Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


Institucionalização da Biblioteconomia Progressista e Crítica
Institutionalization of Progressist and Critical Librarianship
Em Questão, vol. 28, núm. 1, pp. 432-457, 2022
Universidade Federal do Rio Grande do Sul



Recepción: 09 Noviembre 2020

Aprobación: 14 Abril 2021

DOI: https://doi.org/10.19132/1808-5245281.432-457

Resumo: “Outra Biblioteconomia” vem sendo praticada e produzida com características distintas. As designações dessas Biblioteconomias que se opõem a uma vertente conservadora são mormente conhecidas como: Biblioteconomia Progressista e Crítica. Assim, por meio de uma pesquisa exploratória, de cunho bibliográfico, buscaremos dar luz aos marcos institucionais, que estão associados aos processos de “institucionalização social” da Biblioteconomia Progressista e Crítica. O objetivo geral é identificar os processos de institucionalização da Biblioteconomia Progressista e Crítica no contexto anglo-saxônico. Constatamos uma diversidade textual, oriunda de diversos autores que buscaram contestar as práticas e os saberes da Biblioteconomia a partir do Século XX. Percebemos que a Biblioteconomia Progressista e Crítica vem assumindo, nas últimas décadas, cada vez mais força de atuação e de reflexão, questionando com vigor a neutralidade, a imparcialidade, a estrutura social opressora, o sistema capitalista e a mercantilização da informação. Consideramos que a sistematização dos diversos acontecimentos é importante para o delineamento da própria epistemologia da Biblioteconomia Contemporânea.

Palavras-chave: Biblioteconomia Crítica, Biblioteconomia Progressista, Epistemologia, Institucionalização da Biblioteconomia.

Abstract: “Other Librarianship” has been practiced and produced with different characteristics. The designations of these Librarianships, which oppose a conservative approach, are mainly known as: Progressive and Critical Librarianship. This exploratory research, regarding approach, bibliographic, we will seek to shed light on the institutional frameworks, which are associated with the ‘social institutionalization’ processes of Progressive and Critical Librarianship. The general objective is to identify the processes of social institutionalization of Progressive and Critical Librarianship in the Anglo-Saxon context. We found a textual diversity, starting in the 20th century, coming from several authors who sought to discuss the practices and knowledge of Librarianship. We perceive that Progressive and Critical Librarianship, has been assuming, in the last decades, an increasing force of action and reflection, vigorously questioning neutrality, impartiality, the oppressive social structure, the capitalist system and the commodification of information. We consider that the systematization of the various events are important for outline the epistemology of Contemporary Librarianship.

Keywords: Critical Librarianship, Progressive Librarianship, Epistemology, Institutionalization of Librarianship.

1 Introdução

A Biblioteconomia localizada na episteme das Ciências Sociais e Humanas apresenta diversos discursos dentro de uma vertente mais humana, social e democrática, produzida por intelectuais bibliotecários e bibliotecárias em diferentes séculos. Não é nossa intenção, neste texto, rememorar o extenso percurso histórico e epistemológico do campo da Biblioteconomia que tem certa produção sobre esse tema (PULIDO; MORRILAS, 2006; MORALES LÓPEZ, 2008; TANUS, 2016), mas compreender uma Biblioteconomia localizada a partir do Século XX, que vem recebendo, desde então, diversas designações: Biblioteconomia alternativa, Biblioteconomia ativista, Biblioteconomia socialmente responsável, Biblioteconomia radical, Biblioteconomia anarquista, Biblioteconomia militante, Biblioteconomia guerrilheira, Biblioteconomia crítica, Biblioteconomia Política, Biblioteconomia Humanista, Biblioteconomia progressista e Biblioteconomia social. Essas designações apontam um enfrentamento contra uma parte da Biblioteconomia tecnicista, conservadora, elitista, preconceituosa, fechada em si mesma.

Essas múltiplas Biblioteconomias têm em comum a construção do espaço da crítica, do diálogo, da reflexão e de um outro fazer que encontra um território fértil a favor dos direitos humanos e da justiça social, dentre outros valores morais e sociais de uma sociedade democrática, trazendo discussões antes ignoradas e silenciadas como classe, raça, gênero e sexualidade. O caminho de uma outra ação é também proposto por bibliotecários conscientes de seu papel social e ético, da importância da biblioteca como uma instituição política, não mais vista sob a lente da neutralidade e da imparcialidade, bem como a oposição da informação como mercadoria e mero objeto de estudo e de trabalho. A fundamentação dessa “Outra Biblioteconomia”, a nosso ver, se baseia na práxis autêntica que requer outros modos de agir e de pensar, dentro e fora do espaço da biblioteca, com vistas ao desmantelamento das desigualdades e a transformação social da realidade; sendo, não um outro nome, mas sim um modo de alinhavar esses pensamentos que tratem das complexas questões contemporâneas.

Neste texto, reservamos a busca pelos acontecimentos que marcam os processos de “institucionalização social” da Biblioteconomia Progressista e Crítica no contexto anglo-saxônico. A intenção não é ignorar as produções anteriores, mas também não se pode igualar todos os discursos como sendo parte de um mesmo movimento, que se tornou mais complexo e com características próprias nas últimas décadas. É atribuído, particularmente, à década de 1990 em diante um ponto de virada do processo que nomeamos “Outra Biblioteconomia”, mais progressista e crítica, que convoca para a construção de conhecimentos diversos autores e teorias das Ciências Sociais e Humanas (SEALE, 2016; SAMEK, 2004; KAGAN, 2015; NICHOLSON; SEALE, 2018).

Assim para compreender a institucionalização de um campo científico, é possível percorrer dois caminhos: um, pela via cognitiva, e outro, pela via social (WHITLEY, 1974). O primeiro perpassa a estrutura teórica, conceitual e metodológica, isto é, toda uma “estrutura do conhecimento” que funda uma disciplina, um campo científico. O segundo, nomeado de social, envolve a criação das estruturais formais que perpassam uma organização interna de arranjo da comunidade em associações, eventos, espaços de publicações, cursos etc. Esses momentos ou fases de institucionalização não ocorrem de modo isolado e devem envolver os dois caminhos de construção e viabilidade de um saber específico.

Nessa direção, propomos como objetivo geral: identificar os processos de institucionalização da Biblioteconomia Progressista e Crítica no contexto anglo-saxônico. Os dois caminhos da institucionalização estão intimamente interligados, pois olhar para os acontecimentos históricos de fundação é, de alguma maneira, caminhar para uma compreensão epistemológica da Biblioteconomia. Contudo, esse olhar para os conhecimentos teóricos que vêm sendo amplamente produzidos deve ser objeto de pesquisa de outra produção em particular, para que se possa analisar com mais profundidade os discursos que marcam uma Biblioteconomia Progressista e Crítica. Por ora, acreditamos que essa identificação dos acontecimentos possibilitará uma maior claridade acerca da “institucionalização social” da Biblioteconomia Progressista e Crítica, notadamente, de origem norte-americana.

