De indicibus librorum e a arte de indicialização[1] em Conrad Gesner (Parte II[2]): ilustração e aplicação[3]
De indicibus librorum and the art of indicialization in Conrad Gesner: illustration and application (Part II)
De indicibus librorum e a arte de indicialização[1] em Conrad Gesner (Parte II[2]): ilustração e aplicação[3]
Em Questão, vol. 25, pp. 137-158, 2019
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Recepção: 13 Maio 2019
Aprovação: 25 Junho 2019
Resumo: Segunda parte do estudo sobre De indicibus librorum - seção constituinte das Pandectae (1548) de Conrad Gesner (1516-1565) - que trata da constituição, função e uso de índices. O objetivo do trabalho é ilustrar e demonstrar a aplicação da indicilização gesneriana. A partir do tratamento histórico-bibliográfico, o estudo tem como trajeto: 1) leitura e tradução integral de De indicibus librorum (para Parte II do estudo, especificamente a tradução do fólio 21r (d3) ao fólio 22v (d4)); 2) mapeamento de alguns dos índices presentes nas Pandectae (1548, 1549); 3) discussão e combinação da fonte latina com a revisão de literatura sobre o tema, com base em Wellisch (1981), Cochetti (1984a, 1984b) e Serrai (1990). A última parte de De indicibus librorum é dedicada aos índices de bibliotecas enquanto dispositivos de ordenação e controle inventarial. Gesner, além de mencionar índices que foram empregados para preparação de Bibliotheca Universalis (1545), versa, com base no método pellikano para elaboração de índices, sobre os critérios e a estrutura dessas ferramentas. Os índices presentes nas Pandectae (1548, 1549) são refinados em função de sua composição (conexão entre termos e números dos fólios) e delineamento lógico. Em sua totalidade (fólio 19v (d) ao fólio 22v (d4)), De indicibus librorum é fonte relevante para história, teoria, prática e arte da indicialização e, igualmente, para história da organização da informação e do conhecimento no Séc. XVI. Simultaneamente, o conjunto de argumentos apresentados por Gesner antecipa e comprova, com efeito, a configuração teórico-aplicada e técnico-indicial que veio a assumir a Bibliografia como disciplina.
Palavras-chave: Bibliografia. De indicibus librorum [f. 21r (d3) - 22v (d4)], Índice - História e Teoria, Indexação - História e Teoria, Organização do Conhecimento - Séc XVI.
Abstract: Second part of the study on De indicibus librorum - constituent section of the Pandectae (1548) by Conrad Gesner (1516-1565) - which deals with the constitution, function and use of indexes. The aim of the study is to illustrate and demonstrate the application of Gesnerian indicilization. Under the historical-bibliographic treatment, the study has as its course: 1) reading and integral translation of the De indicibus librorum (for Part II of the study, specifically the translation of folio 21r (d3) to folio 22v (d4)); 2) mapping of some of the indexes present in the Pandectae (1548, 1549); 3) discussion and combination of the Latin source with literature review on the subject, based on Wellisch (1981), Cochetti (1984a, 1984b) and Serrai (1990). The last part of De indicibus librorum is dedicated to library indexes as ordering devices and inventory control. Gesner, in addition to mentioning indexes that were used to prepare Bibliotheca Universalis (1545), analyzes, based on the Pellikan method for indexing, the criteria and structure of these tools. The indexes present in the Pandectae (1548, 1549) are refined according to their composition (connection between terms and numbers of the folios) and logical delineation. In its totality (folio 19 v (d) to folio 22 v (d4)), De indicibus librorum is a relevant source for history, theory, practice and the art of indicialization, and also for the history of the organization of information and knowledge in the 16th century. Simultaneously, the set of arguments presented by Gesner anticipate and prove, in effect, the theoretical-applied and technical-indexical configuration that came to assume Bibliography as a discipline.
Keywords: Bibliography. De indicibus librorum [f. 21r (d3) - 22v (d4)], Index - History and Theory, Indexing - History and Theory, Organization of Knowledge - 16th Century.
1 Introdução
“E eu conheço a sua dor, eu andei por esses lados
Não tem nada demais
Tem um milhão de coisas que eu não sei
E o que é que eu faço agora além de cantar?
Além de cantar” (Terno Rei, “Vento na Cara”).
A reflexão teórica e histórica sobre a produção e uso de índices perpassa, necessariamente, pela observação, em uma perspectiva temporal, dos ganchos que permitem a mediação entre os documentos e os sujeitos.
