Recepção: 30 Abril 2019
Aprovação: 18 Junho 2019
DOI: https://doi.org/10.19132/1808-5245250.159-175
Financiamento
Fonte: Financiamento
Beneficiário: Gustavo Silva Saldanha
Resumo: A pesquisa propõe uma análise do discurso biobibliográfico em Gabriel Peignot a partir do Dictionnaire Raisonné de Bibliologie, publicado em 1802. O foco do objeto de investigação está na discussão sobre a identificação e a descrição das fontes de informação biobibliográficas no corpus peignotiano. A reflexão teórica, sustentada pela epistemologia histórica e pela abordagem filosófico-linguística, via a teoria pragmática, se constrói a partir de três marcos discursivos, a saber: os verbetes biobibliográficos e a intencionalidade peignotiana, a relação indivíduo e produção de texto/documento em Paul Otlet e, por fim, a reflexão crítica de Roland Barthes acerca da morte do autor como forma tardia de desenvolvimento da Modernidade. O objetivo principal é desenvolver a análise, apoiados em um contexto epistemológico-histórico, do papel da biobibliografia na Modernidade. A discussão mostra que a intenção em Gabriel Peignot de relacionar biografias e os feitos de cada sujeito no contexto bibliológico é profundamente marcada por uma influência enciclopédica e, ao mesmo tempo, por uma concepção sistemática do conhecimento empírico moderno, advindo do século dezoito.
Palavras-chave: Biobibliografia, Discurso Biobibliográfico, Gabriel Peignot, Modernidade, Nome Próprio.
Abstract: The research proposes to analyse of the biobibliographic discourse in Gabriel Peignot from the Dictionnaire raisonné de Bibliologie, published in 1802. The focus of the research object is on the discussion about identification and description of biobibliographic information sources in the Peignotian corpus. The theoretical reflection is constructed from three discursive frameworks, namely the biobibliographic writings and Peignotian intentionality, the individual relation and production of text / document in Paul Otlet and the critical reflection of Roland Barthes on the author's death as a late form of modernity. The main objective is to develop the analysis, supported by a historical-epistemological context, of the role of biobibliography in Modernity. The discussion shows that Gabriel Peignot's intention to relate biographies and the deeds of each subject in the bibliological context is deeply marked by an encyclopedic influence and at the same time marked by the systematic conception of modern empirical knowledge, coming from the eighteenth century.
Keywords: Biobibliography, Biobibliographic Discourse, Gabriel Peignot, Modernity, Own name.
1 Na via bibliológica peignotiana, esquina com a biobibliografia
Entre os muitos desdobramentos discursivos que nos promove a questão bibliográfica, encontramos o segmento biobibliográfico, ou, objetivamente, a biobibliografia. Dentre as múltiplas trajetórias histórico-epistemológicas fundantes do campo da Ciência da Informação, temos a via francófona que nos remete a nomes como Paul Otlet e Gabriel Peignot, influenciador do primeiro. Reconhecendo o protagonismo destes dois ícones do movimento que hoje indexamos “da informação”, buscamos o diálogo de suas obras com nossa reflexão biobibliográfica. Em Peignot (1802a,b) queremos desbravar um universo discursivo biobibliográfico, manifesto em centenas de verbetes dedicados a nomes próprios pessoais em seu Dictionnaire Raisonné de bibliologie. Em Otlet (1934) buscamos uma teoria bibliográfica para a documentação do sujeito na forma autor, repercutindo o pensamento peignotiano. A análise da proposta, balizada pela filosofia da linguagem de Roland Barthes, pretende entender o discurso biobibliográfico de Gabriel Peignot, em seu lugar e em seu tempo. Trata-se de uma pesquisa teórica sustentada, por um lado, pela epistemologia histórica, interessada em observar como a teorização de um dado contexto se estabelece na historicidade que o concebe e o transforma; por outro lado, as tensões históricas em suas singularidades são discutidas à luz de uma abordagem filosófico linguística, pela via da abordagem pragmática, orientada para as relações sociais constituídas pela linguagem como ação, como modo e como ferramenta de intervenção da realidade.