Quanto às classificações metodológicas, essa pesquisa é do tipo exploratória, pois tem como “objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses”, bem como caminha na direção de um “aprimoramento das ideias ou a descoberta de instituições” (GIL, 2002, p. 41-42). Quanto aos procedimentos técnicos, convocamos a pesquisa bibliográfica para a mobilização de uma diversidade de fontes impressas e digitais, que consistem em materiais já elaborados. Recorremos, principalmente, aos livros, artigos científicos e sites institucionais (GIL, 2002). As evidências dos diversos acontecimentos que conformam uma Biblioteconomia Progressista e Crítica perpassam pela publicação de folhetos, livros, periódicos, editoras, instituições, sites, blogues, eventos, pesquisas, postagens em redes sociais, que são identificados como componentes desse processo de expansão dos estudos críticos da Biblioteconomia.

Essas manifestações são realizadas mais fora do que dentro das estruturas clássicas da Biblioteconomia, isto é, das instituições já consolidadas do campo que acabam assumindo um papel de um certo conservadorismo[1], o que vem impulsionando a criação justamente de outros espaços alternativos, de espaços progressistas (DURRANI, 2008). Como já dito, sabemos que a Biblioteconomia, como uma Ciência Social, apresentou diversos discursos voltados, por exemplo, para a temática da responsabilidade social, mas o que vem acontecendo, nas últimas décadas, no plano internacional, é um arranjo mais estruturado em torno de pessoas, instituições e publicações que adotam as designações progressista e crítica. Dando forma a uma Biblioteconomia que, socialmente comprometida, reflita sobre as estruturas sociais de poder, estas que contribuem para o sistema de opressão.

2 Por que falar nessa “Outra Biblioteconomia”?

O uso de termos qualificativos e distintivos da Biblioteconomia pode ser encontrados em suas produções, um deles é o de Guerrilla Librarianship, presente no título do artigo de Hennessy (1981), que trouxe a discussão sobre o envolvimento da Biblioteconomia com a política. Para o autor essa Biblioteconomia guerrilheira não está dissociada da política, resultando em uma discussão política da Biblioteconomia. Os bibliotecários e a própria Biblioteconomia se ancoram no pilar da democracia, desde a constituição do dispositivo cultural e de poder que é a biblioteca, passando pelos processos de organização e formação dos acervos, da oferta de cursos e alfabetização midiática até o acesso às informações – mesmo que isso desafie o sistema de governo em vigor. A “Biblioteconomia de guerrilha” é, portanto, aquela que se coloca contra um poder dominante, estando a favor da comunidade e do bem-estar público, encontrando-se abrigo na construção discursiva de uma Biblioteconomia progressista.

Na década seguinte, em 1990, houve a retomada do termo “bibliotecários guerrilheiros”, em razão da ação de alguns bibliotecários que passaram a guardar os livros (registros impressos) que estavam na mira de serem descartados e substituídos por recursos eletrônicos na Biblioteca Pública de São Francisco (MANLEY, 1997). A ideia falsa de que a internet iria substituir a biblioteca e os livros é um dos temas que compõe a agenda de luta proposta por Joyce Valenza (1997). Ela convoca a todos a defenderem as bibliotecas e a profissão por meio de campanhas, divulgação de informações, envolvimento com a comunidade e fortalecimento popular. A luta por reconhecimento requer ação, luta, política e o uso de táticas estratégicas dos guerrilheiros, marcando as expressões Guerrilla librarianship e Guerrilla Librarians.

O silenciamento dessa produção combativa e crítica da Biblioteconomia é potencializada com a falta de um descritor autorizado que reflita essa construção do pensamento. Nessa direção, o bibliotecário Sanford Berman apontou a ausência do cabeçalho de assunto “Biblioteconomia crítica” (critical librarianship), na Library of Congress. Ele, então, enviou uma recomendação formal de inclusão do termo ao Escritório Cataloging Policy & Support Office (GARCIA, 2015). O documento de Berman (2007) apresentou uma aplicação imediata desse cabeçalho de assunto, tendo como exemplo o livro de Toni Samek (2007), Librarianship and Human Rights: a twenty-first century guide, publicado pela Chandos Publishing (Oxford). Ele explica, ainda, o movimento e as características dessa Biblioteconomia e cita outros documentos (boletins e periódicos) que poderiam receber esse cabeçalho. Essa importante atribuição, além de ser um ato político, facilitaria a própria recuperação da informação nos catálogos sobre essa temática que apresenta pontos de convergência. Contudo, apesar dos esforços e da crescente produção, em consulta realizada no catálogo da Library of Congress, em setembro de 2020, observamos que esse cabeçalho não fora incorporado.

A importância de se usar esse termo específico possibilitaria um agrupamento da produção e sua recuperação. Sobre o uso dos termos, a pesquisa de Tanus e Silva (2019) buscou em duas bases de dados, uma nacional e outra internacional, artigos que utilizassem os seguintes descritores: “Biblioteconomia Crítica”; “Biblioteconomia Progressista” e “Biblioteconomia Social” – na Base de Dados Referencial de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação (BRAPCI); e “Social Librarianship”, “Progressive Librarianship” e “Critical Librarianship” – na Library and Information Science Abstracts (PROQUEST, c2021). Observando pesquisas em que obrigatoriamente se apresentaram as expressões exatas e não dissociadas, foram recuperados, na base nacional e internacional, respectivamente, 15 e 39 trabalhos (TANUS; SILVA, 2019). Resultados aquém do esperado. O desenvolvimento desse trabalho mostrou que seria estratégica a utilização dos termos também como elementos pré-textuais (palavras-chave, título, resumo), a fim de que possam ser mais facilmente recuperáveis.

Ademais, as pesquisas que focalizam a “Epistemologia da Biblioteconomia” são escassas, sendo mais comuns as de ordem aplicada, empírica, como apontado nos estudos bibliométricos que mapeiam os temas, as pesquisas e as produções da área (DELGADO LÓPEZ-CÓZAR, 2002). Um estudo bibliométrico mais recente acerca das temáticas de pesquisas da Library and Information Science apontou que as pesquisas sobre a Biblioteconomia se tornaram menos prevalentes ao longo do tempo, visto que não há grupos de tópicos principais relevantes para questões da biblioteca, enquanto outros temas se mantiveram estáveis (HAN, 2020). Decerto, acreditamos que os estudos históricos e epistemológicos de qualquer campo científico são fundamentais para seu reconhecimento e fortalecimento; assim, esta sistematização dos acontecimentos da Biblioteconomia Progressista e Crítica apresenta novos caminhos que vêm sendo trilhados por essa Biblioteconomia Contemporânea.

