Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre as mudanças nos modos de vida cotidianos dos familiares da Pousada Fazenda do Amor, localizada em São José dos Ausentes, no Rio Grande do Sul, Brasil, a partir da análise dos objetos residenciais, compreendidos como patrimoniais. Entendemos que os objetos seriam capazes de fazer o elo com o futuro pelo poder inerente de transmitir trajetórias de vida. A etnografia foi escolhida como método de pesquisa, complementada pela observação participante junto à família proprietária da Pousada, acompanhada em diário de campo e por entrevistas semiestruturadas. A pesquisa realizada a campo buscou conhecer a percepção dos sujeitos pesquisados sobre o objeto de estudo apresentado. Como resultados tem-se que na percepção dos sujeitos da pesquisa, os objetos são patrimônio familiar na medida em que se constituem num representante da memória histórica para os mesmos. Nesse sentido, possuem um valor de vida social, descrevem histórias de vida e, ainda, exercem função mercantil, quando transformados em produto de consumo turístico.
Palavras-chave:Turismo RuralTurismo Rural,Patrimônio FamiliarPatrimônio Familiar,CotidianosCotidianos,São José dos AusentesSão José dos Ausentes,BrasilBrasil.
Abstract: This article aims to reflect on the changes in lifestyle of a rural family, on Brazil south, by analyzing of residential objects, understood as family heritage. The objects transmit life trajectories and link the family past with the future. The methodology includes ethnographic research, and participant observations accompanied on field diary and interviews. The main focus was on the family and its perception of the subjects of the study presented on the object. The results shows the perception of the relatives that the objects are family heritage and represent the historical memory of the family. In this context they have social values by describing the life stories and nowadays are also transformed into tourist consumption produce.
Keywords: Rural Tourism, Lifestyles, Objects, Family Heritage, São Jose dos Ausentes, RS, Brazil.
Artigos
A Dimensão Simbólica dos Objetos e os Modos de Vida Cotidianos da Pousada Fazenda do Amor
The Symbolic Dimension of Objects and Everyday Life Modes Farm Inn Love
Recepção: 27 Maio 2016
Aprovação: 11 Setembro 2016
O objetivo deste artigo é o de refletir sobre as mudanças nos modos de vida cotidianos dos familiares residentes na Pousada Fazenda do Amor3, no Rio Grande do Sul, a partir da análise dos objetos residenciais, compreendidos como patrimoniais. Em nosso entendimento, os objetos constituem-se em veículos que atuam na memória individual e coletiva dos sujeitos da referida família. São elementos capazes de organizar socialmente, de articular e construir relações de diferentes ordens, operadas pelos objetos entre si e com as pessoas (Velthem, 2007). Outro elemento importante refere à capacidade que os objetos têm de permitir o sentimento de continuidade. Estes dados nos remetem a Pollack (1992), que compreende no sentimento de continuidade, a coerência de uma pessoa ou um grupo em sua reconstrução de si.
Entendemos que os objetos carregam fatos, trazem à tona a presença simbólica de momentos que já passaram e que, por serem significativos, estão contidos neles, de modo a comunicar uma história, a conectar cenas vividas com pessoas especiais. Eles seriam capazes de fazer o elo com o futuro pelo seu poder de transmitir trajetórias de vida a partir das narrativas contidas na memória dos sujeitos que o interpretam e libertam suas histórias. Para Lima (1995), os objetos possuem funcionalidades que atuam e refletem a base familiar; eles espelham o referencial humano porque são compreendidos como entidades sociais que se organizam na casa familiar.
Neste contexto, compreendemos o turismo4 como fenômeno social, protagonizado por sujeitos portadores de cultura, e também como produto de consumo, uma vez que atribui valor aos bens culturais locais na sua cadeia produtiva; para isto, dialogamos com Douglas e Isherwood (2009), para quem o consumo envolve todas as categorias da vida, sendo parte visível da cultura e processo ativo, no qual todas as categorias são continuamente redefinidas. No caso em estudo, o turismo se desenvolve no meio rural, e o interpretamos a partir do olhar de Wanderley (2009) que o descreve como lugar de relações específicas, construídas, reproduzidas e redefinidas conforme seu espaço singular de vida. O mundo rural, para a autora, tem duas dimensões; a primeira dela refere ao espaço físico diferenciado, resultante da ocupação do território, das formas de dominação social: estrutura de posse, uso da terra, da água, das paisagens naturais e das relações campo-cidade; a segunda diz respeito ao espaço de vida, ao lugar onde se vive e de onde se vê o mundo. O turismo é entendido como parte do processo de desenvolvimento rural a partir da abordagem da multifuncionalidade (Carneiro & Maluf, 2003), cujo entendimento é de que as funções do campo vão além da produção de bens agrícolas, tendo enfoque na preservação dos recursos naturais e culturais [água, solo, biodiversidade, diversidade], do patrimônio natural [paisagem] e da qualidade dos alimentos. Com isso, se apresenta como uma das alternativas para a continuidade de famílias no campo e, juntamente com as atividades tradicionais, promove mudanças nos modos de vida local.
