Resumo: O estudo em questão teve como objetivo apontar a importância que séries e versões de obras de arte contemporânea possuem como fonte de informação para as atividades de preservação, pesquisa e comunicação, de uma obra musealizada e destacada desses conjuntos. Para suscitar o debate, elencamos a performance Puxador (edição Colunas Pampulha), da artista Laura Lima, presente no acervo do Museu de Arte da Pampulha. Apesar de ter como exigência por parte da artista ser exibido somente enquanto presença, esse trabalho não possui documentação museológica que garanta essa forma de perpetuação ou memória. Diante disso, demonstramos ao longo do artigo, como a série Homem=carne/Mulher=carne (H=c/M=c), as edições Puxador-arquitetura. Puxador-paisagem, e a reperformance dessa obra podem contribuir para sua preservação. Ao final, consideramos que tais dados, podem ser importantes para compor um possível dossiê documental do trabalho. A metodologia adotada inclui levantamento bibliográfico, análise da documentação institucional e entrevista com a artista.
Palavras-chave:Documentação museológicaDocumentação museológica,Comunicação museológicaComunicação museológica,PerformancePerformance,Arte ContemporâneaArte Contemporânea.
Abstract: This study aimed to point out the importance that series and versions of contemporary works of art have as a source of information for the preservation, research and communication activities of a musealized and outstanding work of these sets. To arouse the debate, we list the performance Puxador (edição Colunas Pampulha), by artist Laura Lima, present in the collection of the Pampulha Art Museum. Although the artist's requirement is to be exhibited only as a presence, this work has no museological documentation to guarantee this form of perpetuation or memory. Given this, we demonstrate throughout the article, how the series Homem=carne/Mulher=carne (H=c/M=c), the editions Puxador- arquitetura and Puxador-paisagemas well as the re-performance of this work, and the impact of this work can contribute to its preservation. In the end, we consider that such data may be important to compose a possible documentary dossier of the work. The adopted methodology includes bibliographic survey, analysis of institutional documentation and interview with the artist.
Keywords: Museological documentation, Museological communication, Performance, Contemporary Art.
Séries e versões na documentação e preservação de performances em arte: Os Puxadores
Series and versions in the documentation and preservation of performances in art: the “Puxadores”
Recepção: 30 Novembro 2018
Aprovação: 11 Junho 2019
Na segunda metade do século XX, quando as instituições museológicas buscavam colecionar algo relacionado às performances vinculadas às artes visuais, elas o faziam por meio de vídeos, fotografias, indumentárias e objetos, mas, raramente por meio da própria obra enquanto evento presencial. Tomar a performance como item colecionável era um desafio para toda uma cultura institucional habituada ao acervamento de bens materiais. Além disso, diferentes criadores recusavam-se a reencenar o ato performativo, defendendo peremptoriamente a unicidade e irrepetibilidade da ação. Peggy Phelan (1993) é uma das vozes que se erguem contra o arquivamento:
A performance não pode ser armazenada, registrada, documentada ou, de outro modo, participar da circulação de representações: uma vez feito isso, torna-se outra coisa que não a performance. (PHELAN, 1993, p. 146, tradução nossa) [1].
Recentemente, artistas e pesquisadores têm contestado a noção da performance como um evento único e não reiterável, ou de seus registros e vestígios como signos exclusivos para sua representação. Tal contestação abriu caminho para a reperformance, ou seja, a reexibição da obra enquanto presença, como uma possibilidade de perpetuação em acervos convencionais. A mudança de perspectiva, por sua vez, repercutiu sobre os museus de arte, que passaram a aperfeiçoar seus procedimentos metodológicos para atender às novas demandas de preservação das ações performáticas. Instituições como a Tate Modern de Londres, o Museu Solomon R. Guggenheim, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Museu Whitney de Arte Americana, o Museu de Arte Moderna de São Francisco, o Van Abbemuseum, entre tantas outras, desenvolveram estratégias específicas para gerenciar e organizar as informações sobre suas performances; algumas, até mesmo, com equipes e departamentos especializados.
No Brasil, conseguimos constatar, através de um mapeamento realizado por nós entre os anos de 2017 e 2018, um aumento do número de assimilações de performances, videoperformances, fotoperformances, registros e vestígios das ações em museus de arte em diversas regiões do país (CAETANO, 2019). Ainda no início dos anos 2000, o Museu de Arte da Pampulha (MAP) foi a primeira instituição museológica pública a adquirir e classificar uma obra nessa categoria artística. A obra Puxador, da artista brasileira Laura Lima, foi exibida pela primeira vez durante uma mostra individual em 2002 no MAP[2] e assimilada como “performance” pela instituição no mesmo ano.
