ARTIGOS

Desafios na gestão de uma escola estadual no Paraná/Brasil a partir da filosofia de linguagem de Bakhtin

MANAGEMENT CHALLENGES IN A STATE SCHOOL OF PARANÁ FROM BAKHTIN’S LANGUAGE PHILOSOPHY

Luana Silvy de Lorenzi Tezza Magnin
Fundação Oswaldo Cruz/PR, Brasil
Adriana Roseli Wunsch Takahashi
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Gustavo Henrique Petean
Universidade Federal de Goiás, Brasil
Miriam Aparecida Graciano de Souza Pan
Universidade Federal do Paraná, Brasil

Desafios na gestão de uma escola estadual no Paraná/Brasil a partir da filosofia de linguagem de Bakhtin

Regae - Revista de Gestão e Avaliação Educacional, vol. 9, núm. 18, pp. 1-17, 2020

Universidade Federal de Santa Maria

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Recepción: 10 Marzo 2020

Aprobación: 27 Abril 2020

Resumo: Atribui-se à educação papel central quanto ao exercício da liberdade, cidadania e de uma sociedade democrática. Contudo, a realidade das escolas públicas aponta para a precarização. Neste artigo propõe-se a contribuir na área de organizações ao analisar os principais desafios na gestão de uma escola pública do Estado do Paraná, por meio de um estudo de caso em uma escola de Curitiba, a partir da perspectiva de Mikhail Bakhtin. Os resultados apontam que os enunciados da profissionalização e eficiência do serviço público atuam sobre a produção de resultados como o Índice Ideb, deixando o processo educativo em sentido amplo em segundo plano. Conclui-se que se faz necessário conhecer a realidade cotidiana das escolas para então propor alternativas que minimizem as dificuldades identificadas.

Palavras-chave: Bakhtin, educação, gestão, políticas públicas.

Abstract: Education receives a central role in the exercise of freedom, citizenship, and to enable a democratic society. However, the reality of public schools points to precariousness. The article proposes to contribute in the area of organizations by analyzing the main challenges in the management of a public school in the State of Paraná, through a case study in a school in Curitiba, based on the Mikhail Bakhtin analysis. The results indicate that the statements of professionalization and efficiency of the public service act mainly on the production of results such as the Ideb Index, leaving the educational process in a broad sense in the background. We conclude that it is necessary to know the everyday reality of schools in order to propose alternatives that minimize the identified difficulties.

Keywords: Bakhtin, education, management, public policy.

Introdução

No Brasil são inúmeras as dificuldades que as organizações destinadas ao ensino público enfrentam. Há desafios diários diversos: o salário dos professores tem defasagem, a qualidade do ensino básico é questionada e as condições de trabalho são alarmantes. Uma pesquisa promovida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE - (2014) apontou que, no Brasil, 12% dos professores ouvidos afirmaram ser vítimas de agressões verbais ou de intimidação de alunos pelo menos uma vez por semana. Trata-se do índice mais alto entre os 34 países pesquisados: a média entre eles é de 3,4%.

As condições atuais dos trabalhadores do magistério têm suas raízes no final do século 18 perduraram até meados do século seguinte (Patto, 1990; Russo, 2009). A literatura aponta que dentre os principais problemas identificados nas escolas, que levam à falta de qualidade do ensino público brasileiro, encontram-se: dificuldades na formação dos professores; rotatividade de professores e diretores; ausência de funcionários (Russo, 2009); o processo de adoecimento dos docentes (Penteado; Souza Neto, 2019). A burocracia no repasse de verbas é alta, o que gera barreiras para a manutenção e contratação de profissionais. A rotatividade e a falta de funcionários decorrem da legislação do sistema educacional, que é lenta para a reposição de novos funcionários, e da falta da valorização dos colaboradores no ensino e formação escolar dos alunos (Russo, 2009; Flach, 2012).

