Resumo: Apresenta uma resenha do livro “Paradigmas do ensino da literatura”, de autoria de Rildo Cosson a fim de destacar suas contribuições para a área da Biblioteconomia e Ciência da Informação (BCI). Embora a obra trate do ensino da literatura, serão elencados, nesta resenha, os argumentos utilizados pelo autor capazes de alargar e de propor uma visão crítica a respeito da literatura, cuja compreensão é de essencial relevância para a atuação da(o) bibliotecária(o) em espaços de leitura literária. Descreve brevemente o mapeamento dos seis paradigmas identificados por Cosson, em suas dimensões conceituais, metodológicas e pragmáticas, ao tempo em que, a partir de uma perspectiva histórica, pontua as virtudes e limitações presentes em cada modelo. Finaliza com o questionamento acerca do conceito de literatura no âmbito da BCI e a reflexão sobre a importância de um posicionamento crítico para o campo.
Palavras-chave:LiteraturaLiteratura,ParadigmasParadigmas,BibliotecasBibliotecas,Formação de leitoresFormação de leitores.
Abstract: Presents a review of the book “Paradigms of teaching literature” by Rildo Cosson in order to highlight the contributions to the area of Librarianship and Information Science. Although the work deals with the teaching of literature, the arguments used by the author capable of broadening and proposing a critical view of literature will be listed in this review, whose understanding is of essential relevance to the performance of the librarian in literary reading spaces. It briefly describes the mapping of the six paradigms identified by Cosson exploring as conceptual, methodological and pragmatic dimensions while, from a historical perspective, points out the virtues and limitations present in each model. It ends with the questioning about the concept of literature in the scope of Librarianship and Information Science and the reflection on the importance of a critical positioning for the field.
Keywords: Literature, Paradigms, Libraries, Training of readers.
Concepções de literatura e formação de leitores na Biblioteconomia e Ciência da Informação: provocações a partir da obra “Paradigmas do ensino da literatura”, de Rildo Cosson
Conceptions of literature and training of readers in Librarianship and Information Science: provocations from the work “Paradigmas of the teaching of literature”, by Rildo Cosson
. COSSON, Rildo. Paradigmas do ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 2020. 224 p. |
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Recepción: 03 Noviembre 2020
Aprobación: 03 Marzo 2021
COSSON, Rildo. Paradigmas do ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 2020. 224 p.
[...] somos construídos tanto pelos muitos textos que atravessam culturalmente os nossos corpos, quanto pelo que vivemos. O mesmo acontece com a nossa compreensão do que vivemos e da comunidade onde vivemos. A experiência da literatura amplia e fortalece esse processo ao oferecer múltiplas possibilidades de ser o outro sendo nós mesmos, proporcionando mecanismos de ordenamento e reordenamento do mundo de uma maneira tão e, às vezes, até mais intensa do que o vivido (PAULINO; COSSON, 2009, p. 70).
Lançado em agosto de 2020 pela editora Contexto, Paradigmas do ensino da Literatura, do professor Rildo Cosson, traça uma perspectiva histórica do ensino da literatura no Brasil, a fim de fornecer um panorama acerca das transformações pelas quais a disciplina passou ao longo dos anos. Para isso, o autor identifica seis paradigmas, sendo dois deles tradicionais: moral-gramatical e histórico-nacional, e quatro paradigmas contemporâneos: analítico-textual, social-identitário, formação do leitor e letramento literário.
Com maestria, Cosson alcança nessa obra não só o mérito de apresentar de forma estruturada as possibilidades para o ensino escolar da literatura, mas, sobretudo, o de esclarecer as concepções e métodos das distintas perspectivas literárias, cujo conhecimento é de utilidade ímpar para a(o) profissional da informação. O propósito desta resenha, portanto, é apresentar o potencial que a obra possui para guiar, não apenas professoras(es) do ensino básico, mas todas(os) as(os) profissionais envolvidas(os) com a leitura literária na escola e em outros espaços formativos, tendo em vista que possibilita a reflexão e a elucidação acerca das concepções de leitura, literatura e leitor(a), sob o olhar crítico e coerente do autor. A partir do quadro estabelecido por Cosson, dialogamos com outras autorias das áreas de Letras e da BCI (ABREU, 2006; ALMEIDA JÚNIOR; BORTOLIN, 2008; ALMEIDA, 2012; BRITTO, 1998; PAULINO, 2009; ZILBERMAN, 2003) traçando paralelos e articulando concepções que consideramos pertinente para a atuação e o posicionamento da BCI, dada uma das funções da biblioteca e da(o) bibliotecária(o) em proporcionar o contato com a literatura “da forma mais fecunda possível” (ALMEIDA, 2012, p. 6).