Puxador (ed. Colunas Pampulha) é uma obra que consiste em um performer masculino nu, vestindo sob seus ombros duas alças de nylon que se expandem em ramificações amarradas às diversas colunas metálicas do MAP. A performance é ativada quando o homem tenta “puxar” essas alças presas às pilastras na direção da entrada principal do museu, como em uma tentativa de soltá-las da construção. Sua luta, no entanto, está fadada ao fracasso, [...] “Seu esforço inútil não deixa de desenhar no espaço, porém, a louca possibilidade de transformar radicalmente o mundo com seu ato singular, sua insistência.” (RIVERA, 2013, p. 49).
Diante disso, nosso interesse centrou-se em compreender como o Museu de Arte da Pampulha documentou, conservou e reexibiu uma obra com essas categorias artísticas. Para tanto, realizamos uma visita técnica à instituição em junho de 2018, momento em que fomos recebidos pelos dois setores que mantinham dados sobre a obra: o Núcleo de Conservação e Restauração e o Centro de Documentação. O primeiro setor mostrou-nos as amarras utilizadas no trabalho, as quais se encontravam cuidadosamente enroladas em um saco de algodão preto na reserva técnica, validando o arquivamento material e o seu vestígio, próprio da obra. Já o Centro de Documentação[3] nos apresentou a documentação museológica, em que foi possível encontrar dois certificados de autenticidade (um relativo ao Puxador outro da obra Sem título, da série Costumes[4]), um catálogo da exposição “Outra presença”, uma mídia em CD contendo um vídeo da reperformance da obra na exposição “Outra presença” e duas fotografias da obra no ano de 2002 (Figuras 1 e 2)[5].
A exposição “Outra presença”, sob curadoria de Ana Luísa Santos, Marco Paulo Rolla e Nathalia Larsen, com apoio do edital “Arte.Con”, teve como objetivo proporcionar a realização de uma série de ações que remetessem à presença do corpo no espaço, vinculando conceitos que perpassassem o indivíduo, a arquitetura, o museu e a cidade (SANTOS; ROLLA; LARSEN, 2014, p. 9). Para tanto, foram selecionados mais de trinta artistas para exibir performances, fotoperformances e videoperformances em novembro de 2013. Diante da temática, os curadores solicitaram ao museu considerar a reapresentação da obra de Laura Lima, sobretudo, pelos debates que envolvem os desafios da reperformance e do arquivamento dessa categoria artística:
Trazemos à exposição a realização de duas únicas obras de performances que pertencem ao acervo do MAP: Corpo a Corpo in Cor-pus meus, de Theresinha Soares e Puxador, de Laura Lima. O diálogo com o acervo pertencente ao museu tem uma pertinência histórica: para a trajetória do MAP, para a trilha da performance em Belo Horizonte, para a discussão da re-performance, assim como para a discussão museológica da forma de catalogar o acervo de performances. (SANTOS; ROLLA; LARSEN, 2014, p. 12).
O vídeo presente na documentação museológica, de autoria de Joacélio Batista, com aproximadamente quatro minutos de duração, registra alguns momentos da obra no espaço expositivo. Nele é possível ver o performer puxando as alças presas em seus ombros. As imagens em questão se concentram grande parte das vezes sob a perspectiva de dentro para fora do museu, na qual é possível notar a reação dos visitantes ao se deparar com a performance quando adentram o local. Ademais, de acordo com a conservadora do museu, Luciana Bonadio, os curadores editaram as imagens colhidas da performance e exibiram-nas nos demais dias da exposição. Como ferramenta de comunicação museológica, o catálogo também fornece informações essenciais sobre essa reexibição. É nele que encontramos a informação de que a performance foi realizada apenas no dia da abertura da mostra, por um período de três horas pelo performer Tiago Macedo (Figura 3).
Os caminhos para desenvolver essa reapresentação, contudo, não foram tão simples, haja vista a documentação da obra na época ser mais escassa do que a atual. De acordo com Luciana Bonadio, para reativar o trabalho, foi preciso que o MAP entrasse em contato com Laura Lima a fim de elucidar dúvidas e coletar mais detalhes de sua reapresentação. Na ocasião, a artista definiu quais instruções deveriam ser dadas ao performer e o que precisaria ser considerado na reexibição.