Em contraste à situação descrita há apontamentos que indicam que a educação seria condição indispensável para a construção do homem histórico-social. O processo educativo, ao possibilitar a apropriação da cultura e do trabalho coletivo, permite a própria humanização do homem (Beisiegel, 2018; Leontiev, 2004; Rodrigues, 2001). O enunciado da centralidade da educação estende-se a múltiplos discursos humanizadores ou românticos, que depositam à educação a missão de possibilitar o exercício da liberdade, da cidadania, a aquisição de valores e o desenvolvimento integral do homem, assim como de uma sociedade democrática e de bem-estar social, justa e igualitária. Assim, da educação espera-se, também, que seja guardiã dos princípios, da moral, dos bons costumes e a impulsionadora do desenvolvimento da ética e da justiça.

A instituição escolar, portanto, além de responder a uma visão funcionalista de provimento de informações aos seus alunos, visando a prepará-los ao mercado de trabalho ou para o próximo nível escolar (Paro, 2007), cuja ênfase tem sido cada vez maior com o domínio dos enunciados neoliberais das últimas décadas, responde a enunciados que a situam no centro da possibilidade de mudanças políticas, sociais e econômicas (Freire, 1967). Ao mesmo tempo, espera-se que a escola propicie um ambiente seguro em que se possa desenvolver o espírito crítico, a capacidade de análise, desafiando-se as aparências fenomênicas.

A partir da promulgação da LDB e da instituição do planejamento pedagógico das escolas por meio dos chamados projetos político-pedagógicos, entrou em vigor uma lógica de eficiência do serviço público e desburocratização, com menor participação do Estado em todas as esferas governamentais. Tal corrente de modernização e profissionalização do serviço público acarretou também na busca pela excelência e pela qualidade do ensino nas escolas públicas com o menor desperdício possível dos recursos públicos, sucedendo a lógica anterior de preocupação com a universalização do ensino básico (Fonseca, 2003; Fonseca; Oliveira, 2009, Zanardini; Blum; Michelon, 2013).

As recentes políticas públicas demandam das organizações escolares maior racionalização e eficiência, de modo que houve um aumento na pressão por melhores indicadores de qualidade de ensino, como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - Ideb (Fonseca; Oliveira, 2009; Rodrigues; Solano, 2016).

Mediante tal contexto observa-se que as escolas públicas têm sido negligenciadas em investimentos públicos, condições tecnológicas, formação inclusiva, preparação cidadã e profissional, cenário este agravado pelas fragilidades sociais e desigualdades econômicas, vivenciado pelas crianças e adolescentes, e denunciado com frequência na mídia local, nacional e internacional. Necessário considerar, nesse sentido, o processo de desinvestimento na educação, e os investimentos pouco eficientes, como aponta Fraga (2018), em entrevista realizada com o diretor de investimentos educacionais da OCDE, Andreas Schleicher. Outro evento recente são os fechamentos de unidades educacionais em diversos estados brasileiros, comumente relacionado as medidas econômicas realizadas pelos entes federativos (Bringel; Oliveira, 2020).

Assim, neste artigo propõe-se a analisar os principais desafios de gestão enfrentados pelo corpo diretivo da escola estadual selecionada. Compreende-se aqui a gestão escolar em sentido amplo, que ultrapassa a compreensão mainstream da Administração. Ou seja, a proposta é identificar os principais conflitos, as principais tramas que se impõem como desafios aos gestores. Conhecer os desafios é fundamental para impulsionar mudanças, inclusive aquelas que a própria academia poderá iniciar, a partir da reflexão crescente sobre a urgência de maior impacto social da universidade em uma sociedade profundamente desigual e inequânime.

Gestão escolar

A gestão escolar é um meio para realizar objetivos e diretrizes educacionais, orientando ações educativas pensadas em sentido amplo, o que envolve também conceber a educação em seu sentido social e político. Dessa forma, embora abranja também a administração escolar, é mais ampla que esta última (Lück, 2002; Singh, 2016). A gestão escolar pode ser segmentada nas seguintes subáreas: gestão de pessoas; gestão pedagógica; gestão das condições de trabalho; gestão financeira (dourado, 2007; veiga, 2013). Essa subdivisão em áreas apresenta um caráter de delimitação de temas, já que na realidade concreta os desafios encontram-se bastante imbricados, trazendo elementos de diversas áreas, ao mesmo tempo.

