Edição Especial Nacional

Recepción: 19 Abril 2018
Aprobación: 19 Septiembre 2018
DOI: https://doi.org/10.5585/bjm.v17i6.3830
Resumo:
Objetivo: O lançamento do game Pokemon GO gerou um frenesi nunca antes visto no Brasil em relação a um jogo de videogame e revelou ao país a existência de um público aficionado por cultura pop e tecnologia, os chamados nerds. A tomada das cidades pelos caçadores de monstrinhos virtuais teve uma enorme repercussão na grande mídia e levou diferentes públicos a se posicionarem a respeito. Assumindo o consumo como prática identitária, o presente trabalho teve o objetivo de analisar a constituição identitária dos usuários brasileiros do Pokemon GO por meio dos discursos que se estabeleceram a partir do anúncio do lançamento do jogo no país.
Método: Adotamos a Análise de Discurso Foucaultiana (ADF), que evidencia como certos discursos revelam regularidades. O corpus de pesquisa foi formado por matérias veiculadas durante vinte meses, a partir do anúncio do produto.
Relevância: O público nerd tem ganho importância social e econômica, tanto pela relevância da cultura pop no mundo contemporâneo, quanto pelo crescimento da indústria do entretenimento. Resultados: Identificamos duas formações discursivas relacionadas ao consumo do Pokemon GO no Brasil: uma referente à busca de legitimidade da identidade nerd e outra ao estigma a essa imputado.
Contribuição metodológica: A pesquisa apresenta uma operacionalização sistematizada do método foucaultiano.
Contribuição teórica: Os achados levam ao entendimento do consumo nerd como uma arena de política da identidade. Contribuição social: O estudo põe em evidência uma identidade social que, a despeito de seu relevo econômico, ainda se caracteriza como minoritária.
Palavras-chave: Identidade, Estigma, Pokemon GO, Analise de Discurso Foucaltiana.
Abstract:
Objective: The release of the game Pokemon GO generated a frenzy never seen in Brazil in relation to a videogame and revealed to the country the existence of a public aficionado for pop culture and technology, called nerds. The takeover of cities by virtual monster hunters had a huge impact on the mainstream media and led different audiences to take a stand. Assuming consumption as an identity practice, present work had the objective of analyzing the identity constitution of the Brazilian users of Pokemon GO through the discourses that were established from the announcement of the release of the game in the country.
Method: We adopted Foucauldian Discourse Analysis (FDA), which demonstrate how certain discourses reveal regularities. The corpus research consisted of news published over twenty months, from the announcement of the product.
Relevance: The nerd audience has gained social and economic importance, both because of the relevance of pop culture in the contemporary world and the the growth of the entertainment industry.
Results: We identified two discursive formations related to the consumption of Pokemon GO in Brazil: one referring to the search for legitimacy of the nerd identity and another to the stigma to this imputed one.
Methodological contribution: The research presents a systematized operationalization of the Foucauldian method.
Theoretical contribution: Findings lead to the understanding of nerd consumption as an arena of identity politics.
Social contribution: The study put in evidence a social identity that, despite its economic importance, is still characterized as a minority.
Keywords: Identity, Stigma, Pokemon GO, Foucauldian Discourse Analysis.
1 INTRODUÇÃO
Pokemon GO é um jogo na forma de aplicativo de celular que foi lançado em julho de 2016, chegando ao Brasil um mês depois. O jogo utiliza a tecnologia de realidade aumentada em paralelo à geolocalização, visando unir o mundo real ao virtual por meio de um software. O jogo propicia a sobreposição de sua tela com locais reais do mundo, fazendo com que os jogadores vejam os monstrinhos virtuais (i.e., Pokemons) nas ruas. Isto propicia mais realismo e envolvimento para a realização dos objetivos do game: encontrar e pegar os Pokemons. Para tal, ações são necessárias para se passar de níveis do jogo: visitar PokeGyms, que são pontos de batalha em que jogadores buscam se tornar os novos líderes de ginásio, utilizando os Pokemons que pegaram anteriormente, ao duelarem contra os monstrinhos que foram atribuídos no ponto por outros treinadores para defender o status de gymleader, o que garante insígnias e pontos de experiência; e PokeStops, onde podem coletar itens necessários para se capturar e evoluir seus Pokemons (Zack & Tussydiah, 2017). O aplicativo teve uma enorme repercussão, de escala mundial, superando as expectativas de seus produtores, que tiveram problemas em seus servidores pelo altíssimo trafego de usuários e foram forçados a atrasar a expansão do mesmo em certos mercados, como o Brasil, por exemplo (F. de São Paulo, 2016; Monteiro, 2016).