A conservadora comenta, ainda, que para ser possível amarrar as fitas nos pontos específicos propostos pela artista na primeira mostra, foi necessário usar como guia as duas fotografias registradas durante a primeira versão no museu (Figuras 1 e 2). De acordo com Luciana Bonadio, alguns detalhes ajudaram na reconstituição da ação, como, por exemplo, o fato de que cada fita possuía tamanhos distintos, o que ajudou na compreensão de onde deveriam ser afixadas. Ela admite, entretanto, que um documento que detalhe esta remontagem se faz necessário ainda hoje, uma vez que no futuro essa questão pode proporcionar novas dificuldades à instituição ao reperformar a obra. Todavia, essa necessidade repercute em toda a documentação museológica da obra, ou seja, por mais que a reapresentação do trabalho tenha gerado novos documentos sobre ele, como é o caso do vídeo e do catálogo da exposição, o MAP não aproveitou a oportunidade para arquivar as instruções cedidas pela artista. Dessa maneira, o museu continua a não possuir informações diretas e objetivas do que é preciso considerar sobre as possibilidades de reapresentação do trabalho e de outras formas de comunicação museológica.
Além disso, se pensarmos que cada curadoria pode proporcionar uma nova leitura sobre a obra exposta, não estaríamos negligenciando a necessidade de arquivar informações referentes às exposições nas quais essa performance foi exibida? No caso da exposição “Outra presença”, o curador Marco Paulo Rolla comenta que Puxador (ed. Colunas Pampulha) trouxe um novo significado à própria temática da proposta curatorial, uma vez que, ao ser posicionada na porta da entrada do espaço expositivo, a obra representou “[...] uma poética figura de convite à exposição na medida em que reflete o desejo da curadoria de integrar o espaço do MAP ao da cidade.” (SANTOS; ROLLA; LARSEN, 2014, p. 57). Ou seja, seria também de vital importância que constasse, na documentação da performance, tal qual a documentação de 2013, um detalhamento da primeira exposição da obra em 2002, sobretudo, porque a sua especificação viria de informações confeccionadas pela própria artista. Quando reunidos, tais arquivos infeririam que a reperformance estabeleceria não apenas uma nova relação com a instituição, sua arquitetura, seu público e com a artista, mas, também, com os fundos documentais que acolhem a história da obra em determinado sítio:
Diferentes condições espaciais e econômicas, bem como a cooperação de organizadores de exposições, artistas e técnicos, influenciam a aparência do trabalho em diferentes locais. Obras de arte com componentes temporários ou interativos mudam dependendo da localização e do horário. Para garantir que as futuras gerações compreendam a documentação destes trabalhos, não se pode limitar a registar a sua aparência e função físicas. Deve-se também considerar o contexto, as relações, o efeito sobre o espectador e os hábitos de visitas dos visitantes. (HEYDENREICH, 2012, p. 158-159, tradução nossa).[6]
Ademais, é preciso explanarmos de modo mais atento o termo de autenticidade da obra. Resumido em uma lauda e elaborado pela Galeria Casa Triângulo, o documento tem como objetivo comprovar que Puxador (ed. Colunas Pampulha), entregue à Associação Cultural dos Amigos do Museu de Arte da Pampulha, é uma obra autêntica. Para tanto, no termo constam a procedência da obra, na qual é inserido o nome da referida galeria, sua categoria artística sinalizada como “instalação”, artista como “Laura Lima”, técnica/material denominado como “nylon, tecido e espuma”, dimensões “variáveis” e data como “1998/2002” e, ao final, a assinatura do representante da galeria e comprovante de reconhecimento em cartório.
Tais informações, no entanto, abrem espaço para diversos questionamentos sobre o que realmente esse documento garante e representa. Em primeiro lugar, permanece uma dúvida se o que de fato foi assimilado pelo museu teria sido a performance ou seu vestígio, tendo em vista que somente sua materialidade é reconhecida tanto no campo “categoria” quanto no campo “técnica/material”. Embora à primeira vista tal pontuação pareça rigorosa, ela se mostra essencial uma vez que o documento em questão é o único que comprova, atualmente, a aquisição da obra pela instituição, posto que o MAP não detém seu termo de doação.
É válido refletir ainda se realmente os termos de autenticidade podem garantir a veracidade de obras de arte contemporânea. Afinal, pode-se questionar se o museu detém a obra (OLIVEIRA, 2017) caso ela venha a ser reexibida de maneira errônea, considerando a possibilidade de falta ou inadequação do gerenciamento de informações. Não obstante, se a data da obra neste documento é 1998/2002, informação também presente no catálogo (MUSEU DE ARTE DA PAMPULHA, 2010) e no banco de dados do MAP, poderíamos então questionar se Puxador (ed. Colunas Pampulha) começa antes da exposição de Laura Lima. E se sim, seria seu histórico relevante para constar também na aferida documentação? Ou ainda, até onde há uma distinção de uma edição de Puxador para outra? Qual a contribuição de sua série Homem=carne/Mulher=carne para suas instruções e sua poética? Poderiam tanto a série, quanto as outras versões contribuírem com mais dados sobre a obra musealizada?
