Resumo: Este estudo objetiva mapear e analisar a presença e a representatividade do patrimônio esportivo no contexto da plataforma Google Arts & Culture. Realiza buscas remotas a partir do termo “sport” para identificar museus, coleções e instituições culturais cujos acervos e temática relacionem-se ao patrimônio esportivo. Analisa os resultados encontrados à luz da bibliografia disponível e das informações publicadas pelas instituições identificadas. Verifica que o patrimônio esportivo, os museus e as coleções do esporte encontram-se pouco representados dentro do universo de resultados encontrados na plataforma Google Arts & Culture. No contexto dos resultados obtidos, observa ainda que a Austrália e seu patrimônio esportivo têm uma expressiva presença em relação a outros países, nos quais se situam importantes instituições culturais do esporte. Conclui que, ao mesmo tempo em que o Google Arts & Culture permite acesso irrestrito e em âmbito global a um vastíssimo universo de instituições e bens culturais, os processos seletivos, as parcerias e as decisões curatoriais levadas adiante pelo Google Arts Institute estão sujeitas a influências e demandas de mercado que podem acarretar distorções, tanto no que se refere às instituições componentes da plataforma quanto à narrativa associada aos bens apresentados.
Palavras-chave:Patrimônio esportivoPatrimônio esportivo,Museus do esporteMuseus do esporte,Google Arts & CultureGoogle Arts & Culture.
Abstract: This study aims to map and analyze the presence and representativeness of sporting heritage in the context of the Google Arts & Culture platform. Performs remote searches based on the term “sport” to identify museums, collections, and cultural institutions whose collections and themes are related to sporting heritage. It analyzes the results found in the light of the available bibliography and information published by the identified institutions. It verifies that sporting heritage, museums and sport collections are underrepresented within the universe of results found on the Google Arts & Culture platform. In the context of the results obtained, notes that Australia and its sporting heritage have an expressive presence in comparison to other countries, in which important cultural institutions of sport are located. It concludes that, while Google Arts & Culture allows unrestricted and global access to a vast universe of institutions and cultural assets, the selection processes, partnerships, and curatorial decisions carried out by the Google Arts Institute are subject to influences and market demands that can lead to distortions, both regarding the institutions that make up the platform and the narrative associated with the cultural goods presented.
Keywords: Sporting Heritage, Sports Museums, Google Arts & Culture.
O Patrimônio Esportivo e os Museus do Esporte no Google Arts & Culture
Sporting Heritage and Sports Museums on Google Arts & Culture
Recepción: 15 Mayo 2020
Aprobación: 04 Noviembre 2020
Ao longo do ano de 2020, impulsionadas pelo isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus, milhares de pessoas, em todo o mundo, se voltaram para o universo dos museus online. Neste universo, destaca-se a plataforma Google Arts & Culture, que reúne e apresenta acervos e informações sobre mais de 2000 museus, arquivos, bibliotecas e patrimônios culturais de todo o mundo. Além disso, de acordo com análise publicada pelo Google Trends1, a plataforma teve um número quatro vezes maior de buscas online durante o mês de março de 2020 em comparação aos meses anteriores (GASKIN, 2020).
A plataforma foi lançada em 2016 como um projeto cultural da empresa Google – responsável pela ferramenta de buscas utilizada por mais de 90% dos usuários de internet em todo o mundo (STATCOUNTER, 2020). Sua proposta consiste em tornar acessíveis remotamente, sem restrições, um amplo espectro de bens e de manifestações artísticas e culturais. Isso ocorre por meio de uma tecnologia desenvolvida por esta empresa, a qual permite a captura de imagens em alta definição e visitas virtuais em 3D.
A partir da noção de que diferentes instituições e temáticas, atuantes no universo da cultura, estariam acessíveis nesta plataforma, a nossa investigação objetivou mapear a presença e a representatividade do patrimônio esportivo2 no contexto do Google Arts & Culture. Para tal, a partir da busca pelo termo “sport”, encontramos museus, coleções e outras instituições culturais cujos acervos e temáticas estivessem relacionados ao patrimônio esportivo. Em seguida, analisamos os resultados encontrados à luz da bibliografia disponível e das informações publicadas online pelas instituições.