A primeira notícia sobre o jogo eclodiu em 2014, quando, numa das suas brincadeiras de primeiro de abril, o Google utilizou a marca Pokemon para oferecer o emprego dos sonhos: ser um treinador Pokemon (Barros, 2014). O frenesi gerado nos fãs da marca de jogos de videogame e desenho animado, que se tornou mundialmente popular nas décadas de 1990 e 2000, tomou conta do mundo e, cerca de um ano mais tarde, a Niantic, desenvolvedora de jogos vinculada ao Google, revelou estar trabalhando junto à Nintendo, responsável pela franquia dos jogos, num aplicativo para celular que, em breve, tornaria realidade um sonho de muitas crianças da geração millennial: sair de casa e caçar os monstrinhos, como sempre viram nos jogos ou desenho animado da franquia (Peckham, 2015). O sonho foi adiado ao longo de 2015 até que, em junho de 2016, a Nintendo, durante o seu painel da E3, um evento internacional de lançamento de tecnologias de jogos para videogames, divulgou que o jogo que faria a caça de monstrinhos virtuais interagir com o mundo real seria lançado para os celulares em um mês depois (Monteiro, 2016).
A notícia “quebrou” a Internet mundial, tendo grande repercussão global, incluindo o Brasil (F. de São Paulo, 2016), mesmo o país não tendo sido incluído na lista dos mercados que iriam receber o jogo no lançamento inicial (Monteiro, 2016). Em nota, a Niantic explicou que o jogo seria lançado aos poucos em diferentes países, enquanto eventuais falhas do aplicativo seriam corrigidas (UOL, 2016). Assim, enquanto o jogo ia sendo lançado em outros países, os internautas brasileiros não pareciam conter sua expectativa, tanto que conseguiram experimentar o jogo por um período efêmero por meio de servidores piratas, até que a empresa responsável pelo seu desenvolvimento conseguiu derrubá-los (Victor, 2016). A frustração que se seguiu apareceu em tom de apelo e manifestações organizadas, bem como na criação de memes fazendo piadas com o fato de o Brasil não ser visto como prioridade nos lançamentos de jogos e tecnologias inovadoras em comparação com o resto do mundo (O Globo, 2016).
Quando, no começo de agosto daquele ano, o jogo finalmente se tornou disponível no país, houve tamanha comoção, que o assunto se tornou um dos mais populares da internet mundial. Tal qual em várias partes do mundo, as ruas e localidades públicas do país foram tomadas por caçadores de Pokemon (F. de São Paulo, 2016). A caçada aos monstrinhos virtuais passou a ser um evento social com saídas em grupos para tal finalidade e até promoção da prática por locais públicos importantes da cidade (e.g. shoppings, praças, parques, estádios de futebol) com o intuito de atrair grupos de jogadores – consumidores em potencial de produtos e atividades correlatas à franquia de games (Grossman, 2016). A comoção gerada por eles perante o resto da sociedade foi tão grande, que as campanhas publicitárias e notícias sobre o jogo ofuscaram eventos e datas comerciais importantes (F. de São Paulo, 2016).
Passado o frenesi inicial, o número de jogadores de Pokemon GO teve um decréscimo até se estabilizar. Percebendo o declínio de popularidade, a Niantic passou a elaborar eventos que, de forma esporádica, voltaram a popularizar o jogo, ainda que não mais como na época do seu lançamento. Entretanto, pouco mais de um ano após seu lançamento, o jogo segue como um dos aplicativos mais baixados para smarthphones e um dos jogos mais lucrativos da história (Agencia Estado, 2017).
Em seu auge de popularidade, a repercussão do jogo foi tamanha no país que chamou a atenção da imprensa, de especialistas, de autoridades e da sociedade em geral, estarrecidos pela caça de seres invisíveis por inúmeras pessoas que passou a tomar as ruas e espaços públicos do país (Monteiro, 2016; Wada & Camargo, 2016). Todos pareciam querer compreender o que estava acontecendo; o que fez com que um fenômeno liderado por jovens tomasse o país de assalto (Cruz, Pinto & Oliveira, 2017; Uvinha, 2016)
O fenômeno suscitado pelo Pokemon GO revelou ao país a existência de um público aficionado por cultura pop e tecnologia, os chamados nerds. O mercado de games – incluindo os jogados em consoles, computadores e em aplicativos para smartphones e tablets – brasileiro vêm crescendo ao longo dos anos, tendo alcançado o posto de terceiro maior em número de jogadores e décimo segundo no ranking de rentabilidade, sendo o maior da América Latina (Müller, 2016). Entretanto, os games costumam ser jogados isoladamente, sem interações presenciais e, muito comumente, em espaços privados. Talvez por isso não apresente ao público em geral seu verdadeiro vulto, o que foi propiciado pelo Pokemon GO.
De certa forma, o jogo propiciou ao público nerd “sair do armário”; praticar seu entretenimento aos olhos de todos, demonstrando seu comportamento à sociedade em geral. Por outro lado, as discussões e opiniões acerca desse comportamento revelaram estranhamento, comumente de cunho pejorativo (Dino, 2017). Não é de hoje que a imagem do nerd é estereotipada – assim como a de fãs de produtos midiáticos de forma geral. Ainda que o êxito de empresas de tecnologias de informação, associadas a este público, bem como a difusão da indústria do entretenimento venha reconfigurando a concepção social do nerd, eles ainda são percebidos como estranhos aos padrões de comportamentos sociais vigentes (Dino, 2017).
