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Missão Paz: Lugar de Hospitalidade e Acolhimento aos I-Migrantes na Cidade de São Paulo, SP
Missão Paz: Place of Hospitality and Welcoming to Immigrants in São Paulo, SP.
Missão Paz: Lugar de Hospitalidade e Acolhimento aos I-Migrantes na Cidade de São Paulo, SP
Rosa dos Ventos, vol. 8, núm. 3, pp. 256-273, 2016
Universidade de Caxias do Sul
Recepção: 11 Maio 2016
Aprovação: 27 Junho 2016
Resumo: O tema da mobilidade humana tem sido estudado à luz de diferentes áreas do conhecimento, como o Direito, a Sociologia, a História, entre outras, e também em diferentes contextos nacionais e internacionais, em períodos distintos. O objetivo deste trabalho é compreender a atuação da Missão Paz (MP) como lugar de hospitalidade na cidade de São Paulo e analisar suas vertentes nas atividades relacionadas a inserção econômica, social e cultural do i-migrante na sociedade de acolhimento. De natureza qualitativa, a metodologia fundamenta-se no estudo bibliográfico e documental, apoiando-se em entrevistas com os acolhidos, funcionários e padres da MP. Como resultado dessa pesquisa, destaca-se que no período de 2004 a 2014 a MP atendeu 65.387 i-migrantes, provenientes, sobretudo, da América do Sul, cujo contingente mais expressivo provém, principalmente, da Bolívia. Por meio de entrevistas analisou-se a representação dos i-migrantes acolhidos - pela MP, resultando na assertiva de que para eles a instituição funcionou como lugar de hospitalidade, atuando de forma positiva na sua adaptação na sociedade de acolhimento.
Palavras-chave: Hospitalidade, Lugar de hospitalidad, Imigração, Missão Paz, São Paulo, SP.
Abstract: The subject of human mobility has been studied in the light of different areas of knowledge, such as Law, Sociology, and History, among others, as well as in different national and international contexts, in distinct periods. The objective of this study is to describe the role of Missão Paz (MP) as a place of hospitality in the city of São Paulo and to analyze its branches activities related to economic, social and cultural integration of the im-migrant in the host society. The qualitative research methodology used is based on the bibliographical and documentary study, relying on interviews with those who were hosted, with the employees and the priests of MP. This research results showed that from 2004 to 2014 MP assisted 65,387 im-migrants originated mostly from South America, and whose most significant contingent comes principally from Bolivia. The representation of the im-migrants hosted by MP was analyzed through interviews, resulting in the assertion that for them the institution functioned as a place of hospitality, acting positively in their adaptation in the host society.
Keywords: Hospitality, Place of hospitality, Immigration, Missão Paz, São Paulo, SP, Brazil.
INTRODUÇÃO
“Para o migrante, a Pátria é a terra que lhe dá o pão.”
João Batista Scalabrini
No momento atual, em que o mundo se depara com um movimento migratório intenso, gerado pelos mais diversos motivos, há a mobilização de órgãos, organismos e sociedade civil no Brasil e na comunidade internacional, no intuito de compreender o impacto e as consequências decorrentes das migrações forçadas, bem como a vulnerabilidade humana resultante dessas migrações em razão das especificidades dos países de origem. Esses estrangeiros vêm de longe, não conhecem os costumes locais, são diferentes e estranhos. Nesse contexto se insere a hospitalidade, no direito de ser recebido sem hostilidade, propalado por Kant no século XVIII (Dencker, 2013). Ao ser amparado e ter preservada sua identidade, originalidade, singularidade e especificidades, estabelece-se uma relação de alteridade e de hospitalidade (Grinover, 2014; Gotman, 1997).
Quando o i-migrante4 adentra uma nova cidade ou país, há necessidade de acolhimento e de ajuda na sua adaptação. Nesse sentido, as instituições voltadas a essa causa buscam compreender as leis e os motivos da i-migração, bem como os fluxos migratórios e o perfil dos i-migrantes e, dessa maneira, colaborar de forma eficaz na recepção, acolhimento, hospedagem, adaptação e integração desses indivíduos no país receptor. A Missão Paz (MP) é uma instituição Católica Apostólica Romana, situada no bairro do Glicério, na cidade de São Paulo, SP, pertencente à Congregação dos Scalabrinianos, que tem por objetivo atuar na causa dos i-migrantes e minimizar os problemas de adaptação e inserção na nova cidade. Com capacidade para atender até seis mil pessoas ao mês, a MP conta com assistência jurídica e social, cursos profissionalizantes e de idioma, regularização de documentos, assistência psicológica e de saúde, apoio na inserção no mercado de trabalho, incentivo da identidade cultural e, para aqueles que são católicos, oferece assistência religiosa. Sua edificação ainda conta com a Casa do Migrante (CM) e com a Igreja Nossa Senhora da Paz.
Compreender a atuação da Missão Paz (MP) como lugar de hospitalidade na cidade de São Paulo constitui o objetivo geral do presente artigo. Para contemplá-lo foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos: analisar as vertentes da MP nas atividades relacionadas à inserção econômica, social e cultural do i-migrante na sociedade de acolhimento, traçar o perfil dos i-migrantes atendidos, investigar a atuação dos responsáveis pela MP como anfitriões e a interpretação das pessoas ali acolhidas acerca do papel da instituição e de suas vertentes para sua adaptação na cidade. Nesse sentido, o corpus documental é composto por entrevistas realizadas com os responsáveis por cada uma das vertentes da MP, bem como com os imigrantes, além da análise de suas fichas de atendimento na instituição.
O artigo se divide em sete partes, incluída esta introdução. Conceitua hospitalidade, ao que é seguido por uma abordagem das modalidades de imigração e refúgio. Discorre sobre a Missão Paz e caracteriza as suas vertentes. Estabelece o perfil dos i-migrantes atendidos na MP, aborda a hospitalidade mediante a perspectiva dos que acolhem, dos que são acolhidos e finaliza-o a conclusão.