Conforme afirma Serrai (2018, p. 15, tradução nossa): “Os processos de comunicação que são estabelecidos entre usuários e os depósitos de Monumentos e Documentos não são viáveis, senão através das redes constituídas por perguntas pré-estabelecidas ou hipotéticas.” Para o bibliógrafo italiano, estas redes constituem justamente os índices.
O tema dos índices, a partir do pensamento de Conrad Gesner (1516-1565), foi inicialmente discutido por Wellisch (1981), Cochetti (1984a, 1984b) e Serrai (1990). Estes estudos procuraram, de forma pioneira e em níveis e abordagens distintas, discutir o texto De indicibus librorum - seção constituinte das Pandectae[4] (1548), que trata da constituição, função e uso de índices.
Com vistas a constituir um ângulo complementar aos referidos trabalhos e, ao mesmo tempo, tornar o texto gesneriano sobre os índices acessível ao contexto ibero-americano, nos ocupamos, na primeira parte deste estudo, da apresentação e discussão do contexto e dos princípios de De indicibus librorum.
Para Gesner (1548a), o índice é, por excelência, um recurso mediador na medida em que os índices servem para recordar as coisas.
No primeiro momento do estudo, concluímos que o polímata suíço, ao apresentar uma paisagem técnica e cultural sobre a constituição, função e uso dos índices, também formula críticas fundamentais em relação à indicialização que se aproximam de perspectivas contemporâneas da indexação, a exemplo da fragilidade que há na produção de índices sem a leitura prévia dos textos. Gesner, ao evidenciar a importância dos índices semânticos, foi um indexador de seu tempo (ARAUJO 2018a).
Já a segunda parte do estudo sobre De indicibus librorum - objeto do presente artigo - tem como objetivo ilustrar e demonstrar a aplicação da indicialização gesneriana.
A partir do tratamento histórico-bibliográfico, a segunda parte do estudo tem como trajeto: 1) leitura e tradução[5] integral de De indicibus librorum (para Parte II do estudo, especificamente a tradução do fólio[6] 21r[7] (d3)[8] ao fólio 22v[9] (d4)[10]); 2) mapeamento de alguns dos índices presentes nas Pandectae (1548, 1549); 3) discussão e combinação da fonte latina com a revisão de literatura sobre o tema, com base em Wellisch (1981), Cochetti (1984a,1984b) e Serrai (1990).
2 De indicibus librorum: proposições pellikanas
Na primeira parte deste estudo, destacamos a exploração que Gesner faz sobre uma extensa tipologia de índices, incluindo índices de filósofos, teólogos, gramáticos, filólogos e escritores, além de índices de livreiros e de tipógrafos (lembrando, obviamente, que Gesner interessa-se pelo universo editorial sendo ele mesmo editor).
A diversidade de tipos de índices evidencia a diferença destes em relação à sua composição, estrutura e uso. Esta heterogeneidade indicial também reflete o sentido polissêmico do termo índice (index) para Gesner.
Conforme afirma Wellisch (1981, p. 12-13, tradução nossa):
A palavra “index” é assim usada por Gesner para vários tipos de listagens bibliográficas: em primeiro lugar, para o que hoje chamamos de índices para trabalhos individuais, em segundo lugar, para listas comerciais de impressores e, terceiro, para catálogos de bibliotecas (que naturalmente ainda escritos a mão e existiam apenas um exemplar nas respectivas bibliotecas).
Ao final da primeira parte da seção de De indicibus librorum, Gesner menciona ampla lista de índices de obras, tipógrafos e bibliotecas que foram fontes fundamentais à elaboração de sua obra Bibliotheca Universalis (1545). Em relação às bibliotecas, destaca os índices:
Da Biblioteca do Vaticano ou Biblioteca Pontifícia de Roma: o mui extenso índice grego, mas não empreguei o índice latino.
Índice grego da Biblioteca dos Médici em Florença.
Índice grego e latino da Biblioteca [da Abadia] de San Salvatore em Bolonha.
Índices gregos e latinos das Bibliotecas de Bessarion[11], da Basílica de São João e São Paulo e de Santo Antônio em Veneza.
Índice da Biblioteca Grega de Augsburg.
Eu tive acesso aos muito prolíficos índices das bibliotecas privadas de D[esidério] Erasmo de Roterdã, de propícia memória, e de Konrad Peutinger de Augsburg e de outros em outras cidades. (GESNER, 1548a, f. 21r (d3) - f. [21v (d3)], tradução nossa).
