Resumo: As dinâmicas socioprodutivas ou de mercantilização via Turismo valem-se da disjunção e projeção de formas – ou aparências – como se fossem totalidades, principalmente em realidades com ‘vantagens comparativas’ aos negócios do setor, incluindo atributos patrimoniais e mão de obra barata (Chesnais, 1996). Tais processos e seus desdobramentos em diferentes sociabilidades e espacialidades, não raras vezes, são explicados nos marcos da persistência neopositivista, a qual é chamada por Lefebvre (1991) de Lógica Formal. Neste trabalho, inicialmente, os métodos que podem ser enquadrados em tal ‘lógica’ são expostos em linhas gerais, tanto no que se refere às suas possibilidades e limitações, como aos seus propósitos investigativos. Em seguida, é realizada uma abordagem quanto ao Método Dialético na perspectiva do Materialismo Histórico, explicando algumas de suas categorias fundamentais [totalidade, mediação, determinação e contradição] a serem tratadas nas relações com as categorias conformativas de cada objeto de pesquisa. Considerando que a Dialética do Materialismo Histórico pode levantar tendências ao detectar contradições inerentes a forma de produção material da vida social dominante, o objetivo é apontar sua urgência no sentido de superar as manifestações imediatas dos fatos em direção à essência da realidade. Tal análise justifica-se por duas questões centrais: a necessidade de esclarecimentos não somente em relação às significativas diferenças entre método e metodologia, mas entre métodos diversos e epistemologias opostas; e a busca por traçar as fragilidades e potencialidades da crítica, a qual está necessariamente associada a um método.
Palavras-chave:TurismoTurismo,EpistemologiaEpistemologia,MétodoMétodo,Dialética do Materialismo HistóricoDialética do Materialismo Histórico.
Abstract: The socio-productive or mercantilization dynamics via tourism draw upon the disjunction and projection of forms – or appearances – as if they were totalities, mainly in those realities which present ‘comparative advantages’ to their sector business, including heritage attributes and cheap labour (Chesnais, 1996). Not rarely, these processes and its ramifications in different sociabilities and spatialities are explained in the framework of neopositivist persistence, which is called Formal Logic by Lefebvre (1991). This work presents the methods that may be framed in this ‘logic’, exposed in general lines, either in what it refers to its possibilities and limitations or its investigative purposes. Afterward, an approach about Dialectical Method under the perspective of Historical Materialism is done, explaining some of its fundamental categories [totality, mediation, determination and contradiction] to be treated in the relations with conformative categories of each object of research. Considering that Dialectical of Historical Materialism may raise some trends on detecting contradictions inherent to the market, our goal is to point out its urgency to overcome the simple means to manifest the facts towards the essence of the reality. This analysis is justified by two central issues: the need for clarification not only related to significant differences between method and methodology, but also among different methods and opposing epistemologies; and the pursuit of tracing the fragilities and potentials of the critics, which is necessarily related to a method.
Keywords: Tourism, Epistemology, Method, Dialectical and Historical Materialism.
Artigos
Aparência versus Essência nos Espaços Apropriados pelo Turismo: Delineamentos Possíveis a Partir de Distintos Procedimentos Epistemológicos
Appearance versus Essence within the Spaces Suitable by Tourism: Some Possible Designs from Different Epistemological Procedures
Recepção: 05 Outubro 2017
Aprovação: 25 Outubro 2017
“Já não se pede à ciência que compreenda o mundo ou o torne melhor. Pede-se que ela justifique instantaneamente tudo que é feito”. Guy Debord.
“A doutrina materialista da transformação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são transformadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. Por isso ela tem de separar a sociedade em duas partes, das quais uma lhe é superior”. Karl Marx.
“O método dialético busca penetrar – sob as aparências de estabilidade e de equilíbrio – naquilo que já tende para o seu fim e naquilo que já anuncia o seu nascimento”. Henri Lefebvre.
Certa vez, o político italiano Palmiro Togliatti (1978) advertiu: quem erra na análise erra na ação. Partindo dessa premissa, diversas investigações são levadas a cabo com o intuito de explicar e esclarecer fatos em diferentes escalas, incluindo aquelas que focam a produção do espaço pelo Turismo. Mas não somente isso. Se, nessa quadra da história, estudos e ações que adquirem relevo são aqueles empreendidos objetivando a dinamização do mercado por ele mesmo, sobressaem, também, as averiguações comprometidas com a ultrapassagem forçada da economia política pela cultura. Geralmente, sob a meritória alegação de preocupação com a inclusão, a equidade e a sustentabilidade, não são poucos os grupos que firmam propostas orientadas na fé em si mesmo [Bos, 1990] e em mudanças de hábitos de consumo como via de alteração essencial da ordem econômica-social atual, uma vez que compreendem a sociedade simplesmente como um reflexo do próprio interior [Idem]. Não é possível associar tais entendimentos somente como resultantes de percepções da pura empiria, mas de epistemes e procedimentos epistemológicos [ou métodos] que se esquecem do dado ontológico primário e fundamental: a forma histórica vigente do produzir e do reproduzir-se para se garantir as condições fundamentais de existência, bem como sua hierarquização social definidora da formação dos sujeitos.