HOSPITALIDADE
A manutenção das relações e vínculos sociais em uma sociedade na qual a cordialidade, a sociabilidade e o apaziguamento foram preteridos na medida em que as relações capitalistas e do individualismo se fortaleceram, constitui um desafio. Acontecimento ético por excelência (Baptista, 2002), a hospitalidade se inicia com um ritual. Envolve ao menos duas partes, o ‘eu’ e o ‘outro’, e resulta no movimento cíclico de manutenção das relações sociais, onde cada ser humano atua em diferentes papéis: ora como doador ou anfitrião, ora como receptor ou hóspede.
Uma série de deveres fundamenta essa relação, estabelecida a partir da generosidade, abertura e disposição favorável para receber. Ao receber, o anfitrião, dono do espaço, recebe aquele que está de passagem, o hóspede, e permite que esse penetre o espaço geográfico, numa relação social assimétrica5. Acolhimento e solidariedade constituem dimensões da hospitalidade ativadas na relação que se estabelece entre ambos e, ao ser reconhecido na sua individualidade se estabelece uma relação de alteridade. Gesto de compensação, também envolve dispositivos legais de seleção e de controle, acolhimento e instalação na nova sociedade ao ser transposta para a situação urbana (Innerarity, 2008; Raffestin, 1997; Baptista, 2008; Grassi, 2011; Gotman, 1997).
Camargo (2005) salienta que toda ação de hospitalidade se inicia com uma dádiva, porém nem sempre a dádiva se insere na hospitalidade. A dádiva traz implícito algum interesse, que, de acordo com Godbout (1998), é um ‘interesse desinteressado’. Deve ser recebida e aceita, “sendo um insulto recusar um presente, uma honraria ou uma lembrança” (Camargo, 2005, p. 23) e, por fim, aquele que recebe deve retribuir, reinstaurando a dádiva. A dádiva perpassa relações estabelecidas entre amigos, vizinhos, parentes e pessoas que se vinculam, apresenta-se de diferentes formas, de um presente propriamente dito a um presente imaterial, como uma palavra, uma notícia ou uma carta (Godbout, 1998).
Marcel Mauss (1974), no ensaio sobre a dádiva, publicado originalmente em 1923 sob o título Essai sur le Don, investigou o sistema de trocas muito antes da existência da moeda e das questões mercadológicas. Nas sociedades do Pacífico e do noroeste da América do Norte, Mauss (1974) observou a prática de todo tipo de troca com prestações e contraprestações, caracterizada por ofertas espontâneas e gratuitas, mas também oportunistas e obrigatórias, revelando o acordo entre as partes movido exclusivamente por conceitos éticos. O vínculo é mantido mediante estabelecimento de alianças, responsável por manter o ser humano em sociedade seja no âmbito familiar, afetivo, matrimonial, econômico, jurídico ou qualquer outro motivo que mantenha a união entre partes distintas (Salles, Bueno & Bastos, 2010). Essas alianças que estruturam as relações humanas são as responsáveis por dissipar as fronteiras de diversas ordens, minimizando as contradições impostas pela sociedade contemporânea. A retribuição a uma dádiva inicial gera um processo contínuo de dádivas e contradádivas, e a perpetuidade da relação se mantém enquanto nenhuma das partes se descompromete da retribuição (Camargo, 2005).
Similar ao nascimento, a dádiva desencadeia emoções em virtude da participação em algo que ultrapassa a ordem material, conecta-se à vida, rompe a solidão e propicia o sentimento de pertencimento a algo mais vasto, à humanidade (Godbout, 1998). Nesse contexto, descortina-se a reflexão sobre a dádiva destinada ao desconhecido, ao diferente, em que a perpetuação da tríplice obrigação de dar, receber e retribuir pode não acontecer, ou seja, constitui-se unilateral e finita. Na concepção de Godbout (1999), não é a característica do retorno que define a dádiva, pois há a esfera da dádiva unilateral e não recíproca a desconhecidos, exemplificada pela doação de sangue e de órgãos, presentes às crianças, na beneficência, às heranças em que um herdeiro é um simples canal de transmissão etc. Aspecto que também pode ser estendido com relação aos imigrantes, refugiados e apátridas, visto que a circulação da dádiva cria um estado psicológico diferenciado para o doador, uma vez que sua recompensa não está na retribuição daquele que recebeu a dádiva, e sim no prazer irrestrito, na experiência única de fazer parte de um ato de acolhimento
O desconhecido ou estrangeiro normalmente causa temor e desconfiança, sendo aceito com reservas na sociedade de acolhimento (Raffestin, 1997). A simples transposição da fronteira física constitui o início do processo, visto que a hospitalidade é permeada por normas morais, que delimitam uma espécie de fronteira imaterial fundamentada em valores e códigos, bem como por um ritual. O convívio se estabelece quando o desconhecido ou estrangeiro é ‘interpretado’ a partir do sistema de valores e códigos vigentes na sociedade de acolhimento e aceito, ao passo que sua rejeição resulta em conflito, o que aponta para o aspecto regulador da hospitalidade. O autor argumenta que a hospitalidade possui uma sintaxe social que articula o conhecido e o desconhecido por meio de mecanismo dialético; trata-se de uma ponte entre os dois mundos, frágil, segundo Grassi (2011), seu principal desafio constitui em adentrar e ser admitido no território.
Permitir o ingresso, facultar o acolhimento, refugiar, alimentar e confortar constituem características dos lugares de hospitalidade. Trata-se de “lugares de urbanidade, de cortesia cívica, de responsabilidade e de bondade. São lugares nossos que convidam à entrada do outro” (Baptista, 2008, p. 6), lugares de contato e de aproximação respeitosa segundo. Nesse sentido, à transposição do espaço geográfico segue-se uma potencial relação de alteridade, bem como a ultrapassagem das fronteiras imateriais (Baptista, 2002). Em virtude de suas características, esse conceito de lugar de hospitalidade fundamenta a análise da Missão Paz, como se verá adiante.