Ao tratarmos das mudanças nos modos de vida dos familiares da Pousada Fazenda do Amor, pensadas através dos processos de interação entre residentes [familiares] e os turistas, enfatizamos o contexto de hibridismo cultural, resultante dos encontros entre os sujeitos autóctones e sujeitos turistas, e entre suas culturas. Sob esse prisma, centramos nosso foco na questão da cultura do encontro5 como promotora do híbrido e como meio que permite que a comida e os objetos passem a ser compreendidos pelos familiares da Pousada como expressão de patrimônio familiar. Para a reflexão, nos ancoramos em Gonçalves (2005), que afirma que o discurso sobre o patrimônio se dá a partir de seu caráter ‘construído’ ou ‘inventado’, onde cada nação, grupo ou família constituem no presente seu patrimônio, objetivando articular sua identidade e memória.
A caminhada da pesquisa deu-se através da etnografia, complementada pela observação participante junto à família proprietária da Pousada, acompanhada em diário de campo e por entrevistas semiestruturadas. A observação participante ocorreu em quatro fases, a primeira com quatro inserções a campo, uma delas com seis dias de estada e as outras com quatro dias; a segunda foi por um período de 30 dias e a terceira desdobrou-se em dois momentos com quatro dias cada um, objetivando validar os dados e manter o vínculo com o local pesquisado. Essas fases aconteceram no período de 2009 a 2012, sendo que a última fase ocorreu em 2015, cuja observação objetivou verificar as mudanças ocorridas no período entre as idas a campo. As entrevistas ocorreram em todas as etapas da observação participante, num processo contínuo de interlocução com os familiares. A partir da pesquisa realizada a campo, buscamos conhecer a percepção dos sujeitos pesquisados sobre o objeto de estudo apresentado. As entrevistas, o diário de campo e os vídeos foram inseridos no NVivo 9.0. Os dados foram divididos por pessoas e elencados em categorias para análise, que são trajetória da unidade produtiva, trajetória das pessoas, trajetória da casa e sentido dos objetos.
Entendemos que as pessoas se constituem como sujeitos a partir de suas trajetórias de vida, compondo, nesse processo, sua cultura e história. A abordagem de cultura que permeia a pesquisa é entendida como o modo como o indivíduo significa seu mundo, ou seja, por meio de signos, símbolos e significados construídos ao longo de sua história (Geertz, 2009). O contexto interessa na medida em que possibilita apreender a totalidade, situando a observação do detalhe da ação verbal e não verbal na cena em que ocorre o evento. O movimento decorrente da interação entre os indivíduos significa um novo momento na história e no cotidiano das pessoas. Neste caso, temos como sujeitos da pesquisa de campo os membros da família proprietária da Pousada Fazenda do Amor, que são: Nelci6 [50 anos] e José7 [50 anos]; o casal de filhos Lurdes8 [24 anos] e Pedro9 [30 anos]; e Celia10 [54 anos], tia de Nelci que trabalha na Pousada11.
A Pousada Fazenda do Amor localiza-se no município de São José dos Ausentes12, no nordeste do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, em uma microrregião denominada pela Secretaria de Turismo do Estado como Campos de Cima da Serra. A pousada é um empreendimento rural familiar que está em funcionamento desde o ano de 1997, e atualmente tem capacidade de receber até 29 pessoas. Os atrativos são a hospedagem na residência familiar, a paisagem rural, os passeios a cavalo, as trilhas, a pesca esportiva de truta americana, o desnível entre os rios Silveira e Divisa e o Cachoeirão dos Rodrigues. Os turistas são, em geral, citadinos, viajam em famílias ou casais, vindos da região metropolitana de Porto Alegre e de Florianópolis. As cidades de Caxias do Sul, Novo Hamburgo e São Leopoldo se destacam. Há um nicho de mercado importante que são os turistas ligados a pesca esportiva de truta.
A diária inclui todas as refeições, bem como os lanches da manhã e tarde, sendo que a alimentação está marcada pelas características culturais familiares no contexto de hibridismo, mesclando ingredientes e pratos ao cardápio. De modo geral, o desjejum é constituído por café, leite, achocolatado, algum tipo de fruta [geralmente mamão], alimentos produzidos na Pousada, como pães [de milho, batidos, integrais], bolos, bolachas diversas, rosca de polvilho, bijajica [rosquinha de polvilho, frita] e chimias13, além de queijos e salames. Ao lado do arroz e do feijão servidos todos os dias nos cardápios do almoço e jantar, são colocados à mesa dois tipos de carnes; cinco tipos de saladas [geralmente tomate, cenoura, alface e mais duas variedades], legumes [como beterraba, vagem, brócolis e entre outros], massa e batata. São considerados pratos de destaque a paçoca de pinhão e a truta.
