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A pós-verdade como desafio central para a ciência da informação contemporânea
Post-truth as central challenge for the contemporary information science
Em Questão, vol. 27, núm. 1, pp. 13-29, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul



Recepção: 06 Abril 2020

Aprovação: 06 Julho 2020

DOI: https://doi.org/10.19132/1808-5245271.13-29

Resumo: Neste artigo são apresentados os resultados de uma pesquisa sobre o fenômeno da pós-verdade e suas implicações para a ciência da informação enquanto um objeto de estudo. São apresentadas diferentes visões sobre o fenômeno: as que o enquadram na perspectiva de um fenômeno cultural ou político, e as que o correlacionam a outros fenômenos ou fatores. A seguir, apresenta-se a maneira como a ciência da informação definiu, historicamente, seus objetos de pesquisa, bem como as teorias e métodos para os estudar. Do confronto entre as duas discussões, propõe-se a necessidade de adaptações no âmbito da ciência da informação, para o desenvolvimento de categorias de análise que possam estudar de maneira adequada o fenômeno da pós-verdade: não como um problema tecnológico ou humano, mas como um processo da ordem da cultura.

Palavras-chave: Pós-verdade, Epistemologia da Ciência da Informação, Informações falsas.

Abstract: In this article we present the results of research on the phenomenon of post-truth and its implications for information science as an object of study. Different views on the phenomenon are presented: those that fit it in the perspective of a cultural or political phenomenon, and those that correlate it with other phenomena or factors. In the following section we present the way in which information science has historically defined its research objects, as well as the theories and methods for studying them. From the confrontation between the two discussions, it is proposed the need for adaptations in the scope of information science, for the development of categories of analysis that can adequately study the phenomenon of post-truth: not as a technological or human problem, but as a process of the order of culture.

Keywords: Post-truth, Epistemology of Information Science, Fake news.

1 Introdução

Pós-verdade é uma expressão sobre a qual muito se tem falado nos últimos anos. Ela tem sido utilizada em nomes de livros, artigos e congressos em disciplinas científicas muito distintas como a comunicação social, a ciência da computação, a psicologia, a antropologia, entre muitas outras. Mais recentemente, seu uso intensificou-se no campo da ciência política e, sobretudo em 2020, no campo das ciências da saúde, diante da pandemia causada pela Covid 19. Apesar dessa amplitude de usos, existem ainda muitas imprecisões e confusões a respeito de seu significado. Algumas vezes, a expressão é tomada como sinônimo de notícias falsas (fake news). As duas expressões correspondem, de fato, a fenômenos relacionados, mas não ao mesmo fenômeno – na verdade, a ampla disseminação de informações falsas, principalmente nas redes sociais, é antes um elemento componente de uma realidade maior do que a ideia de “pós-verdade” pretende abarcar. Outras vezes, se considera a expressão como algo inútil, já que “mentiras” sempre existiram, como se fosse apenas um novo nome para um velho fenômeno. De fato, mentiras sempre existiram, mas há, sim, um fato novo, um fenômeno recente, que a expressão busca contemplar.

No meio do esforço de várias áreas para compreender o que seria esse novo fenômeno, identificar suas causas, características e consequências está também a ciência da informação. Nos últimos cinco anos, foram apresentados em eventos e publicados em periódicos da área muitos trabalhos sobre pós-verdade. Esses estudos versam sobre temas muito distintos, com destaque para os impactos da sua existência para a atuação dos bibliotecários, arquivistas e demais profissionais da informação (SOUSA, 2017; CORRÊA; CUSTÓDIO, 2018; PAULA; SILVA; BLANCO, 2018; SILVA; TANUS, 2019; SILVA; ALBUQUERQUE; VELOSO, 2019).