A área de gestão de pessoas nas escolas públicas envolve a forma de ingresso dos servidores - professores e técnicos -, a avaliação de desempenho dos mesmos, visando a assegurar um alto desempenho e fundamentalmente o controle da subjetividade do trabalhador (Faria, 2017), servindo também como condicionante de sua progressão, e todo relacionamento entre os trabalhadores, alunos, pais, a forma de gestão estabelecida - eleição de diretores, comissões -e as políticas estabelecidas: valores compartilhados, práticas valorizadas.

Devido a divergências de ideias, ideais e concepções diversas, a instituição escolar precisa lidar com conflitos entre pessoas e seus interesses. Ainda no âmbito da gestão escolar pode-se adotar metas e objetivos conflitantes entre os envolvidos, o que tende a exigir a atenção e o consenso dos gestores e das equipes de trabalho (Veiga, 2013). A falta de regulamentação e clareza de aspectos ligados à gestão de pessoas tende a ampliar os conflitos no que se refere à distribuição de funções e promoção de incentivos. A alta rotatividade de funcionários e elevado número de faltas e afastamentos, aliada à lentidão do processo de reposição de trabalhadores tende a sobrecarregar aqueles em exercício, consistindo esses em aspectos geradores de desmotivação (Russo, 2009; Flach, 2012).

Em relação à gestão pedagógica o projeto político-pedagógico orienta o planejamento escolar, em conjunto com o Plano de Desenvolvimento da Educação, sendo o primeiro voltado para os desafios propriamente pedagógicos. No PPP deve-se abordar temas como o a proposta escolar, que inclui a pedagogia e a filosofia que a fundamenta, as formas de avaliação, a definição de o que e como se ensina; a formação dos professores, e a própria gestão administrativa (Oliveira; Fonseca; Toschi, 2005).

Já a gestão das condições de trabalho envolve a estrutura física da instituição escolar: estrutura elétrica, rede de gás, água e esgoto, sanitários, salas de aula, biblioteca, quadras de esporte, cozinha, sala dos professores, acesso para pessoas com deficiência; recursos e materiais disponíveis: acesso a materiais escolares e de estudo, à tecnologia da informação; condições de limpeza, higiene e segurança ofertadas aos trabalhadores e aos demais usuários da escola. Envolve também o salário e a carga horária de trabalho dos professores, o respeito aos horários de pausa, o acesso à alimentação, a um ambiente seguro, acolhedor e livre de violência. Pesquisas apontam que as condições de trabalho afetam diretamente o fazer do trabalhador e inclusive o rendimento dos estudantes (Franco; Bonamino, 2005).

Embora o país seja um dos que proporcionalmente mais investe em educação - 5,2% do PIB em 2016 - a realidade da educação pública, especialmente as condições de trabalho e os resultados - altas taxas de evasão, reprovações e baixo rendimento acadêmico - deixam a desejar, podendo-se problematizar a qualidade dos investimentos e a forma de gestão dos recursos. Outro aspecto relevante em relação à gestão financeira é o processo de descentralização do financiamento da educação, que teve início a partir de 1995, com vistas a atribuir maior autonomia à gestão local. Não obstante, as escolas ainda enfrentam excesso de burocracia para a execução dos recursos, o que dificulta a gestão democrática e autônoma (Russo, 2009; Flach, 2012).

Estratégias de pesquisa

Diante da importância que os enunciados depositam à educação para a formação de uma sociedade justa, livre, cidadã e igualitária, e das reconhecidas dificuldades que as escolas estaduais enfrentam, o presente artigo faz uma discussão teórico-empírica referente aos desafios de gestão enunciados em uma escola pública na cidade de Curitiba/PR.

Como técnica de coleta de dados foram realizadas observações e entrevistas dialogadas. Foram realizadas três entrevistas abertas, sem roteiro previamente definido, sendo que as entrevistadas ocupavam os cargos de diretora geral, diretora auxiliar e pedagoga. A questão norteadora das entrevistas foi a indagação sobre os principais desafios de gestão enfrentados. A cada entrevista foi realizada uma observação participante de cerca de duas a três horas, sendo essa observação realizada antes ou depois das entrevistas, conforme a disponibilidade dos profissionais entrevistados. A observação participante envolveu diversos momentos e espaços da rotina escolar: aulas de educação física no pátio da escola, aulas livres na quadra, conversas dos alunos com as pedagogas, participação em festa de despedida de uma das profissionais da escola, observação da estrutura física, da interação de professores com alunos fora da sala de aula, conversas das diretoras com alunos, pais e professores, dentre outros.