Diante dessas questões, propomos uma visão mais ampla sobre até onde a série e as edições-versões anteriores e posteriores da obra podem nos ceder informações sobre seus modos de comunicação, de preservação, de reexibição e de compreensão da poética. Para tanto, utilizamos como metodologia um levantamento bibliográfico sobre a série e as edições da obra, bem como uma entrevista com Laura Lima a qual nos aponta as possíveis interseções e singularidades entre as reapresentações.
Especialistas em performance lembram, com recorrência, que Laura Lima não utiliza a palavra “performance” para se referir às suas obras, muito menos considera que façam parte dessa categoria artística (LIMA, 2010). Para ela, há no máximo uma concomitância de tempo histórico que tangencia essa relação, razão pela qual acredita que muitas pessoas interpretem seus trabalhos desse modo. Em sua opinião, é simplista a referência de que uma obra que envolva a presença de pessoas se trate necessariamente de uma “performance”[7]. Em vista disso, ainda durante a década de 1990, a artista criou um glossário para tentar estabelecer uma noção interna sobre suas obras ou arranjar palavras que definam essa intenção de mundo.
Para Daniela de Castro e Lisette Lagnado (2014), “Mergulhar no universo de Laura Lima é ter de se deparar com uma habilidade inédita de decodificação de linguagem e dos objetos que a acompanham” (CASTRO; LAGNADO, 2014, p. 13). Lima prefere utilizar, por exemplo, o termo “instauração” do artista Tunga para sustentar sua percepção: “[...] um processo que me parecia mais complexo do que focar no desempenho do performer[...] Se a força da obra não é o sujeito, a ênfase se concentra no verbo, certo?” (CASTRO; LAGNADO, 2014, p. 31).
O glossário tem início com a série (ou, como Lima prefere chamar, “conjunto de obras”) Homem=carne/Mulher=carne (H=c/M=c), concebida entre os anos de 1994 a 1998, que trata da “[...] carnalidade das coisas, do mundo e da vida, da carne como matéria prima, pura e absoluta.” (SANTOS, 2012, p. 15). Ou seja, diz respeito a presença dos seres vivos (animais e humanos) dentro desse trabalho como carne e como matéria. Integram esse grupo: Vaca (de 1994), Gelatina (de 1995-1996), Bala (de 1995-1996), Quadris (de 1995-1997), Puxador (Paisagem, de 1998-1999; Colunas, de 1998-2002 e Arquitetura, de 1998), Marra (de 1995-2001), Dopada (de 1996-2002), Sugador (de 1997), Três Graças (Rubens, de 1998-2002; Rafael, de 1998-2002); Arquitetura digestiva (de 1998) (CASTRO; LAGNADO, 2014).
Uma semelhança central entre estas obras é o fato de que Lima delega a outros seres (animais ou humanos) sua ativação. A artista cita em nossa entrevista[8] que, no caso dessa série, não está interessada na experiência do “participante” ou “pessoa=carne” (formas como denomina os perfomers), pois para ela é necessário que haja uma dissipação da individualidade do sujeito. Em sua visão, os seres que ativam esses trabalhos estão no mesmo patamar dos objetos utilizados na ação, sem qualquer hierarquia e sem atribuição de valores entre um e outro, ou seja, todos são compreendidos apenas como “matéria”. Ademais, a escolha dos performers nesses trabalhos, em geral, também se repete. Lima comenta[9] que prefere que sejam realizadas por pessoas comuns, ordinárias, que não tenham o “saber sobre o corpo”, ou seja, que não sejam dançarinos, atores etc., embora não proíba a atuação desses profissionais. Mas, observa que como as “tarefas” ou instruções que atribui são geralmente básicas e repetitivas, profissionais da área demoram mais tempo para assimilar o grau de simplicidade que ela busca para as obras. A seleção dessas pessoas, segundo a artista, pode diferir de caso a caso, indo desde anúncios de jornais, até um conhecido de um amigo que queira participar da ação (LAGNADO, 2014).
A artista percebe que uma rigidez na forma de seletividade dos “participantes” não necessariamente garantirá o desenvolvimento do trabalho por ela planejado. Na sua opinião, “[...] trabalhar com gente é algo insondável e camicase. [...] o risco que corro de essa imagem não estar lá no dia seguinte é gigantesco, mas é tão fascinante esse limiar tênue...”. (LIMA, 2010, p. 12). A artista cita, como exemplo, o caso de uma pessoa=carne que sacou um cigarro de maneira jocosa durante a apresentação da obra. Ela conta que o rapaz, profissionalmente um performer, por uma frustração de não participar da exposição com seu próprio trabalho, resolveu sabotá-la. Apesar disso, admite: “Claro que isso foi fascinante, mexeu comigo; é como se a obra tivesse voltado para mim, algo desconhecido; meu Deus, o que é essa obra que estou criando?” (LIMA, 2010, p.16).