Apesar de todos os esforços e toda a produção científica já publicada, compreender o fenômeno da pós-verdade (e, principalmente, desenvolver estratégias para combater os seus efeitos nocivos) e entender em que medida ele se coloca como um desafio para a ciência da informação são questões que ainda estão em busca de respostas. E é exatamente na tentativa de proporcionar avanços nestas duas direções que se localiza a proposta deste artigo, resultado de uma pesquisa sobre o fenômeno da pós-verdade e suas implicações para o estudo da informação contemporânea no âmbito da ciência da informação.

O artigo se estrutura da seguinte maneira: num primeiro momento, são apresentadas visões de diferentes autores, de diferentes áreas e disciplinas científicas, que compõem os principais entendimentos atuais sobre as causas, as características, as consequências, as dimensões e os níveis do fenômeno da pós-verdade. Logo depois, apresenta-se uma sistematização da conformação do campo da ciência da informação, buscando ver como ela privilegiou, ao longo de sua existência, diferentes questões e problemas, utilizando conjuntos de teorias, conceitos e métodos de pesquisa para o estudo de diversas realidades informacionais. Ao final, é feita uma aproximação entre as duas partes do artigo, analisando-se em que medida a pós-verdade representa um conjunto de mudanças estruturais nas dinâmicas informacionais contemporâneas, a exigir da ciência da informação novas categorias conceituais e metodológicas para a compreensão dessas dinâmicas.

2 Aproximações ao fenômeno da pós-verdade

A alegoria da caverna de Platão é bastante conhecida. Trata-se da história fictícia de um grupo de pessoas que vivia em uma caverna, acorrentada, sem poder se mover, e que não podia ver o que se passava fora da caverna, apenas as sombras projetadas pelas pessoas e objetos que se moviam do lado de fora – projeção essa constituída pelas sombras da luz de uma fogueira. Há muitas interpretações filosóficas sobre os significados dessa parábola. A mais consensual dessas interpretações é a que entende que, na situação descrita, as pessoas não têm acesso ao real, à verdade, mas sim às sombras, e as tomam como verdade. Segundo essa interpretação, a causa de tal acontecimento não está nas pessoas. Não se trata de uma natureza dos prisioneiros, de uma essência deles, mas sim de uma condição em que se encontram, isto é, de uma contingência, de uma determinada conjunção de fatores que atuam para produzir uma experiência específica. Seguindo ainda essa interpretação, as correntes representariam metaforicamente as crenças e os preconceitos que temos e nos quais acreditamos sem questionar. Seria possível avançar na interpretação, mas já há, aqui, os elementos necessários para se iniciar a discussão proposta. A situação apresentada por Platão coloca uma determinada situação que condiciona as formas de pensar e agir das pessoas e, no caso, sua relação com a definição do que é verdade.

Trata-se, portanto, de um contexto, uma condição. E é nesse sentido que o fenômeno da pós-verdade precisa ser compreendido: como resultado de determinadas condições (tecnológicas, sociais, culturais) que se colocam nas relações das pessoas com a verdade e, por extensão, com a informação. Cabe entender, portanto, que relações são essas para avançar na identificação destas condições.

Conforme Santaella (2019), o termo “pós-verdade” já havia sido usado por Steve Tesich em 1992, em sua análise sobre a Guerra do Golfo, e estava presente no título de um livro pela primeira vez na obra de Ralph Keyes, publicada em 2004. Mas foi em 2016 que a expressão foi intensamente utilizada, a ponto de ser considerada como a palavra do ano pelo Dicionário Oxford, designando as “circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal” (SANTAELLA, 2019, p. 7).

