Teoria do efeito de teoria: reflexões sobre a organização do conhecimento no campo das Museologias contemporâneas
Teoria do efeito de teoria: reflexões sobre a organização do conhecimento no campo das Museologias contemporâneas
Em Questão, vol. 27, núm. 4, pp. 387-412, 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Recepción: 19 Diciembre 2020
Aprobación: 03 Junio 2021
Financiamiento
Fuente: Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília (Edital n. 07/2020).
Resumo: O artigo propõe reflexões sobre as diferentes tendências do conhecimento museológico contemporâneo e evidencia alguns dos interesses envoltos nos processos de elaboração, recepção e formação de epistemologias no exercício de (des) construção de Museologias do fazer museológico. Pautado no conceito de “teoria do efeito de teoria” elaborado por Pierre Bourdieu, o texto apresenta algumas das estratégias de conformação de um campo do conhecimento estabelecidas entre a imaginação museal e a imaginação científica. Seguindo essa orientação, o objetivo é realizar mapeamentos de algumas tentativas de classificação de eixos teóricos ou matrizes discursivas que configuram o pensamento museológico contemporâneo. No cenário das Museologias essa atitude metapoética ganhou força a partir da segunda metade do século XX com reflexões sobre os marcos políticos, (po)éticos e epistemológicos a inspirar novas práticas museológicas e reorientar os protocolos de leitura científica. A metodologia se sustenta em análise bibliográfica, tendo como fonte as tendências do conhecimento museológico evidenciadas em literatura museológica nacional e internacional, com ênfase nos artigos que integram o dossiê “Museus e Museologia: aportes teóricos na contemporaneidade”, publicado na Revista Museologia & Interdisciplinaridade, da Universidade de Brasília, Brasil, em 2020.
Palavras-chave: Organização do conhecimento, Epistemologia, Museologias, Imaginação museal, Imaginação científica.
Abstract: The article proposes reflections on the different trends in contemporary museological knowledge and highlights some of the interests involved in the processes of elaboration, reception and formation of epistemologies in the exercise of (de) construction of Museologies of museological making. Based on Pierre Bourdieu's understanding of “theory of the effect of theory”, he outlines some of the strategies for shaping a field of knowledge established between the museal imagination and the scientific imagination. Following this orientation, the intention is to map some attempts to classify theoretical axes or discursive matrices that configure contemporary museological thinking. In the Museologies scenario, this metapoetic attitude gained strength from the second half of the twentieth century with reflections on the political, (po) ethical and epistemological milestones to inspire new museological practices and reorient scientific reading protocols. The methodology is based on bibliographic analysis, having as source the tendencies of museological knowledge evidenced in national and international museological literature, with emphasis on the articles that are part of the dossier “Museums and Museology: theoretical contributions in contemporary times”, published in Revista Museologia & Interdisciplinaridade, of the University of Brasilia, Brazil, in 2020.
Keywords: Knowledge organization, Epistemology, Museologies, Museal imagination, Scientific imagination.
1 Introdução
O objetivo deste texto é apresentar reflexões sobre as diferentes tendências do conhecimento museológico contemporâneo a partir da análise dos processos de elaboração, recepção e formação de epistemologias no exercício de (des) construção de Museologias do fazer museológico. Para tanto, delineia algumas das estratégias de conformação da Museologia enquanto um campo do conhecimento tendo como configuração as interfaces entre a imaginação museal e a imaginação científica.
Aqui é importante sublinhar a opção por pensar Museologias no plural, aquilo que define como Museologias Indisciplinadas (BRITTO, 2019), para efetuar uma leitura metamuseológica. Nesta pesquisa, partiu-se do intuito de tensionar “a Museologia oficial, reconhecida por ser praticada dentro de um campo profissional delimitado e submetido a regras específicas” (BRULON, 2018, p. 27), ou seja, enquanto um campo acadêmico autônomo, em relação com perspectivas epistemológicas que “ousam imaginar museus para pensar novas museologias no contexto brasileiro” (BRULON, 2018, p. 32).
A opção por investigar as tendências de pensamento se justifica em virtude da possibilidade de identificar recorrências e diálogos em diferentes tempos e espaços, além de evidenciar quadros conceituais que demarcam uma constelação de crenças, valores e protocolos de leitura partilhados, de compromissos de uma dada comunidade científica. Seguindo essa orientação, analiso algumas tentativas de classificação de eixos teóricos ou matrizes discursivas que configuram o pensamento museológico contemporâneo, mapeando ‘exemplos compartilhados’ ou a ‘constelação de compromissos’ nos moldes apresentados por Thomas Kuhn, ou seja, perseguindo o modo como “as diferenças entre conjuntos de exemplares apresentam a estrutura comunitária da ciência, [...] os compromissos comuns do grupo” (KUHN, 2007, p. 234).
Para Thomas Kuhn (2007), as mudanças paradigmáticas consistem nas alterações de compromissos profissionais que demarcam episódios extraordinários no modo de dispor sobre determinado escrutínio científico e como os membros de uma dada comunidade científica determinam suas legítimas problemáticas de investigação. O que o autor designa de ‘revolução científica’, consiste nos impactos causados na imaginação científica, apresentando alterações no trabalho científico: “ tais mudanças, juntamente com as controvérsias que quase sempre as acompanham, são características definidoras das revoluções científicas” (KUHN, 2007, p. 25).
Nesses termos, o texto evidencia algumas dessas mudanças tendo como metodologia a análise bibliográfica das tendências do conhecimento museológico evidenciadas em literatura museológica nacional e internacional, com ênfase nos artigos que integram o dossiê “Museus e Museologia: aportes teóricos na contemporaneidade”, publicado na Revista Museologia & Interdisciplinaridade, da Universidade de Brasília, Brasil, em 2020. A escolha do dossiê se justifica por ser um dos mais recentes trabalhos em torno dos aportes teóricos das Museologias que reúne pesquisadores reconhecidos pela comunidade científica em um dos principais periódicos da área, tornando-se síntese de alguns “exemplos compartilhados” ou “constelações de compromissos” do campo da Museologia (KUHN, 2007). O dossiê será aqui reconhecido como “evento” nos termos apresentados por Gerald Holton (1979), ou seja, como um momento episódico em que os cientistas apresentam a imaginação científica de uma determinada área do conhecimento, e instância privilegiada para a observância de como os cientistas impõem uma visão das divisões (BOURDIEU, 2004). Portanto, será apresentada a inscrição teórica, as principais tendências do pensamento museológico, para, por fim, ser evidenciada a metodologia com as respectivas análises e resultados.
