Resumo: Objetiva discutir a tensão entre redundância e inovação, na informação televisiva, do movimento musical tropicalista. Epistemologicamente, adota uma perspectiva interdisciplinar entre a Ciência da Informação e a Comunicação Social, explorando, mais particularmente, duas vertentes teóricas que lhes são comuns, em graus variados: a Teoria da Informação e a Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura. Metodologicamente, trata-se de pesquisa teórica e bibliográfica que estabelece um diálogo entre a Teoria da Informação, em sua apropriação por Augusto de Campos, no artigo Informação e redundância na música popular, e a Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura, mormente mediante seu desenvolvimento na Dialética do gosto, de Marco Schneider. Nessa perspectiva, situa o debate em torno do componente estético-informacional da Tropicália, no contexto da indústria cultural brasileira do fim dos anos 1960 e problematiza o modo como ela participa na conformação da informação midiatizada tropicalista. A problemática principal dá-se em torno da possibilidade do caráter de vanguarda ou de inovação do movimento musical nos palcos dos programas de auditório da TV da época. A questão de fundo é saber como a indústria cultural, apesar de sua tendência dominante à redundância, possibilitou ampla circulação de informação inovadora, na música popular brasileira, no período analisado. Sem ignorar a autonomia relativa e, portanto, a agência dos artistas tropicalistas, trabalha com a hipótese de que seu caráter inovador foi favorecido pelo estágio liberal e concorrencial do capital midiático de então, mais aberto à inovação do que as fases subsequentes, monopolistas e fictícias.
Palavras-chave:TropicáliaTropicália, Teoria da informação Teoria da informação, Economia política Economia política, Capital midiático Capital midiático, Televisão Televisão.
Abstract: It aims to discuss the tension between redundancy and innovation in the television information of the tropicalist musical movement. Epistemologically, it adopts an interdisciplinary perspective between Information Science and Social Communication, exploring two theoretical approaches shared by both, in different degrees: the Theory of Information and the Political Economy of Information, Communication and Culture. Methodologicly, it establishes a dialogue between the Theory of Information, in its appropriation by Augusto de Campos, in the article Informação e redundância na música popular, and the Political Economy of Information, Communication and Culture, mainly through its development in Marco Schneider’s Dialética do gosto. In this sense, it situates the debate around the aesthetic-informational component of Tropicália, in the context of the Brazilian cultural industry, of the late 1960s. And it discusses the way in which it participates in the conformation of tropicalist mediated information. The main problem is related to the possibility of the character of vanguard or innovation of the musical movement in the stages of the programs of the TV audience at the time. The main question is how the cultural industry, despite its dominant tendency to redundancy, enabled a wide circulation of innovative information in Brazilian popular music during the analyzed period. Without ignoring the relative autonomy and the agency of tropicalist artists, the main hypothesis of this paper is that its innovative nature would have been favored by the liberal and competitive stage of the media capital of the time, more opened to innovation than the subsequent phases, monopolistic and fictitious.
Keywords: Tropicalia, Information theory, Political economy, Media capital, TV.
Artigos
Parabolicamará: redundância e inovação na infomaré televisiva da Tropicália
Parabolicamará: redundancy and innovation in Tropicália's television information
Recepção: 21 Setembro 2017
Aprovação: 19 Fevereiro 2018
A canção Parabolicamará, composta por Gilberto Gil, em 1992, arranha nas entrelinhas a proposta deste trabalho. O neologismo que dá título à composição sugere com “parabólica”, a imagem de televisão, e com “camará”[1], algo típico do Brasil. Embora a televisão brasileira não operasse no sistema de satélites e parabólicas nos tempos dos festivais de 67 e 68, e sim, no comércio e transporte de videotapes, a metáfora de parabolicamará é propícia ao estudo da estética tropicalista. A crescente “infomaré”, do final dos anos 1960, marcada pela convergência de correntes nacionais e internacionais, tradicionalistas ou inovadoras, promovida em grande parte pelo desenvolvimento tecnológico da televisão e o consequente crescimento de sua popularidade como indústria cultural no Brasil, antecipa alguns dilemas informacionais de ordem estética, política e teórica que a metáfora de Gil viria a sintetizar anos depois. Esses dilemas, em certo sentido, ainda são os nossos, visto que tanto os anos 1960, quanto as últimas duas décadas apresentaram grandes saltos no desenvolvimento de tecnologias informacionais. Para significativa parte da população brasileira, de meados dos 1960, a televisão e a sua grade de programação eram as grandes novidades. Nos últimos anos, a popularização da internet no Brasil trouxe novos fluxos e questões informacionais, sobre os quais daremos uma visão panorâmica ao fim da exposição. Este trabalho, no entanto, concentra-se nos anos de 1967 e 1968, um bom momento para se pensar a relação dialética entre redundância e inovação estética, no âmbito da informação midiatizada, por ter sido particularmente favorável ao desenvolvimento do polo da inovação.