Lefebvre (2000) aponta que vivemos “un monde piégé, [...] le plus piégé des mondes, le monde piège. Ce qui contient se cache dans les recoins, dans les marges. On parle d’art, de culture, et Il s’agit d’argent, de marché, d’échanges, de pouvoir [...]. On parle de beauté, il s’agit d’une image de marque [...]”[2]. (p.448). Isso significa que a marcha revolucionária da burguesia somente pode caminhar pari passu com a ideologia do neopositivismo, a qual lhe dá forças e busca esconderijos, mas, ao mesmo tempo, ajuda a acentuar contradições. Tais ideias de mundo se apoiam não somente no conhecimento empírico, mas, sobretudo, nas ciências parcelares. Estas formulam teorias acerca de processos que seriam auto explicados na “hetoregeneidade da superfície” (Lukács, 2012b, p.45), fazendo uso da lógica matemática nas fórmulas estatísticas, que têm os seus resultados tão louvados em si mesmos hoje em dia.
Com isso, tem-se a ciência neopositivista, caracterizada por refusar “toda e qualquer ontologia [e adotar] uma orientação exclusivamente gnosiológica” (Lukács, 2012b, p.60), na qual, por um lado, desprezam-se as relações e as mediações entre o objeto de pesquisa e suas particularidades com a formação social vigente [o universal ou a materialidade anterior às objetivações humanas] e, por outro, sustenta-se a “práxis [do] sentido imediato, [de onde] emergem novos métodos de manipulação da vida política [...], social [e] econômica [...]” (Lukács, 2012b, p.46-47 passim). Ora, ao se desprezar o ontológico e supervalorizar os procedimentos epistemológicos [e metodológicos] por si mesmos, o nepositivismo somente poderia tomar posse do “idealismo subjetivo”, como ressalta Lukács (2012b, p.60), sendo que disso resulta a “ilusão de que o universal nada mais é que um produto da consciência congnoscente, e não uma categoria objetiva da realidade existente em si [e, por isso, que opera para além das nossas vontades individuais]” (Idem).
Obviamente, o problema não é a prática científica, que promoveu e promove avanços consideráveis, mas, principalmente nas Ciências Humanas e Sociais, a imediaticidade utilitária e o tratar todas as coisas em separado do produzir e do reproduzir na formação social capitalista, conformando proposições com alto teor reacionário e ações arbitrárias justamente por serem apropriadas e/ou gestadas para fins de manipulação do e para o mercado, seja de forma direta, seja indireta. Pretende-se dizer que neste mundo mercantilizado, fragmentado, incerto e turístico, impera a lógica formal, para a qual não importa a totalidade do processo histórico e pela qual o conteúdo equivale à forma ou, conforme aponta Lefebvre (1991), na qual o que vale é “a ‘essência’ escolasticamente separada, distinta, abstrata” (p.170).
Nesse percurso de epistemes [e ideologias] conflitivas, nos deparamos com aqueles que, baseados em um idealismo que se pretende combativo, acabam promulgando a emancipação da ‘cultura’ frente às relações sociais de produção - e, por isso, passam longe de sua crítica [teorização]. Devido a este desvio analítico, acabam por formular modelos a partir de referenciais empíricos tidos como bons exemplos e/ou caminham segundo princípios lógicos-ideais desgarrados dos movimentos causais, acentuados em uma sociedade dividida em classes. Para eles, o Estado seria um ente neutro e harmonizador, desde que ‘democrático’; o Turismo não seria uma atividade produtiva, mas tão somente ‘complementar’ e passível de fomentar a minimização de desigualdades com a promoção do belo e a ‘valorização’ patrimonial; e a educação poderia modificar a ordem vigente por seu potencial em ‘conscientizar’. “Personificam-se elementos [instituições, pessoas] como entes autônomos ao se desconsiderar [...] os interesses materiais fundamentais da ordem sociometabólica dominante” (Mészáros, 2010, p.14) e, assim, deixa-se de procurar traçar as mediações causais que podem explicar as dinâmicas reprodutivas do capital como relação social preponderante, ou seja, orientada a firmar mecanismos para a produção socializada no sentido de assegurar o caráter privado da riqueza.
Diante da persistência neopositivista e/ou do puro idealismo, chamamos a atenção para o método Dialético do Materialismo Histórico e sua urgência na atualidade, assim como para o fato de que o Materialismo Histórico não se posiciona contra o idealismo ou desconsidera sua importância [tal como no materialismo mecânico], mas, ao apurar “a existência - real, efetiva, eficaz - da consciência e do pensamento [recusa] apenas que essa realidade possa ser definida isoladamente e destacar-se da história humana [social] [...]” (Lefebvre, 1991, p.67). Com isso, pretendemos dizer que a práxis no sentido dos pores teleológicos secundários (Lukács), envolvendo a arte, a cultura, os simbolismos que marcam subjetividades e realidades socioespaciais, não é menos notável ou meritória de reflexão, mas apenas que o conjunto de questões que a englobam não possui primazia ontológica - fato este que não pode ser confundido com juízo de valor.