2 Museologias: entre a imaginação museal e a imaginação científica
Compreendo ser necessário, antes da apresentação de algumas tendências do conhecimento museológico contemporâneo, problematizar de que maneira esse conhecimento foi construído na longa duração a partir das interfaces entre a imaginação museal e a imaginação científica. Para tanto, é necessário “confiar desconfiando” conforme ressaltado por Mario Chagas (2015), e, também por Suely Cerávolo que, em suas aulas sobre os delineamentos das teorias das Museologias, sublinha que é preciso desconfiar dos museus. Na verdade, acrescento que também é necessário desconfiar da Museologia (no singular e das Museologias no plural), efetuando uma leitura indisciplinada, especialmente das Museologias Indisciplinadas ou daqueles que as classificam sob essa rubrica (BRITTO, 2019). Isso porque, parafraseando Chagas (2015), toda a tentativa de reduzir a Museologia a um único aspecto corre o risco de não dar conta de sua complexidade no contexto contemporâneo, visto que classificar é um ato de interpretação e seleção, logo, um exercício de poder. Essa provocação pode ser aplicada às Museologias quando atribuem para si a tarefa de efetuar uma narrativa sobre os processos museológicos, as relações que permeiam o campo dos museus e dos patrimônios, os parâmetros éticos, políticos e epistemológicos na transição do museável para o musealizado. Nesse aspecto, a dinamicidade que a ferramenta museu e a reflexão museológica assumiram na contemporaneidade permite o exercício de colocar em suspeição as tentativas de normatização e padronização. Portanto, mais do que prescrever o que é o museu e a Museologia, trata-se de compreender os motivos e as consequências das múltiplas readaptações e reinvenções dos museus e das Museologias, efetuando, muitas vezes, uma leitura indisciplinada, a contrapelo.
Dito de outra forma, essas provocações consistem em modos de contestar verdades pré-estabelecidas e instituir uma problematização da ciência museológica, seus fundamentos, pressupostos e interesses. No cenário das Museologias, essa desconstrução-conscientização ganhou força a partir da segunda metade do século XX com práticas contestatórias que têm delineado marcos políticos, (po)éticos e epistemológicos a inspirar novas práticas museológicas e reorientar os protocolos de leitura científica:
Assumir a museologia como área de produção de ciência é também uma opção por um questionamento crítico sobre as relações que se estabelecem no domínio das heranças das comunidades, das cartografias sobre os seus territórios de pertença, como um processo de autoconhecimento que permitem identificar o conjunto de recursos a mobilizar na construção da inovação social. Esta nova museologia assume-se como um processo de colocar perguntas pertinentes para as questões relevantes da comunidade. Uma museologia que se foi desenvolvendo sobre diversas formas; seja como ecomuseus, museus de comunidade, museus de favela; que parte de problemas pressentidos pelas comunidades e procura dar resposta às questões. Se queremos conhecer os fenômenos não podemos ficar no leito. Temos que procurar nas margens. É aí que as coisas se transformam. Pensar a museologia social como um processo de envolvimento na transformação do mundo em que vivemos. Um instrumento de transformação. Contudo, esta proposta de uma museologia crítica que hoje se apresenta em diferentes formas um pouco por todo o mundo, mas com uma particular relevância na América do Sul, não se propõe substituir às diferentes instâncias e organizações sociais. Os processos desta museologia social assumem-se como laboratórios de experiência social. Assumem-se como espaços de encontro que permitem às comunidades testarem soluções que podem ser relevantes. Essas comunidades, através das suas formas de organização social, poderão ou não concretizar essas experiências. (LEITE, 2014, p. 57).
Os atravessamentos de poder garantiriam assim a prevalência de certas versões concorrentes e o combate a versões que poderiam colocar em xeque os discursos de autoridade. Esse exercício de reflexão contribui para considerar as estratégias de manipulação da memória dos considerados teóricos (ou matrizes discursivas) e os lucros simbólicos e materiais decorrentes dessa manipulação. Tarefa empreendida em vida pelos integrantes do campo de produção simbólico em busca do estabelecimento de legitimidades manifestas nas formas de prestígio, autoridade e distinção. Conforme afirma Pierre Bourdieu (1983), no terreno da cultura, a luta no interior do campo é integradora, tende a assegurar a permanência das regras do jogo e o princípio da mudança seria a busca do monopólio da distinção, da imposição da última diferença legítima. Em suas análises, a distinção encaminha para aquilo que muitos denominam como ‘marcar época’, consistindo no ato de deter o tempo, de eternizar o estado presente e pactuar entre os agentes a continuidade, a identidade e a reprodução. O ‘marcar época’ consiste em “fazer existir uma nova posição para além das posições estabelecidas, na dianteira dessas posições, na vanguarda, e, introduzindo a diferença, produzir o tempo.” (BOURDIEU, 1996, p. 181). As lutas pela distinção são constantes e torna-se necessário um contínuo processo de reavaliação, reinvenção e reverberação da autoridade epistemológica dos agentes a quem se pretende ‘imortalizar’.