Lima (2010) comenta que, após esse episódio, passou a ser mais criteriosa em relação às suas instruções ou, como prefere chamar, “modus operandi”. Admite, contudo, que é difícil elaborar manuais que considerem de antemão todos os imprevistos ou fatores que podem interferir no ato performático. Alguns de seus trabalhos, por exemplo, tiveram sua documentação modificada em decorrência de imprevistos ou questões que não foram por ela anteriormente considerados. No caso de obras que tenham sido musealizadas, Lima (2010) comenta que, sempre que possível, acompanha suas reexibições e, quando necessário, envia “comentários” para serem acrescentados às instruções já entregues a essas instituições. De acordo com ela, tais observações, de maneira alguma, vão contra a essência dessas obras, pelo contrário, sua tentativa gira em torno de um cerceamento da poética primeira[10]. Devendo, portanto, instituições que acolhem alguma obra desse conjunto seguir à risca suas orientações:
O trabalho do Homem=Carne/Mulher=Carne é a mesma coisa, tem as tarefas, como fazer, e depois os museus vêm comprar a obra e eles têm um monte de regras que têm de seguir, porque senão aquilo não é a minha obra. Dou aquele modus operandi gigantesco, e não pode mudar nem uma coisinha sequer. (LIMA, 2010, p. 12).
É importante salientar que, para Lima (2018), documentos ou registros que as instituições museológicas assimilem podem apenas compor o dossiê dessa obra, mas não devem de forma alguma virem a ser reexibidos em seu lugar. A artista comenta que, sobretudo no início de sua carreira, os museus lhe perguntavam se a obra não poderia vir a ser reperformada apenas no primeiro dia da exposição e, posteriormente, exposto um vídeo ou uma fotografia em seu lugar. Tal proposta, no entanto, não tem sido admitida pela artista. Para ela, esses suportes não representam suas obras (informação verbal) [11]:
Um vídeo não pode ser a maneira de mostrar o trabalho como uma obra de Laura, porque nós estamos discutindo a questão da matéria. Uma obra minha poderá ser documentada em vídeo, poderá estar dentro de um grupo de informações sobre a mostra daquela obra em determinados momentos, mas isso tem a ver com o sentido de arquivamento, de documentação (LIMA, 2018).
Ademais, ainda na opinião da artista, suas ações deveriam ter o mesmo direito de um objeto estético o qual permanece à mostra durante todo o período da exposição. Tal condição, no entanto, apresenta um conflito com a forma de reapresentação da obra na exposição “Outra presença”, haja vista que a performance foi exibida somente no primeiro dia da exposição, como mostra o vídeo realizado pela curadoria que veio a ser posteriormente exposto em uma tentativa de elucidação do desenvolvimento da ação (informação verbal) [12]:
Todas as minhas obras Homem=carne/Mulher=carne elas acontecem tempo integral. Portanto, em mostras que caracterizem situações onde ela só é exibida no primeiro dia, é uma forma incorreta de trabalhar as questões conceituais relacionadas à matéria, e em relação às outras obras no ambiente [...] Porque existe uma discussão dos humanos no processo do trabalho que diz que esses humanos, ou os animais no caso dos animais, que eles são uma matéria vibrante, uma matéria que faz parte da exposição, tal como as outras obras de outros artistas trabalhando seus diversos materiais estão presentes. [...] O trabalho ele sempre tem que ser colocado por inteiro do primeiro dia ao último com a presença de pessoas. Então, uma vez que a instituição não responda a isso, ela tem um problema ontológico em relação à obra. (LIMA, 2018).
Para atender a esse critério, contudo, faz-se necessário um número maior de performers para realizar o trabalho, tendo em vista que, para a artista, é importante que as pessoas não demonstrem e não estejam em estado de exaustão, uma vez que este não é um ponto que cerceia a poética dos trabalhos dessa série. De acordo com Lima (informação verbal) [13], pelo contrário, elas precisam manter essa situação de [...] “matéria, a situação dessa matéria vibrante, a sua energia mesmo que exista uma oscilação, uma hora mais cansada uma hora menos”. Lima (2018) comenta que, grande parte das vezes, as pessoas se dividem em turnos maiores, ou apenas aguardam no local o momento de elas entrarem para realizar a ação assim que o outro estiver cansado.