A história do local inicia com um tropeiro, bisavô da atual proprietária, que chegou ao Brasil em 1889, vindo da Alemanha. Conforme Nelci, a partir da atividade como tropeiro, seu bisavô adquiriu grande quantidade de terras em São José dos Ausentes. Os herdeiros passaram a desempenhar a atividade da pecuária e a extração de madeira. Um deles foi Egídio, avô materno de Nelci, herdeira e atual proprietária. A construção da atual casa da Pousada, realizada por Egídio, data de 1950. O local foi escolhido pela posição geográfica estratégica, perto de todos os parentes que ali viviam. A família era composta pelo casal Egídio e Vera e suas cinco filhas, que estudavam em casa, com professora particular; uma delas era a mãe de Nelci, dona Thereza. No ano de 1987, Egídio faleceu na Pousada, sob os cuidados da família. Nesse período, viviam no local Thereza, Avelino, Nelci, José, Pedro e Lurdes. A renda obtida nessa época era proveniente da pecuária, da aposentadoria rural de Thereza e Avelino [pais de Nelci] e da venda do Queijo Serrano, que se tornou a principal atividade econômica da propriedade.
O turismo foi apresentado aos proprietários da fazenda pela administração pública local como atividade capaz de gerar renda e permitir a permanência no campo. O discurso público fortaleceu-se na medida em que indicava aos proprietários os atrativos que deveriam ser valorizados, tais como a paisagem natural, o desnível de rios, a capacidade de receber visitantes e a alimentação com características locais. Esse discurso ativou a memória familiar relacionada ao ato de receber, pois a propriedade fora, durante décadas, local de festas familiares, como casamentos14, batizados e aniversários. A herança do patriarca15, relacionada à experiência em receber, foi fator decisivo na abertura da propriedade aos turistas, juntamente com a motivação econômica, que permitia vislumbrar a continuidade da vida na fazenda. Segundo a visão da proprietária, podemos periodizar o processo de desenvolvimento do turismo no estabelecimento em três etapas. A primeira delas, entre 1997 e 2001, foi marcada pela obtenção de luz elétrica e telefonia e pela melhoria das estradas de acesso à Pousada. Nesse mesmo período, foi realizada a ampliação e adaptação da casa da fazenda, com a construção de três banheiros e do refeitório. Essa fase, conforme Nelci, foi caracterizada por uma “angústia de receber”.
Conviver com pessoas de hábitos diferentes, meu coração batia diferente, ficava nervosa. Depois de uns dois ou três anos, mudou. Antes chegava um carro, ficava nervoso, se preocupava. Só tínhamos referência de coisas glamorosas e era difícil receber na simplicidade que recebíamos. Com o passar do tempo, fomos vendo a visão do turista, que ele busca a simplicidade. Nosso objetivo era aumentar o conforto para dar para eles, atendendo nosso objetivo que é mostrar como se vive na fazenda, porque nossa realidade é diferente da cidade (Nelci, 2010).
A segunda etapa do processo de desenvolvimento do turismo situa-se entre 2002 e 2007. Ela é considerada como a ‘fase da empolgação’, pelos proprietários. Este termo refere-se a um momento cujo sentimento em receber passou a ser harmonioso, nas palavras de Nelci, “simples”. Entre os aspectos principais destacamos a reinvenção da privacidade, a ampliação da infraestrutura que permitiu transformações de quartos em apartamentos, com banheiro privativo, novos apartamentos tanto para familiares como para turistas, a construção de refeitórios e instalação de lareira, a cozinha sendo transferida de local. Com a reforma, a Pousada passou a receber até vinte e nove pessoas a cada dia, sua lotação atual.
A cozinha passou a estabelecer a divisão física entre familiares e turistas. Ao mesmo tempo em que marcou a divisão da ala dos moradores e turistas, oportunizou contato e compartilhamento de experiências daqueles que vivem na Pousada, em que o espaço é o lar, e o dos que estão no local para vivenciar uma experiência de turismo rural, baseada na integração com os proprietários. Foi neste período que a propriedade se tornou rentável financeiramente, tendo no turismo e na pecuária, fontes de renda complementares. Segundo Nelci e José, o turismo foi responsável pela recuperação da pecuária e oportunizou estudo em curso superior para os dois filhos do casal, Pedro e Lurdes.