A biobibliografia é definida, na literatura científica contemporânea, como: “um estudo da vida e da obra de um autor” (CUNHA; CAVALCANTI, 2008, p.56). A exemplificação deste conceito pode ser verificada em um número considerável de fontes de informação, como as biografias, os dicionários biográficos, os diários, enciclopédias, diretórios, Who’s who, portais institucionais, canais profissionais e redes sociais online.
A definição, fundamentada nos estudos informacionais, nos leva a crer em uma materialidade discursiva que enuncia a pergunta pelo “outro”. Esta pergunta seria comumente viabilizada pelo nome próprio, no estilo “Quem é Gabriel Peignot?”. O nome próprio como referente à um sujeito. Na modernidade digital podemos observar um cenário híbrido. Ora temos interfaces amigáveis aos nomes próprios, como é o caso da Plataforma de Currículos Lattes, Facebook e a Wikipédia (sendo aqui considerados os verbetes biográficos), ora temos interfaces que trabalham com códigos identificadores (IDs), como o OrcID, o Virtual International Authority File ID (VIAF ID).
Apesar de encontrarmos variações na forma de entrada, nome próprio ou códigos, é fato que flui por entre estes dispositivos um discurso biobibliográfico estruturado na linguagem. Ou seja, é importante notar que indiferentemente da forma como se dá o cabeçalho de entrada (Nomes ou IDs) temos uma discursividade biobibliográfica, em que, através da linguagem, identificamos, descrevemos, representamos, organizamos e classificamos informações acerca de indivíduos/sujeitos. Notório que esta prática discursiva articula questões tradicionalmente tratadas pela filosofia da linguagem, como é o caso da referência e do conhecer por meio da linguagem, questões fundamentais no Crátilo platônico. (PLATÃO, 1963)
No decurso da pesquisa temos nos deparado com vários artefatos discursivos que nos levam a crer em uma longa história da biobibliografia enquanto forma de organização, representação e classificação, tendo o nome próprio como entrada principal para o sistema de informação. Calímaco (310 a.c. – 240 a.c.) foi um pioneiro da compilação bibliográfica na Biblioteca de Alexandria, seu catálogo foi denominado como biobibliographical (biobibliográfico) por Francis J. Witty (1958), por repertoriar o acervo pelo nome próprio dos autores. A biobibliografia também teve importante papel histórico na Segunda Sofística, a obra “Vida dos Sofistas” de Philostratus, um compêndio biográfico de sofistas, é obra central nas discussões sobre o tema. Estes são alguns exemplos que nos permitem pensar uma discursividade biobibliográfica como componente importante para a organização e representação do conhecimento.
O Dictionnaire de Peignot (1802) tem em sua estrutura um conjunto de verbetes cuja entrada é um nome próprio pessoal. A materialidade metadocumental desta obra nos permite uma concepção dialética, entre estruturada e estruturante, da objetividade e subjetividade, conforme os ensinamentos sociológicos de Berger e Luckmann (2014) bibliológica manifestada por Peignot (1802a,b). Do ponto de vista do lugar de fala do discurso peignotiano, ao identificar e sintetizar a produção europeia biobibliográfica nos séculos que edificam a noção de “modernidade”, ou seja, ao reunir, apresentar e descrever registros biobibliográficos entre os séculos XV e XVIII, centralmente, a obra Oitocentista de Peignot (1802a,b) nos permite afirmar a delimitação do próprio modo como não apenas concebemos as noções de sujeito e de autor, como a maneira pela qual a própria ideia de Modernidade (SALDANHA, 2016a) é tecida, dada a relevância deste elemento como parte dos construtos fundacionais do mundo moderno. Em outros termos, a Modernidade se confunde, necessariamente, com a formação da noção de sujeito e sua individualização, formulada como estrutural e estruturante. Este sujeito, por sua vez, se confunde com sua materialidade metadocumental: ele se faz imperativo no mundo social desde que o “ser” que o manifesta seja (também) efetivado por um discurso bibliográfico (livros, cartas, ofícios), reafirmado pelos construtos biobibliográficos.