Doutor em Letras e em Educação, Rildo Cosson é pesquisador do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação da UFMG e possui vasta experiência no ensino público, desde a educação básica até a pós-graduação, conhecendo com profundidade a realidade da educação pública brasileira. Com Paradigmas do ensino da literatura, o autor encerra a última parte de uma trilogia que iniciou com Letramento literário: teoria e prática (2006) e Círculos de leitura e letramento literário (2014).
Baseado em Kuhn (1962), Cosson concebe o paradigma como um tipo de “matriz disciplinar” formada de concepções, procedimentos, valores e práticas em comum. Quando ocorre um esgotamento do paradigma vigente, por não conseguir atender às demandas as quais deveria responder, acontecem revoluções que se efetivam por meio das transformações no campo da ciência. Tal transformação não quer dizer o apagamento total do paradigma em vigor, essa passagem funciona como uma perda de hegemonia, tendo em vista que o novo paradigma não preenche de modo unânime todos os espaços daquela disciplina. Da mesma forma, o paradigma anterior recebe novas configurações e acomodações, conciliando-se com o paradigma emergente. Assim, como se tratam de abstrações, esses paradigmas podem estar sobrepostos na realidade escolar, coexistindo nas salas de aulas, com combinações variadas.
O livro dedica um capítulo para abordar cada um dos seis paradigmas, descrevendo e analisando seus elementos constitutivos, dando destaque aos aspectos conceituais, metodológicos e pragmáticos. Assim, cada paradigma é estruturado a partir de seus Conceitos (a concepção da literatura, o valor da literatura, o objetivo do ensino da literatura e o conteúdo ou o que se ensina quando se ensina literatura); de sua Organização (a metodologia ou como se ensina literatura, o papel do professor, o papel do aluno, o papel da escola e o lugar disciplinar da literatura); e de sua Prática (a seleção de textos, o material de ensino, as atividades de sala de aula e a avaliação). Ademais, ao final dos dois primeiros paradigmas, apresenta os questionamentos que levaram à superação dos paradigmas tradicionais e, ao final dos quatro últimos, a crítica enfrentada pelos paradigmas contemporâneos como alternativas para o ensino da literatura na escola.
Com contornos temporais que iniciam em meados do século XVIII com vigência até o final do século XIX, o paradigma moral-gramatical acompanha uma tradição histórica que desde a antiguidade selecionava os textos literários segundo os objetivos do ensino, constituindo o que seria reconhecido, posteriormente, como cânone. Tal princípio foi mantido pela educação jesuítica no Brasil, na qual os principais objetivos do texto literário eram servir de guia para a aprendizagem da língua latina e atender à formação moral dos alunos, conforme as regras do catolicismo.
A concepção de literatura baseava-se em um conjunto de obras tradicionalmente valorizadas no passado, sendo referência para o presente no que se refere à língua e à cultura escrita. O valor da literatura incidia em sua função civilizatória de acesso a uma cultura superior, por meio do legado dos textos, que além de serem modelos do bem falar e escrever, ainda promoviam uma edificação moral e linguística. Os textos literários, assim, eram caracterizados como eruditos, selos de distinção social, e considerados modelos de língua culta e escrita ideal. A figura professoral aqui é, antes de tudo, a de um erudito, e ao aluno cabe receber e reverenciar os textos e seus ensinamentos. As práticas pedagógicas tinham como base o uso extensivo de fragmentos de textos literários e similares, a prática da oralização e declamação e, além disso, o uso da literatura como pretexto para tratar de outros temas.
Novos acontecimentos históricos, tais como o controle da escola pelo Estado, no final do século XIX e início do século XX, o sistema seriado escolar, o surgimento de materiais didáticos e a eclosão da literatura infantil como tal, são apontados por Cosson no questionamento do paradigma moral-gramatical. Ao enfatizar as perdas que a queda desse paradigma representou para o ensino da literatura, o autor destaca que, nele, encontrava-se o ensino da literatura, e não apenas sobre ela. Aliado a isso, lembra, ainda, que se instaurava no Brasil a busca pela consolidação de uma identidade nacional, fato que concedeu à literatura um papel relevante em termos de autonomia política e de valorização da pátria.
