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Sujeitos infocomunicacionais ou unidimensionais: o que somos?
Infocommunication or unidiemensional Subjects: what are we?
Em Questão, vol. 28, núm. 1, pp. 299-326, 2022
Universidade Federal do Rio Grande do Sul



Recepción: 26 Febrero 2021

Aprobación: 21 Junio 2021

DOI: https://doi.org/10.19132/1808-5245281.299-326

Resumo: O artigo busca refletir sobre a seguinte questão: somos seres infocomunicacionais, diligentes enquanto sujeitos de nossos processos, ou resultados de construções sociais estabelecidas por mercados, a partir de ideologias que se consolidam na superestrutura da sociedade? Para tentar responder à pergunta, foi selecionado um material que contextualiza o papel das ciências, assim como da própria Ciência da Informação, nos períodos entre e pós-guerra, e que também aborda aspectos ligados à condição humana e à sua subjetividade, a partir das imbricações entre submissão vs. emancipação, comunicação, informação e alteridade. As considerações apontam que somos seres complexos, que não obedecem somente a uma lógica binária, mas inseridos e insurgentes em uma relação de ordem/desordem imposta pela própria complexidade. Portanto, seres infocomunicacionais ativos e cuja consciência supera a inteligência tecnológica, mas suscetíveis à subordinação, por vontade própria, ou não, à subjetividade/objetividade de um mercado que investe pesado em aparatos de comunicação, especialmente em redes neurais e inteligência artificial.

Palavras-chave: Sujeito infocomunicacional, Sujeito unidimensional, Emancipação, Mercado.

Abstract: Through a bibliographical review the article seeks to reflect the following question: we are Infocomunicactonal human beings, diligent as subjects of our processes, or results of social constructions established by markets, from ideologies that consolidates in the society superstructure? In order to answer the question, a material was selected that contextualizes the role of sciences, and the Information Science itself in the periods between and after the war, which also deals with aspects related to the human condition and its subjectivity, from the interlinkages between submission x emancipation, communication, information and otherness. The considerations points out that we are complex beings, which do not obey only a binary logic, but are inserted and insurgent in a relation of order / disorder imposed by the own complexity, and therefore active Infocomunicactonal, whose consciousness overcomes the technological Intelligence, but susceptible to subordination, willingly or not their subjectivity / objectivity of a market that invests heavily in communication devices, especially in neural networks and artificial intelligence.

Keywords: Infocomunicactonal subjects, Unidimensional subjects, Emancipation, Marketplace.

1 Introdução

As discussões sobre a condição humana ao longo de sua existência na Terra sempre estiveram nas pautas do senso comum, da filosofia e das ciências. Hoje – fazendo recortes temporais sobre este lugar, só que, agora, pressionados pela aceleração das tecnologias digitais, dos avanços de sistemas de comunicação, cada vez mais complexos, por meio do desenvolvimento de algoritmos das emoções, das redes neurais e da computação ubíqua, entre outros –, a condição humana precisa ser revisitada de forma mais emergente, sob pena de o contexto da hiperinformação aumentar o hiato e, consequentemente, diminuir as pontes que nos ligariam à complexidade de nossas existências.

Uma questão polêmica, entretanto, que vem desde o Iluminismo, a partir da crença eurocentrista acerca da liberdade e da autonomia do ser humano, se revela-se nos primeiros anos do século XXI: somos seres infocomunicacionais, diligentes enquanto sujeitos de nossos processos, ou resultados de construções sociais estabelecidas por mercados, a partir de ideologias que se consolidam na superestrutura da sociedade?

Essa questão será o ponto central de nossa análise. Por meio de uma pesquisa bibliográfica, buscaremos encontrar substâncias para enriquecer nossas reflexões. O material selecionado percorre, numa primeira instância, caminhos que contextualizem o papel das ciências, e da própria Ciência da Informação nos períodos entre e pós-guerra. Neste lugar, dialogaremos, principalmente, com Almeida (2001), Barreto (2007), Burk (2003, 2012), Mattelard (2005a, 2005b) e Santos (1978).

Nos aspectos ligados à condição humana e à sua subjetividade, a partir das imbricações entre submissão vs. emancipação, comunicação, informação e alteridade, continuaremos o diálogo com os seguintes autores, entre outros: Albagli (2013), Barreto (1994), Cocco (2012), Freire e Aquino (2000), Gomes (2016), Marcuse (1973), Morin (1996, 2003, 2008, 2011), Hall (1997, 2014). Santos (2018) e Zuboff (2021). Percorrendo esses caminhos, esperamos avançar no tema, contribuindo para o alargamento dos debates no campo da Ciência da Informação.

A discussão teórico-reflexiva aqui proposta, mesmo amparada em boa parte na Teoria Crítica, não elege a dialética como método de análise principal, e sim a dialógica. Isso porque, inspirando-nos em Morin (1996), a não pretensão à síntese, uma das bases da dialética, nos permite explorar os conceitos suscitados, preservando suas contradições e tensões.

O processo de escolha dos autores – à exceção de Marcuse (1973), que historicamente trouxe o tema da unidimensionalização para as ciências, sendo, portanto, o ponto e o contraponto de referência na busca de respostas à nossa questão central – não é simétrica, o que pode representar uma fragilidade metodológica do trabalho. Por outro lado, entendemos que essa fragilidade, inerente a um estudo reduzido para a produção de um artigo, denota também uma preocupação com o rigor científico possível para tal, considerando, inclusive, nossas próprias limitações na condição de autores.

2 Dilemas de um contexto

Com o encerramento da primeira idade de ouro do capitalismo, a partir da Primeira Guerra Mundial, e o sepultamento definitivo da Belle Époque com o conflito que se sucedeu – a Segunda Guerra – (ALMEIDA, 2001; GASPAR, 2015), o mundo entrou definitivamente na era da informação, sem qualquer trégua reflexiva sobre os processos em curso. Isso porque os conflitos entre os povos – mesmo que se aceite a globalização como um processo de longo prazo – continuaram – e continuam – sob várias facetas.