Reconhecendo os múltiplos interesses envoltos nos processos de elaboração, recepção e formação de matrizes discursivas, é importante promover esse exercício reflexivo sobre o pensamento museológico ou, em outras palavras, a (des) construção de Museologias do fazer museológico. Orientação que pode ser expandida ao pensamento museológico que se torna um exercício prévio sobre o gesto de musealização (do museável para o musealizado), ou, uma ‘imaginação museal’, conforme o conceito elaborado por Mario Chagas, compreendido como “capacidade singular e efetiva de determinados sujeitos articularem no espaço (tridimensional) a narrativa poética das coisas” (CHAGAS, 2003, p. 64). É uma operação seletiva de intenções e de gestualidades para a produção de determinadas matrizes discursivas ou tendências de pensamento que podem gerar experimentações nos espaços museais, compreendidos enquanto espaços de produção, arquivamento e circulação de memórias erigidas a partir da ‘linguagem das coisas’:
Um museu, seja ele qual for, só pode ser produzido e reconhecido como tal, quando está inserido numa codificação social compartilhada, quando faz parte de uma experiência comum. Sobretudo nas sociedades complexas e contemporâneas essa experiência que denomino de participação museal é um dado concreto. Na raiz dessa experiência está aquilo que se denomina de imaginação museal. É com base nessa imaginação que os museus são produzidos, reconhecidos, lidos, inventados e reinventados. A minha sugestão é que a imaginação museal seja compreendida como a capacidade humana de trabalhar com a linguagem dos objetos, das imagens, das formas e das coisas. A imaginação museal é aquilo que propicia a experiência de organização no espaço - seja ele um território ou um desterritório - de uma narrativa que lança mão de imagens, formas e objetos, transformando-os em suportes de discursos, de memórias, de valores, de esquecimentos, de poderes etc., transformando-os em dispositivos mediadores de tempo e pessoas diferentes. (CHAGAS, 2005, p. 57).
Partindo desse entendimento, o pensamento museológico seria a sistematização dessa imaginação, transformando-a em ‘pré-coisa’, tradução da ‘linguagem poética das coisas’. As Museologias contribuiriam, assim, para a criação de novas formas de realizar museus. Por outro lado, as experiências concretas geram novas ‘imaginações museais’, em um movimento contínuo de constantes reinvenções. Exercício epistemológico que, inventariado, pode contribuir para a reflexividade do campo museológico, gerando, de algum modo, aquilo que Bourdieu (1998) denominou de ‘teoria do efeito de teoria’.
Todavia, aqui não parte-se da crítica do autor quando problematizou a recorrência de quadros teóricos que antecedem às investigações ou se impõe como “espartilhos conceituais” aos objetos de pesquisa – o que também seria oportuno analisar. Penso, especificamente, em destacar uma perspectiva metateórica, delineando algumas ressonâncias das reflexões teóricas a partir de mapeamentos realizados pelos cientistas do campo museológico para pensar a constituição de distintas imaginações científicas. Desse modo, assim como as experiências no campo dos museus e das artes, reconheço as Museologias como formas de invenção: “as teorias não são espelhos da realidade, mas a própria invenção da realidade. A experimentação, tanto quanto a observação, está impregnada de teoria” (CHAGAS, 1994, p. 13).
No mesmo aspecto, Cristina Bruno destaca que é possível reconhecer nos primeiros escritos sobre objetos e coleções “[...] o prenúncio de uma área de conhecimento que apenas neste século seria estruturada” (BRUNO, 1996, p. 11). Considerando que as Museologias são indissociáveis dos processos de experimentação em torno da musealização, acredita ser possível destacar a emergência de um pensamento que contribuiu para “a constituição de um universo particular para a edificação de sua epistemologia” (BRUNO, 1996, p. 11).
Essas reflexões demonstram a importância de articular a imaginação museal com a imaginação científica no delineamento das tendências do conhecimento museológico, compreendendo-as como formas específicas de imaginação que se interrelacionam e se retroalimentam nos diferentes espaços de poder, fundamentais para a compreensão das diferenças de posicionamento, de reflexão e de configuração do conhecimento museológico – fator que contribuiria para a visualização de Museologias plurais.
Para tanto, torna-se necessário compreender a importância da “ciência em vias de se fazer”, para além dos protocolos rígidos e dos paradigmas hegemônicos que se digladiam no campo de produção simbólico que define os critérios de cientificidade. Esses debates não são específicos das Museologias, mas caros às Ciências Humanas e Sociais, especialmente àquelas de vocação inter, multi e transdisciplinar. Na verdade, é necessário problematizar a multiplicidade de conceitos em torno da interdisciplinaridade. Na maioria das vezes ela é analisada de modo unívoco, tendo como referência sua etimologia ou suas diferenciações com o multi e o transdisciplinar. Não é sem razões que existem diferentes “tradições” que a investigam sob as perspectivas epistemológica, instrumental e fenomenológica. Nesse aspecto, não é sem motivos que opto pela provocativa ideia de “indisciplinaridade”, no intuito de destacar práticas científicas que tentam escapar do disciplinamento hegemônico.
Por isso, é possível compreender as Museologiascomo marcadas por uma “epistemologia do impreciso”, nos moldes apresentados por Abraham Moles (1995), caracterizadas pela existência de conceitos fluídos e imprecisos. Na verdade, o que o autor propõe é uma reflexão sobre os critérios de cientificidade contemporâneos e o reconhecimento de que consistem em construções sociais, atravessadas por jogos de poder. Nessa perspectiva, destaca, por exemplo, a existência de fenômenos que escapam, de uma maneira ou de outra, à vontade da ciência, e objetos vagos precisados com o apoio de ciências vizinhas. Além disso, Moles (1995) problematiza a inexatidão das “ciências exatas”, o que ele designou de “semi-exatas”. Todavia, me interessa mais detidamente destacar o que ele designa de “ciências do impreciso”:
Há o domínio das ciências que, no estado atual das coisas, são imprecisas e o serão por muito tempo, por exemplo, o estudo do subconsciente ou do inconsciente, os valores estéticos, mas também em outros domínios: a meteorologia, a demografia, os estados de desordem, os processos de emergência das formas etc. É o que reagrupamos sob o nome de ciências do impreciso, e das quais procuramos o estatuto com tanto rigor quanto parece possível (MOLES, 1995, p. 63).