Após elencar estes catálogos e índices de bibliotecas, Gesner apresenta e se apoia em um método para preparação de índices postulado Konrad Pellikan[12] (1478- 1556) (Fig. 1) e que foi aplicado na Biblioteca Pública de Zurique.
Trata-se de um método em que os livros, encontrados primeiramente em uma biblioteca, seriam dispostos em ordem de acordo com o tamanho em nichos, prateleiras ou púlpitos.
Gesner propõe uma ilustração do método pellikano que, em síntese, atenderia a necessidades estéticas e de conservação[13] expressadas pelo formato: precedem os grandes volumes que recebem a letra M (magni), seguidos pelos volumes menores, que recebem a letra P (parvi). As duas letras não acarretam em duas ordens de disposição física, pois os livros seriam dispostos sequencialmente em uma única ordem (COCHETTI, 1984b).
Tomando o método pellikano como seu paradigma, Gesner assim discorre:
Os livros se encontrariam então em uma biblioteca, alguns de formato maior, aos quais atribuiremos a letra M por uma razão didática (finjamos, portanto, que eles são parecidos em relação ao tamanho e aos títulos), outros de formato menor, os quais seriam identificados por meio da letra P. Após esses terem sido dispostos de acordo com o tamanho, os números da primeira classificação serão atribuídos a eles deste modo:
Catulo, M. I.
Tibulo, M. II.
Beda, M. III.
Aulo, M. IV.
Júlio, M. V.
Pólux, M. VI.
Catão, P. VII.
Galeno, P. VIII.
Hipócrates, P. IX.
Dionísio, P. X.
Musa, P. XI.
Essa será a primeira classificação dos livros, para os quais será preparado um índice alfabético e a cada um desses [livros] serão atribuídos esses números. Se outros livros não tiverem sido adicionados e a biblioteca não aumentou, ficamos satisfeitos com esses números. (GESNER, 1548a, f. [21v (d3)], tradução nossa).
As observações de Gesner parecem indicar relativa estaticidade das bibliotecas do Séc. XVI. Por outro lado, ele estava ciente de que a maioria das bibliotecas tenderiam a crescer, considerando, sobretudo, a progressiva ampliação da produção e da difusão do impresso. Consciente da dimensão orgânica das bibliotecas e que estas cresceriam em relação ao volume, Gesner recorre a uma dupla sequência numérica, de modo a tornar o sistema indicial maleável.
A primeira sequência numérica (lado esquerdo da Fig. 2), expressa por algarismos romanos que indicam a sucessão cronológica de entrada dos livros na biblioteca (primi ordinis), deveria permanecer inalterada e fixa em função de sua referência cronológica. No exemplo, o oitavo (VIII) item que chegou na biblioteca foi Galenus.
A segunda sequência numérica (lado direito da Fig. 2), expressa em algarismos arábicos, corresponde, por sua vez, à disposição / posição física dos livros nas prateleiras (secundi ordinis). Esta numeração deveria ser modificada, considerando que a chegada de novos volumes na biblioteca faz com que os itens se movimentem dentro das prateleiras, alterando, deste modo, o número da cadeia. No exemplo, o décimo primeiro (11) livro posicionado na prateleira é Galenus, que foi o oitavo (VIII) livro a entrar na biblioteca.
À luz do método pellikano, Gesner destaca a utilidade da preparação de um índice com os números correspondentes à ordem cronológica de chegada dos livros (index secundus), de um índice em ordem alfabética (index primus) e de um índice com os números correspondentes à posição física do livro (index tertius) (Fig. 3). Nestes índices, nenhum título deveria ser listado.
Os três índices são apresentados e estruturados nesta ordem:
Segundo índice
O segundo índice, porém, ou seja, aquele que resultaria da primeira e da segunda classificação (de modo que aqui ele precederia aquele que vem a seguir, mas no caso do terceiro índice se vê o contrário], seria assim.
I. Catulo, 1
II. Tibulo, 2
III. Beda, 3
IV. Aulo, 4
V. Júlio, 5
VI. Pólux, 6
VII. Catão, 10
VIII. Galeno, 11
IX. Hipócrates, 12
X. Dionísio, 13
XI. Musa, 14
XII. Avicena, 7
XIII. Serapião, 8
XIV. Rasis, 9
A partir desse mesmo índice, também seria visível quantos livros haveria na Biblioteca e quando e depois de quais outros eles foram adquiridos. Agora, para poder encontrar imediatamente o livro que desejas, um índice alfabético seria produzido deste modo, com os números da primeira classificação:
Primeiro índice
Avicena, XII.