Com efeito, o paradigma histórico-nacional tem como marca distintiva a interligação entre o nacionalismo, a história da literatura e a escola (seu veículo por excelência), sendo a partir dessa convergência que se elaboram e definem o cânone da tradição literária do país. Sua ideologia conceitual é mais preocupada com o aspecto documental e testemunhal revelado pela obra em termos de brasilidade, do que com o valor estético que ela venha a ter. O valor da literatura está na sua natureza pedagógica de introduzir o sentimento de nacionalidade e os ensinamentos morais e gramaticais às crianças, bem como de promover a distinção social por meio da nacionalidade para os jovens. A historiografia literária brasileira surge, portanto, intrinsecamente ligada ao ensino da literatura, sendo que o que se ensina não é a experiência com a literatura em si mesma, mas o conhecimento sobre ela. Aqui, mantém-se o padrão transmissivista de ensino, em que o professor apenas repassa informações sobre a literatura ou detalhes e curiosidades das obras ou da biografia dos autores e o aluno apenas memoriza dados de cunho essencialmente bibliográfico (nome de autores e das obras, características e estilos de época), prevalecendo o uso de manuais de história da literatura, resumos e questionários. Por fim, curiosamente, mesmo sem hegemonia e mesmo sendo superado teórica e praticamente, o paradigma em questão ainda se encontra permanentemente sendo abordado no ensino médio das escolas brasileiras.
Com emergência desde o final do século XX até os nossos dias, os paradigmas contemporâneos surgem como forma de combate à permanência e à inadequação do paradigma histórico-nacional, por reivindicarem a necessidade de modernização, tendo como princípio a formação do leitor(a) e a leitura literária. Os acontecimentos históricos que se sucederam a partir da década de 1970 com a “modernização” do país e um ensino cada vez mais instrumental e neoliberal (ZILBERMAN, 2003) levaram a um progressivo apagamento ou deslocamento do lugar da literatura como matéria de ensino. Os paradigmas contemporâneos insurgem e se apresentam, dessa forma, contra a condição de saber escolar sobre a literatura, constituindo-se modelos alternativos.
O paradigma analítico-textual, por sua vez, por ser fortemente influenciado pela estilística, pelo new criticism, pelo formalismo russo e pelo estruturalismo, considera como literário todo texto, em suporte escrito preferencialmente, que possua alta elaboração estética. Não existem restrições que sejam exteriores à própria obra. Independente, pois, do tempo (o passado glorificado, no caso das clássicas) ou do espaço (a nação, no caso das canônicas), o paradigma estima, acima de tudo, a capacidade de expressão estética por meio da língua escrita. Todavia, ao prezar pela literalidade, traços estilísticos e pelo modo de dizer das obras, em detrimento de seu conteúdo, tendo em vista seu caráter universal e atemporal, liberta a literatura do passado e do nacionalismo, mas pode, por conseguinte, contribuir para a alienação de quem lê, ao separar a obra de sua historicidade. O valor da literatura é o da obra enquanto objeto estético — conceito este que por si só já muito movediço e variável (ABREU, 2006) — em termos de originalidade, estranhamento ou desautomatização e plurissignificação. O foco recai na análise literária como um processo de interpretação da obra individual que se encerra no texto, não indo além dele. O docente domina a técnica da leitura literária e ao aluno compete desenvolver sua habilidade analítica. A biblioteca começa a se destacar no interior desse paradigma, ao oferecer o acervo de obras e por ser considerada um local que favorece a pesquisa do(a) professor(a) e do(a) discente.
Com influências advindas do multiculturalismo, dos estudos de gênero, dos estudos culturais, dos estudos pós-coloniais e do pós-estruturalismo, a partir dos anos 1990, o paradigma social-identitário configura-se a partir de uma ênfase aos aspectos éticos e políticos das obras, em detrimento de seus aspectos estéticos. A literatura é válida pelo que representa em termos de relações sociais e expressão de identidades, ou seja, pelo seu conteúdo. Inclui, além dos gêneros da tradição, gêneros periféricos e novas manifestações culturais escritas que foram esquecidas ou silenciadas, devido aos processos de discriminações e opressões sociais, baseadas sobretudo nas diferenças de gênero, etnia, orientação sexual, naturalidade e cultura diversa da dominante. A literatura aqui torna-se, pois, instrumento de resistência cultural, representação positiva de identidades e forma de humanização.
