observatório da Cultura, ainda possuem o endereço de um segundo site ou blog, praticamente terceirizando a informação institucional.

 Patrimônio cultural: bens tombados
no centro de Porto Alegre
Figura 3
Patrimônio cultural: bens tombados no centro de Porto Alegre
Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre (2017b).

A informação mais próxima encontrada foi a lista de bens imóveis tombados, atualizada em janeiro de 2014, mas esta estava inserida na seção da Secretaria de Urbanismo (2017b) e não na de Cultura. Ou seja, além de desatualizada, estava fora do âmbito da cultura e apresentava apenas o patrimônio tombado, pedra e cal, material (Figura 3).

Em seguida, buscamos no site da Secretaria Municipal de Urbanismo de Porto Alegre pelo termo “patrimônio cultural”. Chegamos, então, em uma página sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA), que divide a cidade em nove áreas. Apesar de ter o foco na estrutura urbanística, traz em cada uma das áreas elementos que, por mais que não estejam na lista oficial da Secretaria Municipal de Cultura, formam um conjunto que poderia ser entendido como patrimônio cultural.

As nove áreas são divididas em (a) Cidade Radiocêntrica: corresponde ao Centro Histórico de Porto Alegre; (b) Cidade Xadrez: área próxima à 3º Avenida Perimetral; (c) Corredor de Desenvolvimento: norte de Porto Alegre; (d) Cidade da Transição: interface entre a Cidade Xadrez e os topos dos morros; (e) Cidade Jardim: Bairro Ipanema e arredores; (f) Eixo Lomba – Restinga: porção extremo leste do município; (g) Restinga: maior bairro do centro-sul do município; (h) Cidade Rururbana: localizado na porção sul do município; (i) Ilhas do Delta do Jacuí: 16 ilhas sob a jurisdição de Porto Alegre.

Para que possamos colocar lado a lado e comparar o que está sendo destacado na camada governamental com o conteúdo do aplicativo Porto Alegre Guide, é necessário, primeiramente, listar o que é destacado nessas nove áreas, de acordo com o site da Secretaria Municipal de Urbanismo de Porto Alegre (Quadro 1).

Quadro 1
Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental e destaques de cada área
 Plano Diretor de Desenvolvimento
Urbano Ambiental e destaques de cada área
Fonte: Elaborado pelos autores.

É possível perceber que, ao olharmos para a zona central, sul e a área nobre da cidade (Centro Histórico, Bom Fim, Cidade Baixa, Cidade Radiocêntrica, Moinhos de Vento, Cidade da Transição e Cidade Jardim), a lista se aproxima muito do que foi escolhido para constar no Porto Alegre Guide. Outro ponto que ressalta esse recorte é a existência de dois roteiros de ônibus que realizam o city tour em Porto Alegre: um para o centro e outro para a zona sul (PORTOALEGRE.TRAVEL, 2017).

Torna-se, então, ainda mais visível o que foi observado por Massoni e outros (2017) de que existe a construção de uma narrativa, de uma memória voltada para a legitimação de espaços centrais em detrimento da periferia. Pollak (1989) ressalta que é a partir do material fornecido pela história, que pode ser interpretado, ressignificado, que o trabalho de enquadramento da memória ocorre. “Guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro”. (POLLAK, 1989, p. 10).

Ao tratarmos dos bens de natureza imaterial que, de acordo com Dodebei (2012, p. 32), “[...] são circunstanciais, vivos e se preservam por tradição”, não foram encontradas informações centralizadas sobre o mesmo na cidade de Porto Alegre, na esfera governamental, somente de forma superficial, no site Portoalegre.travel (2017). Já o aplicativo Porto Alegre Guide, ao tratar da cultura da cidade, tem seu foco o imaginário sobre o gaúcho e suas práticas, como o preparo do chimarrão.

Esse processo de exclusão simbólica por meio dos patrimônios culturais, materiais e imateriais, também pode ser pensado a partir da valorização da colonização europeia no Rio Grande do Sul. No aplicativo Porto Alegre Guide, a descendência açoriana ganha destaque ao se falar de Porto Alegre, assim como a italiana e alemã, ao tratar sobre outras cidades turísticas do Rio Grande do Sul. Cabe lembrar que

[...] reduzir o patrimônio cultural de uma sociedade às expressões de apenas algumas de suas matizes culturais [...] é tão problemático quanto reduzir a função de patrimônio à proteção física do bem. É perder de vista o que justifica essa proteção, que, evidentemente, representa também um ônus para a sociedade e para alguns cidadãos em particular. (FONSECA, 2003, p. 65).