A própria Ciência da Informação, que se constituiu naquele contexto, em 1948, na Royal Society Scientific Information Conference (BARRETO, 2007) ­ –acrescentamos, na concepção anglófona ­–, é, em parte, resultado desses conflitos e das disputas hegemônicas. O engenheiro Vannevar Bush (1945), que projeta seu protagonismo no referido congresso apresentando o artigo As We May Think, escrito em 1945, assumira, anos antes, na Segunda Guerra Mundial, papéis fundamentais ao longo do conflito.

Alcunhado de “Gestor do Conhecimento” (BURK, 2003), Bush comandou mais de 6 mil cientistas em todo o mundo para o esforço de guerra. Foi também o coordenador do Projeto Manhattan, responsável pela construção da bomba atômica que, não só pôs fim ao conflito, a partir dos massacres de Hiroshima e Nagasaki, mas colocou o mundo em outro patamar de disputa hegemônica, por meio da corrida armamentista que se estabelecera desde o ano de 1947, com a chamada Guerra Fria.

As consequências da conjunção entre ciência e Estado, segundo Santos (1978, p. 16), transformaram a máquina de guerra, “[...] nos anos seguintes, numa indústria florescente e a ciência, sobretudo a que se designa hoje por big science, colocou-se zelosamente ao seu serviço”. Essa dicotomia fez acirrar uma disputa nas ciências, estando o viés ideológico no patamar das questões.

O acirramento das discussões a partir dessa apropriação, aprofundou, segundo Santos (1978), a chamada crise das ciências, já a partir da década de 1940, sobretudo por governos dos Estados Unidos, da Alemanha e da Inglaterra, ao analisar a Sociologia das Ciências. Ao abordar o Paradigma de Merton, ele procura nos mostrar como a sociologia positivista surge nos Estados Unidos como meio de acomodar a sociedade que vivia à iminência de um conflito mundial. Segundo Santos (1978, p. 13), configurava-se ali um projeto social e político com o objetivo de “[...] transformar a ética científica da sociedade liberal avançada em ética universal”.

Ficou evidente o desgaste dessa ciência patrocinada pelo Estado, principalmente a partir do pós-guerra, porque, ainda que tenha recebido vultosos recursos, não conseguiu dar respostas às desigualdades que se estabeleceram, por exemplo, na própria sociedade norte-americana. Durante a guerra, o governo dos EUA investiu, anualmente, US$ 500 milhões em pesquisa, mais o investimento total de US$ 2 bilhões no Projeto Manhattan, para a criação da bomba atômica (BURK, 2003).

Questões relativas à comunicação e à informação foram ganhando corpo também naquele período, lembrando que, ao final do século XIX, com a consolidação do chamado positivismo histórico, tiveram início os estudos acerca dos temas, mais notadamente no campo da imprensa. Em igual período, registra-se uma oposição crítica a esta teoria, que se torna mais evidente a partir da Segunda Guerra Mundial, pondo frente a frente os debates entre o marxismo e o funcionalismo.

2.1 Informação e comunicação no centro das disputas ideológicas

A centralidade dos temas, de fato, foi destaque nas discussões sobre a ideologia nas ciências. Surgiram diversas frentes de estudos teóricos acerca da comunicação e da informação, notadamente nos Estados Unidos, a partir de 1910, com a Escola de Chicago, cujo fôlego se deu até o início da Segunda Guerra, e, nos anos 40, com Mass Communication Research, “[...] cujo esquema de análise funcional deslocava a pesquisa para medidas quantitativas, mais rápidas a responder à exigência proveniente dos administradores da mídia” (MATTELARD, 2005a, p. 29).

Assim, inicialmente, conforme Santos (1978),

A sociologia funcionalista demarca-se frontalmente em relação às tentativas isoladas da sociologia marxista [...], para as quais a industrialização da ciência na sociedade capitalista conduz a que a prática científica reflita com intensidade cada vez maior os conflitos e as contradições gerados no seio deste modo de produção. Isto é, o capitalismo não provoca «desvio» na prática científica uma vez que, ele é constitutivo dessa prática e por isso a transformação desta pressupõe a transformação do capitalismo e a sua substituição pelo socialismo (SANTOS, 1978, p. 13).

Com base nesses pressupostos, nos arriscamos a afirmar que as disputas entre as correntes funcionalistas e marxistas se acirraram com o desenvolvimento de pesquisas aplicadas a partir da modelagem matemática. Soma-se a isso a criação dos primeiros algoritmos para promover a compressão e a limpeza dos canais físicos das tecnologias midiáticas disponíveis no período.

Não mais de forma isolada, como sugerira Santos (1978), as abordagens marxistas foram se acentuando por distintas gerações da Escola de Frankfurt, a partir, especialmente, do surgimento da Teoria Matemática da Comunicação, de Shannon e Weaver (1949). Naquele período, crescera a percepção funcionalista de que as limpezas dos canais dos mass media pelos engenheiros e matemáticos seriam potencialmente capazes de “[...] dirigir o comportamento da audiência em relação a um determinado alvo”. (MIRANDA, 1978, p. 16).

Enquanto esse debate persiste ainda nos primeiros anos do século XXI, podemos dizer que, em que pese a densidade da crítica teórico-científica e epistemológica às abordagens funcionalistas, os algoritmos, criados a partir das pesquisas de Shannon e Weaver (1949) chegaram ao nosso cotidiano com uma força extraordinária. Evidenciava-se, de certa forma, que as percepções de filósofos como Adorno (1985. 2002), Horkheimer (1985), Benjamim (1991, 1994) e Marcuse (1973), entre outros, apontavam que aquela tentadora racionalidade técnica escamoteava uma forte ideologia de orientação mercadológica, na direção de um consumo sem precedentes.