Para os objetivos desse artigo, entendemos não ser necessário nem um aprofundamento na Teoria da Informação como um todo, nem na Economia Política da Informação, da comunicação e da cultura, em todas as suas vertentes. Da primeira, nos centraremos na dialética da redundância/inovação; da segunda, na dialética das determinações (econômicas) estruturais/agência. A articulação entre ambos os focos deverá produzir um quadro geral do complexo de determinações dialéticas que possibilitou o advento do fenômeno tropicalista em sua especificidade estética, bem como sugerir uma via de investigação que pode mostrar-se útil para o estudo de outros objetos informacionais, pensados em termos estéticos ou não e em contextos sócio-históricos distintos, incluindo o atual.
No capítulo Esboço para uma teoria infocomunicacional da reificação, da Dialética do gosto, Marco Schneider (2015) afirma que, embora um conhecimento qualquer do real (discursivo e extradiscursivo) seja necessariamente mediado pela dimensão simbólica e pelas práticas discursivas, o real não se esgota no discurso, mesmo o real discursivo. Em outras palavras, nenhuma produção de sentido está descolada de sua estrutura material e do modo de produção que a conforma e a possibilita. Armand Mattelart (2011) chamaria de “autonomia idealista da ideologia”, o movimento de pensar bens culturais como puros vetores de mensagens, sem se levar em conta a existência das indústrias culturais e seu modo de funcionamento nos moldes de uma economia capitalista.
Schneider, em concordância com o pensamento de Mattelart, trabalha com uma perspectiva totalizante de análise da informação midiatizada, isto é, parte da premissa de que um bem midiático-cultural, uma informação midiatizada, só pode ser compreendido, de fato, quando se observa seu contexto material e social. Defende, assim, que essa perspectiva fornece pistas para a leitura da relação entre as representações da realidade, mediadas por um “evento comunicativo” (HALL, 2003) e seus momentos sócio-históricos de emergência. Esse é o caso de ler a informação tropicalista veiculada no suporte tecno-cultural que é a televisão, nos programas musicais de auditório, sem deixar de levar em conta o modo de produção que sustenta a emissora de televisão e o repertório técnico-informacional do próprio grupo musical.
Isso nos faz pensar que a postura estética adotada por Caetano, Gil e outros artistas, como Tom Zé, Torquato Neto e Gal Costa, não pode estar descolada do modelo de desenvolvimento econômico brasileiro daqueles anos. As informações inovadoras da Tropicália, em seu hibridismo de elementos tradicionais e cosmopolitas, só podem ser adequadamente compreendidas, tendo em vista um Brasil cuja estrutura econômica permite a coexistência de elementos arcaicos com modernos produtos industriais, como a televisão e a guitarra elétrica.