Para tanto, compreendo as Museologias como uma dessas ciências cuja imprecisão se dá em virtude da dificuldade de delimitação de seu objeto, fluído como a própria transversalidade dos estudos sobre memória. Portanto, isso não colocaria em xeque seus estatutos científicos, mas as conceberia como parte de um conjunto de ciências cuja experiência escapa ao enquadramento hegemônico.
Nesse caso, não seriam as especificidades metodológicas que garantem a cientificidade das Museologias (e de nenhuma ciência ou disciplina). As áreas instituídas no entre-lugar disciplinar não se pautam em métodos próprios e vivem o dilema da imprecisão de seus objetos. Todavia, acredito que o debate em torno da cientificidade deve se pautar na definição de propostas de vigilância epistemológica e de cuidado metodológico visando à produção do conhecimento. Compreendido em meio ao atravessamento de jogos de poder, o discurso sobre a cientificidade parte de uma matriz de pensamento que tem como critérios os paradigmas clássicos da ciência dita ocidental (ou de parte dominante dela, o eurocentrismo).
Nesse aspecto, reproduz uma estrutura mental, consciente ou não, que origina formas ortodoxas de classificar e abordar o mundo, como uma expressão de colonialismo de eficácia naturalizadora (QUIJANO, 2000). Para tanto, os saberes que não se enquadram nessa perspectiva possuem sua cientificidade colocada em suspeição, especialmente por não reproduzirem determinados critérios e expectativas de uma imaginação científica canônica.
Dessa forma, fica mais clara a presença desse duplo aspecto inerente à imaginação científica: se, por um lado, de forma geral, produz-se elementos simbólicos por meio da composição de representações presentes no imaginário do indivíduo criador [...] por outro lado, as produções submetem-se às regras que regulam essa operação, baseadas na racionalidade. Isso faz com que a imaginação tenha um papel importante na ciência: ela é, por definição, a maneira com a qual o pensamento conceitual busca, criativamente, estabelecer regras organizadoras para a realidade. (GURGEL; PIETROCOLA, 2011, p. 95).
Na verdade, a imaginação científica consistiria na forma com que os agentes do campo científico instrumentalizam sua imaginação. Nesse aspecto, a ciência é reconhecida como uma ficção da realidade. Segundo destacou Gerald Holton (1979), o conjunto desses pressupostos metafísicos, psicológicos e estéticos do fazer científico pode ser evidenciado a partir da análise sistemática dos temas adotados pelos cientistas. O que ele concebeu como imaginação científica estaria relacionado ao modo como certos pressupostos ou temas são mobilizados no campo científico:
[...] há processos na elaboração científica que, embora sejam atos da razão, não podem ser enquadrados numa estrutura lógico-analítica. Fazem parte desses processos as formas pelas quais as novas idéias surgem e são tratadas durante o período inicial: as fontes de escolhas temáticas individuais, e as razões de sua separação. (HOLTON, 1979, p. 103).
Nesse aspecto, a análise da imaginação científica se pautaria na avaliação dos temas recorrentes nos conceitos ou nos quadros conceituais, nas constâncias metodológicas e nas proposições ou hipóteses temáticas reincidentes (HOLTON, 1979). Os “temas” são gerados pelos thematas que seriam, nesse aspecto, quadros de pensamento, “concepções primeiras às quais os homens de ciência aderem, que modulam a maneira pela qual a imaginação deles é governada” (LIMA, 2008, p. 244). Desse modo, seriam concepções estáveis e difundidas amplamante, reconhecidas por um grande número de cientistas, “que se concretizam em conceitos, métodos ou hipóteses, que orientam a atividade de pesquisa e que não podem ser reduzidas nem à observação, nem ao cálculo” (LIMA, 2008, p. 244).
Portanto, acredito que aproximar a imaginação científica da imaginação museal, evidenciando o modo como os cientistas do campo das Museologias mobilizam seus quadros conceituais a partir da mobilização de uma “poética das coisas”, contribuiria para um melhor delineamento do modo de organização do conhecimento mobilizado nas últimas décadas (DAHLBERG, 2006; HJØRLAND, 2008), configurando diferentes tendências do conhecimento museológico na contemporaneidade.
3 Tendências do conhecimento museológico ou um esboço de imaginações científicas
Na verdade, é oportuno brevemente compreender o modo como a Museologia (ou as Museologias, no plural) se organizou em meio à formação da episteme moderna (BRITTO, 2019). Apesar da sua constituição enquanto um conjunto de práticas e conhecimentos seja milenar, a preocupação com uma matriz científica consiste em uma ‘antiguidade’ não muito distante. Seguindo essa orientação, destacam-se algumas tentativas de classificação de tendências de conhecimento ou matrizes discursivas que configuram o pensamento museológico contemporâneo.
Uma das definições amplamente difundidas consiste na proposta de Peter Van Mensch (1994) que esboçou quatro abordagens museológicas a partir das definições de seu objeto de estudo:
a) Museologia como estudo da finalidade e organização de museus - conjunto de estudos que compreende a Museologia relacionada aos objetivos e instrumentalização dos museus, conhecidos como estudos de museus. Trata-se do foco na instituição;
b) Museologia como o estudo da implementação e integração de um conjunto de atividades visando à preservação e uso da herança cultural e natural - conjunto de estudos que compreende a Museologia relacionada aos processos de comunicação e preservação na instituição museu, com destaque para sua origem e seu funcionamento. Trata-se do foco no acervo e no seu funcionamento;
c) Museologia como estudo dos objetos museológicos e da musealidade - conjunto de estudos que compreende a Museologia relacionada à interpretação dos objetos e à sistematização dos processos de emissão de informação. Trata-se do foco na musealidade a partir dos atravessamentos entre a cultura material e os usos da informação científica/cultural;
d) Museologia como estudo da relação específica do ser humano com a realidade - conjunto de estudos que compreende a Museologia como a relação instituída entre processos museológicos e os impactos dessa interação. Trata-se do foco nos comportamentos sociais em contextos culturais específicos.