Adotou-se a perspectiva filosófica de linguagem do círculo de Bakhtin (2011). O autor destaca o caráter sócio-histórico da linguagem, assim como o papel do indivíduo como sujeito criador e ativo, mas também - ou por isso mesmo - discursivo, ou seja, histórico, situado em um contexto social, cultural e dialógico. Foi realizado estudo de caso, tal como proposto por Stake (2005). Entende-se que o estudo de um caso em particular deve ser feito considerando-se o contexto econômico, social e político em que está inserido.

Foi realizada a análise dos seguintes documentos: decreto n. 6.094, de 24 de abril de 2007, que dispõe sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação; nota técnica Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - Ideb; Guia prático da gestão escolar (2016) da Secretaria da Educação - Seed/PR. O guia envolve onze eixos, que envolvem alimentação escolar, comunicação, estrutura física e manutenção, gestão financeira, informações educacionais, recursos humanos, tecnologias educacionais, transporte escolar.

Existem, na cidade de Curitiba, 62 e duas escolas estaduais, que atendem a mais de 150.000 alunos matriculados, existindo ainda uma rede conveniada para educação especial de quarenta escolas que atendem a mais de seis mil alunos, conforme dados disponibilizados pelo sítio da Seed/PR.

A busca pela escola foi inicialmente realizada por meio do sítio da Seed/PR. A escolha do caso foi feita com base nos seguintes parâmetros: relevância da organização para o tema estudado; percepção do interesse dos gestores da escola no estudo proposto a partir dos contatos telefônicos; disponibilidade de agenda dos gestores para conceder entrevistas relativamente longas: aproximadamente uma hora de duração cada uma; horário de funcionamento da escola, que inclui os três turnos, o que poderia trazer elementos interessantes de análise e informações relevantes referentes ao seu funcionamento e acessibilidade.

A escola escolhida é localizada em um dos principais bairros na zona Sul da cidade de Curitiba/PR e o horário de seu funcionamento é das 7h às 22h30. A escola foi criada no final da década de 1950. No período noturno a escola oferta a modalidade de educação de jovens e adultos fase II, ensino fundamental, e ensino médio.

Ao longo da pesquisa, buscamos não tomar a realidade imediata como a realidade em si mesma, conforme alerta Faria (2015). Ainda, em sintonia com a análise bakhtiniana adotada, estivemos atentos às contradições, às vozes silenciadas, às reificações, à sujeição dos sujeitos, aos posicionamentos singulares por eles adotados, às políticas públicas de educação e à forma como estas respondem e reificam determinados enunciados já em evidência (Magnin, 2014).

Na perspectiva de Bakhtin a voz representa a forma de um grupo posicionar-se, seja numa política pública, um plano de capacitação, uma prática educativa. A voz de um grupo social pode estar representada na arena de vozes ou silenciada por outra voz, que ascende como única, verdadeira, monovalente, naturalizada em relação a outras. A filosofia discursiva de Bakhtin entende os enunciados como práticas de produção de sentidos, de subjetividades. Nessa concepção ocorre o que se denomina choque de enunciados, os quais instauram práticas discursivas (Bakhtin, 2011; 2012).

Resultados e discussão

A partir dos depoimentos estruturou-se três eixos temáticos para a interpretação e exposição dos resultados, a partir de enunciados emblemáticos selecionados:

Em cada um dos eixos foi considerado o contexto mais amplo no qual a escola está inserida, o que envolve as políticas públicas de educação. Assim, ainda que se tenha utilizado o estudo de caso, a análise não ficou restrita à escola escolhida, pois entende-se que a instituição escolar não pode ser estudada isolada de seu contexto. Os enunciados referem-se sempre a determinado contexto (Bakhtin, 2011) econômico, social, histórico, político, que é articulado internacionalmente, e que interfere nas decisões e políticas nacionais, estaduais e locais.