Porém, sua natureza acentuadamente política é alvo de contestações, censura e acusações doutrinadoras, por parte principalmente de grupos conservadores progressistas e religiosos. Além disso, o conhecimento literário da singularidade da literatura como discurso estético, exercício da fantasia e jogo da linguagem, perde espaço a favor de discussões sociais e culturais. Por fim, o risco do anacronismo que aplica lentes do presente para analisar o passado, também é apontado. Metodologicamente se sobressai a análise crítica do texto literário, na qual cabe à(ao) docente fazer a condução e mediação do debate (tornando-se um campo minado, em termos políticos) e à(ao) estudante a participação ativa diante das discussões, não havendo lugar para um(a) leitor(a) que não seja o(a) engajado(a), o que coloca a formação do(a) leitor(a) literário(a) em segundo plano para dar lugar à socialização. Finalmente, as bibliotecas escolares desempenham um papel importante nesse paradigma, no entanto, dificilmente possuem acervo atualizado e diversificado, conforme requerer esse modelo, tampouco possuem profissional devidamente treinado(a) para lidar com essas questões.
Historicamente situado a partir dos anos 1980, em um largo contexto de crise no ensino da leitura, a partir de pressupostos que passam pelo sociointeracionismo, estética da recepção, mediação vygotskyana, pensamento freiriano, teoria dos gêneros textuais, entre outros, o paradigma da formação do leitor tem seu maior mérito no reconhecimento do papel ativo do(a) leitor(a) na prática da leitura, bem como sua possibilidade de fazer escolhas e negociá-las. Considera-se literatura um corpo amplo de obras impressas que participam de algum modo do mundo ficcional ou poético, que vão desde livros para bebês até os cânones (abarcando literatura infantil e juvenil, best sellers, clássicos adaptados, livros de imagens e histórias em quadrinhos). Para dar conta desse alargamento, é comum segmentar as obras por faixas etárias e períodos de ensino (organização de editoras, livrarias e bibliotecas). Embora aparentemente positiva, tal categorização acaba impondo limites ordenadores, temporais e homogeneizadores ao campo literário, bem como rotula, isola em ilhas e gera binarismos entre livros e leitores(as). Tais marcações e hierarquizações valorativas revelam mais sobre as classificações estéticas e sociais dos textos do que sobre o modo como são lidos.
A literatura, no interior deste paradigma, tem valor formativo em termos de desenvolvimento individual, imaginativo, identitário e social, além de constituir o instrumento mais eficaz para a criação do hábito, do gosto e do prazer de ler e formar o(a) leitor(a) crítico(a) e criativo(a). No entanto, a leitura não é um hábito que se cria por meio de repetição, dada sua dimensão multifacetada. Ademais, a gratuidade da leitura deleite e de fruição, sem objetivos nem controle, com a recusa de um trabalho pedagógico com o texto literário, admitindo a individualidade soberana dos gostos bem como “qualquer interpretação do texto como legítima”, além de desconsiderar que tais interesses se formam a partir de referenciais socioculturais (BRITTO; BARZOTTO, 1998, s/p), termina por apagar “as condições de letramento que todo ato de ler revela” (COSSON, 2020, p. 136).
Essa leitura como entretenimento é supostamente oferecida como se a leitura literária fosse uma prática natural, que não fosse condicionada culturalmente ou não precisasse ser ensinada. O(A) professor(a) na condição de apaixonado(a) pela literatura, possui tanto o papel de leitor(a)-modelo, como o de mediador(a). Este(a) último(a) pode ser tanto o(a) docente ou o(a) bibliotecário(a), ou outro(a) agente de leitura no espaço escolar. À escola compete garantir o tempo de leitura de fruição e acesso à biblioteca e sala de leitura. Preza-se pela leitura do texto integral por meio de atividades como hora do conto, cantinho da leitura e diários de leitura. No entanto, concentrado na educação infantil e ensino fundamental, este paradigma não consegue espaço no ensino médio.