Não é de hoje que o consumo é considerado uma arena propícia à constituição identitária, uma vez que se trata de uma esfera cultural, sendo, assim, um lócus de partilha de valores, crenças e hábitos. Portanto, a carga simbólica inerente ao consumo é entendida como uma base fundamental sobre a qual os indivíduos negociam suas identidades, o que ocorre por meio de práticas ativas (Arvidsson & Caliandro, 2015; Jones, 2015; Oliveira & Leão, 2011).
Com base no que foi apresentado até aqui, é possível dizer que o consumo do Pokemon GO seja uma prática constitutiva de identidade. De forma particular, pode-se dizer que tal prática envolve um processo de formação identitária. Assim, debruçamo-nos sobre as práticas discursivas desses agentes com o objetivo de analisar a constituição identitária dos usuários brasileiros do Pokemon GO por meio dos discursos que se estabeleceram a partir do anúncio do lançamento do jogo no país.
O estudo se justifica pela crescente relevância da cultura do fã e, de forma mais específica, do público nerd, aqui representados pelos usuários do jogo Pokemon GO, tanto em termos sociais, por representarem uma cultura (i.e., pop) cada vez mais significativa no mundo contemporâneo, quanto econômico, em virtude do amplo crescimento da indústria do entretenimento – e, particularmente, a de games.
2 CONSUMO, IDENTIDADE E CULTURA DE FÃS
O consumo é uma prática cultura dominante na contemporaneidade. Como fonte primária de símbolos aos quais as pessoas constroem narrativas, se tornou um esteio de construção de identidade (Belk & Casotti, 2014; Arnould & Price, 1993; Arnould & Thompson, 2005). Projetos de identidade se articulam em meio às relações que se dão entre a cultura vivida e arranjos, na medida em que práticas de mercado se apropriam e legitimam recursos simbólicos e materiais (Arnould & Thompson, 2005; Schau, Gilly & Wolfinbarger, 2009). As práticas de consumo contemporâneas possibilitam que as pessoas exerçam um empreendedorismo de si mesmos, de forma a expressar multi-indentidades, enquanto desempenham diferentes performances sociais de acordo com o elo (e.g., grupos, comunidades, redes, ambientes) a que se vinculam (Morato, Arcoverde & Leal, 2017; Noveli, 2010), uma vez que ofertam uma infinidade de recursos simbólicos para a construção de identidades (Belk, Price & Peñalosa, 2013; Carvalho, Queiroz & Bergamo, 2017; Kozinets, 2002), o que ocorre pela adaptabilidade na maneira de se comunicarem, por compartilhamento de identificações, pela coesão ou dissonância entre vínculos, pela cisão com ou bloqueio de outras identidades e em relação a contextos morais (Curasi, Arnould & Price, 2004; Epp & Price, 2008; Moisio, Arnould & Price, 2004).
A partir de uma noção cultural, as identidades manifestas por meio das práticas de consumo são entendidas como coletivas; compartilhadas por indivíduos que comungam valores, crenças e hábitos (Arvidsson & Caliandro, 2015; Jones, 2015). R. Jenkins (1996) apresenta a noção de que a coletividade de uma identidade se constitui dialeticamente em processos internos e externos: ao se buscar diferenciar, o processo de identificação requer legitimidade interna e reconhecimento externo. Assim, inúmeros são os tipos de identidades coletivas: de gênero (Keillor & Hult, 1999; Lee, Klobas, Tezinde & Murphy, 2010; Mansvelt, & Diamantopoulos, 2015), de raça (Reed, Forehand, Puntoni & Warlop, 2012; Lamont & Molnár, 2001); étnica (Papaoikonomou; Cascon-Pereira; Ryan, 2014; Moisio et al., 2004); de nacionalidade (Zeugner-roth, Zabkar & Diamantopoulos, 2015; Lee et al., 2010; Keillor; Hult, 1999), dentre outras. Tais identidades evidenciam como as pessoas se comportam socialmente e fazem escolhas morais (Luedicke, Thompson & Giesler, 2010; Thompson & Cokuner-Balli, 2007).
A popularização de aparatos tecnológicos, acesso à Internet e a mídias sociais se configura, atualmente, como uma das principais manifestações morais de identidade, uma vez que propiciam aos seus usuários uma voz ativa (Chernev, Hamilton & Gal, 2011; Kozinets, 2010). Num contexto em que consumidores não se limitam mais à passivamente de receber as ofertas de mercado, se tornando agentes ativos do consumo (Cova & Cova, 2012; Firat & Venkatesh, 1995), as práticas de consumo que fomentam a construção de identidades podem se apresentar como produtivas, alinhando à noção de prossumo, em que os limites entre produção e consumo deixam de ser nítidos, uma vez que os consumidores são corresponsáveis pela sua experiência de consumo (Ritzer & Jugerson, 2010). Tal processo dos consumidores se dá de forma proativa e dinâmica, visando aumentar o alcance do que consomem (Ritzer, 2014), o que tem sido acompanhado pelas organizações, como forma de aumentar sua responsividade a esse comportamento (Fonseca, Gonçalves, Oliveira & Tinoco, 2008; Xie, Bagozzi & Troye, 2008).