Nesse sentido, ressaltamos que o acerto na análise para o acerto na ação requer um método que, para além do empírico e do subjetivo [como posição e momento de pesquisa], considere as contradições, a totalidade, as determinações e as mediações do e com o objeto de pesquisa em sua materialidade social, a qual condiciona o ser-ativo em suas subjetividades e objetividades. Situamos, portanto, a epistemologia do Materialismo Histórico e a Dialética como procedimento “cientificamente correto” (Marx, 2011, p.54) para o devido ajuste entre sujeito e objeto a ser conhecido, podendo-se, assim, cogitar uma “utopia concreta [que] fundamenta-se no movimento de uma realidade cujas possibilidades [são descobertas]” (Lefebvre, 2008, p.98).
Um desvario comum no campo das ciências e, também, nos estudos do Turismo, é o fato de alguns pesquisadores igualizarem método e metodologia. Certamente por fragilidades epistêmicas e, igualmente, quanto aos diferentes [e conflitantes] procedimentos epistemológicos [métodos], tal questão pode ser traduzida como simples falta de clareza científica. Considerando que ciência sem método não é ciência, levantamos o seguinte questionamento: ou parte da produção teórica em Turismo não é científica ou o é sem saber a que método recorre. A quase totalidade dos poucos pesquisadores que não se enquadram nos dois casos, sabe que, para além da aplicação de questionários, mapeamentos, entrevistas e demais conjuntos de técnicas [metodologia], o método é o efetivo eixo-norteador da produção do conhecimento. Contudo, se há entendimento de um ou outro método, pouco há de discernimento quanto às possibilidades e limitações dos díspares procedimentos, questão esta que não poderia deixar de passar por matrizes ideológicas distintas.
Quando falamos em método, falamos em procedimento epistemológico e, por assim dizer, em um eixo de orientação para a produção do conhecimento baseado em uma episteme [materialista/idealista][3]. O método está relacionado tanto à concepção filosófica do pesquisador como aos encaminhamentos específicos no trato com o objeto, podendo-se afirmar que “ele é o arcabouço estrutural sobre o qual repousa qualquer conhecimento científico” (Robert Morais, 1989, p.27). Ainda segundo Robert Morais (1989), o método embasa as ciências com “orientações genéricas, experiências acumuladas, conceitos e categorias já lapidados que atuam como balizamentos gerais para a reflexão em curso” (p.32). Lefebvre (1991), por exemplo, irá se referir aos diferentes métodos ou procedimentos epistemológicos como ‘lógicas’, apontando, assim, as formidáveis diferenças entre a lógica formal e a lógica dialética. A lógica formal é caracterizada aqui, de forma generalista, por um conjunto de regras [descrição, comparação, seleção de variáveis, funcionalidades estruturais, experimentação, percepções subjetivas diversas] adotadas frente a um ente empírico qualquer, o qual, segundo certos encaminhamentos de método, teria: (1) uma única instância constitutiva - o conteúdo ou essência corresponderia à forma [positivismo] e; (2) a essência como equivalente ao conteúdo de um modelo que, uma vez estabelecido e priorizado no plano da razão, passa a operar segundo uma perspectiva subjetiva focada na e para a estrutura [funcional-estruturalista]. Não poderíamos deixar de considerar o método que busca diferenciar essência e aparência por meio da consciência do outro, sendo a realidade do fato uma leitura de mundo ou, conforme relata Triviños (1987) “uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, sem nenhuma consideração com a sua gênese psicológica e com as explicações causais que o sábio, o historiador, o sociólogo podem fornecer dela [...]” (p.43) [fenomenologia][4].
Portanto, se a lógica formal pode partir do referencial empírico e ficar nos seus limites descritivos [com trabalhos de pesquisa extremamente importantes, mas apenas como pontos de partida], ela pode enveredar para o idealismo, onde a existência objetiva do fato ou objeto de pesquisa é substituída pela subjetividade. Diante da conveniência e razoabilidade de tais procedimentos para fins de valorização do valor ou mesmo o trato cultural puro, verifica-se, cada vez mais, que os indivíduos consideraram como verdades as suas próprias percepções, leituras e formas de olhar em detrimento da busca pela análise acerca da dinâmica real do objeto, sendo que esse processo inibe ou anula o surgimento de proposições efetivamente fundamentadas, contribuindo com o status quo ou que somente têm possibilidades de atingir as formas. Para além das descrições da empiria, as concepções idealistas [sejam essas ‘complexas’ ou não] propiciam o suporte para o que Harvey (2009) visualiza como a ultrapassagem forçada da economia política pela cultura, sendo essa “muito mais diversão que absorção no doloroso mundo e nas esmagadoras realidades da exploração capitalista” (p.18).