Por fim, acreditamos que este estudo demonstra uma mudança epistemológica da Biblioteconomia em prol de designações explícitas, que colocam luz ao conceito de práxis de Paulo Freire (2016), presente na obra “Pedagogia do oprimido”, publicado, no Brasil, em 1974, durante o exílio do autor no Chile. Nesta obra que teve diversas outras edições, tendo sido bastante traduzida, a práxis é a ação somada à reflexão com vistas à transformação da realidade. Essa ação não é mera atividade, prática, ou ativismo, ela é entendida a partir da criticidade do sujeito em agir, sendo iluminada pelo conhecimento, pela teoria, pela reflexão. A superação da contradição oprimido e opressor, por exemplo, se daria mediante a conscientização das condições concretas dessa desigualdade que se manifesta na infra e superestrutura. Com a práxis autêntica, portanto, os seres humanos podem “ser mais” (vocação ontológica e histórica de compreensão do mundo e da relação com os outros), resultando em comunhão no processo de humanização (FREIRE, 2016).

3 Caminhos da institucionalização

Um campo científico pode ser estudado por meio de seu processo de institucionalização. Para Whitley (1974), a institucionalização pode ser vista como um sistema de organizações/modelos de ações e sentidos, que são compartilhados por uma comunidade científica. O nível de institucionalização de uma disciplina vincula-se, justamente, ao grau de interação, de uma atitude comum entre os investigadores da área perante os objetivos, os métodos e as explicações adotados para o desenvolvimento de uma ciência. Isso significa que existem diferentes níveis de institucionalização que se ligam a níveis diferentes de desenvolvimento de uma ciência em cada país, que pode ser explicado historicamente em função do nível de institucionalização.

Esse processo de institucionalização pode ser visto, conforme já dito, por meio de duas abordagens: a cognitiva e a social. A institucionalização cognitiva se refere ao grau de consenso e de clareza dos trabalhos científicos e dos conceitos, à pertinência dos problemas colocados, às formulações utilizadas e à aceitabilidade das soluções, dos métodos, das técnicas ou da instrumentação apropriada, da capacidade comum de distinguir o domínio dentre outros e determinar se um problema possui importância. Já a institucionalização social diz respeito à criação e à manutenção de estruturas formais, como, por exemplo, as associações científicas e profissionais, os eventos, os periódicos que caracterizam os membros de uma comunidade e lhes dão as bases de uma identidade social. Relaciona-se com o grau de organização interna de uma área e a definição de seus fundamentos, do nível de integração nas estruturas sociais, da legitimação e alocação dos recursos em universidades e programas de pesquisa (WHITLEY, 1974).

Esses dois conceitos estão intimamente interligados, pois um interfere no outro, e quanto mais forte é o nível de institucionalização cognitiva, maior é a institucionalização social. O mesmo ocorrerá com o inverso: se a institucionalização social for fraca, representada pela baixa participação dos investigadores nos eventos e nas associações, ou seja, nas estruturas que dão visibilidade ao campo, a institucionalização cognitiva também será fraca, o que, certamente, comprometerá sua estrutura teórica e epistemológica. Em ambos os casos, deve-se considerar o contexto de desenvolvimento e de institucionalização das atividades científicas, pois a ciência apresenta um caráter plural e heterogêneo, não se desenvolvendo de modo idêntico no espaço e tempo histórico marcados pelas relações de força, poder, embates políticos, econômicos, culturais etc.

O processo de institucionalização de um campo científico é produtivo e desejável, uma vez que possibilita uma visibilidade, concretude e legitimidade. Por outro lado, é indispensável apresentar as contradições desse processo de institucionalização, porque ele facilita a acomodação dentro de uma estrutura sujeita à hegemonia do liberalismo e à mercantilização (SEALE, 2016). Especificamente, quanto à Biblioteconomia Crítica, a autora recorda que é preciso ter cuidado para essa luta das disciplinas e dos conteúdos minoritários não ser neutralizada pela incorporação institucional, visto que:

[...] a vontade de institucionalidade é atraente, porque produz e afirma a cultura minoritária e a diferença como estável, legível, consistente, confiável, permanente e, acima de tudo, como verdade. Este tipo de legitimidade torna possível alavancar a cultura minoritária e a diferença a serviço de mudança, mas também torna possível sua mercantilização e incorporação em neoliberalismo/capitalismo global. (SEALE, 2016, p. 3, tradução nossa).

O dilema é que, junto à institucionalização, há certa tendência em assumir o discurso da estrutura dominante, quando a luta pelo pensamento crítico abriu justamente o caminho para a sua entrada. Além da ação de instituir dentro de uma estrutura, tem-se a incorporação em um capitalismo e estrutura de poder institucionalizado. Entendemos que a Biblioteconomia, como um campo científico, encontra-se institucionalizada nas fases cognitiva e social, decerto com intensidades e características diferentes em cada um dos países onde se localiza. A institucionalização dessas “outras Biblioteconomias” não deveria ser vista como outro campo do conhecimento ou outro curso a ser instituído nas Universidades, devendo elas serem integradas à própria Biblioteconomia.

Acreditamos que a Biblioteconomia precisa se modificar e alterar sua estrutura de modo a incorporar, de modo legítimo e predominante, em seus currículos, disciplinas, eventos, cursos, produções, instituições e pessoas, o pensamento progressista, crítico, humanista, social, político e ético. Não se pode perder de vista o valor da Biblioteconomia Progressista e Crítica que é a de questionar as estruturas, as instituições, as consolidações. Seale (2020) nos afirma que o valor dessa Biblioteconomia reside precisamente em sua capacidade de causar problemas: questionar, promover reflexão, criticar discursos e práticas e, assim, abrir espaços para mudança no nosso trabalho cotidiano, na nossa profissão e nosso campo científico.

4 Visibilidades da institucionalização da Biblioteconomia Progressista e Crítica

Segundo Toni Samek (2007) a história de uma “Biblioteconomia progressista” tem suas raízes na década de 1930, em um movimento crítico da biblioteca (Critical Library Movement) por “bibliotecários progressistas” (Progressive Librarians) que passaram a demandar uma postura mais ativa e responsiva da American Library Association (ALA). Em 1936, durante a conferência da ALA, em Richmond, Virgínia, os bibliotecários afro-americanos foram impedidos de assistir às sessões e participar das refeições no hotel, em virtude das leis racistas do Estado. Diante disso, a ALA criou um Comitê de Discriminação Racial (Committee on Racial Discrimination). A luta dos bibliotecários negros pela igualdade racial, fim da segregação e do racismo, fundamentou, inclusive, as bases do movimento da Black Librarianship (SILVA; SALDANHA, 2019). Em 1939, foi criado o grupo “Progressive Librarians Council” para agrupar as pessoas que compartilhavam dos mesmos pontos de vista (diferentes da ALA), que eram explicitados na publicação do boletim que circulou até 1944 (SAMEK, 2004; CIVALLERO, 2013).