A ‘fase da família’ inicia em 2008 e corresponde ao terceiro momento do desenvolvimento turístico da propriedade. Apresenta duas características principais, uma delas sendo a consolidação do turismo e da pecuária como atividades de sustento familiar e, a outra, o falecimento dos pais de Nelci, seu Avelino e Thereza. Com o falecimento do casal, ocorre o questionamento do sentido do próprio trabalho, da reorganização do tempo e da disponibilidade dos membros da família. Estas perdas foram decisivas e modificaram o tempo que estava sendo dedicado à família e à atividade turística. Os proprietários da pousada decidiram, então, reorganizar a disponibilidade de receber visitantes e estabeleceram datas em que o local não atenderia a turistas, como o Natal, Dia das Mães e Dia dos Pais. Outra atitude tomada foi a de fechar a Pousada em determinados momentos, para que toda a família possa viajar junto em férias.
O recorte temporal desta análise se dá a partir da terceira e atual fase desenvolvimento turístico da pousada fazenda, a ‘fase da família’, sendo determinante para tal classificação a morte de Thereza, em 2008, e de Avelino, em 2010. Em razão desses fatos, houve modificações no cenário da Pousada, como a reconfiguração dos papéis dos familiares, a afirmação dos espaços íntimos na casa e na hospedagem, e a organização mais precisa dos serviços, incluindo nesse último tópico, a compra de produtos alimentícios de parentes. A morte do casal marcou uma nova posição dos familiares frente aos significados da vida em família e das atividades produtivas, havendo a afirmação dos espaços domésticos a partir da definição de fronteiras mais precisas entre os lugares do turista e da família.
De acordo com Nelci, ao longo de mais de uma década de trajetória turística na Pousada, muitas das atividades corriqueiras da família haviam sido modificadas em função do turista. A organização da atividade turística consumia o tempo que antes era utilizado nas tarefas domésticas, que marcavam o modo de viver da família e objetivavam o seu bem-estar. Nelci, que exerceu um papel central nas tomadas de decisão do grupo familiar, salienta que, ainda que o turismo tenha sido uma escolha racional e coletiva, a morte dos pais a fez reconsiderar a posição sobre a importância dada ao turista, fazendo-a voltar a buscar o convívio familiar.
A estratégia dos sujeitos envolvidos com o turismo e as mudanças em seus modos de vida pode ser interpretada a partir de Santana (2002). O autor reforça que os sujeitos não podem ser considerados passivos, pois estão vivendo processos de uma cultura dinâmica, ou seja, suas experiências e vivências – desde as pequenas e grandes adaptações – assim como as estratégias produtivas, tornam-nos agentes de inovação e mudanças. As ações e construções refletem também as influências externas – as turísticas, entre outras –, por isso aquilo que os sujeitos fazem, dizem e pensam pode ser modificado ou esquecido, o que não significa que a cultura desses sujeitos desapareça. As mudanças que ocorrem na pousada fazenda são resultado de um conjunto de atividades, sendo o turismo apenas uma das áreas que promove mudanças na cultura.
Ainda em relação às mudanças, com a perda da mãe, até então responsável pela alimentação, Nelci passou a responder pelos aspectos que envolvem a organização da mesma para os hóspedes, como as tarefas de cozinhar e de servir. Esta última tarefa foi, inclusive, alterada. Houve a adaptação do fogão a lenha, transformado em bufê. Esse artefato, até então utilizado na preparação de alimentos, passou a fazer parte do contexto da autenticidade encenada para o turista, permanecendo, ainda, enquanto objeto de memória para a família [Figuras 1 e 2].
Em 2008, quando a mãe faleceu, todo mundo aprovou servir no fogão a lenha. Foi porque um dia tinha só um casal e eles pediram para deixar a comida no fogão que era melhor, aí vimos que ficava quente e bonito fazer do fogão o bufê. E hoje a grande preferência das pessoas que vem aqui é justamente essa, que a gente sirva no fogão, todo mundo tira foto. Para nós é uma economia, com duas pessoas tu consegue atender, uma pessoa para ir repondo as comidas, saladas e coisas, um fica aqui na cozinha e outro fica lá atendendo as bebidas, atende super bem. São as fases que a gente foi passando e se adaptando (Nelci, 2011).
Tendo como mote o fogão a lenha16, visamos apresentar nosso entendimento sobre a mudança na interpretação e no uso de alguns artefatos da Pousada Fazenda do Amor, os quais se transformam, na ‘fase da família’, em objetos simbólicos. Entendemos que tais objetos são dotados de significados de pertencimento, que remetem à história do núcleo familiar. Tal fato possibilita interpretá-los como patrimônio familiar, pois há o reconhecimento do grupo sobre a bagagem e legado17 culturais representados pelo artefato e sua vinculação sentimental. Ressaltamos, contudo, que essa abordagem se restringe ao contexto familiar, ou seja, não tratamos aqui do patrimônio reconhecido a partir de políticas públicas, mas sim de patrimônio enquanto legado reconhecido pelo núcleo familiar, que passa a ter uso no contexto turístico do espaço rural.