A lógica formal é, por assim dizer, um recurso para a explicação funcional, tanto na etapa descritiva acerca das leis do fenômeno, como na prescritiva, resultando em uma interpretação positiva [normativa] do fato social e/ou o encarado como organismo que deve funcionar harmonicamente. Mas pode ser, também, a realidade encarada como o universo do outro ou o conhecimento restrito ao fenômeno da experiência da consciência. Respeitando esses parâmetros de métodos, os aspectos revelados na pesquisa limitam-se a mostrar por que um fato [turístico] é útil, não explicando suas relações socioprodutivas de origem ou constituição, ou seja, mesmo que façam uma descrição histórica e/ou a partir de subjetividades, não se atêm à produção da história, compreendida não como um conjunto de fatos pretéritos, mas como construção social cotidiana a partir de ‘pores teleológicos’ (Lukács) que respondem condicionados a um tempo-histórico: o produzir e o reproduzir-se atrelados a uma hierarquização social definida pela forma de propriedade, a qual conforma uma organização de sociedade específica – o modo de produção socioespacial capitalista.
Tais métodos, conforme apontamentos de Lefebvre, geralmente estão preocupados, no fim das contas, com a imediaticidade utilitária, não somente por se valer de descrições, estatísticas, percepções e modelos estruturais para a interpretação, a operacionalização e a gestão, mas, sobretudo, por tratar todas as coisas em separado do produzir e do reproduzir dominante. Por isso, a lógica formal posicionada por Engels (2011) como “método metafísico” [que considera a pura empiria e/ou situa o objeto como posto pelas ideias], “por mais justificado e necessário que seja em numerosos domínios mais ou menos extensos segundo o objeto de análise, chega, cedo ou tarde, a um limite além do qual se torna parcial, limitado e abstrato [...]” (p.69). Verifica-se que a lógica formal é tanto uma tendência de um mundo regulado pelos valores de troca onde se despreza a perspectiva ontológica do ser, como uma espécie de combustível complementar de contradições e antagonismos advindos da prática produtiva-distributiva cotidiana, afinal, ela está estrategicamente circunscrita aos efeitos e não às causas, às formas e não às essências ou às ‘essências’ como percepções. E, assim, ao desconsiderar o que chamamos de prática das práticas [a dinâmica da forma social ou forma de produção material e imaterial dominante], a lógica formal acaba com um “alcance apenas relativo e uma aplicação limitada” (Lefebvre, 1991, p.83). Limitada por e para frações de classe; a certos propósitos atrelados ao Estado de direito [a igualdade formal]; a certos espaços; aos referenciais ideais de uma ideologia dominante ou que a ela é servil; enfim, ao fim e ao cabo, à lógica reprodutivista e expansionista do capital - a primeira [reprodutivista] expressa na esfera produtiva e a segunda [expansionista], na financeira.
Diante das possibilidades, fragilidades e limites dos métodos citados, bem como da prioridade ontológica do ser social e não da consciência, a Dialética do Materialismo Histórico [ou a ‘Lógica Dialética’ na perspectiva materialista, segundo expressão de Lefebvre] torna-se o Método ou Procedimento Epistemológico essencial para desvendar e explicar a totalidade do objeto de pesquisa. Evidenciamos que a dinâmica do Turismo [a ser reproduzida idealmente e explicada], ao envolver o âmbito da circulação e do consumo, tem sua base fundante atrelada às relações de produção, o que demanda, portanto, uma crítica à sua economia política. E o fato elementar é que tais relações ou interações socioprodutivas não são, necessariamente, alcançadas e compreendidas em seus fundamentos no simples contato com as formas e/ou percepções [leituras].
Com isso, evidenciamos novamente que não pretendemos dizer que as expressões culturais, compreensões de mundo e sentimentos devam ser desprezados, mas, simplesmente, que eles precisam ser situadoas como subjetividades entrelaçadas a objetividades próprias de uma hierarquização socioprodutiva específica: se, conforme aponta Lukács, os chamados ‘pores teleológicos secundários’ [ou as relações entre sujeitos que se expressam com a arte, a política, a filosofia, a música, a educação e demais manifestações de uma cultura], revelam a potencialidade humana e devem ser considerados como ricas expressões que partem, mas, também, se desprendem das instâncias socioprodutivas; o conhecimento das interações e causalidades advindas e que dão forma aos ‘pores teleológicos primários’ [o trabalho ou a relação dos sujeitos com meios e objetos postos para um fim] em um tempo histórico é o acesso primário e necessário para o entendimento da prática social. Afinal, antes de fazermos política, filosofar e educar, é preciso viver. Ou seja, a prioridade ontológica do ser social não significa uma condição determinada ou uma “hierarquia de valor entre ser e consciência” (Lukács, 2012a, p.307), mas tão somente que existe uma diversidade de questões fundamentais em que a forma social é prioritária:
Enquanto para a fenomenologia dialética, a sociedade é um processo dialético, que envolve tanto a atividade humana subjetiva quanto a estrutura social objetiva, ou seja, os homens produzem a sociedade e são produzidos por ela [o produto retroage sobre o produtor], para Marx, a sociedade não é um fenômeno dado, mas é construída coletivamente no âmbito das relações sociais e de produção [...]. Afirmar uma realidade independentemente dos homens é invocar um conceito metafísico da matéria como sendo externo e absoluto: a história nada faz por si, mas o homem é quem desencandeia as mudanças em suas relações históricas (Faria, 2011, p. 12-13).