Outra ação importante desse grupo foi a realização, em 1969, da Mesa Redonda voltada para se discutir sobre a responsabilidade social, Social Responsibilities Round Table (SRRT), posto como um valor central da Biblioteconomia. As reflexões sobre a responsabilidade social passaram, mais tarde, em 1997, a constituir um grupo específico de discussão dentro da ALA, considerado uma vertente mais “progressista” dessa tradicional instituição. O grupo Social Responsibilities Discussion Group continua focado nas questões dos direitos humanos e das desigualdades sociais e no fortalecimento da democracia e da liberdade intelectual e de expressão (ALA, 2020).

Outro marco do ano de 1969 foi a criação, na Suécia, por estudantes do curso de Biblioteconomia, uma futura geração de “radical librarians”, da Library School de Estocolmo: Bibliotek Samhälle (BiS), traduzida como “Bibliotecas na sociedade”, que segue em atividade com diversos projetos no país e, também, na África do Sul. Desde o início, publicou seu jornal BIS, sinalizando os valores da liberdade de expressão, da democracia, da educação popular, da justiça social, bem como da presença e da participação da população na biblioteca. Em 2016, publicaram o manifesto antirracista para as bibliotecas que repudia qualquer forma de preconceito contra cor da pele, etnia, religião ou cultura. No site é possível encontrar os projetos em andamentos e as publicações quadrimestrais.

Na década de 1970, nos Estados Unidos, foi criada a associação Black Caucus of the American Library Association (BCALA), que significou uma nova era para as bibliotecas; “signified a new library era” (SAMEK, 2004, p.4). A missão dessa associação é de “atuar como defensora do desenvolvimento, da promoção e da melhoria dos serviços e recursos da biblioteca para a comunidade afro-americana e fornecer liderança para o recrutamento e o desenvolvimento profissional de bibliotecários afro-americanos (BCALA, 2020, tradução nossa). Eles são também responsáveis pela realização do evento National Conference of African American Librarians (NCAAL), primeira edição realizada em 1992, atualmente, em sua 11ª edição em 2021.

Desde que esse movimento progressista foi constituído, a publicação de conteúdos informativos sobre essa Biblioteconomia ocorreu fora das editoras comerciais ou das nomeadas instituições bibliotecárias. Na Inglaterra, Brighton, encontramos a publicação do folheto Librarians for Social Change, em 1972, com última edição, em 1976. Em São Francisco (Estados Unidos) é publicado o Revolting Librarians (1972), editado por Celeste West e Elizabeth Katz, composto de uma diversidade de textos de “bibliotecários revoltados”. Entre esses autores “bibliotecários progressistas”, estava Sanford Berman, que publicou o texto Libraries to the People, em que há uma crítica contundente à biblioteca pública, ao seu acervo, aos serviços e aos profissionais que deveriam atender a todos os membros da comunidade sem distinção, e não a uma parcela de homens, brancos e com dinheiro. Ele deixa nítido que a mudança da biblioteca envolve todos, os que estão dentro e os de fora da área, com vistas não apenas ao acesso a diversas fontes, mas também, sobretudo, à construção de uma “alternative society” (sociedade alternativa). Conclui que as bibliotecas só serão para o povo quando elas forem responsivas, justas e revigorantes (BERMAN, 1972).

Sanford Berman é um dos grandes nomes desse movimento de bibliotecários progressistas, tendo lutado, inclusive, para corrigir o Cabeçalho de Assuntos da Library of Congress, como exposto no livro Prejudices and Antipathies: a Tract on the LC Subject Heads Concerning People, publicado em 1971, em que discute cabeçalhos de assuntos com implicações racistas, sexistas e imperialistas a partir do instrumento de organização da informação da Biblioteca do Congresso. Ele foi um dos responsáveis pela edição da coletânea de ensaios alternativos Alternative Library Literature (1982-2001). As publicações pouco convencionais ou underground foram de extrema relevância para difundir os ideais do grupo não conservador da Biblioteconomia que, por sua vez, não conseguia encontrar espaço de publicação dentro das instituições consolidadas da área da “Library and Information Science”.

Ao lado dessas impressões no formato de folhetos, data de 1986 a criação da primeira editora progressista Vita Books, fundada pelo bibliotecário queniano Shiraz Durrani e Kimani Waweru, em Londres, com sede no Quênia desde 2016. Por meio de suas publicações a editora apoia as lutas das pessoas para criar sociedades baseadas nos princípios da igualdade e da justiça, com vistas a corrigir a falta de acesso dos trabalhadores quanto à informação e aos meios de comunicação, o que restringe a construção de experiências para resistir ao imperialismo. Outra importante publicação de bibliotecários progressistas é iniciada em 1990, com o Journal for Critical Studies and Progressive Politics in Librarianship, editado pelo grupo formado em Nova York, o Progressive Librarian Group (PLG).

Esse grupo ativista Progressive Librarian Group (PLG) mantém uma forte agenda de atividades entre ações e publicações em boletins, blogues, sites e periódicos produzidos por bibliotecários e bibliotecárias dos Estados Unidos e do Canadá. Com essa agenda questionam a mercantilização da informação, os sistemas de opressão e a própria profissão de bibliotecário, que estaria à deriva das discussões sociais, políticas, econômicas e sociais. O grupo congrega diversos aliados institucionais que compartilham da missão, da visão e dos valores, a saber: Bibliotek Samhälle (BiS) (Suécia); Information for Change (Reino Unido); CritLib: Critical Librarianship; Radical Reference (Estados Unidos). Quanto aos propósitos daquele grupo é que:

As bibliotecas são uma importante intersecção do indivíduo, das comunidades e do conhecimento. Vemos a Biblioteconomia como uma profissão e prática que serve para possibilitar a criação e o acesso a uma infinidade de formas de expressão, experiência e aspiração humanas. Também reconhecemos que as bibliotecas são locais onde as estruturas de injustiça, exploração, controle e opressão são alimentadas, normalizadas e perpetuadas. O Progressive Librarians Guild existe para expor e chamar a cumplicidade ativa e passiva da Biblioteconomia e aceitação desses sistemas, para oferecer e praticar alternativas a esses sistemas, para capacitar as vozes daqueles excluídos de posições de poder e/ou do registro histórico e para desenvolver uma práxis que contribuía para a busca contínua dos direitos humanos e da dignidade (PROGRESSIVE LIBRARIANS GUILD, [20--], tradução e grifo nosso).