SERES HUMANOS EM MOVIMENTO
Ao se deslocarem, os seres humanos deslocam consigo suas raízes, movimentam tradições, costumes, idiomas e história; movem a sociedade, o poder público, mas acima de tudo, suas esperanças e expectativas. Esse ir e vir de pessoas em busca de uma vida melhor, fugindo de situações ameaçadoras, explícitas ou implícitas, existe desde os primórdios da humanidade, pois os seres humanos de então eram nômades e, assim sendo, quando os recursos naturais se esgotavam, migravam em busca de alimento para garantir a preservação do grupo. Esse movimento se repete até os dias atuais: quando o ‘aqui’ não está a contento, existe a possibilidade de encontrar ‘lá’ algo que favoreça e preserve a vida. A humanidade passou de nômade a sedentária, aprendeu a cultivar seus alimentos, estabeleceu-se, mas ainda hoje tem como principal característica a busca por melhores condições de sobrevivência.
O tema dos imigrantes e refugiados ganhou visibilidade em virtude da crescente preocupação com esse grande contingente de pessoas que migram sem que se estabeleçam leis migratórias eficazes e globais. Os motivos nem sempre são os mesmos, acompanham a evolução da espécie humana e são reflexo dos acontecimentos mundiais de grande ou pequeno porte, em que o foco é melhorar as condições de sobrevivência, segurança e também propiciar ascensão econômica, cultural e social.
Zamberlam (2004) diz que dois fenômenos têm marcado a nova ordem mundial em direção ao terceiro milênio: a globalização, vista sempre positivamente, e a imigração, geralmente associada ao incômodo, vista de forma negativa, que pode e deve ser combatida. Nesse contexto, leis regulamentam e disciplinam os fluxos migratórios, impondo-lhes condições, limites ou aprofundam o processo de sua exclusão. Derrida (2001) discorre sobre o direito do estrangeiro de adentrar outro país, salientando que o país receptor pode rejeitá-lo, mas, enquanto o estrangeiro se mantiver pacificamente no seu lugar, não se pode abordá-lo como inimigo. A imigração corresponde ao deslocamento espontâneo de indivíduos para fora de seu país de residência ou nacionalidade, rumo a um novo país. O seu retorno à sociedade de origem é voluntário, visto que nada o impede de voltar, pois não saiu por ter sido expulso ou perseguido.
Há uma tendência cultural do ser humano de busca por uma progressiva ascensão, e esses fenômenos migratórios fazem parte dessa busca. Sayad (2001) aponta que a diversidade das migrações no contexto contemporâneo exige diferentes olhares, pois, além do deslocamento no espaço geográfico, há também alterações nos espaços sociais, políticos, econômicos e culturais. Para Marinucci e Milesi (2005), esse fenômeno migratório atual tornou-se complexo devido à intensidade e à diversificação das causas que o originam.
Cruzar fronteiras tornou-se um ato comum e espontâneo no mundo contemporâneo, em razão das múltiplas opções de mobilidade colocadas a disposição dos viajantes. Entretanto, há uma grande diferença entre aqueles que o fazem na condição de turista e os que migram em busca de uma vida melhor, enfrentando barreiras jurídicas, exploração de sua mão de obra, discriminação, entre outros desafios. (Silva, 2005, p. 1)
Vale destacar que as barreiras jurídicas são permeadas por conveniências do país receptor, que age de acordo com suas necessidades, sendo esse o diferencial que estabelece leis permissivas e proibitivas na abertura de suas fronteiras. A entrada de estrangeiros gera um paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que gera crescimento econômico, também acarreta despesas oriundas de bens e serviços prestados a esses indivíduos. Gotman (1997) nota que o Estado não pode ser completamente proibitivo, pois a circulação dos indivíduos é uma necessidade que está relacionada ao crescimento urbano, que demanda mão de obra, e esta pode ser trazida de fora.
As migrações se caracterizam como: forçada, no caso de ocorrer contrariamente à vontade do indivíduo; clandestina, quando o indivíduo adentra ilegalmente o país receptor, sem permissão; e ainda social, gerada pela desigualdade de classes, quando a qualidade de vida do indivíduo fica comprometida, e este considera perdida sua identidade e também seus direitos de cidadão (Zamberlam, 2004). Mesmo no caso em que a migração seja forçada, ela acontece pela vontade do indivíduo, em consequência do momento de desagrado vivenciado no país de sua nacionalidade, pois, caso contrário, se fosse forçado a sair devido a represálias, ele seria caracterizado como refugiado e se enquadraria em outra legislação.
As migrações em massa são, em sua maioria, consequência de acontecimentos em proporções relevantes, como guerras, conflitos, crises políticas ou econômicas e desajustes nos paradigmas, porém, seja qual for o motivo, a adaptação no novo país é marcada por um processo de readaptação nem sempre acolhedor. É preciso quebrar o paradigma de olhar o estrangeiro como uma ameaça incômoda e inoportuna, mas explorá-lo como fonte de ampliação da cultura, da alimentação, da riqueza de sua vivência, traz algo de si e absorve a nova cultura, numa troca simbiótica de valores culturais, sociais e éticos.
Refúgio - Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados [ACNUR], a guerra civil na Síria, que teve início em março de 2011, resultou num contingente de mais de três milhões de refugiados e mais de quatro milhões de migrantes internos, numa situação caótica, ganhando visibilidade no Brasil e no mundo por reviver as tensões da Guerra Fria (ACNUR, 2014).