Os resultados obtidos em nossa investigação nos permitem afirmar que, embora esteja presente e representado por relevantes instituições e museus do esporte - como o Museu Olímpico do Comitê Olímpico Internacional (Lausanne, Suíça), o National Football Museum (Manchester, Reino Unido) e o Museu do Futebol (São Paulo, Brasil), entre outros - o patrimônio esportivo e os museus e coleções do esporte, de modo geral, encontram-se sub-representados na plataforma Google Arts & Culture. Isso ocorre quando eles estão relacionados a outras tipologias de patrimônios e de museus ou, ainda, em relação aos contextos nacionais nos quais se inserem e à sua importância dentro destes.
Dentro do universo dos resultados encontrados na plataforma Google Arts & Culture, nota-se a predominância das coleções e instituições australianas em relação aos demais países representados. Cientes do substancial interesse dos australianos pelo esporte, em relação a outros assuntos, e da ocorrência de uma relevante produção acadêmica sobre o tema do patrimônio esportivo3, podemos afirmar que a Austrália não é o país do mundo com mais museus e coleções do esporte (PHILLIPS, 2012, p. 1)4. Por esta razão, nos perguntamos como funcionariam os processos de mediação entre esta plataforma e as instituições culturais.
Ao desenrolar de nossa pesquisa, compreendemos que a plataforma é gerida pelo Google Art Institute5 – instituição sem fins lucrativos que forma parcerias com as instituições culturais. Contudo, nos deparamos com escassas informações sobre os parâmetros aplicados pelo Google para a seleção das instituições parceiras e sobre os processos que serão acionados posteriormente. Concluímos, então, que a pesquisa aqui empreendida e os resultados encontrados levantam novos questionamentos e ilustram aspectos relativos às complexas mediações e interesses que podem estar envolvidos nas relações entre as instituições culturais e o “mercado”, representado por grandes corporações como o Google.
A partir de breves considerações sobre a noção de patrimônio esportivo e do estabelecimento da definição dos museus do esporte como aquelas instituições museológicas dedicadas a conservar, pesquisar e comunicar o patrimônio esportivo, nos dedicamos a analisar a presença dos museus, coleções e bens culturais relacionados ao esporte na Plataforma digital Google Arts and Culture. Partindo de um conciso histórico sobre as origens desta ferramenta, apresentamos a pesquisa realizada e os resultados por ela obtidos. Na sequência, nos dedicamos a analisar estes resultados e a investigar as possíveis razões que poderiam justificar a expressiva presença quantitativa dos bens e instituições conexas ao patrimônio esportivo australiano, frente a outros países.
Desde os anos 1960, no contexto de um movimento de valorização e de reconhecimento da “cultura popular” 6, determinados bens conexos ao esporte, como as taças, medalhas etc., passaram a ter um valor representativo da história e da memória do esporte, sobretudo frente as identidades plurais das comunidades, estas capazes de eleger alguns bens como patrimônios a compor os acervos museológicos. Os anos 1980, por sua vez, marcaram o momento de estabelecimento da noção de patrimônio esportivo – em especial na França e no Reino Unido –, reforçando o valor identitário e o significado cultural dos bens relacionados ao esporte, como patrimônios (REILLY, 2015; MITIDIERI, 2017). Embora não haja espaço aqui para nos aprofundarmos sobre as definições de “esporte” e de “patrimônio”, componentes do termo “patrimônio esportivo”, é válido ressaltar que estamos tratando de conceitos dinâmicos e em permanente transformação. Assim, para efeito de nossa pesquisa, a qual nos obriga a estabelecer parâmetros, adotaremos a acepção do esporte como atividade competitiva, desvinculada de guerras e rituais, motivada por recompensas, que envolve esforço físico e/ou habilidade, ocorre em local e tempo específicos, com equipamentos padronizados e está regulada por regras e entidades representativas (ELIAS, 1992; BROMBERGER, 1995). No mais, a compreensão do patrimônio a ser considerada sugere-o pela seguinte definição: “todo objeto ou conjunto, material ou imaterial, reconhecido e apropriado coletivamente por seu valor de testemunho e de memória histórica e que deve ser protegido, conservado e valorizado.” (ARPIN, 2000 apud DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013, p. 76).
Nesse contexto, podemos compreender o patrimônio esportivo como uma categoria do patrimônio, composta por um conjunto de bens materiais e imateriais, conexos às atividades esportivas e cujo valor como testemunho pode transcender o próprio esporte, justificando a sua preservação (RAMSHAW, GAMMON, 2005; BROMBERGER, 2006; GASTAUT, 2015; LAMOTHE, 2016; MITIDIERI, 2017).