Nesta definição, estão os principais elementos que caracterizam a pós-verdade. Ela relaciona-se com uma gigantesca disseminação de informações falsas, que estão atuando para moldar a tomada de decisão das pessoas em diferentes esferas (na política, na economia, na educação na saúde, na religião), em velocidade e quantidade nunca vistas. Mas não se encerra, aí, seu significado. O fenômeno novo é o fato de que, hoje, muitas pessoas têm acesso fácil e instantâneo a tecnologias e possibilidades de verificar a veracidade de uma informação, por meio de smartphones, notebooks, desktops ou outros aparelhos. É preciso considerar que há uma significativa parcela da população mundial que não possui as condições econômicas para isso – isto é, não possuem condições de ter os aparelhos necessários, o acesso à internet ou têm um acesso limitado, por exemplo, há poucas fontes de informação, por terem pacotes de internet que só permitem determinados aplicativos. De toda forma, diferentemente de outros períodos da história, em que seria difícil ou impossível checar se uma informação, por exemplo, sobre o modo de vida de um país distante era verdadeira ou falsa, atualmente, de casa e em poucos segundos, muitas pessoas podem checar. Mas muitas dessas pessoas não fazem isso. Elas aceitam como real, repassam, compartilham e se apropriam de informações sem se preocuparem em verificar. É esse desdém, esse desinteresse pela verdade, numa realidade com tanto acesso à informação, que é o fato novo que a expressão “pós-verdade” busca abarcar.

Pós-verdade designa, pois, uma condição, um contexto, no qual atitudes de desinteresse e mesmo desprezo pela verdade se naturalizam, se disseminam, se tornam cotidianos, normais, e até mesmo estimulados. É essa característica que permitiria se falar numa “cultura da pós-verdade”. Além disso, muitas pesquisas têm apontado que o fenômeno da pós-verdade se correlaciona com outros fenômenos ou fatos, alguns que já vinham acontecendo há décadas, outros que até mesmo sempre existiram, mas que se relacionaram ou interagiram de uma determinada maneira somente nos últimos anos. Como colocado por McIntyre, a pós-verdade não existia antes, ela surgiu quando houve “a tempestade perfeita que teria outros fatores como o viés partidarista extremo e os ‘silos’ das redes sociais que surgiram no começo dos anos 2000” (McINTYRE, 2018, p. 68, tradução nossa). Identificar esses fatores também é uma questão central para se compreender o fenômeno da pós-verdade.

2.1 Pós-verdade como uma cultura

Inicialmente, portanto, é preciso entender o que significa compreender a pós-verdade como uma “cultura”. Naturalmente, há uma dimensão do fenômeno que é tecnológica. As tecnologias digitais mudaram de maneira decisiva a relação das pessoas com a informação. Entre essas mudanças está a informação pervasiva, isto é, a informação enquanto processo presente em todas as nossas atividades, sejam elas profissionais, empresariais, culturais, educacionais, esportivas, médicas, amorosas, etc., de uma maneira ou em uma escala inédita, relacionada a aparelhos ou dispositivos tão diferentes como computadores, telefones celulares, casas, carros ou objetos, tendo relação, inclusive, com o surgimento da chamada internet das coisas. Ligado a isso está o fenômeno conhecido como big data, que se relaciona não apenas com a produção, em escala cada vez mais gigantesca, de informação, e do impacto dessa informação na nossa vida, mas também com a própria maneira como a informação é produzida. Esse fenômeno se relaciona com o fato de que, cada vez mais, há conjuntos de dados gerados de maneira não intencional, não programada, pelas pessoas. Há ainda a própria lógica de funcionamento dos motores de busca e das redes sociais, utilizando determinados critérios e provocando certos efeitos (que serão analisados adiante). Todas essas são dimensões importantes relacionadas com o problema, isto é, que acabam atuando para a criação de um “ambiente propício para a proliferação de fakenews, confusão, a falta de confiança” (SANTAELLA, 2019, p. 33).

Existem esses fatores, mas eles se aliam ao desinteresse pela verdade, desinteresse esse que existe, é aceito, é naturalizado, é estimulado, é reproduzido. Existe um processo de aceitação e replicação de conceitos que normalizam o desdém pela verdade. E é essa dimensão que significa que, em grande medida, a questão da pós-verdade é um problema humano, é um problema relacionado com mentalidades, atitudes, um ethos, uma cultura: a pós-verdade “é um ideia, um imaginário, um conjunto de representações sociais ou sentidos já incorporados pelas audiências e desde a qual é possível a existência das fake news que se referem a essa ideia a afirmando ou ampliando” (MUROLO, 2019, p. 68, tradução nossa). Essa visão desloca a questão do nível individual – não são apenas decisões individuais, escolhas idiossincráticas, mas há, também, um conjunto de práticas, hábitos, situações e falas que promove, direta ou indiretamente, uma determinada relação das pessoas com a informação e com a verdade.