O refúgio já existia na Grécia Antiga, em Roma, no Egito e na Mesopotâmia, porém, naquela época, o termo não era utilizado; aqueles que sofriam perseguições religiosas eram acolhidos e protegidos nos templos (Barreto, 2010). Jubilut (2007) constata que o aparecimento dos refugiados foi registrado aproximadamente no século XV, mas que o foco desse aparecimento está no período entre as guerras Primeira e Segunda Guerra Mundial e no pós-Segunda Guerra; os milhões de refugiados frutos desses conflitos precisavam contar com a ajuda do Estado, pois não tinham lugar algum para retornar.
Para Moreira (2006) sempre há uma relação entre conflitos e refugiados; estes, em decorrência dos conflitos, são impulsionados a migrar para outros territórios. Percebe-se que a condição de refugiado não é desejada e nem agradável; trata-se de uma situação imposta, que implica sacrifícios, pois o refugiado é um ‘fugitivo’ de situações adversas e contrárias a sua vontade, vivenciadas em seu próprio país. Quando o refugiado chega ao país de sua escolha para pedir abrigo, deve-se ter em mente que ele deixou para trás tudo aquilo que compôs sua história: casa, parentes, amigos, cultura e tradições; ele chega devastado pelo processo de transição. Sua intenção não é apenas ser aceito e ultrapassar a fronteira, mas ser absorvido e reconhecido como cidadão, com a expectativa de um reinício que o liberte de tudo aquilo que o afligia.
Por outro lado, os países receptores, que aderiram à Convenção de 19516, encontram dificuldades em criar soluções inovadoras de recepção, habitação, trabalho e educação para a absorção daqueles que eles mesmos permitem que os adentrem. Ademais, não basta reconhecer um migrante como refugiado se não incentivar a prática de inclusão desse indivíduo, estimulando medidas que proporcionem o seu recomeço e o reconhecimento como igual. Gotman (1997) nota que permitir a entrada do outro é apenas o início da relação de alteridade, mas, para se dar em continuidade, é necessário ampliar essa relação com acompanhamento, leis, estudo, verba e outros mecanismos capazes de facilitar sua instalação e permanência no país, baseado numa política de valores éticos. No mais, o respeito à diversidade de ideias, valores e soluções para minimizar os problemas enfrentados por esse grupo vulnerável de pessoas, necessitam-se da mobilização e do empenho do poder público, das entidades filantrópicas, das ONGs e da sociedade civil.
A MISSÃO PAZ
As informações aqui contidas sobre a MP e suas vertentes foram sistematizadas a partir de entrevistas realizadas com o gerente financeiro, Sr. Sérgio Luiz Silveira (2014), com os padres Alejandro Cifuentes, Antenor Dalla Vecchia, Luis Afonso E. Vargas e Paolo Parise (2015), e também com a assistente social da Casa do Migrante, Márcia Lourdes Araújo (2015). A Missão Paz (MP) é um complexo scalabriniano7 de integração e acolhimento aos i-migrantes, na busca em compreender sua origem e sua cultura, respeitando-os sempre no papel de protagonistas de suas histórias. De acordo com Parise (2015), o objetivo da MP é proporcionar o recomeço e a sensação de pertencimento aos i-migrantes na nova sociedade. Para equacionar esse objetivo é composta pelo Centro Pastoral de Mediação do Migrante [CPMM], a Casa do Migrante [CM], o Centro de Estudos Migratórios [CEM] e a Igreja Nossa Senhora da Paz. Cada uma dessas vertentes conta com suas especificidades no acolhimento e está organizada segundo suas atribuições (Figura 1).
Parise (2015) declarou que o “foco da MP consiste em viabilizar o acolhimento e a inserção econômica e social do deslocado, respeitando a diversidade de forma humanitária e abrangente”. Ao abordar a forma de hospitalidade nos centros de reinserção social, Roy (2011) nota que ser acolhido é um direito do indivíduo e uma obrigação da sociedade. Para Parise (2015), a participação do poder público como coadjuvante deve ser revista, pois se necessita de ajuda, mas ao mesmo tempo não se pode permitir o desvio de conduta e de princípios em prol de interesses políticos.
O Centro Pastoral de Mediação do Migrante [CPMM] nasceu da fusão entre o Centro Pastoral dos Migrantes e o Programa de Mediação do Migrante: “Há necessidade não somente de acolher, mas de ajudar o imigrante a recomeçar sua vida com dignidade” (Parise, 2015). Tendo como foco principal essa propulsão econômica, cultural e social do i-migrante, o CPMM é composto pelos eixos: trabalho, jurídico, saúde, comunidade e família e educação. Cada um desses eixos conta com atividades específicas em prol de uma causa comum: o acolhimento do i-migrante.
O CEM é um centro de estudos migratórios scalabrinianos integrado com diversos países, fundado em 1969. Realiza pesquisas que visam compreender os fenômenos migratórios, analisar os fluxos, suas populações, culturas e as características das imigrações. Presta serviços aos agentes que atuam junto aos migrantes, bem como a estudantes, pesquisadores e agentes sociais. Todas as divisões do CEM, com suas especificidades, busca um mesmo propósito: analisar, pesquisar, compreender e registrar as causas da imigração. Seus acervos documental, iconográfico, virtual e bibliográfico reúnem, em vários idiomas, revistas, documentos, fotografias, livros, artigos, dissertações e teses relacionadas à causa migratória. Integra-o também a Revista Travessia, publicada desde 1988, reúne artigos, entrevistas e dados relacionados à mobilidade humana.