Além disso, a artista estabelece uma outra condição: esses trabalhos não podem ser ensaiados. Em sua perspectiva, essa atitude seria uma teatralização de sua obra, além da própria perda do sentido da naturalização da imagem que busca. A questão do ensaio também diz respeito ao próprio sentido de monotonia da série:
[..] as instruções deixadas pela artista aceitam um arco restrito de variedades. Afinal, quando não imóveis, os indivíduos que realizam Quadris só podem arrastar-se e o Puxador recebe um repertório restrito de explicações da artista. (LAGNADO; CASTRO, 2014, p. 55).
Ainda na visão de Lagnado e Castro (2014, p. 55), o tédio, para alguns artistas, parece se insinuar como uma crítica à degradação de vários paradigmas modernos, especialmente a vida social nas cidades.
Apesar dessas especificações, é preciso considerar que a delegação de uma performance a outros, ao mesmo tempo, cria vantagens para as instituições museológicas que assimilam esses trabalhos, ao contrário de obras em que somente o artista é o performer. Não obstante, ao contrário de vários artistas que, continuamente, exigem uma atualização da obra musealizada, Lima tende cada vez mais a restringir suas instruções para preservar a primeira apresentação o que, de certo modo, facilita a conservação das obras. Cabendo, assim a responsabilidade dos museus que possuem essas obras, de manterem-nas íntegras, tal qual cuidadosamente desenhadas pela artista.
O Puxador integra a série Homem=carne/Mulher=carne (H=c/M=c) e se desenvolve através de três edições: Puxador-Arquitetura (1998), Puxador-Paisagem (de 1998-1999) e Puxador-Colunas (de 1998-2002). A primeira versão elaborada por Laura foi Puxador-Arquitetura (1998), a qual nunca veio a ser realizada. Tal fato deve-se, provavelmente, à censura sofrida pela obra em 1998 durante uma exposição no Solar Gandjean de Montigny, Museu Universitário da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Nessa ocasião, o curador João Carlos Goldberg havia selecionado a peça para compor uma exposição nas dependências da PUC-Rio. Contudo, de acordo com Lima (2018), alguns meses depois, no período de montagem da exposição, a diretora da instituição, Piedade Epstein Grinberg, afirmou que não seria possível exibir o trabalho, tendo em vista a nudez do performer. A artista, então, decide não apresentar mais a obra, porque defende que esse aspecto é parte essencial do trabalho e comenta: “[...] se parte dessas pessoas que fazem parte do Homem=carne/Mulher=carne está desnuda, assim fica, porque assim é a obra. Se o lugar não consegue, não dá conta de determinado tipo de obra, é preciso não a fazer” (LIMA, 2018)[14]. Atualmente, a artista percebe que a recusa da diretora pode ser compreendida tendo em vista o período histórico, em que se havia muito mais enfretamentos em relação à nudez e pelas implicações diante de uma instituição religiosa (LIMA, 2018) [15].
Um dos poucos registros de como essa versão seria desenvolvida pode ser encontrado no caderno de notas da própria artista, porém o modelo não é projetado para a PUC-Rio, mas sim para MAC-Niterói (Figura 4). De acordo com Laura (2018) [16], após o incidente na universidade, ela resolveu desenhar uma proposta para o MAC, à época, uma das grandes novidades do período. Entretanto, esse projeto também não veio a ser concretizado, embora, ainda hoje, confesse ter vontade de expor essa edição.
Em 1999, Lima é convidada para compor uma exposição na Fundição Progresso no Rio de Janeiro e considera apresentar o trabalho anteriormente censurado. Contudo, comenta que as estruturas do edifício não proporcionavam o aporte necessário à primeira edição, o que a faz perceber que poderia inverter o sentido da obra, ou seja, propor trazer a paisagem para dentro do espaço expositivo, criando dessa maneira uma nova edição: Puxador-paisagem. Em sua perspectiva, essa variante apresenta questões distintas da anterior uma vez que o intuito não é derrubar a instituição, mas trazer a paisagem para dentro desses espaços; olhar o homem e a arquitetura em contraponto. Nesse sentido, ela afirma que a edição ainda pode ser considerada um puxador, uma vez que trabalha com o “[...] mesmo aparato, a mesma ideia conceitual” (LIMA, 2018)[17].
Lagnado (LAGNADO; CASTRO, 2014) presenciou essa primeira exposição da obra e menciona que a ação ocorreu durante cerca de quatro horas, somente no dia da inauguração da exposição, com a participação do artista Marcio Ramalho. Nos demais dias, o público visitante pôde observar apenas as cordas e a mochila, pousadas no chão. Lagnado (LAGNADO, CASTRO, 2014) explicitou que a exposição do vestígio se deu em regime de exceção. De acordo com ela, as instruções inicialmente dadas por Laura Lima exigiam o revezamento de performers. Contudo, em vista de motivos financeiros e da complexidade do lugar (a peça fora afixada no topo de palmeiras e sobre a rua onde passavam diversos veículos), optou-se por, depois da abertura, o aparato permanecer como um vestígio por alguns dias, sem que o performer estivesse presente.