Essas abordagens podem ser interpretadas como representativas de quatro ‘tradições’ do pensamento científico que podem ser assim definidas: (a) positivista; (b) funcionalista; (c) fenomenológica; e (d) sociológica. (CHAGAS, 1994; CÂNDIDO, 2014). Acredito que essa chave de leitura consiste em profícuo caminho interpretativo para explicitar algumas das linhas de pensamento nucleares das Museologias, caracterizadas por sua continuidade e profundidade.
A perspectiva positivista teve seu primado do século XIX até meados do século XX e, apesar da ênfase em ações custodiais e tecnicistas, contribuiu para “uma relativa autonomização, abrindo caminho para a construção de um campo científico específico dedicado aos museus” (ARAÚJO, 2012, p. 35). Atualmente é reconhecida como herdeira de um paradigma classificado de modo genérico na rubrica ‘Museologia Tradicional’ – nomenclatura que também necessita ser problematizada no plural em virtude das diferentes perspectivas teóricas e contextos – demarcando como características “a ideia de objeto como relíquia; a visão evolucionista de história; a valorização conferida aos episódios de cunho militar e o culto aos heróis” (SÁ, 2014, p. 4488).
Orientação pouco ressaltada nos estudos sobre a perspectiva positivista nos museus e nas Museologias consiste na ênfase conferida à função social do museu e ao seu potencial educativo, conforme sublinhou Ivan Coelho de Sá (2014). Isso é importante por contribuir para a relativização do entendimento de ‘função social’, atestando, por exemplo, que não é a ênfase no social que caracterizaria determinadas abordagens como a Museologia Social, mas o modo como se dá a participação social na produção epistemológica e a própria concepção de sociedade. Nas abordagens positivistas, a ‘função social’ estaria marcada pelos ideais de regeneração social e moral, “bem como de altruísmo, aliás, um termo criado e popularizado pelo próprio Comte para opor-se à noção de individualismo e caracterizar a inclinação humana de dedicar-se ao outro” (SÁ, 2014, p. 4496).
Cada uma das quatro abordagens apresentadas por Van Mensch (1994) consiste em leituras que agrupam distintas orientações teórico-metodológicas, o que resulta na compreensão de que existem várias perspectivas positivistas, por exemplo. O fato é que essas diferentes concepções ainda coexistem com vigor nas Museologias e, à exceção da perspectiva positivista, atualmente podem ser identificadas a partir de escolas de pensamento, responsáveis por sua difusão em âmbito internacional.
A abordagem funcionalista (que também poderia ser classificada como racional-utilitarista) difundida pela tradição anglo-saxã surgiu na Inglaterra e ganhou força nos Estados Unidos com o intuito de problematizar as funções dos museus, com o foco na acessibilidade das coleções. Essa abordagem priorizava“o cumprimento de certos objetivos, fazendo das coleções um meio para os atingir – ou seja, estímulos para se obter determinados comportamentos e valores” (ARAÚJO, 2012, p. 38).
Segundo essa leitura, o conceito de função é central nessa abordagem. Reconhece-se a ideia de função biológica para explicar a totalidade do sistema. Desse modo, o foco é o resultado, a adequada sistematização para a manutenção do todo. A preocupação é com o organismo, composto por órgãos relacionados e com funções específicas e, assim, a perspectiva funcionalista tenta explicar a existência de um padrão e ordem contínuos e as tensões entre ordem e desordem, integração e desintegração. A abordagem é marcada por uma leitura teleológica, em uma análise de meios e fins, ancorada no reconhecimento da unificação das partes e dos subsistemas. Dessa forma, as Museologias enfocam o museu segundo abordagem sistêmica (a partir de termos como funções, regulação, estrutura etc.) evidenciando o conjunto de atividades que garantem a gênese da instituição museu e o seu funcionamento:
A abordagem fenomenológica consiste em outro conjunto de leituras que visa definir o objeto de estudo das Museologias e foi difundida por pesquisadores do Leste Europeu, ganhando visibilidade a partir do final da década de 1970 e início de 1980, graças aos teóricos que contribuíram com as primeiras reflexões do Comitê Internacional de Museologia (ICOFOM) do Conselho Internacional de Museus. Um dos delineamentos dessa matriz discursiva reconhece a musealidade enquanto qualidade distintiva dos objetos de museu. Desse modo, em um primeiro momento, enfoca as propriedades/qualidades dos artefatos em sua potencialidade fenomenológica.
A partir dessas reflexões e ancoradas na orientação de Stránský (2008 [1980]) surgem compreensões que consideram as Museologias como esferas de conhecimento relacionadas ao exame do museu enquanto fenômeno social dinâmico, seus sentidos, transformações e manifestações. Nesse aspecto, não apenas o museu, mas a própria teoria museológica é reconhecida como um fenômeno. Isso é observado no mapeamento realizado por Van Mensch, reconhecido, na leitura de Suely Cerávolo (2004), como uma perspectiva dinâmica que extrapola o “objeto de museu” e evidencia a ideia de “fenômeno”: “o que dá a entender uma relação mais ampla sustentada pela noção de patrimônio. O deslocamento se faz do ‘objeto’ para ‘valor’, e de ‘objeto de museu’ para ‘patrimônio’” (CERÁVOLO, 2004, p. 87).
Por fim, a perspectiva ‘sociológica’1 sublinha o aspecto relacional, propiciando análises sobre os jogos de poder, a responsabilidade política dos museus e a ‘radicalidade criativa’; aquilo que Chagas (1994) concebe como recuperar a potência poética e política dos patrimônios e dos museus e “contribuir com os avanços dos grupos e povos subalternizados em direção à emancipação e ao exercício pleno do direito à memória, ao patrimônio, ao museu e à cidadania” (CHAGAS, 2017, p. 134).
Essa perspectiva foi sistematizada inicialmente por Zybnek Stránský, Anna Gregorová e Waldisa Rússio Guarnieri que, guardadas as especificidades2, deslocaram o entendimento do objeto de estudo das Museologias de leituras eminentemente pragmáticas-institucionais para a relação específica entre os seres humanos e a realidade (articulações entre os agentes, o bem cultural e o espaço propiciador de relações), evidenciando o processo museal.