Dentro da ampla gama de bens que compõem esta categoria do patrimônio, encontram-se os itens da cultura material guardados e preservados nos museus do esporte. Vale ressaltar que tal tipologia de museu se multiplicou em todo o mundo, a partir dos anos 1960, e teve seu desenvolvimento impulsionado nos anos 1980, na esteira das mudanças ocorridas no contexto museológico no que se refere ao papel dos museus nas sociedades e à variedade de temáticas que passam a ser abordadas por estas instituições desde então. Os museus do esporte são instituições dedicadas a conservar, investigar e comunicar o esporte, em seus múltiplos aspectos, no contexto das relações estabelecidas entre esta atividade e a sociedade. Em geral, trata-se de instituições que guardam acervos com foco exclusivo no esporte ou em recortes temáticos deste - como uma prática esportiva específica, um clube ou atleta em particular (DURRY, 1991; PHILLIPS, 2012; REILLY, 2015).
Em 2011, a empresa de tecnologia Google fez sua primeira incursão no mundo da cultura com o lançamento do Google Art Project, uma plataforma online, sem fins lucrativos, fundamentada na parceria com 17 museus dos Estados Unidos e da Europa. Segundo a pesquisadora americana Megan Udell7, “[...] o foco principal do projeto era digitalizar em altíssima definição determinados objetos de museu, permitindo ao espectador acessar detalhes que não seria possível ver em uma galeria.” (2019, p. 18, tradução nossa). O projeto oferecia ainda visitas virtuais às galerias dos museus parceiros (por meio da tecnologia Google Street View) e a opção de que o usuário criasse a sua própria coleção, entre outras possibilidades. No entanto, o projeto suscitou críticas desde as limitações relativas a diretos autorais (que não permitiam a apresentação de certas obras de arte, por exemplo), aos questionamentos sobre a descontextualização dos objetos e a pouca informação a eles associados (para além das imagens de alta definição) além das limitações técnicas que permitiam apenas vistas bidimensionais dos objetos digitalizados (UDELL, 2019).
Em 2016, o Google Art Project foi relançado com o nome de Google Arts & Culture. Com o objetivo de abranger um amplo espectro da cultura mundial, a nova ferramenta – disponível como um website e como um aplicativo móvel – vem realizando novas parcerias com instituições culturais e apresentando inciativas como, por exemplo, o “We Wear Culture” (2017) que reúne uma vasta diversidade de manifestações culturais. Desde 2016, a gama temática abordada pela plataforma ampliou-se, incorporando assuntos como ciência, gastronomia, música e esportes, os quais são compreendidos como elementos da cultura mundial assim como as artes, a dança, os monumentos e os locais culturais e históricos.
A plataforma traz alguns recursos especiais, como o “Art Camera”, que permite a captura de imagens em altíssima resolução (formato gigapixel) e ampliações com altíssima qualidade, e a ferramenta “Google Street View”, que proporciona vistas tridimensionais e em 360º de galerias e seus espaços internos. A partir da tecnologia desenvolvida pelo Google, a plataforma Google Arts & Culture, do ponto de vista de sua interface digital, tem um design limpo, visualmente padronizado (fundo branco e poucos textos) e orientado para destacar imagens, sem veicular anúncios. A página de abertura do website exibe alguns destaques, selecionados com as diretrizes da equipe editorial do Google Arts Institute, que busca equilibrar conteúdos das diversas instituições parceiras e atrair o interesse de um público também diverso.
Em linhas gerais, a página principal oferece a possibilidade de acesso a fotografias, textos e vídeos por meio dos tópicos “coleções”, “objetos”, “histórias” (apresentações que reúnem imagens e textos sobre um determinado assunto), “temas” (agrupamentos de histórias e objetos de diferentes acervos e instituições, reunidas por um mesmo eixo temático) e também por meio de opções de busca e de classificação. Além disso, mesmo os museus e as instituições culturais que não são parceiros da inciativa podem ser visualizados pela opção “Por Perto” e acessados por meio de seus próprios websites. Sobre o conteúdo da plataforma, Meghan Udell (2019, p. 25) ressalta que:
Embora as imagens de alta resolução de obras de arte e as informações fornecidas pelos museus possam ser úteis para o pesquisador, o site foi projetado para exibição e as funções de pesquisa não são tão detalhadas quanto seriam necessárias para o uso em pesquisas. Além disso, nem toda a coleção de um museu será enviada para a plataforma. A menos que se procure os artistas mais prolíficos ou populares, movimentos artísticos ou eventos históricos, os resultados da pesquisa serão limitados.