Wilber (2018) é um pesquisador que analisa o fenômeno em um livro com o sugestivo título de “Trump e a pós-verdade”. Ele parte da eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos e da saída da Grã-Bretanha da União Europeia, dois fenômenos diretamente associados com o triunfo das informações falsas produzidas, disseminadas e consumidas em massa. Também orientaram as decisões das pessoas num determinado momento de votação, e os associa a outros, como a diminuição da valorização da democracia, o aumento do ódio, do racismo, da xenofobia, do mau gosto, entre outros. E com isso enquadra a pós-verdade dentro de um amplo processo de mudança de valores culturais no mundo – e principalmente nas sociedades ocidentais.

Wilber (2018) faz uma leitura abrangente de valores e ideias em situação de liderança ou aceitação no mundo (o que denomina “vanguardas”). Ele identifica que, na primeira metade do século XX, o mundo era conduzido, nos diversos movimentos políticos, culturais, intelectuais, por valores associados ao racional, ao operacional, ao consciente, às ideias de mérito, lucro, progresso – isto é, diretamente relacionados com o ideal da modernidade. Em sua análise, ele considera que, após a década de 1960, estariam vigorando ideias associadas a valores pós-modernos tais como a defesa da pluralidade, do relativismo, da autorrealização, da inclusão, do multiculturalismo, dos direitos civis, da sustentabilidade, da defesa das minorias, entre outros. E, seguindo a análise, O autor pontua que estaria ocorrendo, na segunda década do século XXI, uma crise desse projeto, um fracasso das vanguardas progressistas.

Wilber (2018) aponta vários fatores que teriam causado esse fracasso. Entre eles, a relativização da ideia de verdade, a ideia de que existiriam verdades locais, particulares, o que desembocou numa forma de narcisismo generalizado; a incapacidade de assumir a perspectiva do outro, a perda do sentimento de empatia, o ódio contra os pontos de vista minoritários, conduzindo a visões essencialistas, com tendências ao racismo, ao patriarcado, à misoginia; e uma crise de legitimidade das instituições modernas, os direitos humanos, a razão, a ciência, a democracia.

Nessa mesma linha, mas num foco mais específico, Keen (2008) identifica o que chama de “culto do amadorismo”, uma certa celebração de conteúdos amadores que acaba por anular a distinção entre o profissional e o amador, o que leva ao enfraquecimento de jornais, revistas, indústria musical, cinematográfica e jornalística, com consequente desaparecimento de padrões profissionais e filtros editoriais e o enaltecimento do plágio e da pirataria. Outra análise na mesma linha é a de Frankfurt (2019), que identifica o predomínio do que chama de “conversa fiada”: uma forma de diálogo que, diferentemente do embuste e da mentira, representa um desrespeito à verdade, um desprezo, em formas de linguagem presunçosas, abusivas e enganadoras, discursos que buscam disfarçar a ignorância de quem os produz e enganar os que ouvem. O crescimento da “conversa fiada” na publicidade, na política e em diversos outros ambientes estaria promovendo um ceticismo em relação à verdade objetiva, na medida em que, diferentemente do mentiroso que ainda tem a verdade como referência (ainda que para negá-la ou escondê-la), na conversa fiada a verdade torna-se irrelevante.

Leituras semelhantes à de Wilber, Keen e Frankfurt são realizadas por outros pesquisadores que, contudo, enfatizam menos a questão cultural e mais a questão política. Nestes casos, a leitura é menos sobre as pessoas que atuam de maneira espontânea para a exacerbação da pós-verdade e mais sobre os que atuam planejando, aproveitando-se dessa situação. Nestas análises, a intensa circulação de informações falsas e o desinteresse das pessoas pela verdade tornam-se um aspecto, um instrumento, de um fenômeno maior, de natureza política.