A ação coletiva de consumidores pode ser compreendida à luz da noção de cultura participativa, que diz respeito ao engajamento de indivíduos com identificações comuns, dispostos a repercutirem os mais diversos assuntos, os ressignificando (Jenkins, Ford & Green, 2013; Lévy, 2007). Assim, a cultura participativa possibilita a transição de um isolamento sociocultural a uma participação comunitária ativa (H. Jenkins, 2014; Tombleson & Wolf, 2017). Sendo multidimensional, a cultura participativa inclui diferentes formas de integração e engajamento e pode ser melhor compreendida a partir da maneira como os produtos culturais são apreendidos e reproduzidos (H. Jenkins, 2006; Sandvoss, 2005a), o que ocorre, particularmente, por meio de seus fãs (Hills, 2002; Sandvoss, 2005b).
O fã, enquanto um consumidor especializado, toma parte no processo de espalhamento dos produtos culturais que consomem (Jenkins et al., 2013; Sandvoss, 2005b), quanto os recriam, podendo desenvolver uma resistência aos mesmos (Guschwan, 2012; Sandvoss, 2005a; H. Jenkins, 1992). Crawford (2004) apresenta que a cultura dos fãs constitui identidades a partir da identificação com a comunidade a que se está vinculado, o que, por sua vez, se relaciona ao produto cultural de que se é fã. Assim, é possível dizer que ser fã também seja uma identidade coletiva constituída pelo consumo.
Como outras identidades minoritárias, a do fã sofre por caracterizações estigmatizadas. O comportamento do fã é comumente estereotipado como fútil, alienado e fanático – termo de que deriva a palavra (Booth, 2013; Hills, 2005). Enfim, anômalo em relação à conduta socialmente esperada, chagando a ser compreendido como uma patologia (Jenson, 1992). Entretanto, o crescimento da indústria do entretenimento, associado às novas tecnologias de comunicação, tem modificado essa imagem, levando o fã a ser reconhecido como expert da cultura pop, assim, influenciador de consumo (Booth, 2013; Duffett, 2013).
A cultura de fãs está em estreita relação com a cultura nerd e essa compartilha com a aquela tanto a imagem estereotipada quanto um recente processo de legitimação (Booth, 2013; Fiske, 2001; Hills, 2005). Inicialmente associado a jovens estudiosos e interessados em ciência e tecnologia, mas também retraídos e sem habilidades para os relacionamentos sociais, a imagem do nerd evoluiu com a nova economia, baseada, fundamentalmente, nas tecnologias de informação às quais têm sido desenvolvidas justamente por esse público (Galvão, 2009; H. Jenkins, 1992; Nugent, 2009). Por outro lado, por comumente serem fãs de produtos midiáticos (e.g., quadrinhos, games, cinema, séries), os nerds passaram a ser associados à própria disseminação da cultura pop, gerando uma grande sobreposição do entendimento de sua condição com a de fã (Anderegg, 2008; Kendall, 1999;2007; Massanari, 2015).
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa realizada é qualitativa, tendo como método investigativo adotado a Análise de Discurso Foucaultiana (ADF). O mesmo busca estabelecer a compreensão de como certos discursos revelam regularidades evidenciadas por meio de formações discursivas. Tais formações emanam de enunciados e suas funções e presumem certas regras. É importante destacar que o legado foucaultiano foi adotado como método e não como base teórica para o planejamento da pesquisa, ainda que em sua filosofia tais esferas se sobreponham. Vale dizer que sua fase arqueológica, de onde a presente analítica é derivada, tem o objetivo de produzir não uma teoria, mas a compreensão da episteme de certos fenômenos por meio dos discursos que os sustentam, o que se revela alinhado ao objetivo do presente trabalho. A Tabela 1 apresenta as categorias analíticas.

O conjunto de dados utilizado numa ADF é denominado de arquivo. O mesmo deve ser demarcado por um acontecimento, que marca uma ruptura ou novidade em relação a algum fenômeno social, até que certa regularidade discursiva deste novo cenário se estabeleça (Foucault, 2014).
O arquivo da pesquisa foi composto por 232 matérias coletadas em 60 sites de notícias de todo o Brasil, desde os especializados em games e indústria do entretenimento como um todo, até os de cobertura ampla. A escolha por esse tipo de dado se deu pela possibilidade de alcance nacional e de acesso a diferentes discursos acerca do fenômeno investigado. Neste sentido, vale dizer que o texto midiático é capaz de evocar diferentes vozes (Charaudeau, 2006), aspecto necessário à análise. Para preservar o caráter jornalístico do dado, eliminamos reportagens com teor de fanservice, ou seja, aquelas feitas para estimular a expectativa de fãs (Costa, 2014).