Augusto de Campos (1986, p. 142), no artigo O passo à frente de Caetano Veloso e Gilberto Gil, diz que:
[...] os novos meios de comunicação de massa, jornais e revistas, rádio e televisão, tem suas grandes matrizes nas metrópoles, de cujas “centrais” se irradiam as informações para milhares de pessoas de regiões cada vez mais numerosas. A intercomunicabilidade visual é cada vez mais intensa e mais difícil de conter, de tal sorte que é literalmente impossível a qualquer pessoa viver a sua vida diária sem se defrontar a cada passo com o Vietnã, os Beatles, as greves, 007, a Lua, Mao ou o Papa. Por isso mesmo, seria inútil preconizar uma impermeabilidade nacionalística aos movimentos, modas e manias de massa que fluem e refluem de todas as partes para todas as partes.[2]
Em Codificação e decodificação, Stuart Hall (2003, p. 388-389) defende a ideia de que um evento não pode ser transmitido pela TV em sua forma bruta (em sua singularidade fenomênica no tempo e no espaço), mas somente, enquanto discurso (audiovisual, no caso da TV). Tropicália, Beatles, Vietnã e 007 são eventos convertidos em informação, em uma “forma-mensagem”, e estão sujeitos “a toda a complexidade das ‘regras’ formais pelas quais a linguagem significa”. As informações “modernas” da pop-art, do iê iê iê, do Woodstock – manifestações culturais das metrópoles – chegaram aos tropicalistas como evento comunicativo ou informação midiatizada em grande parte pela televisão. Isso reflete algumas realidades extra-discursivas: a produção e o consumo de aparelhos televisores em um país de capitalismo subdesenvolvido (recebendo informação do mundo capitalista desenvolvido).
Além disso, a recepção das informações “modernas”, dos países centrais, reflete o lugar de classe dos tropicalistas. Um lugar de classe média urbana intelectualizada que condiciona as possibilidades de contato e os esquemas de recepção dos produtos culturais do hemisfério norte. Vale lembrar que, por mais que a televisão estivesse no Brasil (de 1967 e 1968), em vias de massificação, era um produto ainda, predominantemente, adquirido por setores da classe média (em grande parte alta) concentrados em grandes centros urbanos. Suas condições de produção e funcionamento estruturaram-se, sem dúvida, na lógica de uma industrialização tardia, protagonizada pelo capital estrangeiro e direcionada a um mercado consumidor restrito. Tais condições estruturais nos fazem pensar, em meio à “[...] mútua determinação dialética das relações sociais agindo sobre as regras da linguagem [...]” (SCHNEIDER, 2015, p. 117) e vice-versa, no seu primeiro momento. Assim, temos que a informação “moderna” e estrangeira, consumida por Caetano e Gil, só foi possível, com efeito, a partir de meios de comunicação possibilitados, materialmente, a partir de uma estrutura produtiva “moderna”. Além de um capitalismo que se pretendia moderno com as indústrias de bens de consumo, mas que não abria mão de estruturas arcaicas, como o grande latifúndio e o trabalho semi-servil. De acordo com o raciocínio de Hall, defende-se, aqui, a ideia de que os tropicalistas apropriaram-se, por meio das novas tecnologias de comunicação, de eventos modernos convertidos em informação, isto é, forma-mensagem. Ao mesmo tempo, incorporaram a essa informação “moderna”, informações de um Brasil “arcaico” que não estava na televisão. Talvez Beatles e 007 estivessem mais próximos do cotidiano de brasileiros de classe média, se comparados com as manifestações culturais, em território brasileiro, que alguns autores chamam de “cultura popular”[3]. Os tropicalistas, assim, “deglutiram” informações “arcaicas” e “modernas” e informaram, principalmente, por meio da TV, a alegoria de um Brasil simultaneamente “arcaico” e “moderno”[4].
Em sua dissertação de mestrado – Televisão e música popular na década de 60: as vozes conflitantes de José Ramos Tinhorão e Augusto de Campos (PAIXÃO, 2013) – Cláudia Regina Paixão defende que a Bossa Nova, a Jovem Guarda e o Tropicalismo foram movimentos musicais associados à difusão televisiva. A autora trabalha com o argumento geral de que o corpo criativo da própria canção seria atingido pela forma-mensagem da TV.
É necessário enfatizar que a associação televisão-canção tornou-se uma equação fundamental da configuração estética da obra musical. A feitura estética da canção ficaria indissociável das próprias características da TV, como meio e como atividade empresarial. (PAIXÃO, 2013, p. 105).