Aulo, IV.
Beda, III.
Catulo, I.
Catão, VII.
Dionísio, X.
Galeno, VIII.
Hipócrates, IX.
Júlio, V.
Musa, XI.
Pólux, VI.
Rasis, XIV.
Serapião, XIII.
Tibulo, II.
Se buscas Hipócrates, ele possui o número IX na primeira classificação no índice alfabético. Procura o mesmo número na segunda classificação e encontrarás um outro número 12, o qual indicará para ti a segunda classificação, i.e., o próprio local do livro na biblioteca. Mas pretende que o [volume] de Hipócrates não está em seu lugar e se deseja saber que livro [pertence] àquele lugar vazio, onde estava o duodécimo livro. Tu procurarás então o número doze no terceiro índice e, com o número da primeira classificação atribuído a ele, irás até o segundo índice e descobrirás o nome do autor ausente. Será assim, portanto, o terceiro índice, compilado a partir dos números da segunda e da primeira classificação, de modo que os [da primeira classificação] vêm depois e os [da segunda] antes, ao contrário do [que se vê no] segundo índice:
Terceiro índice
1 I.
2 II.
3 III.
4 IV.
5 V.
6 VI.
7 XII.
8 XIII.
9 XIV.
10 VII.
11 VIII.
12 IX.
13 X.
14 XI.
Aqui vês o número nove [IX] atribuído ao doze [12], o qual deves buscar no segundo índice e encontrarás o nome de Hipócrates. A partir desse terceiro índice, também é possível ver, de modo semelhante, quantos livros haveria na Biblioteca e verificar se ela se encontra completa. Ele será compilado a partir da transcrição do números retirados dos livros já devidamente arranjados. De fato será possível [utilizar] essas formas similares de numeração, porque os números teriam cores diferentes em cada uma desses sistemas de classificação, por exemplo, a primeira seria pintada com tinta preta e a segunda com tinta vermelha. (GESNER, 1548a, f. 22r (d4), tradução nossa).
Gesner evidencia o problema de se registrar livros adicionais uma vez que estes deveriam: 1) ser colocados nas prateleiras, na sequência adequada de acordo com o seu tamanho; 2) receber novos números, mas em tinta vermelha, constituindo então o ordo secundus inserido no index secundus.
Ao discorrer sobre as três tipologias de índices (index secundus, index primus, index tertius), Gesner demonstra o rigor e a conexão lógica que há entre estas três ferramentas.
Gesner aconselha não mudar imediatamente a posição e os números da segunda classificação (referente à posição física dos livros nas prateleiras, ou seja, secundi ordinis), já que os números da primeira classificação sempre permanecerão os mesmos. Somente quando novos livros fossem adquiridos, até que fosse possível ordenar um volume maior e substancial de livros, então todos seus números seriam alterados de uma só vez (GESNER, 1548a).
O polímata suíço argumenta que a lógica indicial seria melhor compreendida por meio da prática e da aplicação, destacando que sua obra Bibliotheca Universalis (1545) seria utilizada como uma espécie de índice alfabético e que, os livros que não foram acrescidos a ela, poderiam ser inseridos em suas margens.
Ao final de De indicibus librorum, Gesner enfatiza que os índices são necessários para se conservar a biblioteca, para arranjá-la de forma ordenada e adequada e para encontrar os livros. Tais proposições são carregadas de uma certa “obviedade” e suposta “simplicidade” quando se debate o papel dos índices na contemporaneidade. Por outro lado, do ponto de vista histórico-informacional, é inegável que as proposições gesnerianas acerca da indicialização possuem em seu núcleo elementos fundantes da indexação enquanto prática, técnica e teoria.
3 Ilustração e aplicação indicial nas Pandectae (1548, 1549)
Os índices presentes nas Pandectae gesnerianas (1548, 1549) são refinados em função de sua composição (conexão entre termos e números dos fólios) e delineamento lógico.
O principal índice das Pandectae (1548, 1549), impresso como a última parte das Partitiones theologicae (1549), demonstra este refinamento.