Tais advertências se fazem necessárias, pois, conforme salienta Netto (2011) há diversas interpretações equivocadas e, também, deturpadoras, quanto a Dialética desenvolvida e utilizada por Marx, bem como de sua teoria social. Merece destaque o entendimento que o trata como um ‘fatorialista’, sendo “’o fator econômico’ como determinante em relação aos ‘fatores’ sociais, culturais, etc.” (Idem, p.14). Verificamos isso em artigo que busca explicar os diferentes procedimentos epistemológicos no campo de estudos do Turismo. Além de contribuírem com certa mixórdia quanto as vertentes de bases opostas nas discussões epistemológicas [materialismo ou realismo versus idealismo] - ao não contraporem o pensamento dialético [lógica dialética] ao pensamento analítico [lógica formal] e ao apontarem o positivismo como única possibilidade do realismo - os autores Panosso Netto e Castillo Nechar apresentam definições, etimologias e os referenciais de avanço das ciências por quebras de paradigmas (Kuhn, 2009), os quais, por eles mesmos, levariam não somente ao avanço científico, mas a uma evolução social por meio da tecnologia e do auto esclarecimento, independentemente do pressuposto básico, onde vivem os sujeitos reais com suas crenças, simbolismos, aptidões: a forma de produção material da vida social[5].
Ao apontarem o que há tempos é evidenciado por pesquisadores como Moesch (2002) e Santos Filho (2005) – as barreiras e cisões do saber pela formação neopositivista de cunho operacional-tecnicista do e para o fazer – apresentam uma subdivisão entre procedimentos epistemológicos, incluindo o positivismo, o ‘sistemismo’, a fenomenologia e a hermenêutica e o ‘marxismo’. Para os autores, esta última “’escola epistemológica’ defende que [...] o turismo é impulsionado – e existe – pelos fatores econômicos de produção” [Panosso & Nechar, 2014, p. 131, grifo nosso]. O princípio básico da análise ou procedimento de Marx nada tem a ver com isso, uma vez que a questão central a ser buscada na explicação do objeto é a sua totalidade e não ‘fatores de produção’. Ou seja: as categorias constitutivas de um fato ou conjunto de fatos precisam ser analisadas conforme suas complexidades interativas e “não [como] uma interação simples de fatores fixos [do tipo ‘os homens produzem a sociedade e são produzidos por ela’ ou X influencia Y que influencia Z] [...]” (Faria, 2011, p.13). Lukács (2010) relata que, “por um lado, nada no ser social pode tornar-se uma categoria determinante da práxis se não tiver efetivas raízes na economia; de outro lado, e ao mesmo tempo, essa determinidade econômica não pode, de modo algum, tornar-se uma determinação linear, univocamente ‘necessária’” (p.125). Isso se explica, pois não há um fatalismo da base produtiva, mas uma interação dialética, a qual coloca determinações (compreendidas como categorias formativas de algo) que contêm seus elementos contrários e somente ativos pelos sujeitos sociais. Conforme explica Mészáros (2012):
As pré-condições necessárias de uma mudança social importante são (1) a identificação e utilização das contradições, forças e instituições historicamente dadas e (2) a adequação do sujeito da ação à tarefa. Se, contudo, concebe-se o sujeito como um indivíduo isolado, ele está fadado a permanecer prisioneiro da série infinita. Pois a realidade social só é uma totalidade estruturada em relação a um sujeito que é, ele mesmo, um todo complexo: o indivíduo social integrado [por meio de sua classe ou, numa sociedade sem classes, de algum outro modo] na comunidade a que pertence (p.119).
Por isso, o entendimento de totalidade é o que deve alcançar a realidade como uma construção social, sendo que isso fica claro no conjunto de obras do próprio Marx. Apresentamos aqui um fragmento dos Grundrisse ou Manuscritos Econômicos de 1857/58 (2011): “Na França, a pequena agricultura era praticada apesar da grande propriedade fundiária, daí porque esta última foi destruída pela Revolução. Mas e a perpetuação do parcelamento, por exemplo, pelas leis? A despeito dessas leis, a propriedade se concentra novamente. A influência das leis [superestrutura] na manutenção das relações de distribuição e, daí, seu efeito sobre a produção [base econômica] devem ser particularmente determinados” (p. 44-52 passim). E Engels, em carta a Joseph Bloch, aponta com todas as letras:
De acordo com a concepção materialista da história, o elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso, nem eu e nem Marx jamais afirmamos. Assim, se alguém distorce isto afirmando que o fator econômico é o único determinante, ele transforma esta proposição em algo abstrato, sem sentido e em uma frase vazia. As condições econômicas são a infraestrutura, a base, mas vários outros vetores da superestrutura (formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, constituições estabelecidas pela classe vitoriosa após a batalha, etc., formas jurídicas e mesmo os reflexos destas lutas nas cabeças dos participantes, como teorias políticas, jurídicas ou filosóficas, concepções religiosas e seus posteriores desenvolvimentos em sistemas de dogmas) também exercitam sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos casos, preponderam na determinação de sua forma [...]. Do contrário, a aplicação da teoria a qualquer período da história que seja selecionado seria mais fácil do que uma simples equação de primeiro grau.