A realização do evento internacional Conference of progressive librarians, em Viena, em 2000, patrocinada pelo “grupo austríaco de trabalho de bibliotecários críticos”, Arbeitskreis kritischer Bibliothekarinnen und Bibliothekare (KRIBIBI), em parceria com o Progressive Librarian Group (PLG), materializou o documento seminal Preliminary Statement of Uniting Principles, que estabeleceu dez pontos de integração para bibliotecários progressistas dentro de uma agenda internacional. É apresentada uma Biblioteconomia comprometida e realizada por trabalhadores progressistas, que defendem as bibliotecas como instituições sociais essenciais para a democracia, e que devem ser pontos de resistência ao neoliberalismo e à globalização, que oprimem diversos segmentos sociais. Para um maior entendimento acerca destes bibliotecários que têm o compromisso social, ético, político, expomos que:

Os bibliotecários progressistas são obrigados a promover mudanças no local de trabalho da biblioteca em que as relações sejam baseadas na reciprocidade, respeito, tomada de decisão coletiva, interdisciplinaridade, valorização das habilidades e conhecimentos de cada um e um compromisso de disponibilizar educação continuada em biblioteca, no trabalho bem como através de programas da escola de biblioteca, para todos os funcionários da biblioteca. Devemos ser uma força para trazer para a profissão, recrutando preferencialmente, representantes de grupos que foram socialmente, economicamente marginalizados pela discriminação e racismo, e assegurar que eles tenham uma remuneração adequada, treinamento e oportunidades de ascensão (ROSENZWEIG, 2000, documento online, tradução nossa)

Podemos dizer que as influências da Biblioteconomia progressista passaram a se expandir geograficamente, pois outras criações ocorreram em diferentes países e décadas. Nos Estados Unidos destacamos ainda a associação REFORMA: the National Association to Promote Library & Information Services to Latinos and the Spanish-speaking, que completa 50 anos de existência em 2021. Tal associação, criada em 1971, se volta para a promoção de bibliotecas e serviços de informação para latinos e falantes de língua espanhola. Grupos de trabalho também foram criados, na década de 1980, Arbeitskreis kritischer BibliothekarInnen (AKRIBIE), na Alemanha, porém este foi dissolvido em 2011; e Arbeitskreis kritischer Bibliothekarinnen und Bibliothekare (KRIBIBI), na Áustria (SAMEK, 2007; KAGAN, 2015). O KRIBIBI passou, desde novembro de 2017, para o status de associação independente sem fins lucrativos. Antes era um grupo sem muita estrutura que reunia pessoas de aspirações políticas progressistas. Atualmente envolve bibliotecários das bibliotecas públicas (nomeadas anteriormente de bibliotecas populares) e bibliotecários acadêmicos em torno dessa associação composta de “bibliotecários críticos” (kritischer bibliothekarinnen).

Como sinalizado, a década de 1990 marcou a criação do produtivo grupo Progressive Librarian Group (PLG), e diversos outros acontecimentos estão associados a esse momento, como, por exemplo, a criação, em 1990, do Library and Information Workers Organization (LIWO), vinculado à Library and Information Association of South Africa (LIASA); independência da associação, em 1994, da Library on Wheels for Non-Violence and Peace (LOWNP), na Palestina; da associação ativista de bibliotecários e profissionais da informação sem fins lucrativos no Reino Unido, Information for Social Change (ISC); uma organização ativista que examina questões de censura, liberdade e ética entre bibliotecários e trabalhadores da informação, associado à Library and Information Association of South Africa (LIASA), na África do Sul, em 1997; e da rede que apoia arquivos, bibliotecas e museus para combater a exclusão social e para a justiça social, The Network: tackling social exclusion in libraries, museums, archives and galleries, em 1999. Todas essas instituições continuam funcionando e promovendo diversas ações na prática profissional e no âmbito das pesquisas acadêmicas.

Outra iniciativa discute a informação como um direito humano básico e os serviços de informação baseado nos princípios de igualdade, equidade, justiça social e democracia parte de um grupo de bibliotecários progressistas e ativistas da informação que formalizou, em 2005, o Progressive African Library & Information Activists' Group (PALIAct). A motivação para sua criação se deu em virtude do reconhecimento que os atuais líderes no campo da informação africano pouco fizeram para quebrar as políticas e práticas coloniais imperialistas no atendimento às necessidades de informação dos trabalhadores na África, ou para tornar a profissão mais relevante para as necessidades dos bibliotecários e de informação aos africanos trabalhadores (DURRANI, 2005, tradução nossa). O grupo evidencia que:

Trabalhará no sentido de fornecer uma visão de mundo anti-imperialista e pan-africana entre bibliotecários e trabalhadores da informação africanos. Também buscará estabelecer um serviço de informação alternativo em parceria com os usuários potenciais do serviço como uma forma de mostrar o que nossas bibliotecas “oficiais” e profissionais da informação deveriam estar fazendo. O PALIAct formará parcerias com informações progressistas e outros trabalhadores na África e no exterior. (DURRANI, 2005, tradução nossa).

Ao lado dos bibliotecários progressistas estão também os radicais, que assim se intitulam. Em 2004, em decorrência dos protestos contra a Republican National Convention (RNC), em Nova York, foi criado o grupo coletivo e voluntário de estudantes, bibliotecários e profissionais da informação, nomeado de Radical Reference (RR), que provê o acesso à informação e aos recursos para ativistas, jornalistas, pesquisadores e membros em geral a partir do serviço de referência, e, em especial, fora do espaço físico da biblioteca (MORRONE; FRIEDMAN, 2009). A informação e seu acesso são fundamentais para uma sociedade democrática, por isso os valores do grupo são: 1) Cultura livre, incluindo uso justo, software livre e de código aberto e acesso aberto; 2) Direitos de privacidade; 3) Minimização dos danos nas relações de poder existentes (por exemplo, imperialismo, capitalismo, supremacia branca, patriarcado); 4) Agência de promoção e equidade para todos os profissionais da informação.

Nessa direção, quanto ao uso do termo radical, em 2012, foi criado o grupo Radical Librarians Collective: Building solidarity for those critical of the marketisation of libraries & commodification of information. Passados dois anos, eles idealizaram a criação de um periódico no Reino Unido, cujo primeiro volume foi lançado no ano seguinte. Stuart Lawson (2015, p. 1, tradução nossa), no primeiro editorial do periódico, Journal of Radical Librarianship, esclarece que:

Este grupo é uma afiliação de bibliotecários e profissionais da informação com a mesma opinião que pretendem desafiar a influência da política neoliberal sobre a profissão, criando um ambiente de apoio para resistir à mercantilização das bibliotecas e encontrar formas de agir que se alinham com os nossos valores progressistas. Foi sugerido que publicar trabalhos sobre biblioteconomia radical na forma de um periódico acadêmico seria uma maneira de reunir teoria e prática.

Seguindo os acontecimentos que marcam a trajetória da Biblioteconomia, destacamos a Editora Litwin Books, em especial, o selo Library Juice Press (Sacramento, Califórnia), que vem publicando, desde 2006, uma diversidade de livros que abordam as temáticas da Biblioteconomia numa perspectiva crítica. Dentre os livros publicados destacamos: Critical Library Instruction: Theories and Methods, editado por Maria Accardi, Emily Drabinski e Alana Kumbier, considerado um marco fundamental dessa “Biblioteconomia Crítica”, porque congrega diferentes vozes e temas a respeito de conceitos, teorias e metodologias das Ciências Sociais e Humanas (pedagogia crítica, pedagogia queer, teorias críticas, teorias culturais, antirracismo, feminismo, branquitude etc).