A Casa do Migrante é uma casa de acolhimento ao deslocado, localizada no bairro do Glicério, no centro de São Paulo, conta com serviços diferenciados, abriga em média 100 i-migrantes por período, independentemente de gênero, idade e religiosidade, e tem capacidade máxima para até 110 pessoas. O período de permanência na casa é de aproximadamente 90 dias. Embora curto, esse período permeia a reorganização das ideias, o contato com o idioma, a alimentação, a cultura, os costumes e ainda conta com a assistência, proteção e o apoio dos eixos da Missão Paz, explorados adiante. Segundo Dalla Vecchia (2015), o principal objetivo da Casa do Migrante é que o migrante se sinta realmente acolhido e possa, nesse curto espaço de tempo, organizar suas ideias e se reestruturar; não se trata de um abrigo, mas de um local onde o migrante deve se sentir em casa e para onde deve retornar com alegria. Para que haja uma boa convivência, são estabelecidas regras no momento do ingresso, pois há deslocados de diversas etnias, e seus hábitos e costumes são distintos. Caso as regras não sejam respeitadas, o acolhido poderá sofrer o desligamento automático da casa. Se as faltas forem pequenas, o indivíduo será advertido, porém três faltas seguidas acarretam o desligamento automático.
A igreja Nossa Senhora da Paz representa a parte religiosa da MP. É composta pelas paróquias Latino-americanas, Italianos e Territorial Glicério; tem por objetivo a evangelização das diferentes nacionalidades a que atende. Suas quatro estruturas são: fé e cultura, pastorais, vida em comunidade e celebração religiosa. As pastorais se distribuem da seguinte forma: migrante [geral], latinos [coletividade], juventude, criança, dízimo, catequese, grupos de oração e grupo de ministros (Dalla Vecchia, 2015).
OS I-MIGRANTES E A MISSÃO PAZ
Para traçar o perfil das pessoas atendidas pela instituição durante o período de 2004 a 2014, recorreu-se ao banco de dados da MP. O banco de dados consolida as informações presentes nas fichas preenchidas pelos próprios i-migrantes, disponibilizadas no contato inicial nos seguintes idiomas: português, inglês, espanhol e francês. Para esta pesquisa, os principais dados utilizados foram o ano de ingresso no Brasil, a nacionalidade, a idade e o gênero. Apresentam-se a seguir, os resultados obtidos na pesquisa. Observam-se, no Gráfico 1, as diferentes nacionalidades que adentraram o Brasil e foram atendidas pela MP no período descrito. Salienta-se que o ano de 2014 foi o que obteve a maior diversidade de nacionalidades (68), seguido de 2010, com 63 diferentes nacionalidades, e 2013, com 57, ao passo que, em 2006, somente oito nacionalidades foram atendidas, representando o menor número do período. As nacionalidades encontram-se analisadas nos gráficos 10 e 11 e na tabela 2.
Durante o período 2004 a 2014, a MP realizou 65.387 atendimentos (Gráfico 2), número significativo, visto que a instituição não tem vínculo com o poder público e sobrevive dos recursos da Congregação dos Scalabrinianos, de convênios com empresas e de doações da sociedade civil. Com maior número de atendimentos, apontam-se os anos de 2010, com 18.879 pessoas, e 2009, com 14.332 pessoas. Essa dimensão numérica é atribuída, sobretudo, aos bolivianos, que somaram 15.989 em 2010 e 6.940 em 2009, a maioria constituída por imigrantes ilegais fugindo da crise política de seu país.
Parise (2015) aponta que, embora tenham chegado mais de 21 mil haitianos ao Brasil em 2013, a MP atendeu aproximadamente 10% desse total. Já em 2014, os atendimentos somaram 4.580 haitianos, que equivalem a mais da metade do total de pessoas assistidas naquele ano.
O gráfico 3 sistematiza os continentes relativos às nacionalidades das pessoas atendidas pela MP. A América do Sul representa 84% das pessoas atendidas durante o período analisado, fato atribuído às fronteiras permeáveis com o Brasil, além do momento político e econômico difícil que alguns países da América do Sul vêm atravessando. Muitos latino-americanos entram no Brasil ilegalmente e permanecem aqui de forma irregular. A América Central representa 13% dos atendimentos, salientando que esse número é composto principalmente de haitianos, que chegaram em maior número a partir de 2011. O continente africano representa 3% das pessoas atendidas, em todos os anos, mas os números mais representativos aparecem a partir de 2010, atingindo seu ápice em 2014, com 676 pessoas atendidas. Cada um dos demais continentes atingiu menos de 1% dos atendimentos. O continente asiático aparece timidamente a partir de 2007, e sua maior incidência também se deu em 2014, com ênfase nos atendimentos a sírios e paquistaneses. Quanto aos sírios, destaca-se que a guerra civil, iniciada em 2011, gerou uma onda massiva de migrações forçadas, que atinge de forma discreta o território brasileiro, mas vem ganhando destaque. A Europa aparece a partir de 2007, e se destaca em 2010, com 79 pessoas atendidas. A Eurásia aparece com 12 atendimentos ao longo do período, abrangendo especialmente russos, ucranianos e turcos. A Oceania, especificamente Fiji, aparece com um único atendimento, em 2013.
Quanto ao gênero, nota-se uma incidência maior de homens (41.753), representando 77% do total; as mulheres somam 20.930, correspondendo a 33% do total, ao passo que menos de 1% (224 pessoas) não identificou essa informação na ficha.
A HOSPITALIDADE E O ACOLHIMENTO NA MISSÃO PAZ
Para analisar a dinâmica de acolhimento entre a MP e o i-migrante, é de suma importância compreender a atuação dos responsáveis pela instituição no papel de anfitriões e a interpretação das pessoas ali acolhidas no papel de hóspedes, sendo esse um dos princípios da hospitalidade: “As leis da hospitalidade não abrangem, pois, apenas o anfitrião, mas também quem é recebido, ambos estão imbricados inseparavelmente na cena” (Camargo, 2005, p. 17).