Lima Filho e Eckert (2007), ao tratarem dos processos de construção patrimonial, afirmam que estes foram utilizados na maioria dos Estados latino-americanos como recursos para a unificação de um Estado-Nação, mas que, a partir de sua seleção de bens, exclui parte das produções culturais heterogêneas, “[...] privilegiando um patrimônio cultural dominante.” (2007, p. 59).

Se pensarmos o offline incorporado ao online, como sugere Hine (2015), esse enquadramento da memória que aparece tanto no aplicativo Porto Alegre Guide quanto no site da Prefeitura Municipal de Porto Alegre é um reflexo da invisibilidade offline de muitos grupos sociais na cidade. As comunidades afro-brasileiras e indígenas, por exemplo, não estão presentes como constituintes da pluralidade de patrimônios culturais divulgados por esses meios.

Erll (2008) sugere a dissolução do antagonismo entre memória e história, afirmando que existem maneiras diferentes de recordar eventos passados (traumas, memórias religiosas, mitos, história política, etc.). Assim, a história – argumento geralmente usado nas justificativas do recorte na colonização europeia – seria apenas uma das maneiras de lembrar, inserida na memória cultural. Ou seja, se retomarmos Castriota (2009), Abreu e Chagas (2009), é necessário trazer à superfície as identidades coletivas, plurais e polifônicas, sem vincular a construção do patrimônio cultural a uma identidade específica.

4 Considerações finais

Por meio do cruzamento de informações governamentais com o conteúdo presente no aplicativo Porto Alegre Guide foi possível notar a presença de um recorte que não observa a pluralidade de contextos e culturas presentes na cidade de Porto Alegre.

Desse modo, se pensarmos o patrimônio cultural como passível de representação no meio online através dos objetos de mediação de memória, esse recorte ocasiona em um enquadramento de memória. As múltiplas identidades e polifonias existentes na cidade de Porto Alegre e que têm potencialidade para emergirem por meio do patrimônio cultural não são divulgadas pela Prefeitura Municipal, nem pelo aplicativo Porto Alegre Guide.

Se voltarmos para a ideia da cidade como colecionadora de memórias, podemos pensar o visitante como alguém que, além de apreciar, coleta essas memórias e as reconstrói para si e para seu grupo. Então, qual seria a memória de quem visita Porto Alegre ao utilizar como fonte de informação esses objetos online? Não seria a memória da fração de uma cidade? E o valor patrimonial que, de acordo com Dodebei (2012), é fruto de “[...] manifestações culturais, em sua maioria de natureza artística e coletiva como as artes populares, indígenas, urbanas, das periferias, de comunidades de baixa renda, entre outros?” (DODEBEI, 2012, p. 26).

Certamente o ato de “viver a cidade”, pulsante, polifônica, multicultural fica comprometido. Seu olhar sobre a cidade é escolhido por terceiros. Poderíamos, ainda, avançar mais se retomássemos a função do aplicativo Porto Alegre Guide: conduzir o visitante ao apresentar os aspectos de destaque da cidade. Mas em qual coleção? Naquela dinâmica da cidade naturalmente constituída, devassada, modificada por novos percursos criados por seus moradores e visitantes ou naquela digital, recortada, diminuída em tamanho, intensidade e emoção? Qual Porto Alegre o visitante está conhecendo?

A título de conclusão, sempre inconclusa, podemos afirmar que tanto o site da Prefeitura de Porto Alegre como o aplicativo Porto Alegre Guide não podem ser meras representações menores do que os espaços de vida da cidade. Devem, sim, ser complementares ao mapa, tal como suportes de informação ampliada ao movimento dos humanos, dos bichos, das plantas, das latas de lixo, das carrocinhas de doces, dos abraços e beijos fortuitos como bem nos ensinou Calvino (1990) ao descrever sua cidade invisível. Estes equipamentos técnicos devem fazer parte da arquitetura ecológica do ambiente ao lado dos outros seres, com funções mais ambiciosas do que aquelas para as quais foram programados.

Agradecimentos

Referências

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VAN DIJCK, José. Mediated memories in the digital age. Stanford: Stanford University Press, 2007.

Notas

[1] Versão original : por quels sont ces objets? [...] les premières constructions en fer, les premier bâtimants industriels, les toutes premières photos, les objets qui commencent à disparaître, les pianos de salon, les vêtements d'il y a cinq ans, les lieux de reunion mondaine quand il commencent à passer de mode. [...] Au centre de ce monde des objets se trouve les plus rêvé d'entre eux, la ville de Paris elle-même. (BENJAMIN, 2016, p. 23)
[2] No original, mediated memory objects (VAN DIJCK, 2007).

Autor notes

1 Doutoranda; Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil;

mldamin@gmail.com

2 Doutora; Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil;

dodebei@gmail.com

3 Doutor; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil;

valdirmorigi@gmail.com

4 Doutorando; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil;

luisfernandomassoni@gmail.com

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