Em 2014, foi criado o Critilib: critical librarianship in real life & on the twitters (Critlib), um movimento de bibliotecários que trabalham em prol da justiça social a partir de diferentes perspectivas, com debate e crítica sobre as estruturas de poder da sociedade marcada pelo capitalismo, pelo patriarcalismo e pelo racismo. O grupo informal começou as discussões no Twitter (identificados pela hashtag #critlib) e, desde então, continua ativo na rede social e realiza eventos chamados de “desconferências”. Nesses encontros presenciais, não há programação, apresentações ou painéis predeterminados, como se espera de um evento formal. A programação mais livre vai sendo ajustada à medida que os participantes se sentem à vontade. O primeiro evento oficial ocorreu em 2015, em Portland, Oregon (EUA). A segunda edição, no mesmo ano, ocorreu em São Francisco, Califórnia (EUA) que teve na logo do evento o livro “Pedagogia do Oprimido”, do pesquisador brasileiro Paulo Freire (ver Figura 1). O evento de 2020 estava previsto para ocorrer em Nova York, mas que foi adiado em razão da pandemia da Covid-19.


Figura 1
Figura 1 - Logo do evento #CritLib Unconference San Francisco
Fonte: CRITLIBSF (2015)

Com o passar do tempo a incorporação do pensamento crítico começou a aparecer de modo mais forte também em instituições tradicionais, como a American Library Association (ALA) e a Association of College and Research Libraries (ACRL), por meio de eventos e/ou de publicações. Dentre as publicações, Nicholson e Seale (2018) destacaram os dois volumes do Critical Library Pedagogy Handbook (2016), publicado pela ACRL. Em 2015, a ACRL publicou o texto de Kenny Garcia, Keeping Up with Critical Librarianship, em que explicita o desenvolvimento da Biblioteconomia Crítica e a reconhece. O periódico OLA Quarterley, vinculado à Biblioteca Estadual de Oregon, organizou uma edição (v.23, n.2, 2017), voltada para as discussões da Critical librarianship. Dentre os eventos, destacamos o evento online New eCourse: Introduction to Critical Information Literacy: Promoting Social Justice through Librarianship, promovido pela ALA e ministrado pelos bibliotecários Dawn Stahura e Des Alaniz. Em 2019, ocorreu o evento nomeado de Critical Librarianship in Higher Education, realizado pela Virginia Library Association.

A substituição dos “padrões” pelos frameworks publicados pela ACRL é uma conquista do grupo de bibliotecários críticos que questionavam as limitações das atividades rumo a um mecanicismo, à objetividade e aos princípios universalizantes (SEALE, 2020). A autora acrescenta que os cursos de instrução de “information literacy”, por vezes, acabavam se direcionando para atividades mais práticas do que reflexivas, endossando uma visão acrítica e concentrando em ações e valorizações que não rompiam com a manutenção das estruturas. O bibliotecário Eamon Tewell (2015) também aponta a impossibilidade da neutralidade pedagógica e o distanciamento dos cursos de information literacy com o contexto, com a dimensão sociopolítica. Pois, para ele, essa postura resultava em uma formação que direcionava para o mercado e não para a vida. Não sendo este o foco da “Critical Information Literacy” que tem como compromisso a formação do sujeito crítico e a sua conscientização diante das estruturas opressoras, visando a emancipação e a transformação social.

A discussão crítica da violência e das formas de opressão cotidianas está presente no site Microaggressions in Librarianship, (Microagressões na Biblioteconomia), criado em 2014, e segue com milhares de postagens acerca da violência contra gênero, raça, idade, cor, classe, sexualidade, corpo, linguagem, cultura e religião. Esse espaço online destina-se aos trabalhadores de bibliotecas, aos arquivos e aos campos de informação com vistas a compartilhar as experiências reais de microagressões no dia a dia vivenciadas por profissionais, inspirado em movimentos populares de mídia social recentes, como The Microaggressions Project e I, Too, Am Harvard. Não podemos deixar de citar o site WOC+Lib, criado em 2019, por bibliotecários, para ser um espaço digital seguro e inclusivo para mulheres e todas as pessoas de cor (people of color) dentro da Biblioteconomia.

Como vimos são, diversos os nomes de pesquisadores associados às produções das Biblioteconomias Progressista e Crítica. Nelas as bibliotecas, seus produtos, serviços e espaços são criticamente questionados e confrontados. O desvelamento do sistema de opressão da sociedade capitalista e da globalização neoliberal é uma das tônicas dos movimentos, bem como a questão da exclusão por cor/raça/etnia, nacionalidade e gênero na Biblioteconomia, esta que é formada majoritariamente por pessoas brancas e que acabam realizando no trabalho e na vida diversas microagressões (LANDES; ESPLEY, 2018; SCHLESSELMAN-TARANGO, 2017). Chris Bourg (2014) demonstrou essa insuportável brancura da Biblioteconomia norte-americana, composta, majoritariamente, 88% por bibliotecários brancos, e uma minoria representada por hispânicos/latinos, afro-americanos, e outras nacionalidades. Tal resultado reflete uma falta de diversidade que se inicia na própria composição dos profissionais que formam uma supremacia branca, o que contraria inclusive um dos valores da Biblioteconomia que é a própria diversidade, conforme defende a ALA.

Percebemos que os temas que tradicionalmente são desenvolvidos pela Biblioteconomia assumem uma direção mais crítica e consciente dos efeitos de poder, privilégio, opressão. Como, por exemplo, “Formação e desenvolvimento de coleções”, com esse olhar crítico, buscam formular novas políticas e orientações com vistas a descolonizar os acervos e as práticas, ampliando as vozes, a representatividade e a representação. O grupo Decolonising through Critical Librarianship, criado por bibliotecários de Cambridge, tem influenciado também o ensino e a pesquisa na universidade desde sua formalização em setembro de 2020. As práticas de “Organização da informação e do conhecimento” também têm sido objeto de diversas pesquisas, uma delas é a reflexão sobre o sofrimento causado, seja de modo intencional ou acidental, pela “taxonomy of harm” (taxonomia do dano) (ADLER; TENNIS, 2013). Pensar sobre as práticas e as teorias também requer que se repensem os currículos e o ensino de Biblioteconomia dentro desse contexto atual, devastado pela mercantilização neoliberal, por discursos de ódio, desinformação, notícias falsas, negacionismos e movimentos terraplanistas, anticiência e antivacina.