Por outro lado estudos apontam o tédio crônico na sala de aula como um sintoma emblemático de repetidos equívocos no âmbito educacional. Alguns culpabilizam a falta da utilização de recursos tecnológicos, outros as aulas maçantes e o distanciamento da realidade dos alunos. Uma análise mais abrangente do cenário educacional brasileiro, porém, mostra que essa concepção finalística em relação à educação não é apenas compartilhada pelos alunos e suas famílias, mas pelas próprias políticas de educação brasileiras. Interessa ter as crianças e jovens matriculados na escola - fora das ruas -, e a apresentação de bons índices para serem divulgados internacionalmente (Libâneo, 2012). Por meio do decreto n. 6.094/2007, que visa a “mobilização social pela melhoria da qualidade da educação básica” (Brasil, 2007), foi oficializado o Índice de desenvolvimento da Educação Básica - Ideb - que no artigo 3º estipula a forma como a qualidade da educação básica será mensurada:

A qualidade da educação básica será aferida, objetivamente, com base no Ideb, calculado e divulgado periodicamente pelo Inep, a partir dos dados sobre rendimento escolar, combinados com o desempenho dos alunos, constantes do censo escolar e do Sistema de Avaliação da Educação Básica - Saeb -, composto pela Avaliação Nacional da Educação Básica - Aneb - e a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar - Prova Brasil. (Brasil, 2007)

O decreto prevê, no parágrafo único do artigo 3º que “o Ideb será o indicador objetivo para a verificação do cumprimento de metas fixadas no termo de adesão ao compromisso” (Brasil, 2007). Nota-se a ênfase do documento pela mensuração de resultados de forma objetiva. De acordo com a nota técnica Índice de desenvolvimento da Educação Básica - Ideb, o índice é resultado do produto entre o desempenho e o rendimento escolar. O desempenho refere-se à nota média dos alunos nas disciplinas de língua portuguesa e matemática, enquanto que o rendimento escolar se refere ao tempo médio de conclusão de uma série. Segundo a nota técnica um sistema educacional que reprova sistematicamente seus estudantes, fazendo com que grande parte deles abandone a escola antes de completar a educação básica, não é desejável.

Pela análise do texto, tomado como enunciado, observa-se que o abandono escolar estaria, nessa visão, diretamente ligado à reprovação sistemática. O aluno abandona a escola apenas porque reprova? Quais são os outros fatores que são silenciados quando se aponta a reprovação como a grande vilã de um ensino desejável? Será que aluno poderia abandonar a escola porque precisa trabalhar para ajudar a família, ou porque não se sente motivado, ou porque sua percepção da aprendizagem é insignificante?

Com a implantação desse índice a escola se torna corresponsável pelas faltas, pelas taxas de abandono e inclusive pelas notas de seus alunos. Atrelar o índice de faltas e abandono escolar à nota da escola a qual o aluno estava matriculado é atribuir à escola a responsabilidade de retenção dos alunos, conforme aponta o grupo gestor e os documentos analisados.

Essa tese vai ao encontro da análise de Patto (2007) de que a escola está sendo concebida como uma instituição salvadora, cuja função seria afastar os jovens e crianças das ruas, reduzir a criminalidade, ensinar os bons costumes. Isso pode ser evidenciado na escola em questão pela implantação do Projeto valores, que tem como principal objetivo resgatar valores e princípios, como o respeito, e diminuir os índices de violência, o envolvimento dos alunos em brigas, entre outros. Após a implantação do projeto valores, que trabalha com ações de conscientização, afirmou-se ter sido reduzido o número de brigas entre grupos de alunos.

O projeto envolve atribuir parte da nota do aluno em cada uma das matérias a requisitos comportamentais, de modo que o aluno que se envolve em brigas tem sua nota reduzida em todas as matérias. O Projeto valores é motivo de orgulho para o corpo diretor da escola, que afirma que problemas de brigas e violência reduziram bastante após a sua implementação. Fica claro como a política pública de educação adotada pelo governo incentiva formas específicas de subjetividade, atuação e posicionamentos objetivos, implementação de programas e projetos locais que busquem responder - obediente ou criticamente - às demandas instauradas pela política pública.