Na opinião de Eco (1984), essa dicotomia, no entanto, precisava ser ultrapassada, uma vez que ambas as correntes, denominadas por ele de “apocalípticos” (teóricos críticos) e “integrados” (funcionalistas) criaram conceitos-fetiches acerca da cultura de massa e da indústria cultural. Eco (1984) queria mostrar, que, mesmo com as revisões teóricas que se deram a posteriori, havia um exagero nas visões sobre a influência dos mass media na sociedade.

Surgiram, assim, em vários campos do conhecimento, correntes teóricas que buscavam situar o ser humano em sua condição de opressor/oprimido, a partir de suas identidades e dos papéis que cumpriam em uma sociedade desigual. As distintas abordagens revisitavam a análise das experiências advindas, especialmente, das revoluções industriais, em suas diversas épocas e facetas.

A aceleração exacerbada das tecnologias experimentadas, sobretudo a partir da segunda metade do século (BURK, 2012; HOBSBAWM, 1995; MARCUSE, 1973; SCHWAB, 2016) e suas possíveis influências sobre o ser humano e o seu meio acirram os debates políticos e científicos e, não menos importantes, os estabelecidos no nível do senso comum. Temos, portanto, nesse cenário, parte da problematização que nos remete à pergunta desta reflexão: somos seres – antecedendo aqui a nossa condição de sujeitos – infocomunicacionais ou unidimensionais?

Na busca de respostas, precisamos ampliar nossas reflexões acerca do que seria “unidimensionalização” do ser humano, a partir do filósofo Herbert Marcuse (1973), assim como sobre as concepções do sujeito e de sua busca por autonomia, na perspectiva de suas centralidades culturais. Incluímos, portanto, nesse mosaico reflexivo, uma questão não menos desafiadora, concernente ao aspecto da convergência midiática na sociedade cibercultural, processo que afeta fundamentalmente o ser humano pelo fato de este ainda deter a máquina mais apropriada para realizar essas conexões (o cérebro).

Mesmo com todo este “poder”, não se pode negar que, conforme Magalhães e Mill (2013, p. 333):

[...] como discutem diversos críticos das mídias-comunicação, há aspectos perniciosos e subliminares das mídias, relacionados a poder, hegemonia, dominação, massificação e outros empecilhos à emancipação.

No entanto, os referidos autores admitem essa influência, mas atribuem o seu peso a fatores sociais, educacionais de uma sociedade, acrescentando que a exclusão se perpetua “[...] nas desigualdades de acesso aos recursos simbólicos, e na capacitação de suas habilidades” (MAGALHÃES; MILL, 2013, p. 333).

Mais contundente, Morin (2008, p. 8), ao discutir essa possível hegemonia dos meios, diz que estamos tratando a questão a partir de uma perspectiva reducionista, dando-se às mídias “[...] uma autonomia exagerada. É um clichê que atravessou o século XX e, apesar dos esforços da pesquisa, não foi dissipado”. Segundo ele, as mídias podem influenciar a vida das pessoas, de acordo com pesquisas, mas estas não detêm papel fundamental em suas vidas.

Propomos, então, avançar nas discussões sobre tais divergências e convergências, por meio de um aprofundamento das lógicas que se estabelecem nas relações entre emancipação e unidimensionalização.

2.2 O paradigma unidimensional

Antes de se buscar uma possível dialogia entre unidimensão e emancipação, precisamos recorrer a Marcuse (1973) para tentar entender a concepção de uma sociedade unidimensional. Para nossa reflexão, é importante destacar que o referido filósofo viveu um momento histórico que experimentava, na década de 1960, o início da chamada terceira revolução industrial.

Sobre o período em questão, segundo Schwab (2016, p. 17), começava ali a também chamada revolução “[...] digital ou do computador”. Uma época impulsionada pelo desenvolvimento dos semicondutores, da computação em mainframe (década de 1960), da computação pessoal (década de 1970 e 1980) e da internet (década de 1990), que experimentou um processo profundo e impactante, como alguns preferem chamar, na modernidade.

As discussões sobre uma possível sociedade unidimensional também se intensificaram no período da terceira revolução industrial. Na concepção de Marcuse (1973), essa sociedade nascera a partir do grande desenvolvimento científico experimentado nos períodos do entre e do pós-guerras, conforme contextualizado no início do artigo, impondo-se sobre as ambiguidades de uma possível catástrofe nuclear, sem, contudo, buscar o entendimento, na própria sociedade, dos esforços feitos para impedi-la.

Sobre esse lugar, Marcuse (1973) apontava um paradoxo no sentido de que as sociedades industriais desenvolvidas, ao buscarem uma racionalidade na sua própria irracionalidade, por meio de promessas de conforto e da produção de necessidades, escamoteavam o próprio conceito de alienação. Essa ambiguidade ajudaria a manter a produtividade, transformando a sociedade em uma máquina capaz de superar o poder do indivíduo ou de qualquer grupo de indivíduos, ou seja, um eficiente instrumento de controle político. Por outro lado, Marcuse (1973, p. 25) reconhecia que “[...] o poder da máquina é apenas o poder do homem, armazenado e projetado”.

Dessa maneira, a sociedade industrial, na concepção marcusiana, seria unidimensional a partir de sua capacidade de criar falsas necessidades como meio de integrar os indivíduos ao próprio sistema de produção e consumo. A unidimensionalização se daria nas dimensões comportamentais e de produção de ideias, com capacidade para anular o pensamento crítico. Faz-se-necessário destacar, no entanto, que o filósofo faz referência à Teoria Crítica do início do século XX, apontando sua incapacidade de desnudar a nova realidade da então sociedade industrial desenvolvida

No então tempo presente do filósofo, ao contrário da sociedade do século XIX, “[...] que expressava o conflito agudo entre as esferas sociais” (MARCUSE, 1973, p 17), os sujeitos estariam conformados, aceitando as desigualdades com poucos questionamentos. Joguemos, então, o questionamento que Marcuse (1973) fez à própria Teoria Crítica do início do século XX, para a modernidade, de forma que ela possa contribuir com as reflexões as quais nos propusemos neste trabalho, sobre a condição humana nos aspectos emancipatórios ou unidimensionais.