Segundo a autora, nos festivais, as canções atenderam, em sua maioria, aos anseios do público, com as letras de protesto velado. A própria configuração do evento – com apresentações vibrantes, torcidas e competição – já seria suficientemente atrativa para mobilizar o público telespectador. O programa Jovem Guarda, na TV Record, já nasceu com estratégias bem definidas para atrair o público e gerar lucro. Os fãs identificados com os apresentadores do programa passaram a consumir os produtos associados a eles. Toda essa engrenagem só foi possível com a televisão, que além de familiarizar o país com o rock, transformou o Jovem Guarda em uma vitrine de produtos.
A Bossa Nova é um bom exemplo de estética que teve de se transmutar para adequar-se à forma mensagem da linguagem televisiva. De acordo com Paixão (2013), ela abandonou “o banquinho e o violão” e tornou-se dinâmica, com performances vibrantes, para chamar a atenção de um público maior e mais multifacetado que o da zona sul do Rio de Janeiro, seu berço. Esse caso ilustra-se no programa Fino da Bossa, também da TV Record, apresentado por Elis Regina. A informação intimista de João Gilberto não era compatível com o formato de um programa de televisão. A interpretação dançante e os vocais de longo alcance de Elis apresentavam maior sintonia com a linguagem de um programa de auditório. A Bossa Nova, nesse caso, é emblemática quando Stuart Hall diz que um evento não pode ser transmitido pela televisão em sua forma bruta, mas, somente, como discurso que, por sua vez, torna-se sujeito a todas as “regras” formais da linguagem audiovisual. As “regras”, nesse caso, foram responsáveis pelo remodelamento de um estilo musical.
A propósito dessa relação entre música e linguagem televisiva, Paixão afirma que a influência do meio de difusão na obra artística causava algumas preocupações em Augusto de Campos e Caetano Veloso. O primeiro temia que os meios de comunicação inibissem o aparecimento de novas expressões artísticas – com sua carga informacional menos propensa à redundância –, privilegiando o estabelecido e aceito pelo telespectador. Na entrevista Conversa com Caetano Veloso (VELOSO, 1986), Campos indaga se seria possível conciliar a necessidade de comunicação com as massas e as inovações musicais. Para Caetano, a própria necessidade de comunicação com as massas suscitaria inovações. Contudo, o compositor pondera que os meios de massa seriam motivados por necessidades comerciais, o que poderia representar um entrave à inovação. Segundo Caetano: “[...] a Música, violentada por um processo novo de comunicação, faz-se nova e forte, mas escrava [...]” (VELOSO, 1986, p. 200).
Em seu artigo Informação e redundância na música popular[5], de 1968, que compõe seu livro Balanço da Bossa do mesmo ano, Augusto de Campos vale-se da Teoria da Informação, para justificar sua adesão ao que chama “música de vanguarda” (incluindo o Tropicalismo). Além da preocupação que compartilhava com Caetano Veloso, das “regras” da mensagem televisa serem entraves à inovação musical, sua defesa se dava em um contexto de debate entre defensores de uma música “legitimamente nacional” e os que aderiam ao cosmopolitismo, como o próprio Campos.
Conforme dito anteriormente, Campos defendia a ideia de que a informação estrangeira não podia ser ignorada pela Música Popular Brasileira (MPB), uma vez que ela era usada e consumida por significativa parcela da população brasileira. Para reforçar seu argumento, ele cita Marx e Engels:
Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolve-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal. (MARX; ENGELS, 1948[6] apud CAMPOS, 1986, p.142).