Mas não são poucos os que se pautam em equações de primeiro grau ao se referirem a Marx, apegando-se provavelmente à tradição marxista e não ao próprio Marx e, justamente por isso, consumando erros interpretativos colossais[6]. Não é por outro motivo que em um artigo acerca de O Capital, o crítico da obra de Marx, John Macdonnel, dizia: “as pessoas poderão até se dar a honra de criticá-lo, mas não se darão o trabalho de lê-lo” (apud Gabriel, 2013, p. 611).
Outra colocação de Panosso Netto e Castillo Nechar (2014) privada de sentido é a concepção acerca da ‘teoria crítica’, a qual seria “uma matriz epistêmica distinta, com um sistema de estabelecimento de significados e processos operativos também diferentes” (p.133). Por assim dizer, ainda de acordo com os autores, tal teoria “pode torna-se um novo paradigma nos estudos turísticos” (Idem). Considerando que a crítica carece de procedimento epistemológico seja ele qual for, é possível apontar uma perspectiva crítica positivista que se atêm a questões da realidade firmando-se em descrições, comparações e prescrições; ou de uma funcional-estruturalista focada também nos problemas referentes ao objeto de estudo a ser otimizado por um sistema mental-especulativo; além de outras, a depender do método.
Diferentemente das citadas, as quais podem se caracterizar não raras vezes como críticas vulgares [veja os socialistas utópicos e as propostas atuais de Turismo de Base Comunitária como algo a ‘dominar’ as relações], a crítica dialética-materialista ou segundo a concepção de Marx não se refere à simples referência ao objeto de estudo para “recusá-lo [ou] distinguir nele o ‘bom’ do ‘mal’. [Mas] consiste em trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os seus fundamentos, os seus condicionamentos e os seus limites – ao mesmo tempo em que se faz a verificação dos conteúdos desse conhecimento a partir dos processos históricos reais” (Netto, 2011, p.18). Faria (2011) esclarece, portanto, que a crítica “não é privilégio dos materialistas ou dos idealistas, mas não resta dúvida que a condução e a forma de sua elaboração partem de distintos pontos” (p. 2), ou seja, não há uma crítica por si a balizar os estudos no Turismo conforme defendem Panosso Netto e Castillo Nechar, mas sim possibilidades e limites críticos em cada epistemologia e procedimento epistemológico.
Tendo em vista que a totalidade social parte de uma materialidade ou de um tempo-histórico, a chamada ‘teoria crítica’ proposta pelos autores citados caminha no plano da episteme idealista ao refutar as relações subjacentes ao campo empírico, o que fica claro ao apontarem que a ‘teoria crítica’, “em vez de criticar conteúdos [deve construir] conteúdos críticos do turismo, [para assim] conceber e possibilitar um mundo turístico melhor para todos” (Panosso Netto & Nechar, 2014, p.138). Diga-se de passagem que o avanço das ciências somente foi e é possível pela crítica a conteúdos no sentido de promover avanços em sua explicação prática.
Mas retornemos ao Método de Marx, pelo qual se identifica que, nos marcos das complexas relações dinamizadas fundamentalmente pelo modo de produção atual, não há possibilidades de “um mundo turístico melhor para todos” (Panosso Netto & Nechar, 2014, p.138), haja vista o posicionamento de classes em uma hierarquização produtiva e reprodutiva orquestrada pelo capital, não simplesmente como coisa, mas essencialmente enquanto relação social posta pela e para as coisas e não para os seres sensíveis. A Dialética é, portanto, o Método que busca o movimento subjacente do objeto de estudo [afirmação – negação – negação da negação] segundo o Materialismo Histórico ou a dinamicidade e condicionalismos da formação social[7]. Por isso, a análise ou teoria Materialista-Histórica de Marx o embasa, da mesma forma que o método constrói tal teoria, ou, conforme explica Netto (2011), “não é possível, senão ao preço de uma adulteração do pensamento marxiano, analisar o método sem a necessária referência teórica e, igualmente, a teoria social de Marx torna-se ininteligível sem a consideração de seu método” (p.55).
Não havendo, portanto, regras específicas ou um receituário único, uma vez que os procedimentos estão sempre atrelados ao fato ou fenômeno estudado e suas categorias conformativas na e com a materialidade social, algumas questões relativas ao seu eixo-norteador podem ser apontadas: (1) não ter ideias fixas de processos que são dinâmicos, mas, principalmente, reconhecer a natureza social dessas dinâmicas; (2) trabalhar com o entendimento de que os conceitos possuem validade no tempo e no espaço; (3) buscar um suporte teórico e cultural para enxergar e verificar as mediações que fazem do objeto algo complexo, de forma que seja possível explicar essa complexidade [pesquisa qualitativa e quantitativa]; (4) ter a real noção da dupla dimensão dos fatos [essência e aparência], considerando que o ponto de partida [ou concreto não pensado] nunca corresponde ao núcleo do objeto e, por isso, não revela aí a sua estrutura essencial.