Nesse mesmo sentido, foi também implementado na escola o Projeto leitura, que envolve o direcionamento de vinte minutos por dia para que todos os alunos e funcionários da escola parem suas atividades para ler um livro de sua preferência. Com isso a escola visa incentivar o hábito de leitura e reduzir a violência.

Outro ponto a ser discutido, que se relaciona ao ‘fazer o melhor do pior’, é o próprio falseamento de resultados que o próprio sistema de avaliação incitaria, em sua avaliação objetiva. Segundo as entrevistadas existe pressão externa e interna para que a escola fique bem classificada no índice, já que o mesmo funciona como uma espécie de vitrine da escola, pois é a forma como a escola será vista perante a comunidade, perante o governo, e perante os próprios funcionários e professores. Assim, se for possível evitar uma reprovação por faltas, ou por notas insuficientes, a escola o fará. Desse modo, as notas, mais que servir como referência aos alunos, servem a um índice pelo qual a própria escola é avaliada.

Na escola estudada as diretoras são também pedagogas e enfocam os problemas principalmente comportamentais, e, quando muito, pedagógicos e educacionais. A preocupação com planejamento estratégico, gestão financeira, gestão de pessoas parece ser mínima frente aos problemas sociais, comportamentais e operacionais enfrentados cotidianamente pelo grupo diretivo. Uma das diretoras entrevistadas enunciou a fala de um dos alunos da escola, que em uma discussão que envolvia aspectos comportamentais e falta de respeito teria afirmado: ‘eu não respeito a minha mãe, vou respeitar o professor’?

Na escola foi ainda constatada a individualização da violência pelo grupo gestor: “Às vezes é imaturidade, tem o meio social, o grupo os transforma. Mas é um, dois alunos que tem esse comportamento, e influenciam os outros”. Percebe-se que mesmo os próprios profissionais que dirigem a escola, apesar de ocuparem-se com muita frequência de problemas sociais, por vezes situam a violência como um problema individual de um, dois alunos.

Fazer o melhor do pior envolve também a escola atuar como um agente multitarefas: a escola deve gerenciar seu dinheiro, fazer as compras de materiais permanentes e de consumo, ser inovadora e criativa nos cardápios das merendas com reduzidas opções de alimentos de baixo custo, apresentar bons índices, trabalhar a favor da redução das taxas de faltas e de abandono da escola, reduzir os índices de violência, vigiar o tráfico de drogas, fomentar valores, motivar professores mal pagos e estressados, e, quando possível, ensinar.

Evidencia-se que a escola pública recebe um público determinado, marginalizado, excluído socialmente na perspectiva do acolhimento social (Patto, 2007, Libâneo, 2012). Vale ressaltar que o usuário da escola estadual pública é, na grande maioria das vezes, aquele que provém de uma família que não pode pagar por uma educação de qualidade. A falha na proposta constitucional de oferecer uma educação pública, gratuita e de qualidade afeta uma parcela específica da população.

De fato, a escola reflete e retrata políticas públicas de educação que tendem a reforçar enunciados já em evidência, e desprezar outros. A adoção de determinadas políticas públicas não se dá ao acaso, mas são propostas na medida em que são convenientes e servem a produzir determinadas formas de subjetivação, conforme apontam estudiosos de Bakhtin (Machado; Pan, 2012; 2014).

Conclusões

A Constituição Federal de 1988 e a LDB asseguraram a educação de qualidade enquanto direito de todo cidadão. No entanto, a garantia do direito no país, enquanto prática social, necessita ainda percorrer um longo caminho. Note-se que a educação de qualidade não pode prescindir de priorização de investimentos, recursos e de uma gestão adequada. Os problemas da educação básica pública no país, embora diretamente afetem apenas a parcela desprivilegiada da população, está formando cidadãos com qualificação insuficiente, resignados e pouco críticos. A escola enquanto instituição de acolhimento social e de minimização de problemas sociais que não são enfrentados em outras esferas, tem atingindo seu objetivo? Que desafios os gestores enfrentam no seu cotidiano e de que forma eles comprometem o propósito e a qualidade educacional? Verificou-se que, de fato, o quadro diretivo da escola partilha de acentuada preocupação social e pedagógica, ao atuar também como instituição de acolhimento social, mas as dificuldades de gestão têm limitado significativamente a dedicação dos dirigentes à implementação de estratégias de gestão com foco na qualidade do ensino.