Dos que acolhem - O Padre Paolo Parise é o responsável pela MP e diretor do CEM. De origem italiana, atua na MP desde o ano de 2010 e pertence à Congregação Scalabriniana, que está voltada aos imigrantes:
Eu pertenço a um grupo de missionários chamados scalabrinianos, que tem como carisma,8 como objetivo, a migração. Então, nós somos preparados para viver em várias partes do mundo e como missionários somos enviados a um dos 34 países onde atuamos. (Paolo Parise, 2015)
Para ele, uma das principais filosofias da MP é de não ser uma instituição assistencialista:
Não podemos cair no assistencialismo, não podemos tratar o outro como coitadinho, permitindo, assim, que ele seja protagonista de sua própria história, dialogando com o imigrante no mesmo nível. Aqui é uma acolhida integrada do imigrante para permitir que ele possa se inserir nesse novo ambiente. (Paolo Parise, 2015)
Padre Paolo Parise (2015) nota que “a maior dificuldade que enfrenta na MP é a falta de uma política migratória nacional, em todos os níveis, municipal, estadual e federal”, salientando que pequenos avanços foram feitos quanto a isso. O Padre Antenor Dalla Vecchia, pároco da Igreja Nossa Senhora da Paz e diretor da Casa do Migrante, nasceu no Sul do Brasil, na cidade de Anta Gorda, e está na MP desde 2011. Sua opção pela congregação se deu pela presença dos scalabrinianos na sua cidade, em virtude da presença dos imigrantes italianos, que chegaram à região no início do século passado. Para ele, existe unicidade entre a MP e a Casa do Migrante, não existe divisão, ambas se referem à prestação de diferentes tipos de serviços. Salienta ainda que a principal característica da MP e da Casa do Migrante é ter um olhar aberto para receber o outro:
Tem que ter o olhar aberto para que a acolhida se faça de fato, porque é essa a intenção, a gente não quer que seja um depósito de gente, não quer que seja chamado de abrigo. Nós queremos que seja realmente uma casa, onde a pessoa chega, se alimenta, onde possa dizer: cheguei em casa, em todos os aspectos. (Antenor Dalla Vecchia, 2015)
De origem mexicana, Alejandro Cifuentes está na instituição desde 2013. Natural da região de Guadalajara, conviveu com a imigração mexicana rumo aos Estados Unidos, inclusive metade de seus irmãos integraram essa imigração. O Padre Alejandro é o responsável pelo CPMM, e, segundo ele, essa vertente faz parte do “grande chapéu” que é a MP. Destaca que a maior necessidade é a de sensibilizar os funcionários e voluntários, para respeitarem a diversidade cultural e social de cada indivíduo:
Nós temos que pensar que cada pessoa é uma história, e cada pessoa carrega toda uma identidade, faz um caminho e às vezes está muito sensível, e nós precisamos pelo menos o mínimo de uma acolhida, uma acolhida mínima de que se sinta em casa quando chega aqui. Muitas das pessoas, muitos dos voluntários precisam ter também essa sensibilidade, saber que está tratando com pessoas, e que não são pessoas quaisquer, sendo que trazem uma bagagem cultural, social. (Alejandro Cifuentes, 2015)
De origem colombiana, o Padre Luis Afonso E. Vargas atua na MP desde o início de 2014. Trata a migração não como um problema, mas como uma realidade que necessita ser explorada de forma positiva.
[...] a migração não é um problema, é uma realidade, que é a riqueza e a cultura dos nossos povos. Nós fazemos memória e história a partir das migrações. Todos os nossos povos foram formados a partir das migrações, e a migração vai ser sempre dinâmica. O grande pecado da sociedade é muitas vezes o preconceito e a indiferença que marca e que afasta as pessoas.
[...] muito mais que trabalhar pelo migrante se trabalha com o migrante, dessa forma busca-se manter a identidade de cada um, mesmo a religiosa, primeiro porque vivemos num país laico, 9 segundo porque existem outras prioridades, e a parte religiosa é a última coisa que se trabalha na MP. (Luis Afonso E. Vargas, 2015)
Tal como aponta Montandon (2011), a primeira atitude do hospedeiro ou anfitrião deve ser a oferta de comida e bebida, porém não se reduz a isso; deve ser respaldada pela instauração de uma relação interpessoal e de valores de solidariedade, bem como o respeito a sua identidade, no que se inclui a religiosidade e cultura.
Dos acolhidos - A definição de acolhidos, nesse caso específico, refere-se àqueles indivíduos recebidos e atendidos pela MP ou acolhidos e alojados na CM no período de 2004 a 2014. O escopo das questões se deu da seguinte forma: nome, idade, nacionalidade, motivo da migração, quando chegou, por quanto tempo permaneceu e como se sentiu: acolhido ou apenas hospedado pela CM, se utilizou algum serviço ou eixo da MP e se o apoio recebido foi importante para sua adaptação no Brasil e na cidade de São Paulo.
Aceitaram conceder entrevista a peruana Nancy10, que passou pela instituição em 2003, e Adlin, um haitiano que ainda é morador da CM (2015). Embora o recorte temporal seja de 2004 a 2014, abriram-se essas duas exceções por entender que as entrevistas enriqueceriam os resultados e também pela dificuldade encontrada em localizar pessoas dispostas a compartilhar suas experiências. Essas entrevistas permitiram uma comparação quanto à evolução dos serviços oferecidos pela MP e das condições de hospedagem da CM. Os demais entrevistados foram acolhidos pela casa dentro da temporalidade estabelecida: João, refugiado proveniente da República do Congo (2012); Rozina, refugiada de Angola (2014); Muxima, refugiada de Angola (2014); e Glaza, refugiada da República Democrática do Congo (2014). O quadro 1 sistematiza o resultado das cinco primeiras perguntas da entrevista, que permitiram a identificação de cada um deles, em que constam: nome, nacionalidade, idade, situação e ano que morou na CM.