Assim como a agenda de pesquisa passa a ser também ampliada e com múltiplos temas, buscamos sistematizar alguns deles, correndo certamente o risco da incompletude desse retrato que é também dinâmico. De modo geral, por um caminho compreensivo, destacamos os seguintes temas identificados a partir da leitura realizada dentro do que se chamou de “Biblioteconomia progressista e crítica” (em ordem alfabética, sem qualquer hierarquia preestabelecida): Acesso à informação; Ativismo; Bibliotecas e comunidades; Branquitude; Competência crítica em informação; Direitos digitais; Direitos humanos; Diversidade e Inclusão; Equidade; Estudos culturais, decolonais, descoloniais e pós-coloniais; Exclusão e preconceitos; Feminismo; Gênero e sexualidade; Interseccionalidade; Liberdade intelectual e de expressão; Mercantilização da informação; Microagressões; Moral e aspectos éticos; Multiculturalismo; Neutralidade; Pedagogia crítica; Poder; Política e justiça social; Política econômica da informação e comunicação; Políticas públicas; Privilégio; Racismo e antirracismo; Responsabilidade social; Sistema de Organização do Conhecimento; Trabalho, precarização e terceirização.

Em síntese, a Biblioteconomia Progressista e Crítica segue seu caminho, aberto pelos diversos acontecimentos e publicações acadêmicas nos seguintes periódicos: Journal for Critical Studies and Progressive Politics in Librarianship (1990); Information, Society and Justice (2007); In The Library with the Lead Pipe (2008); Collaborative Librarianship (2009); Journal of Radical Librarianship (2015); Journal of New Librarianship (2016); Journal of Critical Library and Information Studies (2017) e The Journal of Information for Social Change (1992, incorporado ao Directory of open access journals, em 2017). Além dos eventos em curso produzidos por instituições, associações, grupos de bibliotecários críticos e progressistas, a saber: The Critical Librarianship and Pedagogy Symposium; Gender and Sexuality in Information Studies Colloquium; Radical Librarians Collective, Critlib Unconference, Critical Symposium on Librarianship and Pedagogy (CLAP); Joint Conference of Librarians of Color (JCLC), este último previsto para 2022, na Flórida (Estados Unidos).

É inegável o crescente movimento de acontecimentos em prol de “Outra Biblioteconomia”, mais crítica e progressista. Essas movimentações são uma resposta ao grande vazio deixado pela própria Biblioteconomia, que parece ter se ocupado mais com técnicas de organização do que com as discussões políticas, sociais, culturais e econômicas. A neutralidade das bibliotecas, dos profissionais e suas ações é combatida, e o poder de perpetuação da classe dominante é desvelado. A agenda de pesquisa se amplia, incorporando diversos horizontes temáticos e promovendo uma fertilização e oxigenação na produção do conhecimento da Biblioteconomia. As associações, as organizações e os grupos compostos de bibliotecários, reconhecidos como críticos e progressistas, são ativos, com diferentes modos de produzir e de se expressar e mantêm uma diversidade de formatos de publicações (sites, blogues, redes sociais, com destaque para o uso das hashtags). Os eventos temáticos, em particular, assumem também uma regularidade nos acontecimentos e, por vezes, as instituições mais clássicas ou conservadoras parecem abrir, aos poucos, para outros diálogos.

Decerto, as perspectivas críticas mais orientadas para o social sobre Biblioteconomia já existiam, não sendo algo novo já que a Biblioteconomia é um campo científico vinculado às Ciências Sociais. Se voltarmos aos “clássicos”, veremos que, em alguma medida, eles estão voltados às bibliotecas e, com isso, para a sociedade. Contudo, a luta que se travou a partir do Século XX, (vimos que se iniciou na década de 1930, porém com mais organicidade e volume, desde a década de 1990), e com mais vigor, a partir do XXI, marca-se outra agenda temática, mais visível, explícita, forte e combativa, quanto aos problemas sociais, econômicos, políticos, culturais, éticos, tecnológicos e informacionais. A mudança da estrutura opressora das instituições entra em pauta com a concretização das ações de bibliotecários e bibliotecárias com vistas à transformação/revolução social, rumo a uma sociedade sem desigualdades e sem preconceitos como o racismo, o machismo, a xenofobia e a homofobia etc.

Esses bibliotecários e bibliotecárias, segundo as fontes utilizadas pela pesquisa, sinalizam-se como sujeitos ativos, críticos, progressistas ou mesmo explicitamente de esquerda. O posicionamento político dos profissionais reforça uma agenda pautada pelos direitos humanos, por justiça (social, racial, gênero, epistêmica), e pelos valores democráticos, visando minimizar os danos causados pelas relações de poder (por exemplo, imperialismo, capitalismo, supremacia branca, patriarcado). O caminho de uma possível revolução cultural humana e emancipatória perpassa a educação, a informação, a cultura e, obviamente, as bibliotecas, que devem rever suas práticas, processos e teorias, que ainda servem, muitas vezes, para manter a ordem e um pensamento hegemônico e excludente.

Em síntese, cada localidade tem se comportado de uma maneira diferente, o que inviabiliza uma generalização irrestrita dessas produções e ações sobre uma Biblioteconomia progressista e crítica. É importante continuar identificando os eventos e acontecimentos, proposta deste texto, sobretudo, em outros países. Sabemos que outras ações, produções e eventos, nem sempre nomeados pelos adjetivos ‘crítico’, ‘progressista’ e ‘social’, poderiam ser identificados como integrantes dessa agenda. Assim, advogamos pelo uso explícito dos termos: “Biblioteconomia Crítica”, “Biblioteconomia Progressista” ou “Biblioteconomia Social”, que fazem parte da Biblioteconomia e contribuem para a sua renovação e reafirmação epistemológica social e crítica.

Referências

ADLER, Melissa; TENNIS, Joseph T. Toward a Taxonomy of Harm in Knowledge Organization Systems. Knowledge Organization, Baden-baden, v. 40, n. 4, p. 266-271, 2013.

AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION (ALA). About Social Responsibilities Round Table. 1969.

BASE DE DADOS REFERENCIAL DE ARTIGOS DE PERIÓDICOS EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO (BRAPCI). 2010. Disponível em: https://brapci.inf.br/. Acesso em: 30 ago. 2021.

BLACK CAUCUS AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION (BCALA). 2020. Disponível em: https://www.bcala.org/. Acesso em: 25 jun. 2021.

BERMAN, Sanford. Critical librarianship. 2007. [Carta enviada para Cataloging Policy & Support Office. Library of Congress, Wahshington, DC, em 16 maio, 2007.

BERMAN, Sanford. Prejudices and Antipathies: a Tract on the LC Subject Heads Concerning People. Lanham, MD: Scarecrow Press, 1971.

BERMAN, Sanford. Libraries to the People. Revolting librarians. 1972.

BOURG, Chris. The unbearable whiteness of librarianship. 2014.

CIVALLERO, Edgardo. Aproximación a la bibliotecología progressista. El profesional de la información, León, v. 22, n. 2, p. 155-162, 2013.

CRITLIBSF. #CritlibSF Unconference. 2015. Disponível em: http://critlibsf.weebly.com/. Acesso em: 25 jun. 2021.

DELGADO LÓPEZ-CÓZAR, Emilio Delgado. La investigación en la Biblioteconomía y documentación. Gijón: Trea, 2002.