O jogo estrutural se manifesta em conhecimento e reconhecimento dos sujeitos ali descritos, e pela objetividade das descrições bibliográficas dos sujeitos, dentro de uma ordem discursiva (FOUCAULT, 2014). Neste trabalho, nos interessa apresentar, de forma panorâmica, este discurso biobibliográfico, discurso acerca dos indivíduos bibliograficamente dispostos, de Peignot (1802a,b), suas intenções, sua ordem e sua forma. A discussão avança em direção ao documentalista belga, Otlet (1934) fala sobre a relação entre o indivíduo e a formulação/produção do livro/documento. Por fim, dirigimos o marco teórico-filosófico para a crítica literária de Barthes.
A discussão final nos mostra como a relação indivíduo e obra é valorizada em fontes de informação biobibliográficas. Uma análise do discurso biobibliográfico peignotiano, em suas intenções enciclopédicas, em oposição às fontes biobibliográficas utilizadas atualmente, principalmente para fins métricos, expõe uma mudança na aplicação e apropriação deste tipo de fonte.
2 A biobibliografia em Peignot
Uma análise acerca da biobibliografia, como forma de representação, organização e controle da produção bibliográfica, sugere, para nós, uma forma própria de discurso. O discurso biobibliográfico estaria manifesto em diversas fontes de informação em que se percebe o imperativo do nome próprio como ponto de acesso ao conhecimento, uma forma de organização, ou no interior da representação descritiva documentária em que se pese os modelos de descrição de autoridades/ responsabilidade (nome próprio) (SILVEIRA; SALDANHA, 2015). Encarando a biobibliografia como forma discursiva, voltamos nosso olhar para o discurso biobibliográfico manifesto em Gabriel Peignot (1802a,b) e, posteriormente, para as ideias de “subjetividade” do texto marcada no pensamento de Paul Otlet (1934). A relação biobibliografia em Peignot e autoria em Otlet nos oferece um panorama fundante acerca do discurso biobibliográfico, ou seja, discurso acerca do outro, discursar sobre os sujeitos, o discurso que reúne determinados nomes próprios sob si, os descreve e os organiza. A relação entre o discurso peignotiano e o enunciado acerca do sujeito do texto otletiano, ao nosso ver, criam um acontecimento discursivo acerca da biobibliografia.
No Dictionnaire raisonné de bibliologie, Gabriel Peignot, além de descrever vários conceitos do campo bibliológico, repertoria um grande número de nomes próprios, figuras ilustres de seu tempo e pessoas importantes para o campo da bibliologia, segundo o francês. Estes nomes aparecem em lista e ordenados alfabeticamente pelo sobrenome de cada indivíduo, forma de organização herdada do movimento enciclopedista. Otlet (1934, p.139) chama atenção para o uso terminológico indistinto de enciclopédia e dicionário naquela época. No início do Dicionário, Peignot cita como um dos focos:
[...] das notas históricas detalhadas sobre as principais bibliotecas antigas e modernas; nas diferentes seitas filosóficas; nas impressoras mais famosas, com indicação das melhores edições de suas prensas, e dos bibliógrafos, com a lista de suas obras; (PEIGNOT, 1802a, página não numerada, grifo nosso, tradução nossa).[1]
O primeiro indicativo de uma abordagem biobibliográfica está na manifestação de categorias de sujeitos como temática de alguns dos verbetes manifestados pelo dicionário, são elas as categorias “impressores” e “bibliógrafos”. Portanto, podemos entender que um dos objetivos de Peignot (1802a) é registrar no discurso bibliológico os indivíduos subjetivados por estas categorias, no entanto, não o faz em sua totalidade (reconhecemos que seria impossível tal registro em sua época, e temos dúvida se é possível na contemporaneidade, mesmo com todo o aparato tecnológico informacional), o bibliógrafo francês delimita seu campo de registro a partir de um critério gradativo, qualitativo. Peignot (1802a) diz plus célèbres (mais célebres) e, com a afirmação, manifestada objetivamente sua ordem discursiva (FOUCAULT, 2014), ou seja, registrar, sim, o discurso biobibliográfico, entretanto a partir daqueles considerados “célebres”. Uma questão, também ela discursiva, se apresentaria: qual as condições necessárias para tal universo de celebridades?