Finalmente, temos o paradigma do letramento literário, cuja emergência não pode ser separada do letramento como objetivo educacional do ensino da escrita, que interceptou outros domínios pelo viés tecnológico e cultural, como o letramento digital e o letramento informacional. O termo letramento literário foi forjado por Graça Paulino em fins da década de 1990 no âmbito do Ceale e posteriormente definido, juntamente com Cosson, como “o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67). Tal entendimento significa que se trata de algo construído ao longo do tempo durante toda a vida, e que não começa nem finda na escola, mas pode e deve ser alargado e lapidado por ela. Também diz respeito a um processo de internalização de algo que existe coletivamente, a literatura, mas que é incorporada individualmente por cada pessoa que a torna viva, cuja apropriação se faz de maneira literária, ou seja, “adotando e respeitando o modo próprio de significar dado pela literatura, um modo que se funda na relação intensa de linguagem, pela qual construímos e reconstruímos a nós e ao mundo nas palavras da experiência e com a experiência do outro” (COSSON, 2020, p. 173).
Nesse paradigma, a literatura é uma linguagem que utiliza a própria linguagem para atribuir sentido ao mundo e à humanidade, ao tempo em que se “apresenta como um repertório de textos e práticas de produção e interpretação, pelos quais simbolizamos nas palavras e pelas palavras a nós e o mundo que vivemos” (COSSON, 2020, p.177), tais como impressos, vídeos, filmes, produtos digitais, voz e corpo. Tal definição alija as limitações estabelecidas nos outros paradigmas na medida em que os textos definidos previamente deixam de ser um critério dado e “passam a ser referências para um recorte a ser local e permanentemente atualizado, segundo as características daquela comunidade de leitores” (COSSON, 2020, p.177).
O valor da literatura está na experiência singular de fazer surgir a obra literária por meio da transação entre o(a) leitor(a) e o texto, sendo esta experiência essencialmente de linguagem, a experiência da literatura. Assim, ser leitor(a) aqui não é um estatuto, mas uma posição que só se concretiza no ato da leitura. Da mesma forma, o texto, em sua materialidade, é apenas papel e tinta, “ele só passa a ser texto porque sua elaboração pressupõe a condição de ser objeto da leitura, sendo a designação de literário uma indicação do modo como deve ser lido e não uma propriedade que lhe é intrínseca, pois ele só se transforma em obra literária no momento da leitura” (COSSON, 2020, p.178).
Na CI, a informação também pode ser compreendida sob essa perspectiva. Almeida Júnior (2009, p. 97) defende que a informação só se concretiza por meio da leitura num processo de mediação, assim a “informação não existe antecipadamente, mas apenas na relação da pessoa com o conteúdo presente nos suportes informacionais. Estes são concretos, mas não podem prescindir dos referenciais, do acervo de experiências e do conhecimento de cada pessoa”. Ou seja, “em última instância, quem determina a existência da informação é o usuário, aquele que faz uso dos conteúdos dos suportes informacionais”.
Por isso, a promoção do letramento literário possui como finalidade o desenvolvimento da competência literária da(o) discente, pois quanto mais essa competência for desenvolvida maior será a capacidade de manusear essa linguagem, portanto, maior será o conhecimento do repertório e a experiência literária será mais consistente e consolidada. Assim, como qualquer outra prática cultural relevante, a leitura literária e a sua linguagem devem ser ensinadas considerando as particularidades contidas nesse repertório de textos, no tocante à sua produção, interpretação e construção de sentidos. Esse repertório precisa, por sua vez, ser explorado necessariamente pela leitura integral da obra literária por meio de três dimensões interligadas: texto, intertexto e contexto.
Em termos metodológicos, é preciso assegurar o percurso entre dois polos, definidos pelo autor como o manuseio do texto literário e o compartilhamento da experiência literária, o que abrange o encontro pessoal da(o) aluna(o) com a obra, a leitura responsiva e a leitura como prática interpretativa, sendo esta última essencial por fundamentar o próprio ato de ler literariamente. Para tanto, exige um(a) professor(a) capaz de trabalhar com projetos, resolução de problemas e aprendizagem colaborativa, tendo como função planejar as atividades, conduzir a experiência literária e constituir uma comunidade de leitores(as) em sala de aula. A(O) aluna(o), por sua vez, tem um papel ativo e colaborativo, constituindo-se como o principal agente do próprio processo pedagógico, contudo, ao recusar esse protagonismo ou encontrar barreiras sociais, culturais e cognitivas na sua atuação, sua formação ficará comprometida ou não se efetivará. Torna-se irrelevante a existência de um componente curricular específico para o ensino da literatura no interior desse paradigma, contanto que se garanta que seja promovida a apropriação literária da literatura como uma forma singular de identificar, ler, produzir e interpretar textos na escola, visto que a formação do(a) leitor(a) literário(a) é diferente da formação do(a) leitor(a) em geral.