Tomaremos esses objetos como ‘coisificados’, conforme sugere Santana (2002). Segundo esse autor, para que algo se torne patrimônio, é preciso passar por um processo de eleição sociocultural, por exemplo, quando uma pessoa ou um grupo social seleciona elementos e conteúdos determinados, mais ou menos esquematizados e complexos, transmitindo-os para aqueles que serão os usuários. Não há necessidade que se trate de uma série de episódios conectados no tempo, sendo suficiente que o resultado se mostre coerente e responda à versão presente e preconcebida do hoje. A escolha do elemento considerado patrimônio cultural implica que seja teoricamente conservado e protegido, sendo este valorizado por um significado que ultrapassa a função material, ou seja, ele se torna, assumido como algo próprio. Nessa perspectiva, o patrimônio é entendido enquanto categoria do pensamento, essencial para a vida social e mental de qualquer coletividade humana. Conforme Contreras (2005), o patrimônio relaciona-se com algo que foi legado do passado e que se quer conservar. Trata-se, pois, de objetos que permitem a interpretação da história e do território, no tempo e no espaço. Para Gonçalves (2005), os patrimônios culturais podem ser compreendidos se situados como elementos mediadores entre o domínio social e o simbolicamente construído, fixando pontes e cercas entre categorias cruciais, tais como passado e presente. Ainda para o autor, a ênfase do discurso de patrimônio está em seu caráter ‘construído’ ou ‘inventado’, na medida em que cada nação, grupo ou família constitui no presente seu patrimônio, objetivando articular e expressar sua identidade e memória.
Santana e Prats (2005) complementam a abordagem frisando que o patrimônio não é passado, mas sim história, sendo tudo aquilo que julgamos – ainda que por motivos utilitários – digno de ser conservado. Os autores enfatizam o discurso, a mediação entre o domínio social e o simbolicamente construído, no tempo e espaço, em uma perspectiva histórica, articulando identidade e memória como elementos geradores da abordagem do patrimônio. A partir do relato de Nelci, podemos observar como o grupo familiar se reporta aos objetos que, para eles, tornaram-se patrimônio. Segundo a entrevistada, a história do fogão a lenha na pousada faz esse artefato ser interpretado como um ativador da memória, rememorando vivências passadas com os familiares:
Ah, esse fogão aí lembra das conversas de fim de noite; este fogão tem hoje uns oitenta anos, oitenta anos de história tão nele. Sempre esteve aqui, neste mesmo lugar, desde que a casa foi construída. Mas naquela época tinha rádio, a televisão não tinha, eu me lembro de eu pequena, assim, sentada ali, e todo mundo depois ali no inverno, sentada, ou comendo pinhão assado na chapa. É uma coisa tão boa, assim... Reporta o tempo de criança, aquela coisa, assim, dos causos que contavam das lendas, daquela coisa, assim, pra assustar a gente (Nelci, 2011).
Na fala de Nelci, a partir do objeto considerado patrimônio familiar, identificamos a questão do consumo de bens. Temos o pinhão como alimento consumido em um processo que pode ser considerado um ato ritual, pois se tratava de um momento em que a família compartilhava, no inverno, o calor do fogão a lenha e a afetividade, em que se contavam histórias, lendas, etc. Acerca do hábito de comer pinhão, é preciso salientar, também, que se antes apenas a família desfrutava desse ato, na terceira fase do desenvolvimento turístico, ele se tornou um produto de consumo turístico. Atualmente, antes do jantar, nas noites de frio, o turista também consome o pinhão na chapa, no fogão a lenha da cozinha do turista.
A partir de Douglas (2009), entendemos que os rituais servem para conter a flutuação dos significados, tendo o intento de os fixar. Eles podem ser puramente verbais, vocalizados, não registrados. Nessa perspectiva, os bens são acessórios rituais e o consumo é um processo ritual que tem como função primária dar sentido ao fluxo incompleto dos acontecimentos. A referida autora destaca que os bens de consumo são usados para marcar intervalos, tais como o tempo de amar e o tempo de morrer. Sua variação surge da necessidade de estabelecer diferenciações entre o ano do calendário e o ano da vida. Dessa forma, entende que os bens são a parte visível da cultura e que o consumo os usa para classificar pessoas e eventos. Entende, ainda, que o indivíduo usa o consumo para dizer algo de si mesmo, de sua família, localidade, sendo um processo ativo em que as categorias sociais são continuamente redefinidas.