Em seu discurso preliminar, Peignot (1802a) sugere as biografias de bibliógrafos como forma complementar de conhecer a bibliografia:
Os primeiros a consultar são estes: Bibliografia, Bibliografo e Bibliotecário; eles podem servir como uma introdução ao trabalho; mas devemos adicionar a biografia dos bibliógrafos mais conhecido […] (PEIGNOT, 1802, p. X, tradução nossa)[2]
Nesta interação entre verbetes temáticos e biográficos, proposta por Peignot (1802a), o objetivo é conhecer a bibliologia, macrodiscurso epistemológico este, adotado diretamente por Otlet (1934), orientado para a demarcação de um vasto campo de reflexão fundamentado nas relações de mediação bibliográfica estabelecida por artefatos socialmente tecidos por cada geração, considerados parte da produção do conhecimento (SALDANHA, 2016, 2015). Aqui, no plano epistemológico, a intenção não é conhecer a vida do sujeito, não é este um fim, isto na verdade é um meio. Conhecer a trajetória do sujeito é um meio de conhecer a temática na qual este se classifica. Mais adiante, ainda no discurso preliminar, Peignot (1802a) apresenta uma lista alfabética, classificada por séculos, dos principais bibliógrafos e que possuem um verbete em especial, como se vê adiante na Figura 1.
Na parte de artigos omissos temos 5 nomes próprios de pessoas de 8 verbetes no total. No Tomo I temos 162 nomes próprios de pessoas e 122 verbetes de outras espécies, totalizando 284 verbetes. No Tomo II temos 109 nomes próprios de pessoa e 76 verbetes de outras espécies, em um total de 185 verbetes. O quadro quantitativo, na proporção categorial dos verbetes do dicionário (abordando sujeitos, obras, técnicas, suportes documentais), representa um dos elementos mais abordados na vasta obra peignotiana em suas mais de mil páginas. O fato comprova a relevância do discurso biobibliográfico em Gabriel Peignot (1802a,b) em seu espaço-tempo.
Podemos reconhecer, pelo trabalho peignotiano no solo biobibliográfico, diferentes modos de compreensão da história da biobibliografia. Diferentes são os modos de invocar o domínio dentro do Dictionnaire. Identificamos o uso das expressões Biographie des bibliografes (Biografia dos bibliógrafos), Carte biographique (Mapa biográfico), Notices biographiques (Avisos biográficos), Biographie des savants (Biografia dos cientistas), Mémoires (Memórias), Mémoires biographiques (Memórias biográficas) e Biographies chronologiques (Biografias cronológicas). Desde o início da obra, Peignot (1802a) indica como um dos objetivos principais de seu dicionário reunir fontes de informação sobre personagens do mundo bibliológico. A Figura 1 apresenta a estrutura inicial da exposição dos nomes listados na obra peignotiana referentes aos séculos XV e XVI.
O perfil das descrições também revela um conjunto de indicadores da construção do conhecimento de uma dada historicidade. Estamos em um território de impressores, bibliotecários, bibliográficos, eruditos, sujeitos de um dado domínio que, reunidos, viriam compor o campo científico, no ponto de vista peignotiano, reproduzindo em Otlet (1934), chamado Bibliologia. Seus feitos (obras, atuações, distinções) são repertoriadas por Peignot (1802a,b) ao longo de cada verbete.
Destacando o nome próprio em sua materialidade e sua prioridade informacional dentro dos sistemas bibliográficos, Peignot (1802a,b) afirma seu papel preponderante como ferramenta de busca da informação – ou seja, o nome como entrada principal para recuperação dentro de universos de registros, como indicado em nota reproduzida na Figura 2.
Além da relação entre nome próprio e recuperação da informação, nós encontramos no pensamento de Gabriel Peignot (1802a,b) o lugar das fontes biográficas no universo do conhecimento dentro dos sistemas bibliográficos. No pensamento peignotiano, os dados sobre a vida e a obra dos sujeitos ocupam lugar de destaque na representação do conhecimento, uma classe geral, o que é demonstrado em diferentes exposições de sistemas constituídos antes do século XIX, ou seja, desenvolvidos ao longo da própria construção da Modernidade.