Perguntamo-nos se haveria alguma ironia ou provocação na citação de Campos, em sua polêmica com os defensores de uma estética nacional-popular mais purista, identificada com a esquerda do espectro político. Segundo ele, era difícil encontrar, àquela altura, quem concordasse com essas ideias de Marx e Engels no próprio seio da esquerda. Era o momento pós-protesto da Banda e da Disparada. Saudades do sertão. Saudades do interior. Ao mesmo tempo, a informação e os gostos estrangeiros passavam a ganhar força no Brasil, por meio do programa Jovem Guarda. Cláudia Paixão diz que a passeata contra a guitarra elétrica se deu no momento em que o programa Fino da Bossa perdia pontos de audiência, ao mesmo tempo que o “ibope” de Roberto, Erasmo e Wanderléa só aumentava. O iê iê iê era sem dúvida mais familiar para os telespectadores das cidades do que para os do interior, do sertão e da viola.
Nesse contexto, no palco do festival de música popular de 1967 da TV Record[7], Caetano Veloso e Gilberto Gil apresentaram sua nova informação estética que, entre outras coisas, reunia iê iê iê e ritmos tipicamente brasileiros. Campos afirma que “furando a maré redundante de violas e marias”, a letra de Alegria, Alegria trouxe o imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária. Esse evento, por sua vez, seria captado isomorficamente, por meio de uma linguagem nova, também fragmentária, na qual predominam substantivos do que Campos denomina “implosão informativa moderna”: crimes, espaçonaves, guerrilhas, cardinales, caras de presidente, beijos, dentes, pernas, bandeiras, bomba e Brigitte Bardot. O mundo das “bancas de revista”, de “tanta notícia” é, para Campos, o mundo da comunicação rápida, do “mosaico informativo” de que fala Marshall McLuhan. Nesse sentido, Campos afirma que a marcha Alegria, alegria descreve o caminho inverso de A banda. Esta última, segundo o autor, mergulha no passado, na busca evocativa da “pureza” das bandinhas e dos coretos de infância. Alegria, alegria, ao contrário, encharca-se de presente e envolve-se, diretamente, no cotidiano da comunicação moderna, urbana, do Brasil e do mundo. Pode-se inferir daí que Caetano Veloso assume um lugar de fala bastante claro, de um jovem urbano e de classe média, atravessado diariamente pelas informações produzidas pela indústria cultural.
Da mesma forma que a composição de Veloso, a música Domingo no parque, de Gilberto Gil, para Augusto de Campos, colhe fragmentos do cotidiano urbano brasileiro, como uma “letra-câmera-na-mão”, de um modo menos direto que a de Caetano. Além disso, a inovação da apresentação de Gil esteve mais no fato de confundir o público do festival, a partir dos arranjos de Rogério Duprat que misturou baião, capoeira e guitarra elétrica dos Mutantes. Gil e Mutantes, Caetano e Beat Boys, em ambos os casos, a informação visual da guitarra elétrica, símbolo do iê iê iê, chocava-se com a informação auditiva que não poderia ser denominada apropriadamente iê iê iê, muito menos música “gringa” e importada.
Retomando a problemática que inicia essa sessão, Augusto de Campos utiliza a Teoria da Informação, tomando por base Abraham Moles, para defender a Tropicália como música de vanguarda, mesmo sob a lógica informacional da indústria cultural, tendencialmente redundante.
A partir do texto Machines à musique, de Moles, de 1957[8], Campos (1986) explica que a informação é função direta de sua imprevisibilidade, mas o receptor, o ouvinte, é um organismo que tem um conjunto de conhecimentos, formando o que se chama de “código”, geralmente, de natureza probabilista em relação à mensagem a ser recebida. É, pois, o conjunto de conhecimentos a priori que determina, em grande parte, a previsibilidade global da mensagem. Assim, a mensagem transmite uma informação que é função inversa dos conhecimentos que o ouvinte tem sobre ela. O rendimento máximo da mensagem seria atingido se ela fosse perfeitamente original, totalmente imprevisível, isto é, se ela não obedecesse a nenhuma regra conhecida do ouvinte. No entanto, nessas condições, a densidade de informação ultrapassaria a “capacidade de apreensão” do receptor. De acordo com essa lógica, nenhuma mensagem pode, portanto, transmitir uma “informação máxima”, ou seja, apresentar uma originalidade perfeita no sentido da teoria das probabilidades. A mensagem estética deve, para Moles, apresentar certa redundância (o inverso da “informação”) que a torne acessível ao ouvinte.