Nesse aspecto, surge uma mudança de olhar que “afasta a museologia do objetivismo empirista, que impõe o dado ao sujeito, e também do relativismo subjetivo, que idealiza e fantasia a realidade” (CHAGAS, 1994, p. 22). Conforme sublinhou Suely Cerávolo (2004), essas múltiplas perspectivas inventariadas por Van Mensch contribuem para a visualização de Museologias construídas a partir do objeto de museu, do museu e de suas funções:
O que Van Mensch agrupa por objeto de conhecimento (as tendências de Stránský), são uma série de perspectivas, geradas a partir de três pontos: o objeto de museu, o museu e as funções de museu. Haveriam então ‘museologias’, já que as perspectivas se alternam e se interseccionam, fazendo brotar outras alternativas, mas que não se afastam muito desse tripé. Dentre os aspectos procurados esperava-se mapear leis que regessem a museologia. (CERÁVOLO, 2004, p. 86).
Em outro texto, Peter Van Mensch (1992) separou as distintas percepções da intenção cognitiva das Museologias a partir das escolas positivista, funcionalista e filosófico-crítica (em que poderíamos observar uma mescla entre a fenomenológica e a ‘sociológica’). Escolas de pensamento que, segundo o autor, podem ser dispostas em três grandes abordagens: a empírico-teórica (ênfase heurística); a praxeológica (ênfase nas estratégias de comportamento); e a filosófica-crítica (ênfase em um ponto de vista definido a partir de diretrizes resultantes).
A empírico-teórica, por exemplo, visa uma racionalidade substancial, ou seja, a habilidade de observar significados nas relações entre diferentes fatos sociais. Seu objetivo é eminentemente descritivo e sua principal finalidade é heurística. A praxeológica, em seu entendimento, visa uma racionalidade funcional, ou seja, a habilidade de desenvolver meios adequados (métodos, técnicas, procedimentos) para atingir fins previamente definidos. Seu objetivo é principalmente a aplicabilidade e sua finalidade é a forma estrutural (divisão de trabalho, hierarquia de funções, o museu como organização). Em seu entendimento, embora essas abordagens apresentem determinadas singularidades, elas não são excludentes.
Por isso, dialoga com Stránský (2008) quando ele distinguiu três níveis de conhecimento nas Museologias teóricas: conhecimento empírico, teórico e filosófico. O nível inicial seria representado pelo conhecimento empírico que, embora baseado em fatos, refere-se a um sistema de noções. Através deste sistema, acessaríamos ao conhecimento teórico e, portanto, padrões que não são diretamente discerníveis empiricamente, podem, ser reconhecidos e analisados no nível de conhecimento teórico. O nível de conhecimento filosófico se ocupa dos fundamentos das Museologias, promovendo maior grau de síntese. Talvez, por essa razão, Peter Van Mensch (1992) tenha denominado a terceira abordagem do pensamento museológico de filosófico-crítica, pautada em uma orientação social crítica. Para o autor, essa orientação diz respeito aos museus, mas também às teorias museológicas que, por sua vez, podem ser caracterizadas por três perspectivas de conhecimento: a Museologia Marxista-Leninista; a Nova Museologia e a Museologia Crítica.
Considera, nesse aspecto, a Museologia Marxista-Leninista uma perspectiva normativa enquanto as demais defenderiam uma atitude, ao invés da aplicação de regras. A configuração de uma ‘Museologia Socialista’ seria uma reação aquilo que consideravam como uma ‘Museologia Burguesa’ e, portanto, a Museologia se tornaria um guia para uma transformação prática e forte impulso político que, para Van Mensch (1992), também pode ser encontrado nas orientações da Nova Museologia.
No caso da Nova Museologia, os objetivos museológicos estariam voltados para o desenvolvimento comunitário e para o reconhecimento dos próprios nativos dessa comunidade preservarem e promoverem seus bens culturais, por essa razão é também chamada de Museologia Comunitária e Museologia Popular. Van Mensch (1992) também afirma que o termo ‘nova’ deve ser relativizado, destacando que não diz respeito às ações de modernização nos museus, mas aos seus objetivos, suas posições e iniciativas.
Por fim, destaca a Museologia Crítica, afirmando a inexistência de distinções sólidas com a Nova Museologia. Em seu entendimento, a diferença entre os termos ‘crítica’ e ‘nova’ não é muito evidente. Van Mensch (1992) sublinha, por exemplo, que no Reino Unido, o termo ‘curadoria crítica’ parece referir-se a uma atitude semelhante à defendida sob o título de Nova Museologia, dizendo respeito a uma prática curatorial que começa envolvendo um público não especializado. Nessa interpretação, a Nova Museologia seria reconhecida como Museologia Comunitária que enfatiza a imaginação positiva e a Museologia Crítica visaria a imaginação crítica, realizando uma inversão de prioridades que sublinham questões como censura, racismo e internacionalismo. O fato é que Van Mensch (1992) afirma não estabelecer contornos muito nítidos entre essas duas perspectivas. O que ele argumenta com segurança é o fato dessas abordagens apontarem para um novo paradigma museológico.
Essas são algumas tentativas de compreensão do pensamento museológico contemporâneo a partir do agrupamento de certas leituras que encontram em si determinadas similitudes, embora guardando especificidades nos diferentes modos de conceber as Museologias. Na verdade, a pesquisa evidencia algumas perspectivas proeminentes para o delineamento de Museologias, compreendendo as recorrências teórico-metodológicas que, na longa duração, contribuíram para a configuração da imaginação científica (ou de imaginações científicas) no campo museológico contemporâneo.