Dos sistemas bibliográficos para a demonstração geral da ciência bibliológica segundo Peignot (1802a,b), podemos reconhecer a prioridade co-constituída das fontes biográficas em seu pensamento. O esquema estrutural desta ciência é representado conforme a Figura 3.
No quadro sinóptico que esquematiza a Bibliologia segundo o bibliógrafo, essa prioridade da biografia junto de outras macroclasses pode ser observada de modo objetivo.
Este quadro retrata uma síntese de um trabalho sinótico mais detalhado, o qual eu tentei realizar sobre a Bibliologia. Eu defini essa ciência em 10 grandes classes que apresentam de modo esquemático o conjunto metódico de suas numerosas partes. Essas 10 classes são seguidas de quarentas outras sobre a bibliotática ou classificação de livros, como sobre a biografia cronológica dos cientístas, classificada pela ordem dos domínios sobre os quais eles trabalharam. Eu terminei essa coleção para a genealogia dos célebres impressores (PEIGNOT, 1802, p. 473, grifo nosso, tradução nossa).[3]
Essas leituras do pensamento biobibliográfico em Gabriel Peignot (1802a,b) demonstram a relevância de seu repertório em seu espaço-tempo, bem como sua fundamentação da e para a Modernidade, permitindo a compreensão do discurso das biobibliografias no desenvolvimento deste período histórico. Essa compreensão nos leva às influências imediatas de Peignot (1802a,b) e dos modos de interpretação do sujeito-autor e de suas obras no século XX.
3 O autor e a produção do livro em Paul Otlet: desdobramentos peignotianos
Paul Otlet (1934), em seu Traité de Documentation, aborda as funções e as operações que são necessárias para a produção de um livro ou documento. Uma das constatações de Otlet (1934) é a divisão do trabalho, vivenciada a partir do séclo XIX, para a concepção do livro. A proposição otletiana revela um acontecimento, uma ruptura histórica no modo de produzir o livro/documento, a divisão do trabalho na produção bibliográfica, demonstrando que a partir do Oitocentos a fabricação do livro passou a ser realizada por várias pessoas, cada uma com funções específicas. Escrever, resumir, editar e imprimir são algumas operações, que, outrora, poderiam ser desempenhadas por apenas uma pessoa. Estas atividades que Otlet (1934, p. 248) chama “funções da documentação” começam pela “feitura intelectual” que seria a redação ou composição do livro. Estas operações consistiriam num ciclo de produção do livro/documento.
Para Otlet (1934) um autor é também um produtor, ele que é o responsável pela escritura é dele que advém o escrito: L’œuvre est dans l’auteur d’abord (OTLET, 1934, p. 51). Um produtor que tem sua gradação, ou seja, pode ser classificado não pelo conteúdo de seus escritos, mas pela sua “personalidade de escrever”.
Através de gradações infinitas, surge do homem que simplesmente anota para ele certos fatos ao escritor de ocasião, ao qual se dedica em princípio à função da escrita, ao gênio da escrita. (OTLET, 1934, p. 250, tradução nossa).[4]
Dando continuidade à sua explanação acerca dos autores e suas obras, Otlet (1934) também diferencia duas “espécies” distintas de autores L’homme de lettres e L’homme de science. O homem das letras de Otlet está atrelado à noção de um escritor de literatura; já o homem de ciências, como o nome sugere, ao cientista-escritor. Aquele representa a subjetividade do conhecimento, a expressão pessoal sobre um fato ocorrido, procura ser especialista da expressão literária e do estilo, “ele dirige a sinfonia de seu universo mental na evolução biológica” (OTLET, 1934, p. 250, tradução nossa), podendo, ainda, segundo o belga documentalista, serem classificados de primeira, segunda, terceira ou décima categoria. Já o “das ciências”, segundo Otlet (1934), possui alma de pesquisador, anda a vida inteira em busca de respostas verdadeiras para a problemática que lhe persegue, parece-nos que este é mais objetivo em seus escritos que aquele por ter compromisso com a solução verdadeira de suas questões.