Alfredo Serrai (1990, p. 140, tradução nossa) sintetiza a estrutura deste índice, intitulado Index communis in libros XX:
O índice alfabético geral inserido no final das Pandectae Theologicae - INDEX COMMVNIS IN LIBROS XX. PANDECTARUM CONRAD GESNERI. a.b.c.d. CVIVSQVE FOLII Primam, secundam, tertiam, aut quartam columnam significant. t. litera librum de Theologia - que em 3 colunas mostra cerca de 4500 descritores, com a indicação do fólio, e de uma das 4 colunas (2 por página) contidas nela, além da adição de um t., para Pandectae Theologicae, enumera não só os Loci[14] refletidos nos títulos das Partes, dos Segmentos e dos Parágrafos, mas também grupos de assuntos ou assuntos individuais identificados entre os mais significativos.
Index communis in libros XX representa o índice alfabético de loci communes dos vinte livros/partições/classes que compõem as Pandectae[15] (1548, 1549).
É um índice não de todos os loci, mas exclusivamente dos mais gerais, que correspondem aproximadamente aos títulos nos quais se articulam os vinte livros individuais das Pandectae (1548, 1549). Em outros termos, Index communis in libros XX arrola tópicos universais e não tópicos particulares.
De acordo com Serrai (1990, p. 201, tradução nossa):
O livro XX foi distribuído como um todo em 10641 Loci. O total de Loci contidos em todos os 20 Livros das Pandectae é, portanto, de 40119. Tendo em conta que o INDEX COMMVNIS IN LIBROS XX. PANDECTARUM, que conclui o volume 2, lista aproximadamente 4500 entradas, finalmente temos uma ideia exata de quais seriam as dimensões do 3 Tomo da Bibliotheca Universalis, aquele inicialmente projetado como um Índice por Loci communes, e que, como sabemos, nunca foi publicado.
No Index communis in libros XX (Fig. 4) consta, junto às entradas arranjadas alfabeticamente, tanto números quanto letras.
A codificação empregada no índice associa-se ao número da página e a letra associa-se à coluna naquela página:
· a = primeira coluna do fólio (reto)
· b = segunda coluna do fólio (reto)
· c = terceira coluna, que corresponde à primeira coluna do fólio (verso)
· d = quarta coluna, que corresponde à segunda coluna do fólio (verso).
A letra “t” está relacionada a Partitiones theologicae, isto é, o livro específico de Teologia (Liber XXI). Os termos apresentados no índice são descritos na forma de substantivos, como Agricultura (Agricultura), Africa (África) etc. Cada termo está acompanhado pela paginação do fólio em que figuram as sentenças associadas aos termos.
Neste mesmo índice (Fig. 5) também observamos a lista de loci (termos/assuntos), tais como: anima (alma), amicitia (amizade) (termo que aparece em mais de uma parte das Pandectae (1548, 1549): 297a, 270a, 72ct, 53bt), Antuuerpia (Antuérpia), aqua (água). O termo aqua é desdobrado em aqua mystica (água mística), aqua spiritualis (água espiritual) etc.
Analisemos agora alguns exemplos de aplicação do Index communis in libros XX, a partir da relação de seus loci (termos/assuntos) com a primeira parte das Pandectae (1548b).
Primeiramente, vejamos um trecho do elenco de loci communes e loci particulares vinculados ao termo arithmetica (aritmética) que estão presentes no Index communis in libros XX (GESNER, 1549, f. [161r]):
Arithmetica 73d [loci communes]
Arithmetica Graecorum 74d [loci particulares]
Arithmetica Speculativa 75a [loci particulares]
Arithmetica Hebraica 75b [loci particulares]
Arithmetica practica 75c [loci particulares]
Arithmetica cossica 75a [loci particulares]
Neste exemplo, o termo/assunto arithmetica (aritmética) é sucedido por sua subdivisão temática. Como afirmamos, a paginação do fólio (em número arábico) junto aos termos refere-se aos fólios das Pandectae (1548b) onde, por sua vez, estão presentes os títulos coligados aos termos/assuntos dispostos no Index communis in libros XX.
Na prática, os títulos sobre Arithmetica aparecem em 73d, que corresponde ao verso do fólio 73 das Pandectae (1548b), segunda coluna (Fig. 6):
Títulos sobre Arithmetica Graecorum aparecem em 74d, que corresponde ao verso do fólio 74 das Pandectae (1548b), segunda coluna (Fig. 7):
Títulos sobre Arithmetica Speculativa aparecem em 75a e títulos sobre Arithmetica cossica também aparecem em 75a, que correspondem ao reto do fólio 75 das Pandectae (1548b), primeira coluna (Fig. 8).