É o caso, por exemplo, da análise de Eatwell e Goodwin (2019) sobre o que chamam de fenômeno do “nacional-populismo”: a ascensão de líderes demagógicos que constroem sua popularidade com o uso de mentiras e apelos a emoções de ódio, medo e ressentimento junto a grupos que sentem que não são mais representados pelas elites políticas, econômicas e intelectuais. Os autores identificam as quatro palavras-chave que explicam esse fenômeno: a desconfiança dos políticos e das instituições democráticas, o temor da destruição das comunidades e da identidade histórica, o medo da privação com a globalização e o desalinhamento entre os partidos tradicionais e o povo.

Na obra organizada por Geiselberger (2017), pesquisadores de vários países chamam o momento político atual de “o grande retrocesso”, verificando a ascensão de demagogos autoritários, a “desglobalização anárquica”, os movimentos identitários, a xenofobia e os crimes de ódio como protagonistas de um cenário em que grupos de extrema-direita estariam tomando o poder em diversos países. Outras leituras semelhantes são as de Casara (2019), que entende a era atual como “pós-democrática”, Fukuyama (2019), que a chama de “era do ressentimento”, e Serrano Oceja (2019), que a denomina “sociedade do desconhecimento”.

Unindo essas duas perspectivas, a mais cultural e a mais política, pode-se adotar a perspectiva de se identificar um “regime de pós-verdade”, expressão defendida por Broncano (2019) para designar o momento atual, tomando de empréstimo a noção de “regime de verdade” em Foucault, isto é, o conjunto de conhecimentos, dispositivos, atores, normas que geram categorizações, enquadramentos e condicionantes para o pensamento e a ação dos sujeitos.

Dessa forma, juntando as distintas contribuições apresentadas acima, pode-se concluir que a pós-verdade é um fenômeno relacionado à disseminação em massa de informações falsas (fake news), mediante um clima, um contexto favorável à sua propagação, porque dominado por uma mentalidade de desprezo, de desinteresse pela verdade.

2.2 Fatores correlacionados com a pós-verdade

Outras análises enfatizam os fenômenos aos quais a pós-verdade está associada, ou, dito de outra maneira, as causas que conduziram ao fenômeno – aquilo que McIntyre (2018) chamou de “tempestade perfeita”. É de McIntyre (2018), inclusive, a análise mais consistente sobre o fenômeno. O autor identifica cinco fatores que teriam conduzido ao processo da pós-verdade.

O primeiro destes fatores é o negacionismo científico, processo que adquiriu uma dimensão significativa na metade do século XX, quando cientistas descobriram que havia uma ligação entre o hábito de fumar e a incidência de câncer. A indústria do tabaco, que movimentava quantias gigantescas, se alarmou com essa descoberta e a possibilidade de que, se as pessoas descobrissem a verdade, perderiam lucros e mercado. Houve, então, um esforço deliberado em se construir uma fundação e patrocinar cientistas que dissessem não o contrário, que não existia a relação, mas para dizerem que não havia 100% de certeza de que o tabaco estava ligado ao câncer. O objetivo não era provar o contrário das evidências científicas, até porque isso não seria possível, mas sim disseminar a dúvida, gerar controvérsia. Essa indústria, inclusive, começou a exigir dos meios de comunicação de massa e agências governamentais que, em qualquer debate ou evento sobre essa questão, fossem apresentados os “dois lados” da questão – quando, na verdade, não havia dois lados, havia a certeza científica defendida por quase todos os cientistas e uma pequena quantidade de cientistas defendendo a ideia de que isso não era totalmente certo. O objetivo era gerar alguma dúvida para que as pessoas continuassem fumando, consumindo esse produto. O negacionismo científico cresceu, mostrando-se presente em outras questões como a da chuva ácida e do aquecimento global, entre outras.