4 “Teoria do efeito de teoria” ou imaginações científicas no dossiê “Museus e Museologia: aportes teóricos na contemporaneidade”
A busca pela compreensão de algumas tendências do conhecimento museológico contemporâneo construídas nas interfaces entre a imaginação museal e a imaginação científica contribui para pensarmos na configuração de imaginações plurais. Esse exercício de reflexividade dialoga com aquilo que Pierre Bourdieu (1998) definiu como “teoria do efeito da teoria”, especialmente quando destacou que a ciência social deve englobar em suas teorias de explicação do mundo social “uma teoria do efeito da teoria, que ao contribuir para impor uma maneira mais ou menos autorizada de ver o mundo social contribui para fazer a realidade desse mundo” (BOURDIEU, 1998, p. 82). Nesses termos, conhecer a configuração da produção museológica contribuiria para a visualização dos problemas inerentes a esse campo do conhecimento e das disposições legitimadas pelos cientistas integrantes desse espaço de poder. Por essa razão, o autor destaca a importância de elaborarmos uma história social dos problemas e dos quadros de pensamento:
Para se não ser objeto dos problemas que se tomam para objecto, é preciso fazer a história social da emergência desses problemas, da sua constituição progressiva, quer dizer, do trabalho coletivo – freqüentemente realizado na concorrência e na luta – o qual foi necessário para dar a conhecer e fazer reconhecer estes problemas como problemas legítimos, confessáveis, publicáveis, públicos, oficiais. (BOURDIEU, 1989, p. 37).
Visando compreender alguns aspectos da emergência dos problemas teóricos das Museologias e, assim, delinear uma perspectiva metalinguística resultante de “teorias do efeito de teoria”, reconheço o dossiê “Museus e Museologia: aportes teóricos na contemporaneidade” – organizado pelos professores Bruno Brulon ,da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e, Monique Batista Magaldi ,da Universidade de Brasília (UNB)3 – publicado na Revista Museologia & Interdisciplinaridade, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília, Brasil, em 2020, como um evento:
Tendo a considerar qualquer produto do trabalho científico, publicado ou não, como um “evento” que se interpõe na interseção de certas trajetórias históricas, como por exemplo a atividade científica pessoal ou privada; o conhecimento científico “público”, ou partilhado, da comunidade maior; o cenário sociológico no qual uma ciência está se desenvolvendo; e na verdade o contexto cultural da época. (HOLTON, 1979, p. 8)
O evento analisado consiste em síntese de algumas imaginações científicas das teorias das Museologias. Criada em 2012, a Revista Museologia & Interdisciplinaridade tem se consolidado como um dos principais periódicos científicos da área da Museologia e da Ciência da Informação no Brasil e a visualização de alguns aspectos do dossiê sobre os aportes teóricos sobre museus e Museologias consiste em uma significativa reflexão metapoética sobre como os cientistas da área têm imaginado suas ações, criando epistemologias e gerado disposições a partir do “efeito de teoria” no campo (BOURDIEU, 1998).
O dossiê foi publicado no volume 9, número 17, de 2020 e é composto por dez textos4. Na apresentação, os organizadores sublinharam as transformações conceituais e epistêmicas no campo do conhecimento, evidenciando o esforço realizado na longa duração para o delineamento de quadros teóricos, especialmente a necessidade de um mapeamento das distintas abordagens teóricas nas Museologias no Brasil:
Tal mapeamento nos permite vislumbrar na Museologia contemporânea ao menos três dimensões que lhe são inerentes: a normativa e teórica, a reflexiva (acadêmica) e a experimental ou crítica. Alguns apontamentos podem ser feitos a partir das questões e reflexões levantadas pelas autoras que contribuíram com este número, transitando, cada uma à sua maneira, entre essas três dimensões integrantes da Museologia. [...] Ainda do ponto de vista das nossas diferenças, diversas são as museologias que habitam os museus, as universidades e os centros de pesquisa deste século. Muito mais numerosas do que as correntes existentes no século anterior, as diferentes abordagens museológicas contemporâneas podem ser identificadas em alguns dos termos usados para se referir a elas nos textos apresentados neste dossiê: museologia crítica, museologia inclusiva, museologia social, museologia experimental, museologia decolonial... Podemos considerar inesgotáveis as possibilidades de ruptura e continuidade com a Museologia que funda o pensamento reflexivo sobre os museus. (BRULON, MAGALDI, 2020, p. 14-16).
A análise metateórica ou metamuseológica apresentada pelos organizadores a partir da leitura dos artigos do dossiê evidencia a leitura apresentada por Maria Cristina Oliveira Bruno (2020) no texto Museologia: entre abandono e destino em que sublinha as dimensões normativa e teórica (impactada pelo Comitê Internacional de Museologia e peloConselho Internacional de Museus); reflexiva (impactada pela consolidação da formação acadêmica na área) e experimental ou crítica (fruto de múltiplos atravessamentos experimentais de diferentes grupos sociais). Acredito que essas dimensões tornaram-se chaves de leitura que conduziram a imaginação científica dos organizadores para selecionar os textos do dossiê e problematizar algumas das transformações epistêmicas das Museologias na contemporaneidade. Paralelamente, os textos também impactaram a imaginação científica dos responsáveis pela organização do dossiê e, posteriormente, as de muitos leitores e pesquisadores do campo, em uma retroalimentação construída a partir de certas disposições que são fruto de uma determinada forma legitimada de ver e inventar o campo das Museologias. Não é por acaso que Bourdieu (2004) reconhece as teorias enquanto princípio de visão e divisão, demonstrando como as estruturas simbólicas também impactam a construção da realidade: “cada vez mais me pergunto se as estruturas sociais de hoje não são as estruturas simbólicas de ontem. [...] As estruturas simbólicas têm um extraordinário poder de constituição” (BOURDIEU, 2004, p. 31).
Seguindo a lógica de mapeamento de temas antitéticos5 apresentada por Gerald Holton (1979), nas análises de Cristina Bruno (2020) é possível identificar como tema relevante para a compreensão das imaginações científicas do campo das Museologias as articulações em torno de memória, na tensão lembrança/esquecimento, evidenciando “a sua vocação para o tratamento das memórias exiladas, soterradas e mascaradas” (BRUNO, 2020, p. 26).