Antes de passarmos para o tópico seguinte, é importante registrar que a contribuição de Marcuse (1973) transcende os recortes feitos para esta pesquisa, pois suas críticas acerca do “homem” na sociedade industrial apontavam possibilidades para a superação de paradigmas dominantes. O “pessimismo” atribuído a ele não pode ser visto como uma simples interpretação do termo, conforme fazemos no senso comum, mas como uma motivação para o alcance de uma utopia transformadora da própria sociedade.

Concordamos com Bastos (2014, p.113) quando coloca que a condição do homem unidimensional em Marcuse (1973) diz respeito a um modo de vida que se estabelece no capitalismo, em que, por um lado:

[...] esse ´homem` faz avançar os pressupostos do mercado pelo território econômico, social, político, cultural, científico, tecnológico etc. De outro, avança ainda pelo território subjetivo, notadamente pela produção do desejo inconsciente.

Vamos considerar também, para dialogar com os objetivos de nossa análise, as reflexões de Bastos (2014), ao apontar que o pensamento de Marcuse (1973) nos leva a pensar que, nos dias de hoje:

[...] por maior que seja a pretensão totalitária desse atual modelo, criando um suposto consenso que exclui toda diferença, essa hegemonia não reina absoluta: há espaços, existem brechas dentro das instituições sociais, as quais, a partir daí poderão advir à resistência. (BASTOS, 2014, p. 116).

As pistas para essas brechas podem estar nas discussões acerca do sujeito na modernidade, como veremos a seguir.

2.3 A emancipação e o sujeito na modernidade

No mundo contemporâneo, muito se tem discutido sobre a posição dos sujeitos para uma compreensão de sua autonomia, ações, desejos e interações. Morin (1996) argumenta que a estrutura egocêntrica autorreferente é qualidade fundamental do sujeito. Nesse sentido, ser sujeito não é ser consciente nem ter afetividade, mas, antes, se colocar no centro de seu próprio mundo e, ao mesmo tempo, ser autônomo e dependente.

Destarte, torna-se dependente do meio, que é anterior, e autônomo, enquanto ocupa de si mesmo. Já ser consciente é ter a capacidade de sair de si, de transcender a centralidade da subjetividade, percebendo, ao mesmo tempo, que nosso modo de ser é ser o centro do mundo. Por este caminho, concluímos que a noção de sujeito vista por Morin (1996) está diretamente ligada à noção de autonomia. Essa autonomia não é apenas a capacidade da livre escolha, mas a capacidade de estar em harmonia com o meio ambiente.

Já na visão de Freire e Aquino (2000), as discussões sobre o sujeito surgiram no período em que se acreditava no indivíduo, na sua individualidade, ou seja, preso em estruturas e deslocado das mudanças essenciais.

A constituição de um sujeito universal reúne dois significados distintos: sujeito indivisível – uma entidade que unificada seu próprio interior e não pode ser dividida: uma entidade singular, distintiva e única [...]. Com o Caos da ordem social, econômica e religiosa, no período medieval, novos processos civilizatórios foram instalados, tornando as sociedades mais complexas e adquirindo uma forma coletiva e social. Nesse ínterim, o construto clássico foi obrigado a da conta das estruturas estado-nação e de grandes massas que faziam a democracia em meio às forças do capitalismo moderno. Enquanto isso o cidadão individual tornou-se enredado nas maquinarias burocráticas e administrativas do novo estado que se formava. (FREIRE; AQUINO, 2000, p. 75).

O sujeito, nesse sentido, transcende de um passado enredado de treva para um humanismo renascentista, chegando ao Iluminismo, e, mediante as diversas transformações, alcança a modernidade. Um cenário que faz surgir uma nova concepção de sujeito, em meio às contribuições da biologia darwiniana e das novas ciências sociais. Coincidentemente, crescia uma tendência que se preocupava em explicar a formação subjetiva dos indivíduos, por intermédio da sua participação nas relações sociais mais amplas, contrariamente de “[...] como os processos e as estruturas eram sustentados pelos papéis que os sujeitos neles desempenhavam [...]” (FREIRE; AQUINO, 2000, p. 75).

Diante dessa relação, ganham mais luz as correspondências que se estabelecem entre o interior e o exterior dos sujeitos. Isso ocorre de forma mais exacerbada no século XX, principalmente a partir de sua segunda metade, período no qual, conforme tratamos anteriormente, os processos tecnológicos se aceleraram de forma espetacular. Emergem diversos movimentos de caráter social, estético e intelectual, ao mesmo tempo em que aflora a invisibilidade do sujeito. Conforme Hall (2014), fica visível a figura de um sujeito isolado, solitário e perdido na multidão.

Nesse cenário, Hall (2014) faz menção a alguns atributos constituintes do sujeito moderno. O primeiro tem como base os postulados marxistas, que configuram o sujeito ativo, recusando a essência universal do homem e a qualidade de cada indivíduo. O segundo, advindo da psicanálise em Freud, revela-nos que o ser individual não progride espontaneamente, mas a partir das relações sociais. Já o terceiro, por sua vez, está articulado ao pensamento de Ferdinand de Saussure e tem relação com a linguística, sendo a língua entendida como um sistema social e não individual, não permitindo aos indivíduos serem donos das afirmações ou significados expressos por sua própria língua, assim como de suas identidades. O signo é ideológico e o sujeito é um ser empregado de ideologias. Prosseguindo, a quarta noção, a partir da visão foulcautiana, mostra o sujeito como alvo do poder disciplinar, que o adestra e torna dócil, condição que conduz tal sujeito a um isolamento. Por fim, temos a quinta noção, que surge impactada com os novos movimentos sociais, sobre os quais se percebe um novo sujeito social, com múltiplas identidades.