O segundo fator relaciona-se com certas características cognitivas humanas, que alguns chamam de viés de confirmação ou de dissonância cognitiva. Há muitos estudos que mostram que o ser humano tem uma tendência a recusar os fatos ou ideias que contradizem suas crenças ou preconceitos, isto é, há tendência a buscar o conforto psíquico. Esse fato não é novo, contudo, atualmente, conforme a lógica dos motores de busca e das redes sociais oferecendo informação personalizada, gerando bolhas ou câmaras de eco, as pessoas acabam tendo unicamente contato com informações que confirmem o que já pensam e com que concordam, não têm contato com o contraditório, com outras opiniões ou pontos de vista.

O terceiro fator relaciona-se com a diminuição da influência dos meios de comunicação tradicionais, num fenômeno conhecido como desintermediação da informação. Sabe-se que os meios de comunicação muitas vezes ocultaram ou distorceram a verdade, mas eles não podiam inventar um fato completamente inexistente, pois sempre dispuseram de uma estrutura institucional, uma sede, um conjunto de profissionais que poderiam ser responsabilizados pela divulgação de uma mentira absoluta. No momento atual, mensagens apócrifas ou conteúdos disparados por anônimos não possuem lastro institucional, não há a quem se responsabilizar. Essa característica une-se à outra, isto é, se há, entre os receptores, pessoas que estão dispostas a acreditar no que for para confirmarem suas opiniões e crenças, e que não se importam com a verdade, tem-se o ambiente perfeito para o consumo e o compartilhamento de informações falsas.

Paralelamente, verificou-se o crescimento das redes sociais como forma privilegiada de acesso às informações do mundo por parte das pessoas. Tal fato tem gerado duas consequências. A primeira é o fortalecimento da disseminação subterrânea de informação, isto é, disparos de mensagens por aplicativos como o WhatsApp, em que não se sabe quem produziu, para quem foi enviada, e não há como denunciar a falsidade das informações divulgadas. Outra é a criação do efeito bolha ou de câmaras de eco, mencionada acima, resultado da personalização dos filtros promovida pelos algoritmos que sustentam sua execução.

Um quinto fator diretamente relacionado com o fenômeno da pós-verdade é o do sequestro, por parte de determinados grupos políticos e econômicos, de uma ideia bastante defendida pelo movimento intelectual da pós-modernidade. Durante a segunda metade do século XX, intelectuais que defenderam a noção de pós-modernidade argumentaram fortemente em defesa da ideia de que não existe uma única verdade, de que as interpretações sobre o que é o real dependem do sujeito ou do ponto de vista. Esses argumentos pouco a pouco conduziram a posturas relativistas, e à ideia de que defender algo como verdade absoluta seria um ato de violência, de sujeição do interlocutor.

Outros autores que também buscaram analisar os fatores que conduziram à pós-verdade acabaram por identificar os mesmos listados por McIntyre (2018) ou, eventualmente, outros. Na obra organizada por Aparici e García Marín (2019) aparecem basicamente os mesmos elementos seguindo outra lógica de identificação, com destaque para o declínio da razão, a cooptação dos meios de comunicação por instrumentos de manipulação emocional e a lógica de funcionamento da internet, dos motores de busca e das redes sociais.

Outra autora é Kakutani (2019), que também aponta diversos fatores, entre eles o declínio da importância da razão, o crescimento de uma cultura do narcisismo, o déficit de atenção, a formação de bolhas, a atuação de robôs, entre outras. A autora vincula, ainda, o fenômeno ao crescimento de regimes autoritários, destacando líderes demagogos que jogam com medos e ressentimentos das pessoas para construírem narrativas virais que suportam vários tipos de realidades “alternativas”. Evocando as ideias de Hannah Arendt expressas em “As origens do totalitarismo”, Kakutani salienta que o sujeito ideal para qualquer forma de governo totalitário é aquele para quem a distinção entre fatos e ficção, ou entre verdade e mentira, deixa de existir. Trata-se do sujeito típico da pós-verdade, e aí reside a ligação entre a pós-verdade como cultura e como projeto político.