Augusto de Campos (1986) afirma que, em um plano mais geral, esse problema coloca-se como um conflito de amplas proporções, que vem se aguçando ao longo do último século. Um conflito entre a cultura massificada, como projeção de um código apriorístico e dogmático, e a insubordinação permanente dos artistas a todos os códigos restritivos da liberdade criadora.
A música de vanguarda, segundo Campos (1986), caracteriza-se por trabalhar com uma taxa mínima de redundância e uma alta porcentagem de imprevisibilidade. É natural, portanto, que se afigure como ininteligível para a maioria dos ouvintes em um primeiro momento. Música de vanguarda é, para Campos, música para produtores e não para consumidores. Oswald de Andrade também problematizou, em um trocadilho otimista, a defasagem entre produção e consumo, quando foi acusado, em 1949, de não ser compreendido pela massa: “A massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico.” (ANDRADE apud BRITO, 1949[9] apud CAMPOS, 1971, p. 55).
Condicionada, fundamentalmente, pelos veículos de massas, que a coagem a respeitar um suposto “código” de convenções do ouvinte – movimento necessário sob os ditames da lógica comercial desses veículos – a música popular não apresenta, senão em grau atenuado, o contraditório entre informação e redundância, produção e consumo. Segundo Campos, ela se encaminharia para o que Umberto Eco denomina de música “gastronômica”: um produto industrial que não persegue nenhum objetivo artístico e tende apenas a satisfazer as exigências do mercado. Contudo, nem tudo é redundância na música popular. É possível discernir no seu percurso momentos de rebeldia contra a estandardização e o consumismo.
Foram os Beatles, já na presente década, na fase de massificação do mais consolidante dos meios de comunicação de massa – a televisão – que lograram um novo salto qualitativo, colocando em outras bases o problema da informação original em música popular. Os Beatles rompem todos os esquemas de previsibilidade usualmente admitidos. Ninguém diria, a priori, que um LP como o “Sgt Pepper’s” pudesse ser, como o foi, altamente consumido. “Não é comercial!” exclamariam, em uníssono, os disc-jockeys de todo o mundo, se tivessem sidos consultados. (CAMPOS, 1986, p. 185).
Adotando como exemplo o caso dos Beatles, Augusto de Campos diz que a opção aparentemente inconciliável, entre artistas de produção (eruditos) e artistas de consumo (populares), ganha, com os garotos de Liverpool, uma nova alternativa: aquilo que Décio Pignatari chama de “produssumo” (produção e consumo reunidos). Com efeito, não poderia mais se defender um dualismo que colocasse, de um lado, a música de vanguarda e, de outro, a música comercial. A música poderia trazer uma informação inovadora e ser ao mesmo tempo altamente comercial, mesmo quando se trabalha com a premissa de que a regra da indústria é vender e operar na redundância – a lógica que o mercado exige.
A Teoria da Informação, também conhecida como Teoria Matemática da Comunicação (WOLF, 1995), foi originalmente formulada no âmbito da engenharia de telefonia, no trabalho pioneiro de Shannon e Weavers, do final dos anos 1940 (WOLF, 1995; MATTELART; MATTELART, 2008). Sua apropriação subsequente pelos estudos de informação e comunicação deu-se antes pelo fato de ter produzido um quadro conceitual profícuo para esses estudos do que pelo interesse em sua aplicação original. É, provavelmente, devido à sua apropriação e seu desenvolvimento por estudiosos da Linguística e da Semiótica, como Jakobson e Eco, que se deve seu prestígio consideravelmente duradouro em meio aos estudos informacionais e comunicacionais.
Em meio a esses desenvolvimentos, o primeiro elemento a ser destacado é a crítica à ausência explicitamente estabelecida por seus formuladores, quanto aos aspectos semânticos dos processos infocomunicacionais. A isso, acresce-se a ausência de qualquer preocupação com aspectos socioculturais, cognitivos, estéticos e outros nas formulações originais.