Levando em consideração o entendimento de Douglas (2009) de que os bens classificam pessoas e eventos e falam sobre os indivíduos e a família, julgamos haver no ato ritual de comer pinhão a distinção entre os rituais familiares e os rituais turísticos. O ato experienciado pelos familiares é possível de ser consumido pelo turista. Sob essa perspectiva, temos um produto que identifica a ruralidade e os modos de vida do campo daquele núcleo familiar. Porém, esse ato não é compartilhado com os sujeitos que ali vivem, mas sim produzido para os turistas como bem de consumo, conforme aponta Canclini (2008). Trata-se, portanto, de um processo em que os desejos se transformam em demandas e em atos socialmente regulados, que marcam uma encenação da vida doméstica para os turistas. O fato de o ato ritual tornar-se produto de consumo para o turista não significa, entretanto, que o mesmo deixe de existir em família. As práticas da família continuam a ocorrer com a naturalidade que a vida cotidiana apresenta, sendo a cozinha, preferencialmente, como local de realização, conforme relatos de Pedro, Lurdes, José e Nelci. Essa situação nos remete a Canclini (2008), para quem há um cenário de disputas entre aquilo que a sociedade produz e os modos de usá-lo. Tal disputa é evidenciada na cena do pinhão na chapa, mediada pela interação entre visitantes e visitados.
Em relação ao cotidiano dos familiares e o artefato fogão a lenha, cabe ressaltar o relato de Nelci a respeito da fase em que não havia energia elétrica, em que o estar com a família junto ao fogão era marcado por momentos de convivialidade, quando se contavam as lendas locais. A lenda, nesse caso, pode ser empreendida como ilustração daquilo que se expressa atualmente em torno do fogão. O fogão a lenha atrai os turistas para perto do artefato, devido ao calor que produz e aos pratos que aquece, e torna o local um espaço de convívio entre os mesmos. Diante desse fato, Nelci assinala que o fogão adquire novo uso, adaptando-se à necessidade atual da casa. Nosso entendimento é o de que esse artefato adquire três funções. A primeira é a de conectar a memória dos familiares com a história da família; a segunda é a de se transformar em produto turístico, atualizando sua forma de utilização; e a terceira função é de transformar o espaço em local de convívio dos turistas. Vejamos como Nelci interpreta essa questão:
O fogão marca as histórias da família e espaço de convivência, porque o pessoal ficava ali conversando, contando histórias, era uma forma de viver. Esse mesmo papel continua sendo, hoje, porque quando a gente bota fogo ali, as pessoas [turistas] se aproximam dele, e vem pra ali conversar. Continua sendo porque é o espaço que a gente usa pra colocar a comida na panela. Antes era servida na mesa, sempre foi, por isso que eu te digo que as coisas vão, pela praticidade, pela facilidade que a gente acha de servir. No início eu servia também nas mesas, hoje eu sirvo no fogão pela praticidade de manter a comida quente, né (Nelci, 2011).
A casa torna-se um espaço com novos usos e estes ganham outras interpretações. A cozinha, transformada em cozinha turística, ao mesmo tempo em que passa a ser um espaço para o turista, continua sendo ocupada por uma série de artefatos que pertenciam aos familiares. E esses artefatos, é importante ressaltar, são objetos que falam sobre os que viveram na fazenda, ou seja, sobre suas formas de vida. Existem outros objetos que podem ser interpretados do mesmo modo, pois representam ligação com a história e memória dos antepassados. Tais artefatos são expostos como objetos decorativos e como relíquia nos espaços destinados aos turistas. Alguns desses objetos são a canastra, a vitrola e o rádio, originalmente pertencentes a Egídio, avô de Nelci [Figura 3 e 4].
Segundo Nelci, a exposição de determinados objetos e o destaque dado a eles relaciona-se à perda de familiares. Os objetos precisavam estar visíveis em um lugar junto à família, por isso deixaram de estar guardados. A escolha dos locais e dos objetos que estariam ocupando o espaço decorativo da Pousada teve influência de um familiar18 próximo, que ajudou a compor o cenário em que os objetos estariam dispostos. Para Nelci, esse foi um momento em que a perda de familiares se materializou pela presença dos objetos:
É eu acho, assim, que ter as coisas ali pra gente ver é bom... Por um lado é bom, mas por outro a gente sente a falta da presença deles, né, mas aí se a gente usar assim, dá a impressão que, sem querer, remete a gente a determinadas épocas, situações, festas que estavam presente... Isso era usado quando fulano chegava, isso era usado quando a gente saia pras festas. Eu lembro da mãe colocando o vestidinho meu, da vó dizendo que eu ficaria linda, então são lembranças em tal época, de Natal, aquela coisa de família.