Os documentos foram coletados a partir da primeira notícia veiculada no país sobre o jogo Pokemon GO, em março de 2016, até o fim do mês de outubro do ano seguinte. Tal escolha possibilitou se analisar o fenômeno em pauta a partir de três momentos/situações: a) a expectativa do lançamento do jogo no Brasil; b) como ele foi recepcionado; c) as repercussões por ele geradas; e d) a estabilização do consumo, coincidente com o decréscimo de notícias a seu respeito. Metodologicamente, tal interstício cobre desde a identificação do acontecimento discursivo até sua regularidade, o que justifica o intervalo de tempo da investigação, a despeito da repercussão do jogo ter se concentrado, sobremaneira, nos primeiros três meses do segundo semestre de 2016. Vale dizer que, apesar da maioria das categorias empíricas terem sido eliciadas neste período, as mesmas só foram saturadas um ano após o anúncio do lançamento do jogo.
As categorias analíticas (Tabela 1) estabeleceram a sequência de análise, conforme as seguintes etapas:
Inferência dos enunciados – Diz respeito à identificação dos enunciados como unidades básicas do discurso presente no arquivo de pesquisa. Refere-se a um procedimento de categorização dos significados inferidos dos textos em análise, de acordo com o entendimento de como os mesmos revelem enunciados nos termos aqui definidos.
Identificação das relações entre enunciados – Os enunciados podem estar relacionados entre si, revelando uma cadeia de significação no arquivo analisado. Isto pode ocorrer de forma direta, em que os enunciados coexistem, tipo de relação que denominamos síncrona; assim como em situações em que certo enunciado explica a existência de outro, numa relação que denominamos incidente.
Definição das funções enunciativas – Os enunciados e suas relações atuam discursivamente a partir de certas referências, maneiras, posições de emanação e de saberes. A identificação e conjugação de tais critérios possibilita a determinação das funções desses enunciados. Cada enunciado pode ser dotado de mais de uma função, bem como haver uma mesma função relacionada a mais de um enunciado.
Definição das regras de formação – As relações estabelecidas entre os enunciados e suas funções revelam certos princípios de ordenação do discurso. O procedimento aqui é semelhante ao anterior, já que aos critérios de funções enunciativas correspondem os de regras de formação. A despeito desta homologia, no entanto, não há uma equivalência necessária entre critérios de cada tipo (i.e., funções e regras), podendo haver múltiplas relações entre critérios análogos (e.g., um referencial pode corresponder a um ou mais objetos ou vice-versa), ainda que se verifique uma tendência redutora neste procedimento, em que critérios de funções correspondem a menos critérios de regras. Também em consonância com a etapa anterior, cada função enunciativa pode se relacionar a mais de uma regra de formação, bem como haver uma mesma regra relacionada a mais de uma função.
Determinação das formações enunciativas – As relações entre as categorias anteriores estabelecem fluxos, aqui chamados de feixes de relações, que indicam convergências que propiciam a identificação de sentidos gerais do conjunto discursivo, cujo papel catalisador cabe às regras de formação.
4 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Essa seção apresenta os resultados obtidos na pesquisa. Para isso, será dividida em duas partes, que descrevem as formações discursivas identificadas e seus elementos componentes (enunciados, funções enunciativas e regras de formação). Estes são apresentadas na primeira parte, com suas definições e contextos empíricos. Na segunda parte as formações discursivas são apresentadas a partir dos feixes de formações e exemplos empíricos retirados do arquivo, bem como de recorrência à literatura adotada.
4.1 Elementos das Formações Discursivas
Foram identificados 25 enunciados, denominados por meio de frases, no intuito de evidenciar sua descrição de forma sintética. Os mesmos são apresentados na Tabela 2.

A segunda categoria apresentada é a das funções enunciativas. Foram identificadas 10 (Tabela 3), que se encontram definidas por meio de orações iniciadas por um verbo no infinitivo, no intuito de elucidar a “ação” dos enunciados que a elas se relacionam.

Conforme apresentado nos procedimentos metodológicos, a definição das funções enunciativas se baseia na identificação de certos critérios, quais sejam: referencial, campo associado, sujeito e materialidade (Tabela 1). A Tabela 4 apresenta a definição das categorias identificadas na pesquisa que correspondem a esses critérios.


As regras de formação, terceira categoria da análise, tal qual as funções enunciativas, dispõem de critérios – objeto, conceito, modalidade e estratégia – que definem como elas se formulam. A Tabela 6 apresenta tais critérios e suas definições.

A Tabela 7 apresenta como esses critérios se cruzam na composição das regras de formação identificadas.

As regras de formação encontram-se definidas na Tabela 8. Para nomeá-las, utilizamos substantivos ou locuções substantivas, visto que se referem a certos aspectos que sustentam as formações discursivas.

4.2 As Formações Discursivas
As formações discursivas são inferidas a partir da maneira como seus elementos constitutivos se relacionam em feixes. Como já discutimos, as categorias eliciadas em cada nível de análise se relacionam entre si. Além disto, também os próprios enunciados podem se relacionar entre si. Identificamos que essas relações ocorrem de duas maneiras: existem enunciados que explicam mutuamente suas existências, mas também aqueles capazes de explicar a existência de outros. As relações do primeiro tipo denominamos síncronas, enquanto as do segundo incidentes. Todas as categorias e suas relações são apresentadas na Figura 1. No caso das relações entre enunciados, as síncronas são representadas por linhas, enquanto setas dizem respeito às incidentes.