História de vida resumida - Imigrante peruana, de 44 anos de idade, Nancy está no Brasil desde 2003. Veio acompanhada de um irmão, e sua intenção era de ficar um ano no Brasil, reestabelecendo-se de uma extrema tristeza advinda de uma decepção amorosa. Nancy relata que as transformações iam ocorrendo a cada momento da viagem:
[...] cada árvore era diferente. Mudava o clima, mudava o cheiro, a parte da Amazônia peruana, Amazônia brasileira, as pessoas mudavam, o jeito de falar mudava, tudo que era familiar ia ficando para trás [...] (Nancy, 2015)
Chegando à cidade de São Paulo depois de uma longa jornada, foi acolhida por conterrâneos desconhecidos e, após três dias, chegou à CM. Por sua gratidão e por não fazer parte de uma rede de imigrantes na cidade, Nancy frequenta e é colaboradora da MP até os dias atuais, porém, em sua opinião, a CM foi para ela uma hospedagem, um albergamento, ficando distante de um lugar de acolhimento. Para Nancy, a evolução dos serviços prestados é visível, e ela considera que a MP, no momento atual, é uma referência para aqueles que estão chegando.
Imigrante haitiano, de 37 anos de idade, Adlin está no Brasil desde fevereiro de 2015. A princípio ficou hospedado no chão do auditório da MP e, posteriormente, após um mês, foi encaminhado para a CM12. Deixou toda a sua família, pai, mãe, irmãos e um filho no Haiti; sua intenção é trabalhar e mandar dinheiro para trazer seus familiares, pois, para ele, o Haiti não tem condições de sobrevivência: “trabalho muito difícil, estudo muito difícil e comida muito difícil” (Adlin, 2015). Chegou à MP através da indicação de amigos que já haviam sido acolhidos pela instituição. Adlin (2015) demonstra gratidão pelo acolhimento e diz: “aqui cama, banho, comer, dormir, tudo!” Quando questionado sobre sentir-se hospedado ou acolhido, respondeu assim:
Acolhido, muito acolhido! A casa recebeu muito bem, Graças a Deus, muito bem! Come bem, dorme bem, está ficando muito tranquilo, participa do curso de português cada noite da semana, faz um mês, teve ajuda com documento e carteira de trabalhar e se falar português vai trabalhar. (Adlin, 2015)
Dessa forma, Adlin demonstrou que o idioma é importante na busca por um emprego, salientando que está muito feliz na CM e que ali se sente melhor que no Haiti, e melhor que no chão da igreja.
Refugiada angolana, de 41 anos de idade, Rozina chegou ao Brasil em 7 de fevereiro de 2014 e quatro dias depois à CM, encaminhada pela Cáritas. Foi perseguida e sequestrada em Angola, depois de falar sobre igualdade social na igreja de que era membro. Rozina veio acompanhada dos quatro filhos, a menor com 11 meses e o mais velho com oito anos. Ao ser questionada sobre hospedagem ou acolhimento na CM, sua resposta foi:
Me acolheram com meus quatro filhos e eu senti que era uma família que me recebeu, porque eu não esperava que podiam me receber assim com meus quatro filhos. Aqui é minha casa, minha mãe, eu posso falar! Porque só uma mãe acolhe assim o seu filho com quatro crianças. Aqui é uma mãe que me acolheu e cuidou de mim. (Rozina, 2015)
Rozina compara o acolhimento da CM ao acolhimento de uma mãe para com seu filho, demonstrando sua gratidão a esse acolhimento. Recebeu ajuda da congregação mesmo após sua saída da casa, e declarou ter recebido o valor do aluguel da casa onde mora por 4 meses, e que parou de buscar o valor do aluguel para dar oportunidade a outras pessoas e outras mães que estão chegando.
Refugiada angolana, de 38 anos de idade, Muxima chegou ao Brasil em janeiro de 2014, acompanhada do marido e de três filhos. Ela relata que, mesmo com o fim da guerra, a situação em Angola está muito complicada. Ficou na CM de janeiro até maio de 2014, encaminhada pela Cáritas. Ao ser abordada sobre acolhimento ou hospedagem, respondeu:
Olha, eu fui acolhida, me receberam, alimentaram eu, meu marido e meus filhos, mas não gostei, porque eu ficava num quarto e meu marido do outro lado do pátio. É muito difícil, com três crianças pequenas, não poder o marido ajudar, mas a CM arrumou emprego para meu marido e um curso para mim, e tinha gente para cuidar das crianças quando a gente precisava. As crianças iam sempre passear com a Vivi, foram no cinema, na lanchonete, num parque grande e também receberam roupas e brinquedos.
Pelo emprego do meu marido nós alugamos uma casa bem pequena, mas ajudou a gente a virar uma família de novo, hoje eu tenho mais filho que nasceu no Brasil. O Brasil agora é minha casa. (Muxima, 2015)
Nota-se que a CM foi um lugar que os ajudou a reconstruir suas vidas. Muxima falou sobre a dificuldade na alimentação básica com arroz e feijão, salientando que uma das filhas não queria comer e necessitou de ajuda médica, porém hoje estão todos adaptados.
Refugiada congolesa, de 37 anos de idade, Glaza foi perseguida política por discordar do governo. Chegou ao Brasil em dezembro de 2013, acompanhada do filho. Contou com o apoio dos eixos saúde, educação e trabalho da MP:
Eu tirei minha carteira de trabalhar e também tive uma médica que cuidou do meu filho, que tinha muita febre, e quem comprou o remédio foi a Casa do Migrante. Arrumaram escola para meu filho e eu fiz o curso de português e depois me mandaram para um emprego. (Glaza, 2015)
Quanto à hospedagem ou acolhimento, Glaza sentiu-se acolhida, declarando que todos sempre foram acolhedores e a atenderam em suas necessidades.
Todo mundo que trabalha lá foi muito bom para mim, Francisco é muito bom, é bravo, mas é bom. Tive roupa, remédio também e meu filho ganhou roupa e brinquedo do Natal, e tive ajuda com curso de português. (Glaza, 2015).