Lacroix (1932), também citado por Otlet (1934), fala da importância de se conhecer a vida do autor. Alfred Lacroix (1863-1948) foi secretário da Academia de Ciências de Paris, para ele não existe história da ciência sem a história dos cientistas, necessário é conhecer seus antecedentes, seu caráter, sua carreira, suas origens, suas realizações de acordo com o cenário científico e social de sua época. Lacroix está, portanto, descrevendo o perfil informacional de uma biobibliografia, mesmo sem afirmar isto em seu texto.
Otlet (1934) aponta as biobibliografias como fonte de informação para a pesquisa bibliográfica, o advogado belga posiciona esse tipo de fonte de informação como opção para pesquisas temáticas, ou seja, as biobibliografias são especializadas em assunto. Esta proposição é interessante se quisermos delimitar a utilidade da biobibliografia no mundo moderno, se as biobibliografias devem ser especializadas em assuntos sua intenção não é relatar a biografia e bibliografias dos autores, apesar de na documentalidade material destas fontes ser isto o que acontece. A intenção é mostrar biografias de especialistas em determinado assunto e suas bibliografias. Sendo assim, podemos estender as funções biobibliográficas para além das curiosidades biográficas, dando ao conhecer temático uma lente biográfica de seus savants.
O termo biobibliografia aparece, no Traité de Documentation, como um tipo de anuário e como fontes biográficas, no entanto as discussões de Otlet (1934) acerca da noção de autor e escritor, e a relevância em tratar de sua biografia em relação à sua obra, nos aponta uma vertente biobibliográfica no trato da memória bibliológica, a partir dos nomes de autores.
4 Barthes e o império do nome do autor
O autor reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a obra; a imagem da literatura que se pode encontrar na cultura corrente está tiranicamente centralizada no autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas paixões. (BARTHES, 2004, p. 58).
As biobibliografias, principalmente no campo da literatura, se empenham em documentar a figura do sujeito-autor. O que se impõe com esta discursividade é a importância de registrar-se a propriedade do sujeito sobre a sua obra. Uma possível análise das biobibliografias se apoiaria na crítica à centralidade da figura do autor na modernidade elaborada por Roland Barthes (2004) no texto “A morte do autor”.
Roland Barthes, assim como Mallarmé, acreditam ser a linguagem ela mesma detentora do poder de falar e não o autor.
Então é lógico que, em matéria de literatura, seja o positivismo, resumo e ponto de chegada da ideologia capitalista, que tenha concedido a maior importância à pessoa do autor. (BARTHES, 2004, p. 58)
Barthes critica a noção dominante, pós Idade Média, em que se prestigia o indivíduo e não o texto. Esse pensamento, endossado pelo racionalismo francês e pelo empirismo inglês, coloca o autor como interprete principal do texto. Segundo Barthes, é no autor que buscamos a interpretação “verdadeira” sobre o texto. A biografia do autor, segundo Barthes (2004), é tão importante para se entender o conjunto do texto que somos capazes de ver no texto certa confissão do autor.
A explicação da obra é sempre buscada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, a revelar a sua “confidência”. (BARTHES, 2004, p. 58, grifo do autor).
No pensamento barthesiano o texto é sempre multicultural, enredado por um sem fim de fios culturais, o texto é sempre plural. A linguagem, segundo sua concepção, não é feita para ter um único sentido ela é múltipla. O autor não precede o texto, ou seja, sua existência não é anterior ao texto, ele nasce junto com o texto, ele não “dá à luz” ao texto, o único tempo que importa é o da própria enunciação. Sendo assim temos que o autor só existe no momento de sua enunciação, o aqui e o agora do enunciado. Mas neste emaranhado multicultural, de entendimentos múltiplos, de enunciação aqui e agora, um sujeito é capaz de reunir e dar sentido: “[...] há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor [...]” (BARTHES, 2004, p. 64).
O texto de Barthes pode ser entendido como um manifesto, escrito na segunda metade do século XX, quando a teoria literária tentava se firmar como uma ciência do texto literário, portanto tentavam isolar de seus interesses noções que fossem exteriores à linguagem. É um movimento de neutralização da identidade e da figura do autor. No entanto, sabemos hoje, que interpretar um texto somente com base na figura do autor seria falacioso e fatalmente acrítico. Mas não podemos negar, que ainda hoje o autor é ponto referencial do texto e uma figura ainda viva. Tanto na interpretação do texto, como na organização e representação dos saberes.