O objeto referenciado por Nelci é a canastra, que pertencia a seu avô e tinha duas utilidades: era usada para o transporte [a cavalo inicialmente e, após, de carro] dos vestidos de festa e, em casa, como guarda roupa, em que eram guardados os mesmos vestidos. A canastra, feita de madeira e forrada com couro de boi, foi construída na própria fazenda. Seu design imita a mala usada pelos antigos tropeiros para carregar bagagem em viagens. O objeto está exposto, juntamente com o cofre, a mesa que serve de balcão para folhetos turísticos e a vitrola, na sala de recepção aos turistas, antiga sala de visita da fazenda. A referida sala também é decorada com quadros de quatro gerações da família19, que, segundo Lurdes, continuarão ocupando as paredes [Figuras 5 e 6], pois foram colocados pelas bisavós, devendo ser preservados. Vejamos o relato da entrevistada:
Pra mim é assim: Eu não conheci eles, mas é como se eu conhecesse... Então, a vó falava de todos eles, o vô também, a mãe fala deles, é uma coisa como se eu tivesse vivido com eles. Então, se eles colocaram aqueles quadro ali, com as fotos deles, eu não vou mexer, é o lugar deles, a gente tem outros lugares para colocar coisas, sei lá, tem coisas que sempre foram assim e eu quero e, se puder, vou continuar fazendo isso. Essa sala a mãe diz que era o lugar de receber as visitas que não eram da família, então combina receber os turistas aqui e ter a foto deles, assim as pessoas já sabem quem nós somos (Lurdes, 2011).
Podemos interpretar a fala de Lurdes a partir de elementos constitutivos da memória como apontados por Pollack (1992), quais sejam, acontecimentos vividos por um grupo social ao qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos presentes no imaginário de tal modo que a sensação de ter participado verdadeiramente do momento ou não se torna difícil de ser percebida; são projeções e identificações com certo passado, que podem ser elaboradas como memória herdada.
Outro artefato que teve papel importante na rotina doméstica dos familiares da Pousada foi o rádio. Este foi, durante muitas décadas, o meio de comunicação mais eficaz para se tomar conhecimento sobre a vida fora da fazenda, sendo também uma forma de lazer e diversão. Segundo José, Avelino sempre escutava rádio, que era alimentado à bateria. José sublinha a importância de expor o rádio, afirmando ser uma forma de minimizar a ausência de Avelino. Segundo ele, era por meio do rádio que se tinha acesso à informação na fazenda, enquanto que na atualidade este acesso pode se dar, por exemplo, por canais de televisão transmitidos via satélite, ou pela Internet. O entrevistado propõe uma analogia do objeto com a vida, afirmando que na vida tanto as coisas quanto os lugares passam por mudanças:
Tinha luz de turbina, porque antigamente os rádios eram com a bateria e daí tinha um determinado horário que carregava a bateria pro vô da Nelci, no caso, o Egídio escutar o repórter Esso. Repórter Esso, que era um repórter que informava todo mundo das coisas que estavam acontecendo e como ele era um homem inteligente, sempre estava bem informado das coisas, fazia bons negócios. É aquela coisa que eu digo, sempre foi assim e sempre será, né, quanto mais se sabe melhor se faz, por isso que eu gosto da Sky, ali tem coisas que aprendo muito de gado, de preço de tudo, né, as crianças e a Nelci gostam da internet, quando olho pro rádio lembro de tanta coisa, e tudo passa, a vida anda e as coisas mudam de lugar (José, 2011).
Para Nelci, o rádio permite o elo com sua história de vida, com a memória de acontecimentos da infância, de momentos de felicidade compartilhados com os pais, como quando, à noite, ouviam programas humorísticos.
O rádio, eu me lembro que o meu quarto, era pra dentro do quarto do pai e da mãe, e eles escutavam rádio, e tinha maré mansa, que era um negócio de piada. Então, o pai deixava o rádio bem alto pra mim poder escutar lá do meu quarto... Não tinha televisão, daí ‘benção’, ‘benção’, dava e todo mundo ia dormir, vamos dormir. Mas nos ria, eles riam lá do quarto deles e eu ria lá do meu. Risadas. Porque era, e é, uma coisa assim... Falou infância eu lembro da maré mansa, que eram humoristas que faziam programa de televisão no rádio, na rádio... Como é que era o nome da rádio? Não me lembro mais o nome da rádio, mas existe até hoje essa rádio (Nelci, 2011).