Desde seu lançamento, a plataforma Google Arts & Culture vem sendo modificada e novos recursos tecnológicos foram incorporados, permitindo ao visitante uma experiência cada vez mais dinâmica e imersiva. Por outro lado, esta plataforma vem recebendo críticas de especialistas dos campos da museologia, das artes, entre outros, que, como vimos, apontam para questões técnicas relativas à apresentação dos objetos online e suas limitações, desde a falta de contexto e de informações do objeto à seleção de recortes dos acervos que privilegiam as obras e artistas mais populares ou ainda à excessiva padronização da plataforma. Além disso, a motivação do Google Arts Institute como instituição sem fins lucrativos é um eventual posicionamento da plataforma Google Arts & Culture como concorrente dos websites de museus, o que no mínimo suscita debates entre os especialistas, sobretudo no campo tecnológico e do patrimônio, tanto pela influência que o Google tem enquanto empresa mundialmente conhecida quanto pelas escolhas do patrimônio e sua forma de apresentação (FABER, 2018; UDELL, 2019).
Em busca de localizar os museus, coleções e outros bens do patrimônio esportivo no contexto da ferramenta Google Arts & Culture, pesquisamos, a partir da página de abertura do website, a palavra “esporte” em português e suas traduções, “le sport” (francês) e “sport” (inglês). Os resultados encontrados, para cada uma das buscas mencionadas, encontram-se compilados na Tabela 1 abaixo.
Os resultados iniciais da pesquisa revelam que o termo “sport”, em inglês, apresentou o maior número de citações e diversidade de tópicos e de resultados. Além disso, embora não seja viável comparar todos os resultados encontrados, é possível afirmar que as coleções encontradas são as mesmas para as três buscas - ou seja, a coleção em “esporte” e as sete coleções em “le sport”8 também estão listadas quando se busca por “sport”. Assim, em razão da abrangência do termo “sport”, tanto no que se refere à variedade de tópicos (os temas e museum views não aparecem nas demais buscas) quanto ao número de resultados obtidos, seguimos a nossa pesquisa utilizando como referência de busca o termo em inglês “sport”.
Neste contexto, o passo seguinte consistiu no aprofundamento do perfil das instituições e coleções apresentadas como relacionadas ao termo “sport”. Em função do grande número de itens e de histórias, nos limitamos a analisar os tópicos “coleções”, “museum views” e “temas”, acessando cada uma das instituições, coleções e visitas individualmente.
A seção “coleções” reúne e apresenta as coleções exclusivamente voltadas para o termo que se busca – “sport”, neste caso – e pertencentes aos museus e instituições esportivas. Entretanto, também é possível encontrar coleções referentes aos museus e outras instituições que possuam objetos relacionados ao esporte, os quais são apresentados por meio de fotografias de altíssima resolução e acompanham concisos textos explicativos.
Os resultados obtidos a partir do termo “sport” (Quadro 1) apresentam coleções e instituições tão distintas quanto o Museu Olímpico de Lausanne e o Museu do Traje de Madrid. Por esta razão, acessamos cada uma das 34 coleções listadas com o objetivo de identificar, além de seu país e cidade, também certas características destas coleções e das instituições que as guardam. Buscamos identificar se as coleções estariam guardadas em museus ou em distintas tipologias da instituição (como associações, fundações, clubes e outros). No caso das coleções pertencentes a museus, analisamos se seriam compostas por objetos conexos às práticas esportivas ou se tratariam de coleções de obras de arte ou fotografias com temática esportiva. Também no caso das coleções incorporadas aos museus, consideramos se estas pertencem aos museus do esporte ou se seriam recortes de coleções mais amplas e componentes de acervos de museus cuja temática seja diferente do esporte (arte, história etc.). No caso das coleções guardadas por instituições outras que não somente os museus, interessou-nos analisar, além da tipologia de objetos que as compõem, qual seria a principal temática associada à estas instituições.
A compilação dos resultados obtidos nos permite observar que, quanto à localização geográfica destas coleções, existem dez coleções da Austrália, cinco na Espanha, cinco nos Estados Unidos da América (EUA) e quatro no Reino Unido.