5 Discussão
Se em Gabriel Peignot notamos uma vertente epistemológica influenciada pelo enciclopedismo e pelo iluminismo, conforme Saldanha (2015), podemos considerar sua intenção biobibliográfica como um ato de registro do conhecimento. O próprio bibliografo francês fala sobre a importância de se adicionar a biografia dos principais atores do campo bibliológico para que se possa compreender a bibliologia em sua totalidade. Podemos observar nos verbetes biobibliográficos de Peignot (1802a,b) uma liberdade textual para descrever seus biobibliografados, ou seja, não há descritores predefinidos, apesar de ser possível identificar uma continuidade, quase oculta, entre eles.
Otlet (1934) nos fala sobre a subjetividade na produção de um livro/documento, para ele existem classes de escritores. Estas classes conversam com a ideia de sujeitos ilustres, critério da ordem do discurso biobibliográfico de Peignot (1802a,b). Otlet (1934), assim como Peignot (1802a,b), concorda que as biografias são fontes de informação que contribuem para a história da ciência, perceba que se fala em história da ciência, não dos cientistas. Na menção à Lacroix, Otlet (1934) deixa claro sua intenção biográfica, ou biobibliográfica, como forma positivista de disseminação científica. A biografia científica complementa os textos científicos. Fica evidente nesta relação Otlet-Peignot a importância que se funda na relação entre indivíduo e obra.
Esta relação predominante no discurso biobibliográfico é alvo de crítica da teoria literária de Roland Barthes, ou seja, o papel preponderante do autor fundado na, e co-funadado da, Modernidade é questionado. É justamente pela via da teoria barthesiana, ou seja, do contexto de tal criticismo, que podemos afirmar a relevância do repertório biobibliográfico peignotiano, representando um marco para o desenvolvimento da Modernidade e da centralidade do conceito de indivíduo-autor nesse contexto.
Atualmente as fontes biobibliográficas, principalmente as utilizadas pelos homens de ciência são formas de extrair dados métricos. A gradação dos autores em Otlet, e a condição do indivíduo ilustre em Peignot, se transforma em condição de produtividade conforme a noção de autor como produtor do texto, império do autor, assume seu lugar na modernidade capitalista. Apesar da crítica teórica não podemos deixar de reconhecer a importância que a representação descritiva do autor, os modelos conceituais de descrição, têm desempenhado importante papel na indicação de responsabilidade das obras, contextualizando historicamente e politicamente a criação do documento, conforme nos orienta (SILVEIRA, 2018).
6 Considerações finais
O pensamento biobibliográfico em Gabriel Peignot (1802a,b) contribui historicamente para, de um lado, a afirmação do papel do sujeito na Modernidade, e a confirmação de sua condição de individualidade na formação do próprio sujeito moderno. Os verbetes que apresentam as personagens da formação do campo bibliológico formalizam, na empiria discursiva, tal condição do sujeito-autor.
Otlet (1934), influenciado formalmente pelo pensamento peignotiano, remonta a trajetória moderna da invenção do autor. Em grande medida, o olhar otletiano representa a síntese dessa compilação do mundo moderno realizada por Gabriel Peignot para os séculos anteriores à alvorada do século XIX.
A teoria de Barthes (2004), orientada para a crítica à construção moderna da noção de autor em sua formalidade e prioridade, contrária aos modos de fundamentação empírica do discurso biobibliográfico, em uma leitura informacional, sustenta igualmente, pelo polo oposto, a relevância da objetivação peignotiana. Em outros termos, com Gabriel Peignot (1802a,b) encontramos a demonstração do modo como o desenvolvimento do discurso sobre o sujeito – autor de suas ações – e sobre seus feitos – obras, discursos institucionais – tornou-se um elemento central de formação da Modernidade.
Agradecimentos
A pesquisa recebeu o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), agência do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).
Referências
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Notas
Autor notes
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