É precisamente na incorporação de questões dessa ordem ao modelo original que consiste a principal contribuição dos desenvolvimentos produzidos, por exemplo, por Eco e Fabbri (1978[10] apud WOLF, 1995, p. 109).
No Brasil, Pignatari (2008) e Campos (1986) foram, até onde sabemos, pioneiros no desenvolvimento da Teoria da Informação, tanto no âmbito da própria teoria, quanto em termos de sua aplicação a objetos distintos e mesmos distantes das formulações originais de Shannon e Weavers, voltadas ao aprimoramento de sistemas de telefonia. Campos, em particular, tomando por base a obra de Abraham Molles, recorreu à Teoria da Informação, a fim de analisar o fenômeno estético-cultural que foi a Tropicália. Nesse sentido, pode-se dizer que esse estudo consiste, em certa medida, em um desdobramento de suas formulações originais.
Entretanto, como Campos aborda a problemática da indústria cultural de modo somente tangencial, explicações suplementares devem ser agregadas às precedentes, no intuito de promover um entendimento mais abrangente da Tropicália como fenômeno informacional, estético, cultural, político e econômico.
Nessa abordagem, a ação criativa do artista – sejam os Beatles, sejam os tropicalistas – deve ser confrontada mais de perto, não somente com a questão mais diretamente informacional em torno da redundância e da inovação, mas também com a dialética entre ambas, no âmbito da indústria cultural, instância mediadora entre o campo de produção musical que apresenta sua própria dialética interna entre agência e estrutura, bem como autonomia relativa, e os campos de poder político e econômico, que também têm a sua própria dialética entre agência e estrutura. Seja no campo menor, no campo maior ou na instância mediadora, o vetor da redundância predomina na indústria cultural – o que não equivale dizer, no entanto, que inexista tendência à inovação no corpo dessas estruturas.
Encerramos essa exposição, recorrendo ao conceito de “capital midiático”, desenvolvido por Schneider (2015), no intuito de aproximar as noções de capital de Marx e Bourdieu, fazendo, também, uso da noção de campo, de Bourdieu. Do primeiro, retém a concepção de capital como uma relação social de exploração econômica, condição e resultado de apropriação e acumulação privada de riqueza, como fruto da extração arbitrária de trabalho excedente alheio, trabalho alienado do produtor enquanto projeto, processo produtivo e produto[11]. Do segundo, a noção de capital simbólico como prestígio social resultante das disputas no campo de produção artístico, em sua relativa autonomia diante dos campos de poder econômico e político. Articuladas ambas as noções de capital, temos que capital midiático é prestígio social adquirido graças a vultuoso investimento de dinheiro na construção midiática desse prestígio, mediante a alienação (expropriação) de valor simbólico anteriormente produzido no interior do campo artístico. Na época da Tropicália, a indústria fonográfica vivia o apogeu de seu período liberal, altamente concorrencial, o que favorecia o vetor da inovação informativa em meio à dialética redundância/inovação que caracteriza a indústria cultural como um todo (nos momentos seguintes, monopolista e fictício, a redundância passa a se impor crescentemente)[12]. Nesse período, o campo de produção artística ainda tinha um grau de autonomia relativamente alto em relação aos campos de poder. Isso significa que a atribuição de valor simbólico a um bem simbólico dependia ainda em grande parte dos critérios propriamente estéticos desenvolvidos dentro do campo, em face aos critérios econômicos do campo de poder que crescentemente se impunham via indústria cultural – operadora da mediação entre os campos – e suas fórmulas de sucesso. A Tropicália, nesse sentido, em seu esforço de negociação entre inovação estética e comunicação de massa, foi uma estratégia estética e informacional bem-sucedida, conforme argumentação de Campos. Por outro lado, não se deve ignorar que foi amplamente favorecida pelo estágio liberal do capital midiático em seu processo de reprodução ampliada, que culminaria, nas décadas seguintes, na realização da tendência oligopolista que marca o conjunto da economia capitalista atual. No caso da música, isso pode ser percebido pela diminuição do número de artistas e gravadoras e pelo aumento das tiragens e dos lucros com as vendas dos álbuns de poucos. Em outras palavras, pelo aumento da redundância. Pode-se dizer que Michael Jackson seria o exemplo mais puro dessa tendência monopolista ou oligopolista, ainda nos anos 1980, e Beyoncé, seu vestígio atual. No intervalo de tempo entre ambos, com a expansão da internet, a redundância crescente do capital midiático parodiando a si mesmo – o que denominamos de estágio fictício do capital midiático, que praticamente prescinde da produção e expropriação de valor simbólico produzidos com relativa autonomia pelo campo artístico-musical –, passa a conviver com novos espaços autônomos e inovadores de produção e circulação de valores simbólicos. Esses, não obstante, permanecem marginas se comparados à magnitude dos fluxos informacionais em circulação nas mais diversas mídias, financiados, de um modo ou de outro, se não predominantemente pelas grandes gravadoras, em crise, seguramente pelas grandes corporações infotelecomunicacionais[13] e seus novos modelos de negócio, cuja exposição foge dos objetivos do presente trabalho.