3 Os problemas de pesquisa na história da ciência da informação

Disciplinas científicas nascem em contextos específicos e relacionadas ao desejo de compreensão de certas realidades ou resolução de certos problemas. No caso da ciência da informação, seu contexto de nascimento foi fundamental para delimitar um objeto de estudo, uma maneira de estudá-lo e uma problemática na qual enquadrá-lo. Surgida pouco depois da segunda guerra, exatamente nos países vencedores do conflito (Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética), ela nasceu da percepção de como o avanço cientifico e tecnológico era um elemento-chave no contexto de competição entre os países chamado de guerra fria. Era preciso estudar a informação científica e tecnológica, determinar seus padrões, suas características, e os meios para garantir sua transmissão de maneira mais rápida, exata e eficaz, aproveitando as incipientes tecnologias de automação (DEBONS; HORNE; CRONENWETH, 1988; DAVIS; SHAW, 2001; GILCHRIST, 2009). Nesse momento, os aportes da teoria matemática da comunicação e da teoria sistêmica, bem como a centralidade do conceito de recuperação da informação, conformaram o ambiente intelectual a partir do qual se deram as preocupações com o controle, a transferência, a medição e a otimização dos processos envolvidos com a informação científica e tecnológica.

As décadas se passaram, e a ciência da informação acabou por dedicar-se a outros campos de estudo (a organização da informação, os usuários da informação, a gestão da informação nas empresas, a sociedade da informação), alargando as problemáticas e ampliando os objetos de estudo. Entre as mudanças mais significativas, está a centralidade dada à dimensão cognitiva, com foco nos usuários mais do que nos sistemas, e nas relações entre dado e conhecimento por meio do processamento da informação (LINARES COLUMBIÉ, 2005; CRONIN, 2008).

Nas últimas décadas, vêm se desenvolvendo perspectivas que estão relacionadas com a constituição social da informação, com a dialética envolvendo as dimensões do sistema e do indivíduo, com os regimes e as práticas de informação, com a análise dos domínios. De acordo com essa tendência, a pesquisa em informação não seria o estudo da transferência de mensagens, nem apenas o preenchimento de lacunas cognitivas dos sujeitos pelos dados. A pesquisa em informação seria analisar os efeitos sociais dos documentos, as relações entre a criação de registros de conhecimento e as demais ações dos sujeitos, as imbricações entre as dinâmicas informacionais e as demais esferas da vida humana – econômicas, políticas, culturais, jurídicas, esportivas, amorosas, entre outras. (BAWDEN; ROBINSON, 2012; HJORLAND, 2018a; HJORLAND, 2018b).

O saldo dos conhecimentos produzidos na ciência da informação ao longo das suas seis décadas de existência permitiu a consolidação de alguns aspectos dos fenômenos informacionais. Entre eles, a percepção de que o processo de conhecimento não é apenas um acúmulo de dados, a inserção de dados, pelos sujeitos, na mente, para o preenchimento de lacunas cognitivas. O processo é, antes, dialético, no qual os sujeitos fazem dialogar, em suas mentes, os dados adquiridos com conhecimentos já possuídos, duvidando de alguns, recusando outros, negociando. Um segundo achado dos estudos é que a relação das pessoas com a informação não é apenas mentalista, somente um processamento de dados, ele se insere nas ações dos sujeitos. Os conhecimentos são integrados nas atividades cotidianas, frequentes, no decorrer da nossa existência.

Outra compreensão consolidada é a de que os processos informacionais não são meras ações de busca e de recuperação da informação. São também processos de produção, de disseminação, de compartilhamento, de etiquetagem, etc. Aliada a ela, compreende-se também que os processos não são apenas de natureza individual. Sentir falta, buscar e usar informação são processos também de natureza coletiva, intersubjetiva, esfera na qual são decididos o que é uma necessidade de informação, quais as maneiras de buscá-la, etc.