No artigo O ‘amor pelos museus’: obsessões pela definição de um fenômeno social; posse de um objeto; e a existência de uma disciplina científica e universitária denominada Museologia, de autoria de Luciana Menezes de Carvalho (2020), ao apresentar os debates em torno do estabelecimento de uma perspectiva científica no século XX, sobressaem os temas Museologia/Museografia, museu/Museologia; técnica/disciplina científica, demonstrando as disputas pela conformação da autoridade científica do campo. As reflexões de Luciana Christina Cruz e Souza (2020) em A Mesa Redonda de Santiago do Chile e o desenvolvimento da América Latina: o papel dos Museus de Ciências e do Museu Integral, também evidencia uma leitura sociohistórica com destaque para os impactos do Encontro de Santiago do Chile, em 1972. Em suas análises dos debates epistêmicos promovidos por esse acontecimento significativo no campo dos museus e das Museologias, é possível sublinhar como temáticas reincidentes nas imaginações científicas dos agentes algumas dicotomias, tais como: museu/museu integral; reprodução/transformação; colonialidade/decolonialidade; insustentabilidade x sustentabilidade.
Investigando as Museologias e os museus no momento atual, Teresa Scheiner (2020) esboça no artigo Museologia, hiperculturalidade, hipertextualidade: reflexões sobre o museu do século XXI as transformações ocorridas nas últimas duas décadas com a emergência da hipercultura e algumas inferências sobre o futuro dos museus. Nessa interpretação, a autora inclui no debate de memória os temas textualidade/hipertextualidade, espaço/hiperespaço, real/virtual, permanência/impermanência, vestígio/fluxo, reforçando as leituras fenomênicas do museu.
Ainda na esteira das discussões museológicas no século XXI, o texto Museus fazem bem à saúde?Uma tese sobre museu e saúde na sociedade do século XXI, de autoria de Heloísa Helena Fernandes Gonçalves da Costa (2020), sublinha as relações entre memória, saúde cultural e museus. No trabalho é possível identificar alguns temas prioritários para esboçar imaginações científicas no campo museológico extraídos de algumas das experiências apresentadas, a exemplo de saúde/doença, lembrança/esquecimento, contemplação/reflexão. Também em análise dos regimes museais contemporâneos, Bruno Brulon (2020), investigou no trabalho Museu queer e Museologia da bricolagem: o problema da diferença nos regimes museais, as representações dos quadros sociais das identidades nos museus. Evidencia a centralidade da memória e, de suas análises, emergem como temas das imaginações científicas relacionadas à identidade e sexualidade os pares: lembrança/esquecimento, inclusão/exclusão, construção/desconstrução, universalidade/pluriversalidade. No artigo de Manuelina Maria Duarte Cândido (2020) intitulado Museologias insurgentes: pesquisa e reflexões para transformar a Museologia na Bélgica, a autora reforça a ideia de Museologias plurais a partir da ideia de insurgência museal e do mapeamento de diferentes tendências do conhecimento. Nesse debate sobre paradigmas museológicos e as diferenças de ressonância no cenário francófono, é possível destacar como temas recorrentes: hegemonia/contra-hegemonia; universalidade/pluriversalidade; construção/desconstrução; colonialidade/decolonialidade.
Debates que, especialmente no contexto brasileiro, dialogam com as experiências problematizadas no texto Política pública de direito à memória: apontamentos sobre a trajetória do Programa Pontos de Memória de autoria de Marcele Pereira (2020). Segundo seus argumentos, a autora realiza uma leitura dos impactos do Programa Pontos de Memória para a ampliação da ideia de museu e para a configuração de Museologias participativas, evidenciando temas como lembrança/esquecimento, inclusão/exclusão, reprodução/transformação, participação/marginalização, colonialidade/decolonialidade.
O dossiê apresenta um texto de Marília Xavier Cury (2020) intitulado Metamuseologia – reflexividade sobre a tríade musealia, musealidade e musealização, museus etnográficos e participação indígena. Nele, o intuito foi discutir a teoria museológica contemporânea tendo como referência os impactos da participação na curadoria e da colaboração e musealização reflexiva tendo como exemplos a relação entre indígenas e museus etnográficos. Do seu estudo sobre a teoria museológica, pensado em sua vertente metalinguística enquanto metamuseologia, destacam-se os temas universalidade/pluriversalidade, lembrança/esquecimento, participação/marginalização.
Na verdade, o desenho preliminar dos temas antitéticos que integram as imaginações científicas sintetizadas no dossiê demonstra como a memória, a pluriversalidade, a participação e a sustentabilidade consistem em motivos recorrentes e perspectivas cada vez mais centrais para se pensar as Museologias na contemporaneidade. De fato, são leituras aprofundadas visando compreender as diferenças internas de mobilização dessas temáticas, o modo como consistem em motes significativos entre a imaginação museal e a imaginação científica e configuram o “efeito de teoria” impactando as categorias “de percepção e apreciação do mundo social, as estruturas cognitivas e avaliatórias: as categorias de percepção, os sistemas de classificação” (BOURDIEU, 2004, p. 162), alimentando, assim, “a luta política, luta pela imposição do princípio de visão e divisão legítimo, ou seja, pelo exercício legítimo do efeito de teoria” (BOURDIEU, 2004, p. 162). Portanto, este artigo apresentou um exercício de compreensão do “efeito de teoria” nas Museologias, reconhecendo as reflexões como um exercício metamuseológico para a visualização de marcos políticos, (po)éticos e epistemológicos a inspirar novas práticas museológicas e reorientar os protocolos de leitura científica.
Agradecimentos
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília (Edital n. 07/2020).
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Notas
Notas de autor
clovisbritto@unb.br
Información adicional
Declaração de autoria: Concepção e elaboração do estudo: Clovis Carvalho Britto Coleta de dados: Clovis Carvalho Britto Análise e interpretação de dados: Clovis Carvalho Britto Redação: Clovis Carvalho Britto Revisão crítica do manuscrito: Clovis Carvalho Britto
Como citar: BRITTO, Clovis Carvalho. “Teoria do efeito de teoria”: reflexões sobre a organização do conhecimento no campo das Museologias contemporâneas. Em Questão, Porto Alegre, v.27. n. 4, p. 387-412, 2021