Declarou de forma emocionada que, se não fosse a CM, teria ficado nas ruas de São Paulo com seu filho, porém que os horários estabelecidos são muito rígidos, e mesmo que não queira sair da casa, é obrigado a fazê-lo.
Refugiado congolês, de 40 anos de idade, João chegou ao Brasil sozinho, em 2012, e o principal motivo da migração foi o conflito político. Sentiu-se totalmente acolhido pela CM, destacou que ouviu o primeiro ‘bom dia’, que atualmente sabe do que se trata, na CM, depois de quatro dias no Brasil. Atribui sua estabilidade econômica aos serviços oferecidos pela instituição, principalmente ao curso de português e à regularização de documentos, “o jeito que eu estou hoje foi a direção que a CM me deu para estar aqui no Brasil” (João, 2015). Quando perguntado sobre o que era acolhimento, veementemente declarou:
Acolhimento é um jeito de receber uma pessoa e ajudar ela a conseguir um bom futuro, e deixar a pessoa ficar feliz naquela nova situação, porque a pessoa está muito desesperada no país que não conhece a língua, não conhece as pessoas e não tem dinheiro e nem comida e nem documento. (João, 2015)
Salientou ainda que não é católico, é evangélico, e que naquela casa católica pôde exercer sua religião livremente. Sua dificuldade na CM foi a questão da distribuição das tarefas, por se sentir constrangido ao exercer tarefas consideradas femininas por ele:
Eu só não gostei na casa foi de ajudar na limpeza, porque na nossa cultura, normalmente, homem não ajuda, não cozinha, não limpa o chão, não arruma cama, tinha muita coisa que parecia novo para mim e eu tinha vergonha das mulheres do Congo ver eu fazer isso [...] (João, 2015)
Hoje, João tem um pequeno comércio próximo à MP, conseguiu trazer suas filhas 11 meses após sua chegada, e considera-se feliz no Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade contemporânea é dotada de intensa mobilidade. O contato estabelecido entre a sociedade de acolhimento e o forasteiro, requer cortesia, polidez, tolerância e ética nas relações estabelecidas. Reconhecer e aceitar o outro na sua especificidade constitui uma das premissas da hospitalidade, todavia, o presente cenário caracteriza-se, sobretudo, pela hostilidade e violência nas relações sociais, pela insegurança com relação ao estrangeiro: “reações das populações locais contra os estrangeiros, ao mesmo tempo em que ocorrem reações terroristas em diferentes países” (Dencker, 2013, p. 8).
Essa pesquisa pautou-se na acolhida aos i-migrantes na Missão Paz, São Paulo. Dentro desse contexto, ao apresentar e analisar a atuação da MP como lugar de hospitalidade na cidade de São Paulo, os i-migrantes entrevistados declararam que a acolhida na MP foi de fundamental importância na sua chegada a São Paulo e na sua integração na nova sociedade, porém a permanência na casa foi vivenciada de diferentes formas por cada um deles.
Percebe-se que o refugiado é desconfiado e houve dificuldades para selecionar pessoas dispostas a realizar a entrevista. Atribui-se esse resultado ao fato dele continuar com a sensação de perseguição, acrescido das lembranças dolorosas relativas ao abandono da sociedade de origem e de chegada à sociedade de acolhimento. Os depoimentos dos i-migrantes do sexo masculino acolhidos pela MP destacam que os homens migram primeiro, na tentativa de estabelecer-se economicamente para depois trazer sua família. Por sua vez, as mulheres, em sua maioria, migram em situação de emergência ou quando não têm um companheiro. Apontam inconvenientes e dificuldades na MP, como a separação da família em alojamentos distintos, a rigidez dos horários, a distribuição indistinta de tarefas ou ainda com a alimentação nacional (arroz com feijão), mas ressaltam o apoio prestado por suas diferentes vertentes, mediante ações objetivas destinadas a inseri-los economicamente na cidade: quer a regularização da documentação, quer a oferta ou o encaminhamento para a realização de cursos, dos quais o de português é o mais ressaltado. Também se depreende a solidariedade dos i-migrantes acolhidos por meio de ações destinadas a favorecer os recém-chegados como, por exemplo, ao declinar do apoio financeiro para o aluguel ou ao se apresentar como voluntário.
Enfim, ressalta-se que, segundo os entrevistados, a MP atua como um lugar de hospitalidade na cidade de São Paulo, colaborando com a adaptação e integração desses i-migrantes na nova sociedade. Trata-se de uma hospitalidade condicional, mediatizada pela tolerância, na medida em que o i-migrante é aceito com a condição de seguir as normas do anfitrião.
Referências
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Apêndice
Sites consultados
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Acnur. (1996). Manual de procedimentos e critérios a aplicar para determinar o Estatuto de Refugiado. Lisboa: ACNUR. Disponível em:
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Entrevistas
Adlin Daris. Entrevista realizada em 29 de abril de 2015, com duração de 2 minutos e 37 segundos.
Alejandro Cifuentes. Entrevista realizada em 22 de abril de 2015, com duração de 15 minutos e 53 segundos.
Antenor Dalla Vecchia. Entrevista realizada em 16 de abril de 2015, com duração de 43 minutos e um segundo.
Edith Nancy Olivares Segundo. Entrevista Realizada em 23 de abril de 2015, com duração de 47 minutos e 27 segundos.
Luis Alfonso E. Vargas. Entrevista realizada em 22 de abril de 2015, com duração de 8 minutos e 10 segundos.
Márcia Lourdes Araújo. Entrevista realizada em 20 de janeiro de 2015, com duração de 24 minutos e 39 segundos.
Paolo Parise. Entrevista realizada em 21 de janeiro de 2015, com duração de 25 minutos e 49 segundos.
Sérgio Luiz Silveira. Entrevista realizada em 6 de junho de 2014, com duração de 2 minutos e 45 segundos.
Notas