Os feixes de relações entre as categorias empíricas eliciadas nos guiou à identificação de duas formações discursivas, correspondentes a posicionamentos que revelam, de um lado, o fenômeno Pokemon GO como um meio de legitimação da identidade nerd e, de outro, a estigmatização desta identidade.
4.2.1 Nerdice
Denominamos Nerdice a formação discursiva que diz respeito a como a construção da identidade nerd se ancora num processo baseado numa singularidade legitimada por uma lógica de mercado, no caso, a repercussão de um produto da cultura pop (i.e., Pokemon GO). Tal formação se embasa em duas regras, que revelam as posições tanto do consumidor nerd quanto da imprensa especializada, que buscam legitimar essa identidade como autêntica e socialmente relevante, o que, curiosamente, é feito com base no potencial econômico que este representa enquanto mercado de consumo. Tais regras, por sua vez, estão fundamentadas nas mesmas funções enunciativas. Com isto, tomar os feixes de relações a partir dos enunciados parece um bom ponto de partida para compreender os argumentos que sustentam esse discurso.
Um primeiro grupo de enunciados relacionados está centrado na demora do lançamento do jogo no Brasil, justificado pela produtora por não esperar uma demanda tão grande quanto a que se evidenciou quando do lançamento do mesmo em outros países (E04). Em relação à caracterização deste mercado, este aspecto sofre incidência de três enunciados interligados, que apontam para como o Pokemon GO se dirige a um mercado ansioso por novidades (E06), é capaz de atrair consumidores de diferentes faixas etárias (E07) e está associado a um sentimento de nostalgia (E08). Por outro lado, esse atraso no lançamento agiu sobre o entendimento de que não haja priorização do mercado nacional pelos grandes players da indústria dos games (E01), o que levou a uma grande frustração dos consumidores potenciais do país (E02), que, por sua vez, reagiram a tal frustração buscando versões piratas do aplicativo (E03), o que, de forma retroalimentadora, contribuiu ainda mais para o atraso do lançamento, em virtude de precauções buscadas pela produtora do jogo (E04). Por fim, apesar de o país ser um grande mercado para a marca, é considerado pouco lucrativo, uma vez que não dispende em opcionais de seus produtos (E05), o que também alimenta esse processo, já que, simultaneamente, indica a existência de consumidores altamente envolvidos (E06) e ofertante reticente (E01).
O atraso do lançamento do jogo (E04), suas implicações direta (E01) e indireta (E03) demonstram uma grande expectativa do seu consumidor potencial (F01), bem como uma divergência entre este e a produtora do jogo (F03) – o que se evidencia ainda na decepção dos consumidores brasileiros causada pelo atraso do game (E02) e no seu perfil de consumo (E05). Tais aspectos (E01 a E04), juntamente com a clara indicação de que esse consumidor é sedento por lançamentos originais (E06), funcionam também como uma reclamação pelo não reconhecimento do mercado nacional como um dos mais relevantes para a indústria do game (F02). Por fim, os enunciados que evidenciam o potencial do mercado brasileiro para o Pokemon GO (E04 a E07) e a reação emocional desse consumidor ao seu lançamento (E02, E03 e E08) destacam a força da marca no país (F05) e como seu novo jogo se revela significativo para o público nerd brasileiro (F04).
Esse grupo de enunciados e suas funções indica como o nerd brasileiro é envolvido com games, de forma geral, e com a marca, em específico, e fazem uso de sua condição de consumidores relevantes para terem voz junto à indústria. Isso evidencia o caminho do mercado como espaço de legitimidade de sua identidade, o que ocorre por meio de uma postura ativa em relação à sua oferta.
Um segundo grupo de enunciados que se relacionam à presente formação discursiva está centrado na inovadora jogabilidade do Pokemon GO (E15). Tal aspecto incide sobre vários outros: a variação de interesse derivado de seu efeito novidade (E14), o esforço físico associado à prática do jogo (E16), implicações na rotina não só de seus jogadores, mas de todos com que convivem com estes (E18), relacionado à popularização das localidades de jogo (E17), e o fato de se tratar de um game que se apresenta como um lazer de caráter social (E13), ao propiciar interação presencial entre seus jogadores (E12). Esse último ponto, por sua vez, também propiciou que características do jogo se imbricassem a aspectos do dia-a-dia de seus usuários (E11), bem como a formação de grupos para a prática do jogo, de forma a diminuir a vulnerabilidade à violência brasileira (E10).
À exceção do enunciado que relata a popularização de certas localidades (E17), todos aqueles relacionados à sua jogabilidade (E12 a E16 e E18) enaltecem a experiência de jogar o Pokemon GO (F06). Aquele aspecto (E17), bem como a agitação que o jogo provocou em espaços públicos (E18), com o qual se relaciona, evidenciam a repercussão do jogo na rotina brasileira (F07), juntamente com a forma como características suas foram incorporados a hábitos nacionais (E11). Por sua vez, esse último, assim como o fato do jogo propiciar interações presenciais entre seus usuários (E12), demonstram o envolvimento do público nerd com o jogo (F04). Por outro lado, uma diminuição de interesse no jogo depois de seu impacto inicial, por falta de mais novidades e de adaptações ao contexto nacional (E14) indica uma diferença de perspectiva entre a produtora e os consumidores (F03).