Wellisch (1981) destaca que as entradas de Index communis in libros XX estão dispostas em ordem alfabética estrita, ou seja, todas as letras de uma palavra são levadas em consideração no sequenciamento dos termos - prática incomum no Séc. XVI. O mesmo assunto tratado por diferentes livros e sob vários aspectos é reunido conjuntamente no Index communis, de acordo com o princípio estabelecido por Gesner no prefácio das Pandectae (1548b). Um bom exemplo é a matriz de entradas para o próprio assunto "índice":
Indices bibliothecarum 21b
Indices celebriores 21ab
Indices in authores 152b
Indices in biblia 9dt
Indices in epistola & evangelia 10at
Indices Graeci 37a
Indices typographorum 21b
Indices ut siunt 19d, 21c
Embora identifiquemos uma riqueza lógica no encadeamento do Index communis in libros XX presente nas Partitiones theologicae (1549) (Liber XXI), encontramos ainda maior refinamento de entradas no índice presente em De Iurisprudentia indices tres (Liber XIX) das Pandectae (1548b) - o único livro que possui seu próprio índice detalhado.
O índice de Liber XIX, intitulado Index III. Copiosissimus in utriusque simul Iuris Titulos, uno literarum ordine, nunc primum concinnatus. Prior numerus librum significat: posterior Titulum vel Rubricam (Fig. 9) abrange o intervalo do fólio 348v até o fólio 374v e contém loci para o direito civil e canônico "em uma única sequência alfabética", como o próprio título do índice anuncia.
Este índice especifico para um único ramo de conhecimento (com mais entradas do que o Index communis in libros XX - voltado para as Pandectae como um todo) nos dá uma ideia de como teria sido o índice completo que Gesner planejou para os vinte livros das Pandectae (1548, 1549), mas que não pôde concluir e publicar (WELLISCH, 1981).
Os 3651 loci, ordenados alfabeticamente, trazem as referências, por meio das siglas mencionadas, de 14 obras representativas do patrimônio consultivo fundamental para as disciplinas jurídicas. Para Serrai (1990, p. 190, tradução nossa),
[...] tal trabalho de indicialização e de ordenação, que Gesner havia empreendido sem ser especialista em direito, mas confiando somente em sua intuição e em sua experiência bibliográfica e documental, apresenta um esquema e exibe uma estrutura que se assemelha aos assuntos de hoje, ou bases de dados, das máximas legais e jurisprudenciais da Administração da justiça.
Os índices temáticos formulados por Gesner, no âmbito das Pandectae (1548, 1549), representam referências temáticas das obras arroladas em Bibliotheca Universalis (1545).
Para além das Pandectae (1548, 1549), Gesner também emprega, de forma sistemática, índices em outras obras de sua autoria, como aquelas de Botânica, Farmacologia e Linguística.
4 A arte da indicilização em Conrad Gesner
4 A arte da indicilização em Conrad Gesner
Na segunda parte de De indicibus librorum, Gesner, além de mencionar índices que foram empregados para preparação de Bibliotheca Universalis (1545), versa, alicerçado no método pellikano para elaboração de índices, sobre os critérios e a estrutura dessas ferramentas.
O sistema evocado por Gesner, com base em Pellikan, pode parecer complexo e pouco econômico, mas está, de fato, adequado à exigência de rápida e segura verificação inventarial que Gesner tentava garantir (COCHETTI, 1984b).
Já as instruções para a ordenação e a disposição física dos livros nas prateleiras, associadas à proposição de três índices coligados (index secundus, index primus, index tertius), também revelam-se, de certo modo, complexas.
Entretanto, conforme atesta Cochetti (1984b, p. 73, tradução nossa):
Através da explicação do método de localização, Gessner ilustra as funções de encontrar, identificar e controlar três índices diferentes, mutuamente conectados uns aos outros. O primeiro índice, ordenado alfabeticamente pelo nome do autor, permite a recuperação das obras de propriedade; o segundo, ordenado por algarismos romanos, serve como registro de entrada cronológica; finalmente, o terceiro, ordenado por algarismos arábicos, possibilita o controle topográfico.
Tais chaves configuram justamente técnicas e práticas biblioteconômicas modernas e contemporâneas para a multidimensionalidade de acesso à informação.