Neste cenário as principais dificuldades identificadas foram relativas às condições desumanas de trabalho, à cultura do fazer ‘o mínimo’ associado ao ‘máximo resultado’, com ênfase sobre o produtivismo, a busca por resultados aliada ao seu falseamento nas mais diversas esferas - políticas públicas, índice Ibeb, posicionamento de pais e alunos -, e a estratégia administrativa de tentar fazer o melhor com o que se tem disponível para as atividades administrativas e pedagógicas.

Deste contexto tem emergido inúmeras dificuldades específicas que comprometem o tempo e a energia dos gestores que deveriam e gostariam de centrar esforços nas melhorias destas organizações. Neste cenário cabe uma reflexão de todos os agentes da sociedade: formuladores de políticas públicas, gestores municipais e estaduais, pais de alunos, profissionais de outras áreas. Se a realidade das organizações públicas educacionais traz consequências para toda a sociedade, cabe questionar como cada segmento poderia intervir de forma a contribuir na superação das dificuldades encontradas nessas organizações.

Este estudo não está isento de limitações. Entre elas, pode-se citar a adoção da filosofia da linguagem de Bakhtin como estratégia de análise. Esta adoção exige um estudo situado sócio-historicamente, a articulação com leituras críticas, a leitura de documentos enquanto enunciados, a análise dos próprios enunciados aos quais aqueles respondem, a contraposição histórica para a identificação, seleção e exposição de vozes silenciadas e a construção de um espaço de posicionamento e autoria do pesquisador que exige ser constantemente amadurecido e refinado. Ou seja, trata-se de um posicionamento que ao mesmo tempo em que pode ser lido como uma limitação - enquanto perspectiva específica elaborada a partir de múltiplos enunciados.

Tendo em vista o objetivo principal da pesquisa, as entrevistas foram realizadas apenas com o grupo gestor, ou seja, obteve-se a manifestação de um grupo específico que está à frente da instituição. Não foram ouvidos nesta pesquisa outros grupos, mais distantes da esfera de decisão, como as auxiliares de limpeza, as pessoas que cumprem pena alternativa na escola, os alunos considerados violentos, os professores contratados em regime de processo seletivo simplificado, entre tantos outros grupos que vivem o cotidiano escolar e que poderiam contribuir para a construção de uma arena mais polifônica.

Destas limitações emergem novas possibilidades de estudos futuros, por meio de pesquisas sobre gestão de organizações educacionais que visem a auxiliar os grupos gestores das escolas a enfrentar seus desafios, considerando-se os desafios pedagógicos e a realidade cotidiana das escolas. Na dimensão prática este estudo contribui com reflexões para os gestores das escolas e para os pesquisadores sobre novos caminhos necessários para a construção conjunta de soluções. As entrevistadas demonstraram descrença com programas de capacitação do governo que delegam à escola a formação continuada de seus professores por meio de temas e pacotes prontos, que não atendem aos interesses e muito menos às necessidades dos profissionais da educação.

Em suma, as políticas públicas de educação e a gestão escolar devem realizar a escuta daqueles que enfrentam e fazem a gestão diária das escolas, lidando com dilemas práticos e vidas reais, que exigem soluções imediatas. Pacotes prontos, apartados da realidade das escolas, que vêm ensinar, à distância, como se faz a gestão escolar, causam revolta e indignação aos trabalhadores que a enfrentam diariamente. Para atuar no sentido da efetiva melhora da qualidade do ensino, as políticas públicas e os projetos delas decorrentes devem ser concebidos a partir da reflexão sobre o processo educacional, secundarizando a ênfase sobre a forma de apresentação dos resultados, ainda que os modelos atuais de avaliação de políticas, programas de pós-graduação e inclusive pesquisadores valorizem apenas certas produções.

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