Considerando essa diversidade conceitual, podemos pensar também o sujeito do conhecimento, a partir de suas práticas sociais, “[...] entendido como aquele que interage com outros sujeitos na construção da informação.” (FREIRE; AQUINO, 2000, p.76). Esse sujeito do conhecimento é responsável pela comunicação, geração, recepção, transmissão, acessibilidade, usabilidade e socialização da informação. É responsável, enfim, pela construção da cidadania ou de exercícios de cidadania que se tornam efetivos, segundo Araújo (2001), necessariamente pelo acesso e pelo uso da informação.

2.4 Sujeito, informação e comunicação

A noção de sujeito do conhecimento nos mostra que os indivíduos estão ligados tanto à comunicação quanto à informação. De acordo com Gomes (2016), a comunicação e a informação são caracterizadas como fenômenos ativos do homem, sendo os sujeitos sociais constituídos e constituintes do mundo por meio do procedimento de socialização, sobre o qual a interação é um componente essencial na constituição de sentidos, na manifestação e produção das relações sociais. É através da interação que observamos as possibilidades de interligação entre a comunicação e a informação.

A comunicação, caracterizada como um processo que tira os seres humanos do seu estado de isolamento, permite que eles se relacionem entre si, dividindo e trocando experiências, ideias, sentimentos e informações. Para Gomes (2016), na condição de:

[...] projeto humano, a comunicação conduz o desenvolvimento de dispositivos como técnicas, linguagens, processos, instrumentos, recursos tecnológicos e ambientes que funcionam como prolongamentos, extensões do próprio homem, para que se dê efetividade ao compartilhamento de saberes e conhecimentos (GOMES, 2016, p. 93).

No que tange à informação, Barreto (1994) afirma que esta liga o mundo, além de participar da revolução e evolução do ser humano na história. Quando bem assimilada, produz o conhecimento e modifica o estoque mental de informações do ser humano, trazendo benefícios ao seu desenvolvimento e à sociedade em que vive. Por isso, ela se faz presente na vida do indivíduo antes de seu nascimento e o acompanha durante toda a sua vida.

Fazendo uma relação entre a comunicação e conhecimento, Gomes (2016) mostra considerações de diversos autores e traz a compreensão de que a informação é como conhecimento em estado de compartilhamento e a comunicação é como o próprio processo de compartilhamento. Essa mesma autora lembra que é na mediação da informação que podemos perceber uma ligação entre a comunicação e a informação. A mediação representa um elemento fundamental no processo do desenvolvimento humano e a dialogia é a sua base de sustentação. De acordo com Gomes (2016, p.100), por intermédio da “[...] a dialogia, o homem pode se desvelar aos seus próprios olhos, pode conhecer o outro e o mundo”.

Destarte, vale também destacar que tais considerações acerca da mediação foram bastante oportunas, uma vez que aproxima a Comunicação da Ciência da Informação. Conforme frisou a autora, a mediação promove o desenvolvimento de processos de consciências e competências ao interligar os sujeitos “[...] que buscam o compartilhamento e o acesso a esses saberes e conhecimentos” (GOMES, 2016, p. 102).

Podemos, dessa feita, a partir das reflexões que fizemos entre informação e comunicação, estabelecer o paradigma infocomunicacional, entendendo que este pode tanto englobar quanto transcender a questão das competências e habilidades necessárias para garantir a sobrevivência do sujeito na modernidade. Para Borges (2013, 2018), as competências infocomunicacionais estariam sustentadas nos pilares operacionais, informacionais e comunicacionais.

No horizonte das habilidades, o sujeito precisaria saber usar artefatos eletrônicos, conseguir navegar na internet, operar motores de busca, dispositivos de comunicação e recursos para produção de conteúdo. As competências, por sua vez, estariam ligadas à nossa capacidade de buscar, selecionar, avaliar e aplicar informações para resolver questões, no âmbito informacional, e, no comunicacional, saber dialogar em ambientes de hiperinformação e negociar, qualidades que redundam no próprio ato de comunicar. (BORGES, 2018).

Para transcender os estigmas que o próprio nome carrega – a competência enquanto antítese de incompetência ou enquanto uma ideologia que normaliza a condição de subalternidade na sociedade, Daher Junior e Borges (2020) acreditam que estas devam ser discutidas na perspectiva de um rompimento com esse status quo. Tal rompimento nos permitiria pensar as competências como uma condição para a visibilidade de grupos sociais até então invisíveis na sociedade, em decorrência das exclusões sociais, ou, como vimos em Hall (2014), do próprio sujeito, em função da modernidade.

Para que ocorra essa ruptura, no entanto, Daher Junior e Borges (2020) defendem, inspirados em Morin (2011), que compreendamos os discursos das competências sob a ótica da dupla complexidade: o real da lógica e a lógica do real. Sob essa condição, respectivamente, os autores dizem que podemos percebê-las como utilitárias, funcionais e, na perspectiva da transgressão, e, citando Ardoino (2001, 553) “[...] podendo ser pensada como um domínio mais qualitativo, ligado ‘... à experiência e à duração’”. No caso, englobando as infocomunicacionais, estas promoveriam a transgressão por carregarem uma criticidade suficiente para empoderar o sujeito em suas relações com o próprio mundo.

3 Afinal, unidimensional ou infocomunicacional?

A primeira consideração a fazer nessa discussão é negar a possibilidade de que a lógica binária, aristotélica, possa, sozinha, responder a essa questão. Pelos autores escolhidos para dialogar conosco neste artigo, percebemos que, cada um, a seu modo, estabelece uma espécie de crença na resistência da humanidade a uma dominação totalitária. Hall (1997, p. 3), por exemplo, aponta que parte da resistência a uma possível homogeneização cultural reside no fato de que a “[...] própria cultura global necessita da diferença para prosperar”.