Conforme anunciado no início, a aposta metodológica desse trabalho foi articular um duplo referencial teórico – a Teoria da Informação e a Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura – para o estudo de nosso objeto, a informação (ou “infomaré”) televisiva da Tropicália. Assim, mais do que um estudo minucioso dessas duas matrizes teóricas, buscou-se explorar o potencial heurístico da própria articulação, tendo por eixo condutor estudos de Campos e Schneider. Do primeiro, resgatamos sua apropriação da Teoria da Informação para pensar a particularidade estética da Tropicália, no modo como os artistas desse movimento lidaram, criativamente, com a questão da redundância e da inovação informacional (musical e visual) em termos estilísticos; do segundo, a possibilidade de entender o quanto o sucesso comunicacional dessa estética pode ser em certa medida explicado à luz da história econômica da indústria cultural, mediante o recurso ao conceito capital midiático.
Nesse entre-lugar de artistas eruditos e populares, Augusto de Campos visualizou a então nova estética de Caetano Veloso e o “Grupo Baiano” na música popular brasileira, com a retomada da sua linha evolutiva a partir de João Gilberto. Tal retomada diz respeito à nova informação musical. Seria poder apropriar-se da estética nova, de origem estrangeira, sem prejuízos de se fazer música brasileira. Além do mais, seria poder disputar sentido no exterior (como a Bossa Nova o fez, influenciando outros gêneros musicais, e alcançando considerável sucesso comercial e reconhecimento crítico).
O III Festival da Música Popular, promovido pela TV Record, foi, para Campos, o palco onde se desenrolaram as primeiras escaramuças de uma nova batalha que travaram Caetano Veloso e Gilberto Gil, por uma “abertura” na música popular brasileira. Os dois compositores teriam sido os primeiros a pôr em xeque e em confronto o legado da Bossa Nova e a contribuição renovadora dos Beatles. A Tropicália[14] (que ainda não tinha nome definitivo de movimento) foi incorporando “novos dados informativos”: som universal, música pop, música popular moderna. Isso tudo a partir da chave oswaldiana da antropofagia. Era, portanto, nesse movimento que Augusto de Campos supunha um inconformismo altamente instigante e uma revolução nas leis da redundância tendencialmente vigentes para a música popular subsumida à indústria cultural.
Entendemos que situar a dialética redundância/inovação intrínseca a qualquer processo informacional no complexo da dialética sócio-histórica padronização/inovação cultural, em um sentido mais global, característica da cultura moderna mediada pela indústria cultural, situando ao mesmo tempo essa última nos grandes movimentos econômicos, políticos e culturais em curso no período estudado, permitiu uma compreensão mais completa e acurada de nosso objeto, do que se ele tivesse sido abordado sem o recurso à articulação ensaiada. Acreditamos, também, que essa perspectiva pode fornecer boas pistas teórico-metodológicas para pesquisas de outros objetos infocomunicacionais, entendidos, simultaneamente, em sua dimensão propriamente informacional e sócio-histórica.
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