Nesse grupo de enunciados e suas funções vemos como a identidade nerd está ancorada na experiência do jogo, com desdobramentos sociais e da cultura local, tanto no que diz à relação entre usuários quanto a desses e não usuários, em um processo de legitimação de tal identidade tanto interna quanto externamente.
Por fim, um terceiro grupo de enunciados está centrado na vultuosa repercussão do lançamento do Pokemon GO no Brasil (E22), o que incide sobre como a popularidade do jogo gerou oportunidades para negócios virtuais (E21) e presenciais (E20), mas também como aspectos do próprio jogo e derivados dessas oportunidades terminaram por reproduzir algumas desigualdades sociais do país (E19), aspectos que se encontram relacionados e indicam tanto a força da marca no Brasil (F05) quanto impactos do jogo no país (F07). Por outro lado, a repercussão do jogo (E22) também repercute em como o público nerd, em virtude da popularidade do jogo, sentiu-se liberto do preconceito que costuma sofrer (E25), o que também se revela como um impacto do jogo (F07), bem como ressalta sua relevância para este público (F04).
Tais enunciados e funções inserem a construção identitária nerd a partir de uma externalidade, baseada tanto na legitimidade midiática quanto em sua contribuição mercadológica.
4.2.2 Nerdismo
Nerdismo foi o termo que adotamos para a formação discursiva que indica uma estigmatização da identidade nerd demonstrada a partir da repercussão do Pokemon GO. Isto fica evidente por meio de duas perspectivas distintas, representadas pelas regras que lhe dão sustentação. Por um lado, de forma implícita, por meio da reação espantada da mídia não especializada, de autoridades e de parte da opinião pública, ao comportamento deste público ao jogar Pokemon Go nas ruas. Por outro, de maneira descriminante, estabelecida por profissionais de comportamento humano e saúde e também de parte da opinião pública, que viram nesta prática um caráter patológico. A diferença entre esses posicionamentos fica evidente em funções enunciativas particulares. Entretanto, a inferência de que se tratam ambas de posturas estigmatizantes se sustenta em uma função enunciativa compartilhada.
Novamente a grande repercussão do jogo no país (E22) aparece de forma central. Em um primeiro contexto relacionado à presente formação discursiva, diz respeito ao estranhamento da sociedade com a invasão das ruas pelos usuários, tendo sua rotina alterada (E18) e o entendimento de que os usuários do jogo se expõem a certos riscos ao se entreterem em locais perigosos (E09), o que é percebido pelos próprios usuários, ao buscarem jogar em grupo e escolherem locais considerados mais seguros (E10). Tais aspectos se relacionam ao entendimento de que haja uma disparidade entre o a maneira como Pokemon é jogado e a realidade do país (F08), levando ao descobrimento de um público que, ao invadir o espaço social, é entendido como inábil a lidar com este, requerendo um cuidado especial, que parece reverberar na medida em que o mesmo passa a procurar espaço mais seguros (R4).
Nesse grupo de enunciados e funções identificamos um estigma implícito, porque não dizer velado. O nerd não é diretamente apontado como alguém deslocado ou esquisito, mas é assumido como alguém que precisa ser alertado para os perigos que não consegue perceber, o que parece ganhar coro quando ele faz isso.
Por outro lado, a ressonância do jogo (E22) também chamou atenção de especialistas que demonstraram preocupação com o comportamento entendido como infantil por parte de usuários adultos (E23), bem como pelo fato de se engajarem em uma atividade fútil (E24), o que é corroborado por parte da opinião pública. Esses entendimentos revelam uma patologização do comportamento dos usuários do Pokemon GO, entendidos como infantis e irresponsáveis (F09).
Diferentemente da posição anterior, esses enunciados e suas funções apontam para uma clara descriminação do nerd. Entretanto, isto acontecesse também sob o discurso do cuidado, só que agora explicitamente relacionado à sua inabilidade de se comportar normalmente, como seria de se esperar.
Por fim, a exposição do uso do jogo (E22) revela o preconceito que o nerd sofre (F10), do qual tem consciência (E25), o que fica evidente tanto pela preocupação de que ele fuja à normalidade esperada das pessoas numa sociedade (E23 e E24), quanto pelo entendimento de que ele não saberia se cuidar em meio aos perigos das cidades brasileiras (E18 e E09).
Quase todos os enunciados e funções desse grupo sobrepõem-se aos já apresentados. Entretanto, quando relacionados ao ponto de vista do próprio nerd, revelam como os mesmos se tratam apenas de caminhos diferentes para algo comum: o preconceito sofrido por esta identidade.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As duas identidades de consumo identificadas nos discursos presentes na mídia acerca do Pokemon Go a partir do anúncio de seu lançamento revelam posicionamentos díspares. De um lado, os usuários do jogo, apoiados pela imprensa especializada, se utilizam da repercussão de tal processo para assumirem uma identidade historicamente estigmatizada. De outro, essa estigmatização é reforçada por uma postura que vai do assombro de parte da sociedade ao se deparar com o comportamento dos usuários do jogo, à patologização dessa prática por parte de especialistas.