Em relação a essa dupla dimensão, convêm acrescentar que o mundo fenomênico se apresenta e passa a fazer parte das representações dos sujeitos como circunstâncias naturais [e não sociais], as quais são absorvidas e mesmo manejadas sem que se tenha a real noção delas. Kosik (1976) observa que “a ‘praxis’ utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade” (p.100) emprego necessário a nossa reprodução serve como exemplo: as pessoas interagem, produzem, recebem seus salários ou pagamentos, mas não efetivam uma ligação de suas atividades com a apropriação por um terceiro [direta ou indiretamente] do seu valor de uso, desconhecendo, portanto, como se dá o processo de produção do valor a mais e como ele domina as interações sociais. Nesse mesmo sentido, Lefebvre (2008) aponta que as ciências que desconsideram a dialética acabam formatando tão somente “considerações variadas sobre o que há no espaço [os objetos, as coisas], ou sobre o espaço abstrato, [sendo que] tais descrições de fragmentos são, elas próprias, fragmentárias, segundo os compartimentos das ciências especializadas” (p.34). O fato é que a observação e a descrição positiva do objeto, mesmo que pormenorizada, não tem condições de estabelecer os nexos com a sua estrutura fundamental, consistindo somente em um indício ou um vestígio dos processos que o determinam. Isso porque enquanto o pensamento não dialético está em busca da oposição entre aspectos positivos e negativos, o Método Dialético considera a dialética real, ou seja, que “os dois polos de uma antinomia, o positivo e o negativo, são tão inseparáveis quando irreconciliáveis entre si e se penetram mutuamente a despeito de toda a sua oposição” (Engels, 2011, p.70).
Convêm destacar que “o mundo da pseudo-concreticidade [ou das formas aparentes ou fenomênicas do concreto] é um claro-escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao mesmo tempo, a esconde” (Kosik, 1976, p.11). Lukács (2012a) alerta que não é possível iniciar uma pesquisa sem o estabelecimento da diferença relacional entre a aparência e a essência, sendo esse o caminho necessário da abstração com sentido:
Por um lado, trata-se [...] de destacar os fenômenos de sua forma aparente dada como imediata, de encontrar as mediações pelas quais eles podem ser relacionados ao seu núcleo e à sua essência e nela compreendidos; por outro, trata-se de compreender o seu caráter e a sua aparência de fenômeno, considerada como sua manifestação necessária (p.75).
Nota-se que a essência não é algo que está ‘por trás’ do objeto, mas trata-se das próprias relações que somente podem ser desvendadas por um pensamento que não acredita na sua independência e não se contenta com a sua imediaticidade. Portanto, não é possível “considerar a destruição da pseudoconcreticidade como o rompimento de um biombo e o descobrimento da realidade que por trás dele se escondia, pronta e acabada [...]. A pseudoconcreticidade é justamente a existência autônoma dos produtos do homem [...]” (Kosik, 1976, p.19). Ou seja, ela se constitui a partir da compreensão [invertida ou parcial] de que os resultados provenientes das atividades humanas ocorrem independentemente do modo de produção material e imaterial da vida social. Mas, partindo dessas considerações elementares do método Dialético, quais as suas características centrais a serem consideradas no trato com o objeto? Algumas categorias podem ser apontadas:
DETERMINAÇÃO - As determinações são compreendidas como categorias que formatam o objeto e, mediadas, expressam e são expressão de uma totalidade. Nesse sentido, as categorias são essenciais para a reprodução mental do real, ou, conforme explica Marx (2011), as categorias “expressam formas de ser, determinações da existência [...]” (p.59). As categorias de análise se configuram, também, como “a expressão de relações nas quais o concreto pouco desenvolvido pode ter se realizado sem haver estabelecido ainda a relação ou o relacionamento mais complexo” (Marx, 1987, p.18). Com isso, Marx evidencia que as categorias que se entrecruzam com o ente empírico são dinâmicas e, por isso, devem ser “concebidas como representações que precisam ser constantemente redefinidas, quer dizer, como ‘categorias histórico-sociais’” (Fernandes, 1978, p.113). A categoria trabalho, por exemplo, ao ser um elemento explicativo da apropriação e produção do espaço pelo Turismo, precisa ser analisada em sua constituição histórica, mas com ênfase em seu caráter contemporâneo e na sua inter-relação com outras categorias operativas na configuração socioespacial capitalista. Faria (2011) evidencia que, para o Materialismo Histórico, “as categorias são expressões de relações concretas, reais, históricas, que correspondem à determinada materialidade e não o fruto da imaginação [no caso, do pesquisador], de um pensamento exterior ao real, de um esquema mental pré-existente [...]” (p.26). As categorias ou determinações, portanto, não podem ser estabelecidas à priori, mas devem ser buscadas no próprio objeto.