DURRANI, Shiraz. Progressive African Library & Information Activists' Group (PALIAct). Africa: Progressive African Library & Information Activists’ Group. Pambazuka News, [s.l.], 2005.

DURRANI, Shiraz. Social forum, documentation and libraries deadline. Message posted to Libplic. 2004, July 3. In: SAMEK, Toni. Finding Human Rights in Library and Information Work. Bilgi Dünyası, [s.l.], v. 9, n.2, p. 527-540, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 60 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

GARCIA, Kenny. Keeping Up With...Critical Librarianship. American Library Association, June 19, 2015. Document ID: e4d7b939-4d61-fc44-d1fb-cedee63af789. Acesso em: 11 ago. 2020.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2002.

HAN, Xiaoyao. Evolution of research topics in LIS between 1996 and 2019: an analysis based on latent Dirichlet allocation topic model. Scientometrics, Dordrecht, v. 125, n.3, p. 2561-2595, 2020.

HENNESSY, Jim A. Guerrilla librarianship? A review article on the librarianship of politics and the politics of librarianship. Journal of Librarianship, [s.l.], v. 13, n. 4, october, 1981.

INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY ASSOCIATIONS AND INSTITUTIONS (IFLA). Code of ethics for librarians and other information workers. 2016. Disponível em: https://www.ifla.org. Acesso em: 11 nov. 2019.

KAGAN, Alfred. Progressive library organizations: a wordwide history. North Carolina: McFarland, 2015.

KAGAN, Alfred. Progressive Library Organizations Update, 2013-2017. Journal of Radical Librarianship, [s.l.], v. 4, n. 1, p.20-52, 2018.

LANDES, Jordan; ESPLEY, Richard. Radical Collections: re-examining the roots of collections, practices and information professions. London: University of London, 2018.

LAWSON, Stuart. Editorial: Journal of Radical Librarianship. Journal of Radical Librarianship, [s.l], v. l, n. 1, p.1-2, 2015.

MANLEY, Will. Will's World: Guerrilla Librarians. American Libraries, April, p. 192, 1997.

MORALES LÓPEZ, Valentino. La bibliotecología y estudios de la información: análisis histórico-conceptual. Mexico, D. F.: El Colegio de México, 2008.

MORRONE, Melissa; FRIEDMAN, Lia. Radical Reference: Socially responsible librarianship collaborating with community. The Reference Librarian, [s.l.], v. 50, n. 4, p. 371-396, 2009.

NICHOLSON, K. P.; SEALE, M. (Ed). Introduction. In: NICHOLSON, K. P.; SEALE, M. (Ed). The politics of theory and the practice of critical librarianship. Sacramento, CA: Library Juice Press. p. 1-18, 2018.

PROGRESSIVE LIBRARIANS GUILD. [20--]. Disponível em: http://www.progressivelibrariansguild.org. Acesso em: 12 out. 2020.

PROQUEST. LISA: Library and Information Science Abstracts. c2021.

PULIDO, Margarita Pérez; MORILLAS, José Luis Herrera. Teoria e nuevos escenarios de la Bibliotecología. 2. ed. Buenos Aires: Alfagrama, 2006.

ROSENZWEIG, Mark. What Progressive Librarians Believe: an international perspective a presentation to the Vienna International Library Conference of AKRIBIE at the Dr. Karl-Renner-Institut, Vienna, 2000.

SAMEK, Toni. Internet and intention: an infrastructure for Progressive Librarianship. International Journal of Information Ethics, Raipur, v. 2, n.11, p. 1-18, 2004.

SAMEK, Toni. Librarianship and human rights: a twenty-first century guide. Oxford: Chandos Publishing, 2007.

SCHLESSELMAN-TARANGO, Gina. How Cute! Race, Gender, and Neutrality in Libraries. The Canadian Journal of Library and Information Practice and Research, Edmonton, v. 12, n. 1, 2017.

SEALE, Maura. Critical library instruction, causing trouble, and institutionalization. Communications in Information Literacy, Tulsa, v. 14, n. 1, p. 75-85, 2020.

SEALE, Maura. Institutionalizing Critical Librarianship. In: CRITICAL SYMPOSIUM ON LIBRARIANSHIP AND PEDAGOGY (CLAPS). Arizona, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/10150/609829. Acesso em: 12 out. 2020.

SILVA, Franciéle Carneiro Garcês da; SALDANHA, Gustavo Silva. Biblioteconomia Negra Brasileira. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, João Pessoa, n. 2, v. 12, 2019.

TANUS, Gabrielle Francinne de Souza Carvalho. Saberes científicos da Biblioteconomia em diálogo com as Ciências Sociais e Humanas. 2016. 232 f. Tese (doutorado) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais, 2016.

TANUS, Gabrielle Francinne de S. C.; SILVA, Daniela Cândido da. Biblioteconomia social, crítica e progressista. Revista Informação na Sociedade Contemporânea, Natal, v. 3, n. 1, p. 1-28, 2019.

TEWELL, Eamon. A Decade of Critical Information Literacy: A Review of the Literature. Communications in Information Literacy, Tulsa, v. 9, n. 1, p. 24-43, 2015.

VALENZA, Joyce. Guerrilla librarianship hold the camouflage! Book Report, [s.l], v. 15, n. 4, p. 16, jan./feb. 1997.

WHITLEY, Richard. Cognitive and social institucionalization of scientific specialities and research areas. In: WHITLEY, R. (Ed.). Social processes of scientific development. London: Routledge and Kegan, 1974. p. 69-95.

WOC+Lib. 2019. Disponível em: https://www.wocandlib.org/. Acesso em: 12 jan. 2020.

Notas

[1] Por exemplo, no atual “Código de Ética da IFLA para bibliotecários e outros profissionais da informação”, a seção 5 se concentra ainda em defender a “neutralidade, a integridade pessoal e as habilidades profissionais”: Os bibliotecários e outros profissionais da informação estão estritamente comprometidos com a neutralidade e uma postura imparcial em relação à coleta, acesso e serviço. Neutralidade resulta na coleta mais equilibrada e no acesso mais equilibrado às informações possíveis (IFLA, 2016, doc. eletrônico, tradução nossa).

Información adicional

Declaração de autoria: Concepção e elaboração do estudo: Gabrielle Francinne de Souza Carvalho Tanus. Coleta de dados: Gabrielle Francinne de Souza Carvalho Tanus. Análise e interpretação de dados: Gabrielle Francinne de Souza Carvalho Tanus. Redação: Gabrielle Francinne de Souza Carvalho Tanus. Revisão crítica do manuscrito: Gustavo Tanus.

Como citar: TANUS, Gabrielle Francinne de Souza Carvalho. Institucionalização da Biblioteconomia Progressista e Crítica. Em Questão, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 432-457, 2022. DOI: http://dx.doi.org/10.19132/1808-5245281.432-457



Buscar:
Ir a la Página
IR
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por