No que se refere ao perfil das instituições que guardam as coleções, observamos que seis coleções pertencem a museus do esporte (indicadas em azul no Quadro 1) enquanto outras seis pertencem a instituições que, não sendo museus, estão relacionadas ao tema do esporte – como sítios esportivos históricos, clubes e organizações diversas (indicadas em cinza no quadro acima). Assim, notamos que, num universo de 34 coleções, 12 delas (menos de 50%) pertencem a instituições cuja temática está voltada exclusivamente para o esporte e apenas seis delas (menos de 20%) pertencem a museus do esporte.
Sobre a análise da seção “museum views”, é válido notar que se trata de visitas virtuais a museus e sítios culturais, realizadas por meio da utilização da ferramenta “Google Street View”. Com esse recurso, é possível simular passeios a pé pelas galerias de mais de 3.000 museus e outros espaços (abertos ou fechados), com visualização em três dimensões (3D) e com a possibilidade de “girar o olhar” em 360º em direção às obras e locais específicos – as quais se pode focalizar e analisar em detalhes (ver Figura 1). Pode-se, ainda, escolher o percurso que se quer traçar e determinar a velocidade da visita.
Para analisar o tópico “museum views”, acessamos cada uma das visitas disponíveis. Sobre elas, de imediato, nos chamou atenção o fato de dez delas serem relacionadas à instituições australianas – dentro de um total de 12 visitas. Contudo, uma análise detalhada nos revelou que à exceção da visita ao National Sports Museum, as demais visitas se relacionam ao parque histórico Moore Park, em Sydney. Vale indicar que o local do parque, em específico, comporta diferentes espaços tombados e reconhecidos como patrimônio por instâncias distintas e dentro de um intrincado sistema nacional que permite que se tombe “partes” de um mesmo edifício sem, no entanto, tombar toda a construção. Em Moore Park localiza-se, ainda, o Sidney Cricket Ground Museum, uma das dez “museum views” australianas.
Dentre as duas instituições fora da Austrália que oferecem “museum views”, apenas uma pode ser considerada um museu do esporte. Trata-se do “Fanatic Sports Museum”, uma pequena instituição privada, fundada em 2017, na Índia, a partir da coleção formada pelo professor e pesquisador Boria Majumdar, Doutor em História do Cricket. A visita ao “Robben Island Museum”, na África do Sul, consiste em uma visita virtual a um campo esportivo pertencente a um complexo prisional desativado9 e nomeado pela UNESCO como patrimônio da humanidade em 1999.
Sobre a análise da seção “tema”, é válido ressaltar que esta reúne projetos desenvolvidos pelo Google Arts Institute, voltados para aqueles que querem se aprofundar em um determinado assunto. Os “temas” são exposições online cujo conteúdo é apresentado por meio de slide shows, compostos por sequências de fotografias, documentos textuais, filmes e recursos multimídias.
Em março de 2020, a partir do termo “sport”, identificamos apenas o tema “Australia: Great Sporting Land” (Austrália, uma grande terra esportiva em tradução livre) dentre os 112 temas apresentados pelo Google Arts & Culture. Realizado em colaboração com oito instituições australianas, o tema reúne 30 coleções, histórias, tours e exposições virtuais, além de uma série de informações sobre o esporte na Austrália, exibidas por meio de vídeos, documentos textuais e fotografias. Este tema apresenta as histórias dos principais esportes praticados no país, as grandes vitórias e seus personagens significativos, depoimentos de atletas nacionais que falam sobre o significado do esporte em suas vidas, além de uma diversidade de aspectos relacionados ao esporte – inclusive detalhes curiosos como, por exemplo, a técnica empregada na pintura das quadras de tênis mais importantes do país.
A busca pela palavra “sport” nos levou a um variado universo de instituições e de coleções que representam uma pequeníssima parte do universo de museus e de acervos do esporte do mundo – afirmação corroborada pela pesquisa empreendida por Victor Danilov que localizou, ainda em 2005, 580 museus do esporte em 46 países (PHILLIPS, 2012, p. 2; RAMSHAW, 2020, p. 60). Neste contexto, mesmo cientes de que o sistema de buscas e de navegação desenvolvidos e empregados pelo Google e a lógica que os orienta poderiam explicar parte destes resultados e que apenas uma parcela das instituições museológicas existentes está representada no Google Arts & Culture, podemos afirmar que, no âmbito desta plataforma, os museus do esporte e o patrimônio esportivo encontram-se sub-representados.