Não podemos negar, porém, a percepção de Marcuse (1973, p. 171) acerca do que ele denominou de “vitória do pensamento positivo” ao retratar, na sua época, os caminhos do que chamou de mundo empírico real. Aquele mundo, segundo Marcuse (1973, p. 171), seria:

[...] o das câmaras de gás e dos campos de concentração, de Hiroxima e Nagasáqui, dos Cadillacs americanos e Mercedes alemães, do Pentágono e do Kremlin, das cidades nucleares e das comunas chinesas, de Cuba, das lavagens da mente e dos massacres.

Transpondo essa percepção para o mundo contemporâneo, considerando algumas reflexões de Daher Junior e Borges (2021), podemos também admitir que, a partir dos investimentos em sistemas de comunicação, a exemplo da inteligência artificial e dos algoritmos de sentimentos, experimentamos uma supremacia behaviorista. Tal primazia impulsiona nossas ações quase que de forma silenciosa – mas gritante em nossos equipamentos de comunicação pessoal – numa relação estímulo x resposta praticamente sem tréguas.

Aqui vale resgatar que esse processo vem se aperfeiçoando desde a década de 1940, conforme falamos anteriormente, com a Teoria Matemática da Comunicação (SHANNON; WEAVER, 1949). Fora estabelecida, a partir dali, de acordo com Gallagher (2001), toda a base conceitual para os modernos sistemas de comunicação. O algoritmo de Shannon-Fano, como é mundialmente denominado, por exemplo, advém desses estudos. Trata-se de um processo que revolucionou, em diversos aspectos, o mundo digital, em especial no que tange ao transporte de imagens e vídeos (JPEG e MPEG), por sua capacidade de promover o que chamamos de redução do tamanho do arquivo.

Mesmo admitindo essa força behaviorista se estabelecendo por meio de uma inteligência advinda de sistemas neurais e do desenvolvimento da inteligência artificial, reiteramos a citação de Marcuse (1973, p. 25), aplicando-a ao presente, no sentido de que “[...] o poder da máquina é apenas o poder do homem, armazenado e projetado”. Nesta direção, recorremos também a Morin (2011, p. 21), que atribui ao cérebro humano um conjunto de memórias hereditárias, assim “[...] como de princípios inatos organizadores de conhecimento”, levando o indivíduo – aqui o autor ainda não trabalha com a concepção de sujeito – “[...] a alimentar-se de memória biológica e de memória cultural, associadas em sua própria memória, que obedece a várias entidades de referência, diversamente presentes nela” (MORIN, 2011, p. 21).

Morin (2011, p. 21) define esses parâmetros para estabelecer as diferenças entre cérebros e computadores, considerando que as máquinas, segundo ele, “[...] não dispõem de vários tipos e variedades de memória; não possuem em sua constituição, uma multiplicidade egogenoetnossociorreferente; enfim, não são simultaneamente comandados/controlados por programas diferentes”, ao contrário do que ocorre com o cérebro humano.

Por nossa capacidade em processar várias lógicas, segundo Morin (2011),

[...] descobrimos a complexidade genérica do conhecimento humano. Não se trata apenas do conhecimento de um cérebro em um corpo e de um espírito em uma cultura; é o conhecimento que gera de maneira biantropocultural um espírito/cérebro em um hit nunc. Além disso, não é somente o conhecimento egocêntrico de um sujeito sobre um objeto, mas o conhecimento de um sujeito portador, igualmente, de genocentrismo, etnocentrismo, sociocentrismo, isto é, vários centros-sujeitos de referência (MORIN, 2011, p. 22).

Assim, Morin (2011) religa o indivíduo ao sujeito, mostrando também haver uma relação estreita entre cultura e conhecimento, recorrendo metaforicamente ao que denomina de o Grande Computador para designar a própria cultura. Para ele, o complexo sistema de informação/comunicação coloca cada pessoa na condição de um terminal, responsável pela reconstituição e regeneração do Grande Computador (a cultura).

O pensador francês admite, porém, a existência de um centro de disputa nos processos de concepção do incremento dos sistemas neurais artificiais, sobre os quais já nos referimos nessa reflexão, que deixam em aberto o futuro do conhecimento por, justamente, estarem sendo concebidos por vertentes divergentes:

[...] – uma vai no sentido do desenvolvimento dos poderes individuais do conhecimento (poderes operacionais, lógicos, heurísticos, acesso a fonte de dados etc. ) e das possibilidades individuais de expressão, de transmissão, de diálogo; [...] a outra vai no sentido do desenvolvimento de poderes dos controles dos indivíduos pelas administrações e pelo Estado (MORIN, 2011, p. 123).

Morin (2011, p. 124), ao acreditar que o mundo vive a incerteza e, portanto, está aberto a novos começos, admite a possibilidade de a humanidade não escapar ao que denomina de “[...] barbárie da idade de ferro planetária”. Para ele, “[...] não temos nenhuma certeza de escapar ao Grande Computador de novo tipo, dispondo da cerebralidade artificial, tecnocientificamente todo-poderoso, e de poder de Estado neototalitário”.

Seguindo esta linha contrapontística que Morin (2011) faz ao próprio pensamento, não podemos deixar de considerar, conforme Daher Junior e Borges (2021, p. 94) – ao discutirem a possibilidade de a Ciência da Informação ser transdisciplinar –, que a linguagem não humana, transcendendo o suporte, incrementa esse ambiente de incertezas. No caso, eles argumentam que, nessas condições, a linguagem pode nos remeter à percepção de dois níveis de realidade, mas ainda “[...] sem uma previsibilidade de suas consequências no mundo macrofísico”.

São, portanto, reflexões iniciais, conforme Daher Junior e Borges (2021, p. 94) ganhando espaços na Ciência da Computação e na Ciência da Informação, e especialmente, nos ajudam a refletir “[...] sobre a capacidade ou não de haver o controle humano sobre a inteligência de máquina, no campo ainda hipotético de uma superinteligência artificial”. Assim, a partir do conjunto de reflexões realizadas até aqui, interpretamos que as disputas que se estabelecem nessas fronteiras do conhecimento, na realidade, estão relacionadas a modelos de desenvolvimento provenientes de crises engendradas pelo próprio capitalismo.