Uma quinta questão relaciona-se com a descoberta de que, para estudar a informação, não basta entender o que acontece no interior dos sistemas de informação, o que se passa com os aplicativos ou com as unidades ou serviços de informação. As realidades dos sistemas são atravessadas por elementos dos contextos sócio-históricos, políticos, culturais e jurídicos. Capturar os fenômenos informacionais na sua complexidade exige inserir aquilo que se passa nos sistemas de informação nos contextos nos quais eles existem. Por fim, informação não é apenas um fenômeno de transporte de dados, não se trata apenas de determinar de onde partiram determinadas mensagens, as transformações que elas sofreram e para quem chegaram, bem como identificar os instrumentos que atuaram nesse processo. Estudar a informação é ver em que medida a informação é um processo de constituição da cultura, da memória, e da identidade dos indivíduos, por meio da contínua produção e reprodução de registros de conhecimento.

Assim é que, ao longo de sua história, a ciência da informação buscou estudar a informação, primeiro, em problemática orientada aos sistemas, mobilizando conceitos relacionados a sinal, relevância, recuperação, transferência. Depois, orientada aos usuários, com conceitos como dado, conhecimento, lacuna, busca, uso. E, mais recentemente, orientada à cultura e à ação, utilizando categorias como memória, saberes, documento, apropriação, entre outros.

4 Pós-verdade como um novo problema para a ciência da informação

As mudanças verificadas na ciência da informação ao longo de sua existência relacionam-se com avanços obtidos pelo próprio conhecimento científico (a evolução das teorias, a confirmação de hipóteses, a demonstração do poder explicativo de conceitos) mas, também, com alterações da própria realidade empírica, isto é, transformações nas dinâmicas informacionais. Nesse sentido, a pós-verdade representa uma “transformação profunda nos modos como as informações são produzidas, recebidas e reproduzidas” (SANTAELLA, 2019, p. 22). Os aspectos envolvidos pela dinâmica da pós-verdade relacionam-se com as tecnologias e os sistemas de informação, com as características e atuações dos usuários e, ainda, com as dinâmicas culturais e sociais nas quais a informação se constitui. Portanto, a ciência da informação possui categorias pertinentes para se entender o fenômeno. Contudo, diversos atributos da informação já foram estudados (relevância, qualidade, exatidão, acessibilidade, etc.), mas sua condição de ser “verdadeira” nunca esteve entre elas. Não houve, até o momento, essa necessidade. Mas, agora, há. E é nesse sentido que é preciso inserir a veracidade da informação como categoria central e, a partir dela, reformular categorias de análise da ciência da informação para o estudo da realidade contemporânea. É preciso estudar a pós-verdade como uma nova dinâmica a partir da qual a informação é produzida, circula e é consumida, numa dinâmica na qual atuam os sistemas de informação, as tecnologias digitais, os sujeitos e, permeando tudo isso, a cultura do desdém e do desprezo pela verdade.

Durante décadas, o desafio central da ciência da informação era incentivar e promover o uso da informação, centrada na recuperação e no acesso, dentro da lógica da “sociedade da informação”. Agora, na lógica das sociedades do retrocesso, do desconhecimento, dos regimes de pós-verdade, o grande desafio é como promover uma cultura da busca da verdade. Para retomar o exemplo de Platão, do início do texto, seria o momento de atuar contra determinadas condições em que as pessoas “por estarem retidas dentro de suas próprias cavernas platônicas tornam-se incapazes de furar o bolsão de suas crenças fixas para enxergar algumas clareiras fora delas” (SANTAELLA, 2019, p. 37). Ao fazer isso, ao denunciar os efeitos negativos do fenômeno da pós-verdade e propor ações para confrontá-los, a ciência da informação pode atuar no resgate de valores com os quais o campo historicamente se comprometeu e que se encontram ameaçados, como a democracia, a inclusão, a diversidade, a sustentabilidade e a promoção de uma cultura da paz.

Referências

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Autor notes

1 Doutor; Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil;

casal@eci.ufmg.br



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