O fato de Gesner não ser bibliotecário e ainda sim demostrar amplo domínio das técnicas de indicialização é surpreendente. Lembremos que tal domínio deve-se ao fato de Gesner conhecer, em profundidade, distintas tipologias de índices (incluindo aqueles de bibliotecas), além de ser indexador e editor ao mesmo tempo, como vimos.
Esta marca bibliográfica está presente tanto na faceta de Gesner enquanto elaborador de índices como o de utilizador de índices, entendendo ele próprio a importância do instrumento indicial para mediação e recuperação de informações.
Para Alfredo Serrai, a força de De Indicibus Librorum está na discussão que o texto promove sobre os índices, de acordo com estruturas teóricas unitárias que,
infelizmente, nos séculos seguintes, será artificialmente fragmentada nas regiões aparentemente separadas e distintas de indexação de livros, organização bibliográfica e catalogação de bibliotecas. Enquanto a função representativa e, portanto, consultiva, de um índice nos confrontos de um texto, ou de um livro, ou de um conjunto de volumes, vem claramente percebida por Gesner como uma relação interpretativa que, destinado para fins de citação e de referência, se exprime de forma constante e homogênea, independentemente do objeto ou dos campos de aplicação sobre os quais se exercita, as especializações profissionais obscureceram essa visão unitária, dificultando a compreensão e a natureza e a lógica operacional. (SERRAI, 1990, p. 146, tradução nossa).
Na mediação indicial residem não somente as recuperações e localizações efetivas, mas também as possíveis inadequações que acompanham os processos de ordem documental.
5 Considerações
Os índices gesnerianos, apesar de elaborados em uma época na qual a indicialização enquanto método estivesse em seus primeiros passos, combinam erudição com exaustividade, precisão e ordenação - qualidades nem sempre alcançadas até mesmo por índices modernos.
De indicibus librorum, em sua totalidade (fólio 19v (d) ao fólio 22v (d4)) comprova a propriedade dos índices enquanto fórmulas consultivas que permitem o alcance semântico e textual das obras, uma vez que os índices
[...] constituem as redes e os ganchos de acesso aos materiais textuais e semânticos que, devido à sua consistência quantitativa e à sua elevada pluridimensionalidade lógica, seriam, de outra forma, incompreensíveis e inalcançáveis se apresentados em sua totalidade. Ainda que das relações indexais se obtenha uma forte redução textual e uma perda informativa considerável no que diz respeito aos monumentos envolvidos, seu uso [dos índices] e intervenção são uma condição necessária, de fato, e imprescindível quando se deseja fornecer evidências consultáveis sobre assunto da comunicação registrada. (SERRAI, 2010, p. 14-15, tradução nossa).
Ao se estabelecer a medição de documentos por meio de índices, estamos diante de processos documentários e semânticos que se desenvolvem no núcleo da Bibliografia.
Neste horizonte e na relação entre o texto De indicibus librorum e a indicialização confirma-se a premissa de que
As duas almas da Bibliografia são, respectivamente, aquela técnico-indicial, e aquela cultural repertorialística: a primeira encarregada de desenvolver os elementos e procedimentos necessários para a realização dos processos de indexação e, portanto, responsável pela construção das estruturas e redes que hospedam, organizam e coordenam os índices como resultados da própria indexação; a segunda, delegada a efetuar a seleção dos monumentos e documentos que melhor expressam e representam o estado e os desenvolvimentos do patrimônio científico, cognitivo e literário. (SERRAI, 2010, p.18, grifo nosso, tradução nossa).
De indicibus librorum é fonte relevante para história, teoria, prática e arte da indicialização e, igualmente, para história da organização da informação e do conhecimento no Séc. XVI.
Paralelamente, o conjunto de argumentos apresentados por Gesner antecipa e comprova, com efeito, a configuração teórico-aplicada e técnico-indicial que veio a assumir a Bibliografia como disciplina.
Gratidão
Ao João Carlos e à Amelinha que, por mais uma vez, durante nossas pequenas férias, suportaram mais uma ausência para eu redigir o presente artigo.
Referencias
ARAUJO, Andre Vieira de Freitas. De indicibus librorum e a arte da indicialização em Conrad Gesner (Parte I): contexto e princípios. Informação & Informação, [S.l.], v. 23, n. 2, p. 14-37, set. 2018a. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/informacao/article/view/34495. Acesso em: 17 fev. 2019.
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Notas
Autor notes
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