Posteriormente à edição Puxador-paisagem, a obra fez parte da exposição “Spectacular” de Curadoria de Jens Hoffmann no KunstPalast, na Alemanha, em 2003, e dez anos depois, integrou a mostra “Por Amor à Dissidência”, no Museu Universitário de Arte Contemporânea da Universidade Nacional Autônoma do México (MUAC) (Figuras 5 e 6). Mais recentemente, em 2015, compôs a exposição “Encruzilhada no Parque Lage”, no Rio de Janeiro (Figuras 7 e 8).
Em 2002, Laura Lima realiza uma exposição individual no Museu de Arte da Pampulha, na qual exibe grande parte dos trabalhos que compõem a série Homem=carne/Mulher=carne. De acordo com a artista, a edição Puxador-Colunas surgiu em decorrência da própria situação da estrutura arquitetônica do museu (LIMA, 2018)[18]. Rodrigo Moura (2018), curador assistente do MAP à época, comenta que, em junho de 2002, assim que Lima desembarcou em Belo Horizonte, ela foi até o museu e percorreu o espaço com interesse pelo prédio modernista que até o momento não conhecia. A partir dali, começou a discutir com os curadores a instalação de cada uma de suas peças[19]. De acordo com a artista, o local em que seus trabalhos são expostos é de vital importância. Em entrevista[20], por exemplo, Lima comenta que pondera a própria construção arquitetônica, o percurso das pessoas e como o trabalho se relaciona com o espaço, sobretudo no caso de obras como o Puxador, que carrega uma especificidade da arquitetura e do local. Sobre a escolha do local da obra no MAP, o curador comenta:
Bem na entrada, estava Puxador (1998), em versão feita especialmente para a Pampulha, a puxar a colunata metálica do ex-Cassino para o lado de fora, como quem persegue o colapso (impossível, mas potencial) do edifício. Por se tratar de obra que continha nudez, convencionou-se que o “puxador” ficaria posicionado no exato limite entre o interior e o exterior do prédio, mas justamente na passagem do visitante. (MOURA, 2018).
Contudo, apesar de a edição Puxador-Colunas ter sido projetada, como acreditou Moura (2018), especialmente para o Museu de Arte da Pampulha, Lima apresentou a edição na Bienal de Lyon, na França, em 2011 (Figuras 9 e 10). Nessa versão, a artista utilizou as colunas do grande salão do Sucrière, um antigo depósito nas margens do rio Ródano. Além disso, designou a ação a dois performers gêmeos, Emmanuel e Étienne Borgo, que proporcionaram um novo aspecto para a obra, uma vez que o público sempre imaginava se tratar do mesmo homem. À época, a obra veio a ser divulgada apenas como “Puxador”, mas Lima afirma que se trata de uma variante da edição Puxador-Colunas: “[...] foram as únicas duas vezes que esse trabalho foi exposto até agora, em 2002 na Pampulha e em 2011 na Bienal de Lyon” (LIMA, 2018)[21].
É possível, então, considerar cada versão da edição do Puxador como parte da categoria de site-specific performance, ou seja, uma performance criada para um sítio singular. É importante ressaltar que a especificidade do local, ao qual cada uma das versões é submetida, fazem-nas diferentes de qualquer outro trabalho desse conjunto. Como comentado anteriormente por Lima (2018), a escolha do local é essencial para a poética desse trabalho. No caso de Puxador (ed. Colunas Pampulha), a especificidade é acrescida pelas próprias tiras projetadas para cada coluna do espaço, embora tamanha singularidade traga outros tipos de enfrentamento ao MAP, primeiramente, porque a sobrevivência da obra depende do edifício do museu. Não somente há uma preocupação com relação à própria conservação das tiras em questão, haja vista que se são tão específicas para o determinado espaço, cria-se uma condição de manutenção e preservação sobreposta à preservação da obra. Contudo, sobre isso Lima (2018)[22] comenta que as tiras não são por ela criadas e que não veria problema algum se a instituição precisasse substituí-las, uma vez que a proposta de suas obras não está na singularidade de sua materialidade, mas na contínua possibilidade de a obra ser exibida enquanto presença.