Ainda segundo Nelci, o local onde o rádio está exposto atualmente [Figura 9] é uma forma de homenagem ao pai, sendo esse o motivo que a fez colocar outros objetos que eram apreciados por ele no mesmo espaço [Figura 10], além de fotos. Foi para homenagear aos pais, também, que foram dispostos na parede os quadros com fotos de momentos especiais. Nelci acrescenta que muitos turistas conheceram Avelino e, ao vislumbrarem o rádio na sala, podem relembrar dele.
Quanto a outros objetos, como as mesas de escritório e o cofre de madeira, pertencentes a Egídio, e o sofá, pertencente à Thereza (Figuras 11 e 12), além da função decorativa, servem para guardar informações aos turistas e anotações de reservas dos hóspedes (Figura 13), sendo também mesa do telefone. Já uma cadeira torna-se criado mudo para o quarto de turistas (Figura 14).
Faz-se necessário destacar, ainda, um armário [Figuras 15 e 16] e uma cela de cavalo [Figuras 17 e 18], dois artefatos que não tiveram uso turístico mas possuem importância simbólica. O primeiro pertencia a Thereza e, na ampliação da Pousada, foi transferido para a cozinha, sendo utilizado para uso da família.
Aquele armário é da época do casamento da vó, têm uns 50 anos. Não, daí quando eu era criança, tinha louça na parte de cima, mas as tuias20, que continua tendo tuia hoje. E, por exemplo, nós usamos ele hoje, ali, para guardar coisas, guardanapo... Tinha uma tuia que era dos remédios do vô, uma tuia que era os remédios da vó, coisas assim que era fácil, né, era só puxar que estava ali. E as louças usava na parte de cima, que era o armário que a vó mandou fazer quando casou, é que meu bisa deu para ele, o bisa era muito organizado, de dar as coisas para as filhas. Eu gosto muito deste balcão, vamos ter que pintar e dar uma ajeitada nele (Lurdes, 2011).
O segundo objeto, a cela, usada para encilhar cavalo, pertencia a Avelino, que a deu ao neto Pedro.
É assim né, o vô me ensinou muita coisa, a tocar gaita. Ganhei dele a gaita ponto e ele também me ensinou a trabalhar. Nós dois ficava muito tempo junto, era praticamente eu e ele na lida de gado, o pai antes ficava mais com as coisa do turismo. Daí, quando ele [Avelino] ficou doente, ele me deu de presente esta cela, mas daí como o pai também gostava muito dele e sempre gostou desta cela, eu deixei pro pai usar, mas é minha, de herança do vô, eu conheci estas terra com ele, até é difícil pra mim usa as coisas que ele me deu, é uma coisa que é da vida da gente, ele via a vida de cima deste cavalo (Pedro, 2011).
Nesta etapa, reforçamos nosso propósito de realizar alguns apontamentos sobre os significados de artefatos pertencentes à família da Pousada Fazenda do Amor, os quais foram eleitos como patrimônio familiar. Nosso entendimento foi o de que esses artefatos podem ser concebidos, também, como objeto de consumo turístico. Essa leitura se relaciona ao pensamento de Canclini (2008), para quem os bens exercem muitas funções, entre elas a mercantil, e também à abordagem de Appadurai (2008), que sustenta que as mercadorias, assim como as pessoas, têm um valor de vida social. Ainda segundo o autor, as “mercadorias têm histórias de vida. De acordo com esta visão processual, a fase mercantil na história de vida de um objeto não exaure sua biografia é culturalmente regulada e sua interpretação admite, até certo ponto, manipulação individual” (p. 31).
No entanto, o que entendemos ser preciso destacar no contexto deste estudo é que os seres humanos realizam intercâmbio de objetos/bens para satisfazer necessidades estabelecidas culturalmente com o intuito de integração pela troca com o outro, para se distinguir, realizar e controlar o fluxo desordenado dos desejos. Nessa multiplicidade de ações e interações do consumo, os objetos possuem uma história de vida, ganham e perdem características, são cambiantes. Sendo assim, o sentido de cada objeto é arbitrariamente delimitado e reinterpretado em processos históricos híbridos. Ainda, entendemos que a autenticidade é ilusória e a mistura de ingredientes autóctones e estrangeiros é percebida, de forma análoga, no consumo da cultura.
A transformação dos artefatos pode ser comparada com a recriação de espaços revitalizados que, conforme Barretto (2000), apoia-se na memória coletiva e, ao mesmo tempo, estimula-a, considerando-a fundamental para o processo de identificação do sujeito com sua história e sua cultura. Canclini (2008) afirma que, na maioria das culturas conhecidas no mundo, existem coisas que não podem ser vendidas e compradas. Nesse sentido, é possível identificar o que afirma o autor a partir do caso do presente estudo, em que há classificações e distinções entre os grupos familiar e turista, porém, alguns artefatos se posicionam na perspectiva de consumo, enquanto outros se mantêm na ordem do amor e da afetividade.