A fim de apoiar esta afirmação, realizamos uma busca na plataforma Google Arts & Culture pela palavra “museum”, que resultou numa lista de 1.201 instituições e suas coleções. Na mesma ocasião, a busca por “sport museum” resultou em 18 instituições (coleções), as quais, com exceção do museu (de arte) Museum of Cycladic Art (assinalado em vermelho), situado em Atenas, na Grécia, também haviam sido localizadas na busca anterior por “sport” (Quadro 1). No entanto, dentre estas 18 instituições encontradas, apenas seis delas são, de fato, museus do esporte. Isso indica que os museus do esporte representam apenas 0,5% dos museus associados à plataforma Google Arts & Culture. A título de exemplo, no contexto dos 3884 museus brasileiros listados pela Plataforma MuseusBr – ferramenta de buscas que centraliza informações sobre os museus brasileiros, chancelada pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) -, a nossa pesquisa identificou 48 museus do esporte, número que representa 1,28% do total museus do Brasil10.
Embora as possibilidades e combinações possíveis de busca sejam diversas, especialmente dentro do universo de instituições localizadas, as quais têm parcerias firmadas com o Google Arts Institute, chama atenção a proporção das instituições australianas, frente ao número de instituições dos outros 12 países em que encontramos coleções e instituições relacionadas ao patrimônio esportivo. Os dados aqui compilados revelam que, a Austrália reúne cerca de um terço do total das coleções, considerando que as dez coleções encontradas no país representam o dobro do número de coleções dos EUA, local que aparece em segundo lugar – assim como dez das 12 “museum views”. Além disso, se refere a este país o único “tema” dentre os 112 temas que abordam o esporte e que se encontram disponíveis na plataforma Google Arts & Culture no período de nossa pesquisa, como aponta a tabela 2 abaixo.
A partir destes resultados, perguntamos: há mais museus do esporte na Austrália do que em outros países? Há mais bens do esporte reconhecidos como patrimônio na Austrália do que em outros países? Os museus do esporte australianos estariam mais organizados e agrupados em organizações que levariam adiante certas iniciativas como, por exemplo, a parceria com o Google? Quais seriam os critérios do Google Arts Institute para o estabelecimento de parcerias?
Em busca de respostas aos nossos questionamentos, procuramos dados sobre o número de museus do esporte na Austrália e sobre como estes se organizam. Em outras palavras, buscamos as possíveis associações e grupos que reúnem estes museus e seus profissionais, por exemplo. Procuramos, ainda, localizar listagens de bens conexos ao esporte e patrimonializados neste país. Por fim, procuramos informações sobre o sistema de funcionamento do Google Arts Institute e sobre a forma como esta organização seleciona e estabelece suas parcerias. Contudo, nos deparamos com uma expressiva escassez de fontes informacionais.
A procura remota por informações gerais sobre os museus do esporte e o patrimônio esportivo australiano (números, organizações responsáveis, localização etc.) revelaram-se infrutíferas, assim como as informações sobre as parcerias firmadas pelo Google e seus critérios, com apresentação de escassos resultados. Nossa investigação obteve, exclusivamente, alguns dados sobre o lançamento da iniciativa “Australia Great Sporting Land”, que motivou a elaboração de textos comemorativos e de press releases pelo Google e por parte das instituições participantes, os quais subsidiaram matérias em jornais e revistas especializados em tecnologia e arte, além de serem publicados em websites e redes sociais do Google e de suas instituições parceiras.
Para além dos detalhes técnicos do projeto (número de imagens, tecnologias empregadas etc.), foi possível apurar que, ao longo de dois anos, o Google Austrália firmou parcerias com mais de 30 instituições esportivas australianas para permitir que seus acervos, sítios esportivos, histórias, personagens e conquistas esportivas fossem registrados e incorporados a esta plataforma e seus padrões. Isso porque há a intenção de serem acessados em âmbito global, “Celebrando e preservando os personagens, momentos e lugares que moldaram a identidade esportiva do país.” (SYDNEY CRICKET GROUND, 2019, documento eletrônico).
No entanto, ao longo de nossa investigação, realizada por meio de exaustivas buscas online, não identificamos subsídios teóricos que nos permitissem compreender os processos de seleção, mediação e construção das citadas parcerias entre o Google Arts Institute e um número de instituições australianas, que culminaram na realização da exposição virtual “Australia Great Sporting Land”. Esses processos permitiram, ainda, a inclusão de um número proporcionalmente significativo de museus e coleções do esporte deste país na plataforma Google Arts & Culture, em comparação a outros países.