Na esfera do capitalismo, Santos (2018), vê sua crise como permanente, longe de ser uma condição que deva ser ultrapassada e resolvida. Ao contrário, segundo ele, trata-se de um estado que apresenta o próprio sistema como capaz de explicar os conflitos gerados em seu interior, mesmo que este venha a “infligir as formas mais repugnantes e injustas do sofrimento humano que o <progresso da civilização> supostamente havia depositado no caixote do lixo da história”. (SANTOS, 2018, p. 13-14).

Nós colocamos a expressão no plural, entendendo que tais crises, a nosso ver, mostram também que o sistema se inova com velocidade sem precedentes, colocando conceitos do que Marx (1983, 1984)[1] trouxe especialmente no livro O Capital sobre força de trabalho/relações de produção/mais valia, entre outros, em patamares talvez não imaginados à época em que foram concebidos. Temos, neste lugar, reflexões que tiram a materialidade do então “trabalhador”, contemplado pelo pensamento ortodoxo marxista como um dos elementos fundamentais para a ocorrência dos processos de constituição e circulação do próprio capital, cedendo lugar à imaterialidade.

Numa perspectiva cognitiva – Capitalismo pós-fordismo ­–, por exemplo, força de trabalho e relações de produção podem ser identificados em processos nos quais, conforme Albagli (2013, p. 108), “informação, comunicação e linguagem despontam como elementos produtivos”, transformando-se “[...] tanto matéria-prima quanto instrumento de trabalho, sendo este investido de um caráter crescente comunicativo-relacional-linguístico”. Isso implica dizer, segundo a autora, que tanto a acumulação de capital quanto a mais-valia ocorreriam no campo imaterial decorrente de processos relativos a “[...] conhecimento, criatividade, inovação”. (ALBAGLI, 2013, p. 108).

Trata-se, como dissemos, de um sistema que se alimenta fundamentalmente de suas próprias crises, acrescentando que isso ocorre também porque temos neste lugar conflitos infindáveis que revelam a sua incapacidade, segundo Cocco (2012, p. 9), de “[...] reproduzir-se sem `estragar` a própria mecânica de geração de valor”. Ainda de acordo com o referido autor, o “[...] lucro, que estava assentado na mais-valia (no tempo de trabalho excedente ao tempo necessário para produzir o salário)” (COCCO, 2012, p. 10), agora perde essa centralidade, cedendo lugar ao que define como “[...] parasitismo rentista”, propiciado tanto pelos processos de colaboração massiva em redes quanto pela suposta gratuidade dos ambientes de redes sociais.

A reconfiguração da mais-valia estaria também naquilo que Zuboff (2021) chama de superávit comportamental, obtido na nova faceta do sistema, denominado por ela como “Capitalismo de Vigilância”. Analisando o crescimento meteórico da Google, tendo como ponto de partida o ano de 2002, Zuboff (2021, p. 125) chama a atenção para o fato de a empresa ter descoberto o referido superávit com a decisão em usar “[...] o seu próprio cache de dados comportamentais e seu poder e expertise computacionais como a única tarefa de combinar anúncios com buscas”.

A novidade, no caso, segundo a autora, é que “[...] os anúncios não estariam mais ligados a palavras-chave numa pesquisa, e sim um anúncio específico seria ‘direcionado’ a um indivíduo específico” (ZUBOFF, 2021, p. 124), à revelia de sua vontade de compra ou desejo de troca. Aqui localizamos, conforme visto anteriormente em Cooco (2012), o sistema “estragando” seus próprios mecanismos de geração de valor para garantir lucros exponenciais, e, acrescentamos, colocando a perspectiva de um processo de alienação transcendendo as relações produtivas tradicionais, justamente por este pretender se configurar como uma obstinação a nossas vontades, por meio de uma subtração imoral de dados pessoais.

A ideologia do desenvolvimento sem fim (Marcuse, 1973; Mattelart, 2005b), ou, conforme Benjamin (1991, p. 1.244), que via a tese do progresso linear como “[...] um aborto [...] determinado pela doutrina do infinito (tradução nossa)”, a nosso ver, independentemente das crises permanentes suscitadas aqui na discussão, continuam na evolução do capitalismo, que tem no lucro o DNA de sua constituição. A imaterialidade do presente, todavia, facilita o implexo de tramas imaginárias para a sua perpetuação, colocando em xeque, inclusive, o conceito de alienação. Isso porque essa tese desenvolvimentista transita com poucos obstáculos na agenda social, apresentando-se, inclusive no plano do inconsciente do senso comum, muitas vezes, como a única via para se obter uma melhor qualidade de vida.

Numa primeira instância, podemos até entender que se trata de um ambiente unidimensional, capaz de colocar o ser humano em condição reificante. Se olharmos pela lógica eurocentrista, mesmo na concepção do pensamento crítico moderno – Santos (2018, p. 58) o coloca como capaz de perceber os diferentes níveis de exclusão social, mas não de conceber suas diferenças, de modo mais qualificado, “[...] não demonstrando ter qualquer consciência da linha abissal” que se estabelece nesse lugar –, poderíamos também sustentar a tese da unidimensionalidade. No entanto, a própria implexidade que compõe as tramas imaginárias às quais nos referimos já coloca o sujeito na condição de infocomunicacional, no caso desse exemplo, enquanto alguém que busca perpetuar uma condição de dominação.

Realmente, apesar de toda essa discussão estabelecer um interlúdio sobre a humanidade caminhar uni ou infocomunicacionalmente, as brechas, por enquanto, ainda estão presentes nos desenhos de seus futuros, tornando, portanto, essas concepções implexas em vertentes de disputas por ideias e territórios. Nesse lugar é que podemos também religar o pensamento de Marcuse (1973) com o de Morin (2011), a partir do que ele denomina de “imprinting”, como um tipo de determinismo cultural. Ambos, porém, juntando-se a Hall (1997) e a Santos (2018), admitem, conforme nossa interpretação, a possibilidade de brechas que também possam enfraquecer a tendência infocomunicacional dominante aqui analisada.