Com isso, o critério para seleção de textos é que estes sejam significativos para a experiência literária tanto da(o) discente como da turma, que sejam plurais e diversos e que contemplem distintos níveis de complexidade, tendo sempre como parâmetro o(a) leitor(a) real. Essas práticas de exploração da experiência literária podem ser realizadas por meio de sequências didáticas e círculos de leitura, as quais são exaustivamente exploradas nas duas outras obras do autor, que foram mencionadas no começo desta resenha. Em termos avaliativos, importa buscar não a leitura correta do texto, mas como a(o) aluna(o) incorpora esse texto em seu repertório e conecta com a sua experiência de vida.
Em suma, nas palavras de Cosson, o letramento literário não só amplia, como altera o significado central do letramento, entendido como aprendizagem da leitura e da escrita para contemplar a aprendizagem de uma linguagem específica e uma competência num determinado campo de conhecimento. A defesa de tal paradigma busca reposicionar e manter o ensino da literatura na escola por acreditar na contribuição ímpar que ele proporciona à formação integral das pessoas. Concordamos com o autor, ao afirmar que é necessário desmistificar os formalismos e essencialismos que cercam a linguagem literária (visto que interferem negativamente na compreensão e seleção de textos literários), a fim de fortalecer concepções menos ingênuas e mais coerentes a respeito da literatura e do seu ensino.
Por fim, ainda que a perspectiva do ensino de literatura seja, em certa medida, diferente do âmbito da mediação da leitura literária em espaços não escolares, em ambas as situações é fundamental que se tenha uma concepção clara acerca de qual conceito de literatura se opera, a fim de que o processo de formação de leitoras(es) seja realizado de modo crítico, dado o caráter histórico-social da literatura e a sua dimensão formativa. Dessa forma, provocamos o seguinte questionamento: E nós, bibliotecárias e bibliotecários, qual tipo de leitora e leitor queremos formar? Qual a noção de literatura que subjaz nosso fazer, a depender de qual espaço de leitura e informação estejamos inseridas(os)? Será que esse entendimento se encontra suficientemente sedimentado em nosso campo de atuação ou ainda são necessários estudos mais adensados em torno dessa temática, aliados a experiências empíricas? Por considerarmos que a leitura e, consequentemente, a mediação e a apropriação da informação, são os objetos centrais da ciência da informação (ALMEIDA JÚNIOR; BORTOLIN, 2008), acreditamos que essa compreensão e postura crítica podem ser alargadas com a leitura de Paradigmas do ensino da Literatura, livro que nos oferece, a partir da capacidade analítica primorosa do professor Rildo Cosson, um panorama de como a literatura é e pode ser compreendida e experienciada, apresentando as virtudes e limitações presentes em seus diferentes paradigmas, de modo crítico, lúcido e esclarecedor.
Agradecimentos
A Lourival Pereira Pinto pela leitura e comentários. A Hélio Márcio Pajeú pelos diálogos inspiradores. A Gabriela Lins Falcão pela revisão e contribuições para o aprimoramento do texto.
Como citar: ALVES, Mariana de Souza. Concepções de literatura e formação de leitores na Biblioteconomia e Ciência da Informação: provocações a partir da obra “Paradigmas do ensino da literatura”, de Rildo Cosson. Em Questão, Porto Alegre, v. 27, n. 3, p. 436-447, 2021. doi: http://dx.doi.org/10.19132/1808-5245273. 436-447
Declaração de autoria: Concepção e elaboração do estudo: Mariana de Souza Alves Coleta de dados: Mariana de Souza Alves Análise e discussão de dados: Mariana de Souza Alves Redação e revisão do manuscrito: Mariana de Souza Alves
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COSSON, Rildo. Paradigmas do ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 2020. 224 p.