Os EUA, por exemplo, sendo o país com mais museus do esporte do mundo, já que dados de 2012 indicam a existência de cerca de 400 instituições com este perfil (PHILLIPS, 2012, p.1), encontra-se representado nesta plataforma por apenas quatro instituições, sendo dois museus históricos, um museu de arte e um arquivo fotográfico. A França e seu prestigiado Musée du Sport, um dos relevantes e pioneiros museus do esporte do mundo e polo gerador de pesquisas sobre o patrimônio esportivo, também não estão presentes nesta plataforma. Por fim, o Reino Unido, considerado como o berço do esporte moderno, onde ele é fortemente relacionado às questões identitárias e o qual se configura como um polo gerador de estudos e iniciativas voltadas para o patrimônio esportivo e para os museus do esporte, encontra-se representado por quatro instituições. Entre elas, duas são museus de arte e história, outra é uma pequena fundação voltada para a memória de um atleta e apenas o National Football Museum é, de fato, um museu do esporte11 (MELO, 2010; MITIDIERI, 2017).
As razões que elucidam tais resultados não foram alcançadas por esta pesquisa. As insuficientes informações que nossa investigação localizou sobre as motivações e os métodos empregados na formação das relações e parcerias estabelecidas entre, de um lado, a corporação internacional Google e as diferentes instituições culturais e, de outro, o propósito de ser sem fins lucrativos, não nos permitem analisar ou identificar as razões que justificariam a ausência de relevantes bens e instituições conexas ao patrimônio esportivo. O mesmo pode ser dito sobre a acentuada presença do patrimônio esportivo australiano no Google Arts & Culture. Os processos de mediação que levam uma determinada instituição de patrimônio a firmar parcerias com o Google Arts & Culture, assim como os processos seletivos e curatoriais que permitem que suas coleções e objetos ali sejam exibidos, são complexos e pouco claros para aqueles que, como esta pesquisa, se interessam em compreendê-los.
A pesquisa aqui realizada consistiu em um mapeamento da presença dos bens do patrimônio esportivo na plataforma Google Arts & Culture. Os resultados encontrados nos levaram a refletir que, embora não seja possível desconsiderar a relevância do Google Arts & Culture em oferecer acesso remoto de altíssima qualidade aos museus e outras instituições e aos bens culturais para um público amplo e diversificado, ele pode contribuir para atrair o interesse do público pelo patrimônio cultural e, até mesmo, exercer um papel de ferramenta de preservação dos bens culturais ali registrados. Como resposta possível para essa atuação, destacamos o seu alcance mundial e os seus recursos tecnológicos de última geração.
A partir da constatação de que o patrimônio esportivo e os museus do esporte estariam sub-representados nesta plataforma, a experiência da pesquisa e os resultados aqui obtidos nos permitem refletir sobre o delicado equilíbrio entre as instituições culturais e o mercado, representado pela corporação internacional Google. Nossa investigação revela que, por meio da parceria com o Google, um pequeno museu independente na Índia (Fanatic Sports Museum), pode estar acessível em âmbito global. Por outro lado, isso também ocorre com um numeroso conjunto de bens do patrimônio esportivo de um país, o qual pode ser compartilhado mundialmente – como é o caso da Austrália, por exemplo. Isso nos leva a inferir que há instituições tradicionais e atuantes no cenário internacional dos museus do esporte que não foram localizadas na mesma busca, assim como há países nos quais os museus do esporte têm grande relevância e cujas instituições não se encontram representadas.
Por fim, é válido pontuar que o contato com o patrimônio esportivo, vivenciado por meio desta plataforma, nos convida a refletir sobre a aliança entre tecnologia, cultura, curadoria e mercado, que pode gerar uma noção distorcida da realidade, por meio do desequilíbrio entre as realidades e os contextos “reais” e “virtuais”, como vimos. Esta aliança pode gerar, ainda, produtos culturais como o belíssimo tema “Australia Great Sporting Land”, que celebra o esporte exclusivamente pelo prisma de suas grandes conquistas, seus heróis e seus sítios históricos de prática esportiva – sem abrir espaço para o controverso, as reflexões e questionamentos, conforme seria o papel das instituições ditas culturais.
Doi: http://dx.doi.org/10.19132/1808-5245272.418-439
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