Temos, portanto, uma identidade que tenta se estabelecer como visão de si e outra que busca determinar uma visão do outro. Foucault (2010) discute a questão da identidade em termos de subjetividade, que tanto pode resultar de processos de subjetivação de si mesmo quanto de processos de objetivação designados por outros. Neste sentido, as identidades aqui identificadas podem ser entendidas como processos de subjetivação, em que a identidade nerd busca legitimação por meio de seu comportamento, e de objetivação, em que esta é tachada pela sociedade como estranha ou fora do normal.
Assim, a identidade que denominamos de nerdice revela uma prática coletiva ativa que usa o consumo como meio de legitimação social. A repercussão do Pokemon GO se evidencia como uma oportunidade para que esta identidade desperte a atenção da parte da sociedade que não está inserida ou mesmo informada acerca do mundo dos games. O êxito do produto também revela a um âmbito mais amplo a relevância deste segmento de mercado. Evidenciamos, com isto, que o resguardo moral desta prática discursiva se respalda em duas forças socialmente representativas: a mídia e a economia.
Por outro lado, a identidade que denominamos nerdismo se evidencia pelo olhar de fora de uma determinada prática. Tal juízo se ampara moralmente em determinado padrão de comportamento social e econômico para julgar a forma com que o Pokemon GO é consumido. O vulto decorrente da repercussão deste fenômeno parece ser o gatilho que interpela esta posição a produzir um discurso que preserva o status quo.
Tal discussão permeia a teorização de Goffman (1988) sobre o processo de estigmatização. Para o autor, o estigma é uma identidade deteriorada, uma marca social vinculada a características sociais negativas, atribuída àqueles que não estão de acordo com a visão social dominante do que seja normal. Segundo o autor, os estigmatizados tendem a seguir um processo de mudança para alinharem-se às normas vigentes, o que ele denomina carreira moral.
Diferentemente de uma postura passiva de adaptação às regras sociais dominantes, o discurso identitário que denominamos de nerdice revela uma resistência ao preconceito imposto pelo discurso que denominamos nerdismo. Todavia, tal discurso não passa completamente ao largo da norma social. Ao se amparar na relevância de seu poder de consumo para se afirmar, tal discurso termina por se alinhar, num nível econômico, à ideologia política dominante: a do liberalismo. Para Foucault (2008), à luz da expansão do neoliberalismo estadunidense, a lógica de mercado foi generalizada para toda a vida social, o que poderia explicar tal estratégia.
Mais do que apenas servir de âncora para se projetar certa imagem, o consumo do Pokemon GO revela uma arena de luta social e política para estabelecer o que é normal ou não; o que pode ou não ser aceito como conduta social adequada. Esse embate pode ser entendido como uma política de identidade, em que minorias, normalmente reprimidas, passam a buscar legitimidade ou tem sua representatividade alçada ao debate social, num processo associado à concepção de que estaríamos nos movendo a uma condição pós-moderna e multicultural (Meer, 2010; Whisman, 2012).
Como contribuição teórica, o estudo insere-se nas discussões da Consumer Culture Theory (CCT) acerca da relação entre projetos de identidades dos consumidores e ideologias de mercado (Arnould & Thompson, 2007). De forma mais específica, insere-se no campo da cultura pop e da indústria do entretenimento, sobretudo em relação à investigação da subcultura nerd, pouco explorada globalmente e insipiente na produção brasileira. Além disto, a pesquisa traz à tona uma importante discussão acerca de como o consumo se apresenta como uma esfera social de luta de identidades marginalizadas ante aquelas socialmente legitimadas. Neste sentido, as pontes aqui apresentadas com os pensamentos de Michel Foucault e Erving Goffman se revelam como frutíferas contribuições teóricas e epistemológicas para o campo. Por fim, tal reflexão indica ainda uma implicação social do trabalho: apesar de não se tratar de uma investigação crítica, a pesquisa revela a voz de uma identidade que, a despeito de sua crescente relevância econômica, ainda pode ser entendida como minoria social.
Como limitação do estudo apontamos o uso exclusivo de dados secundários, especificamente de matérias jornalísticas. Neste sentido, uma oportunidade para futuras investigações seria uma abordagem direta, que poderia acontecer tanto por meio de entrevistas – em relação aos diversos públicos aqui considerados – quanto pela realização de uma pesquisa etnográfica junto aos consumidores do game. Além disto, investigações que se debrucem sobre o consumo de outros produtos emblemáticos da indústria do entretenimento poderiam propiciar uma maior amplitude para a compreensão do fenômeno aqui apresentado.
Agradecimentos
Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio financeiro à pesquisa sobre marcas de franquias de produtos midiáticos, que deu origem a este artigo.
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Notas de autor
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