Marcuse (1973) aponta como saída a possibilidade de o sujeito negar a realidade à qual está submetido, como meio de fazer frente aos sistemas que o oprimem. Hall (1997) vê essa possibilidade por acreditar que a cultura global só prospera por meio das diferenças, criando-se, assim, o fortalecimento das identidades locais; e Morin (2011, p. 125), vê na elaboração do pensamento complexo o poder para se “[...] reforçar e desenvolver a autonomia pensante e a reflexão consciente dos indivíduos”. No caso, a dialógica entre o global e o particular seria mantida, entre outras relações levantadas por ele.

Santos (2018) vê brechas mais latentes a partir de sua percepção acerca de um possível enfraquecimento da hegemonia eurocentrista cognitiva, que abre espaços para o que denomina de epistemologias do Sul, constituídas a partir do conhecimento advindo das sociedades denominadas por ele como ausentes. Essa virada tiraria a centralidade do que Santos (2018, p. 569) define como a “[..] incerteza ascendente”, capaz de gerar uma esperança transformadora, mas ainda restrita a uma minoria que concentra a riqueza do mundo ­– cerca de 1% –, presente nos âmbitos das metrópoles e colônias.

4 Considerações finais

Diante do que apresentamos neste estudo, percebemos que o ser humano está inserido nela e, ao mesmo tempo, constrói a sociedade da informação, da comunicação, do conhecimento, do saber, assim como da própria dominação e submissão que existem simultaneamente na perspectiva da complexidade. Dessa forma, buscamos voltar o nosso olhar para ele como ente dessa modernidade, entendendo-o como ser infocomunicacional que, em alguns momentos, se apresenta ativo em seus processos pessoais e coletivos e, em outros, se constitui, consciente ou não, como fruto de construções sociais estabelecidas por mercados.

Mesmo em uma sociedade com características capitalistas, na qual o mercado parece dominar o pensamento humano, o sujeito consegue, muitas vezes, sair desse lugar e ser autônomo em suas decisões. A comunicação e a informação são elementos marcantes nesse processo, pois têm a capacidade de tirá-lo do seu isolamento, ajudando-o, ao mesmo tempo, a se desenvolver, refletir, viver em autonomia ou até mesmo influenciar e ser influenciado pela inteligência do mercado.

Numa perspectiva contra-hegemônica, um exemplo disso pode ser observado na construção e na atuação dos movimentos sociais que buscam a cidadania e superam a lógica de uma sociedade normativa. Tais movimentos geralmente utilizam a comunicação e a informação para promover suas ações, quebrando paradigmas sociais e mostrando, como vimos em alguns autores, que a informação, pelo viés da alteridade, ajuda na construção da cidadania.

Trata-se de uma condição que se sustenta porque a conquista tanto dos direitos políticos quanto dos direitos civis e sociais dependem essencialmente do acesso livre à informação sobre tais direitos, como também de ampla circulação, disseminação. Estas envolvem, fundamentalmente, aspectos afetivos inerentes à comunicação. Temos, assim, um conjunto de fatores que possibilita a criação de ambientes emancipatórios que fortalecem a criticidade de nossas consciências.

No item anterior, quando buscamos estabelecer a discussão entre os autores eleitos para a reflexão, refutamos a lógica binária (do terceiro excluído) como não capaz de responder à pergunta ali proposta. Devemos, pois, incluir o terceiro elemento nessa relação, a partir da perspectiva da complexidade e da compreensão dos níveis de realidade, como defendem Nicolescu (1999) e Morin (1996, 2003), a fim de alcançarmos o paradigma transdisciplinar, de acordo com nossa interpretação, numa perspectiva da própria vida.

Por mais utópico que pareça, diante do interregno que vive o ser humano em relação à sua própria existência, é preciso avançar nessas reflexões. Aqui, a Ciência da Informação – mesmo se constituindo em período de guerra – tem todo o potencial para contribuir e apresentar possibilidades que nos ajudem na construção de uma trégua planetária que promova a redução das assimetrias regionais, com respeito às diferenças e avanços de políticas públicas, em perspectivas que transcendam a rigidez disciplinar imposta à sociedade, até então com fundamental ajuda das Ciências.

Nesse sentido, acreditamos que a Ciência da Informação assume papel fundamental no processo de mediação entre os diversos sujeitos e sistemas infocomunicacionais, sendo capaz de interpretar os fenômenos levantados em nossa reflexão e, entre outros, contribuindo como base para os processos de intervenção social advindos de várias áreas do conhecimento. Para se alcançar este patamar, entretanto, percebemos que alguns desafios se impõem – e são merecedores de profundas investigações futuras –, a exemplo da possibilidade de uso do plural – Ciências da Informação –, transcendendo, assim, a tentativa também utópica de se consolidar a partir de um campo epistemológico próprio.

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Notas

[1] Original publicado em 1867.

Información adicional

Declaração de autoria: Concepção e elaboração do estudo: Francisco José Daher Junior e Bruno Almeida dos Santos. Coleta de dados: Francisco José Daher Junior e Bruno Almeida dos Santos. Análise e interpretação de dados: Francisco José Daher Junior e Bruno Almeida dos Santos. Redação: Francisco José Daher Junior e Bruno Almeida dos Santos. Revisão crítica do manuscrito: Lídia Toutain.

Como citar: DAHER JUNIOR, Francisco José; SANTOS, Bruno Almeida dos; TOUTAIN, Lidia Maria Batista Brandão. Sujeitos infocomunicacionais ou unidimensionais: o que somos? Em Questão, Porto Alegre, v. 28; n. 1, p. 299-326, 2022. DOI: http://dx.doi.org/10.19132/1808-5245281.299-326



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