Puxador-paisagem no MUAC (2013)
Fonte: Fotografia de Oliver Santada, adaptado de Tanya Bonakdar Gallery (2018).É possível traçar uma similaridade entre as edições aqui apresentadas. De acordo com Lima (2018) [23], uma aproximação comum entre os trabalhos advém do fato de que apenas homens podem performá-los. A artista compreende que há um sentido de força da humanidade ligada a essa ideia masculina do músculo, arquetípica. De fato, essa é uma das exigências que se vincula à instrução de que os homens escolhidos não sejam fisicamente fortes ou fracos, apontando a escolha de homens com porte físico ordinário.
Não obstante, as instruções da artista aos performers podem deixar mais claro uma similaridade entre essas edições. Em artigo publicado na revista Abrigo Portátil (LIMA, 2016), é transcrito o momento em que Laura Lima informa as tarefas para as “pessoas=carne” de Puxador-Paisagem. A artista inicia o diálogo explicando qual o objetivo do performer, como o aparato é instalado no espaço e, por sua vez, de que forma ele deve ser trajado. Uma informação essencial, no entanto, para as instituições museológicas é dada em seguida, quando afirma:
[...] existe uma intersecção entre as duas partes que será afinada diariamente por alguém da Instituição para que todas as tiras se mantenham esticadas. Essa também é uma tarefa simples e está a cargo de quem estiver cuidando dessa ala do museu” (LIMA, 2016, p. 12).
Ou seja, para que as instituições sigam a recomendação da artista de manter a obra durante todo o tempo da exposição na qual fizer parte, devem-se ater a esse cuidado diário. Posteriormente, adverte aos performers que todos deverão apresentar a ação nus. Ela comenta que a nudez é um ponto comum na série Homem=carne/Mulher=carne, e que essa forma também é um ponto essencial para a obra em questão. A artista salienta, no entanto, que os performers são livres para restringir ou censurar os registros, por meio de coordenadas dadas às instituições.
Lima (2018) enfatiza que não pretende dirigir ou coreografar o trabalho para criar uma imagem totalmente controlada da obra. A interação permitida antes da ação decorre do desejo dos performers em conhecer o aparato, sem qualquer manipulação. Segundo as instruções, durante a ação, o esforço de cada puxador deve ser contínuo e intenso, sem que demonstrem exaustão. Ela espera, assim, um gasto de energia real, mas reitera diversas vezes que a dignidade do performer deve ser mantida. O descanso deve ser realizado no mesmo lugar, a não ser que haja uma necessidade maior do corpo, permitindo ausências pontuais. Além disso, explica:
Vocês verão, por vezes, o puxador está mais lento, por vezes até cessa o ato de puxar e pende o corpo numa diagonal sustentada pelas próprias alças em descanso, e então retorna com a consciência de que deve persistir. Isto vai criando um diapasão visual desta tarefa, deste homem, esforço forte, mas lento, pausa no lugar e retorno do esforço. Há beleza nesta oscilação e neste engajamento do participante, que é percebida pela honestidade da simplicidade da tarefa de puxar, ainda que a tarefa seja aos nossos olhos e entendimento, absurda (risos). (LIMA, 2016, p. 13-14).
A artista comenta que há, ainda, uma tarefa interna do próprio puxador referente a sua concentração naquilo que faz, podendo apenas realizar o ato sem, portanto, conversar com ninguém. Ela comenta que, de maneira geral, o público geralmente não interage ativamente com o trabalho, mas caso aconteça, essa troca é unicamente responsabilidade da instituição na qual está exposta. Ao final, a artista explica que, após o primeiro dia de exibição da ação, não estará mais acompanhando a exibição da obra, sobre isso explica: “Criei obras que independem da minha presença e isto foi maquinado desde o princípio quando inventei as categorias que constroem a ideia geral de Hc/Mc.” (LIMA, 2016, p. 15). Nesse sentido, acusa que a responsabilidade do trabalho então é dos performers, devendo esses respeitarem os horários estabelecidos tanto no momento de chegada quanto na transição e troca de puxadores.
Em vista do exposto, compreende-se que apenas a documentação do MAP referente à performance Puxador (ed. Colunas Pampulha) não é suficiente para garantir a sua sobrevivência, sendo necessário que a instituição desenvolva junto à Laura Lima um detalhamento na documentação em relação a essa versão. Tal dossiê seria ainda mais rico se considerasse informações referentes à série Homem=carne/Mulher=carne bem como as edições Puxador-Arquitetura, Puxador-paisagem e Puxador-Colunas, uma vez que proporcionam à obra musealizada uma nova dimensão e leitura.
juliana.caetano@unb.br
dionisio@unb.br
Puxador-paisagem no MUAC (2013)
Fonte: Fotografia de Oliver Santada, adaptado de Tanya Bonakdar Gallery (2018).