MEDIAÇÃO – Trata-se do papel de diferentes categorias/determinações que permitem a efetivação de conexões de um dado objeto com a realidade social e espacial. O foco é chegar ao “concreto mental” (Marx, 2011, p.54), uma vez que toda teoria que não reproduza a prática tal como ela é e para além de suas formas de manifestação pode ser desconsiderada aos propósitos que buscam a verdade da realidade. Assim, o ‘concreto mental’ é a essencialidade ou o resultado somente possível pela mediação, enquanto que o concreto não pensado refere-se ao que é místico ou a própria aparência. Fernandes (1978) explica que o Método Dialético “procura [...] ajustar a inteligência aos fatos de maneira a permitir a compreensão deles em sua complexidade, totalidade e instabilidade” (p.111). Tal relação não é uma mera interpretação do objeto, mas uma interação que pode aproximar o indivíduo da realidade em sua essência ao mesmo tempo em que, negando a empiria, o afasta de representações construídas pelo senso comum; por ideologias e pela ideologia representativa de classes dominantes com seus aparelhos ideológicos [que formam a opinião pública ou muitas das percepções]; pelas inversões ou mesmo aquelas concepções advindas de uma primeira aproximação. Isso significa, conforme já salientado, que as descrições e os detalhamentos da empiria não deixam de ser importantes, mas eles não constituem o efetivo conhecimento.
CONTRADIÇÃO - A Dialética do Materialismo Histórico considera que os movimentos da realidade social ocorrem suscitando contradições advindas essencialmente da hierarquização socioprodutiva por e para o valor a mais, sendo que, diferentemente, nas ciências que analisam a sociedade organicamente ou fazem uma analogia com o funcionamento biológico [funcional-estruturalista, por exemplo], essas significariam a falta de amadurecimento das ideias no sentido de que, aprimorando a razão [e o sistema], seria possível colocar fim às contradições. Já para a Dialética do Materialismo Histórico, as contradições “pertencem, ‘de maneira indissolúvel, a essência da própria realidade, à essência da sociedade capitalista’. Sua superação no conhecimento da totalidade não faz com que deixem de ser contradições” (Lukács, 2012b, p.79). Conforme explica Bottomore (2012), a contradição “envolve forças de origens não independentes operando de forma que a força F tenda a produzir ou seja ela mesma o produto de condições que, simultânea ou subsequentemente, produzam uma força F’ contrária que tende a frustrar, anular, subverter, ou transformar F” (p. 118). É o caso de destinações turísticas em que o aumento dos fluxos, ao mesmo tempo em que promove a ampliação dos meios receptivos, a geração de empregos e um ordenamento do espaço para que esse seja atrativo, favorece a maximização da concorrência e a tendência à diminuição da taxa de lucros, bem como a otimização da produção de serviços via extensão e maximização da intensidade do trabalho social e o redimensionamento do preço dos imóveis mais bem situados. Lukács (2012b) complementa: as contradições são intrínsecas “a estrutura heterogênea da realidade, da qual deriva a impossibilidade última de eliminar o acaso das inter-relações entre os momentos de um complexo e entre complexos” (p.364). Para a compreensão do objeto em sua totalidade, além de verificar as mediações entre as categorias históricas que o constituem e condicionam, é preciso detectar os processos e esclarecer as contradições que o movimentam.
TOTALIDADE – Se já fizemos referência à categoria totalidade como eixo central da teoria de Marx, convêm apontar alguns outros poucos detalhamentos a seu respeito: o Método Dialético se caracterizaria por promover aproximações sucessivas do sujeito-pesquisador ao objeto, as quais conectam o particular [o objeto] ao geral [as múltiplas determinações], sendo que todas elas [objeto e traços constitutivos] têm como pressuposto a formação social: “esse conhecimento parte daquelas determinações simples, puras, imediatas e naturais ‘no mundo capitalista’ [...] para alcançar o conhecimento da totalidade concreta enquanto reprodução intelectual da realidade” (Lukács, 2012a, p.76). Por exemplo: não se conhece a produção do espaço pelo Turismo pelas políticas públicas, seu planejamento, as impressões parcelares ou a cultura de um povo, mas, essencialmente, ao se considerar as mediações entre essas e suas outras determinações [ou categorias] em seu movimento com as relações sociais de produção, ou seja, a “constante observação das múltiplas ações e reações do ‘devir’ e do parecer, pela consideração constante dos movimentos de progresso e regresso” (Engels, 2011, p.71). Nesse sentido, Marx (2011) esclarece que “quando se fala de produção, sempre se está falando de produção em um determinado estágio de desenvolvimento social – da produção de indivíduos sociais” (p.41). Trata-se de processos interligados a outros processos que a abstração intelectiva deve desvendar. Marx (2011) relata, ainda, que, partindo-se do objeto tal como ele se apresenta ou do “concreto representado” (p.54), busca-se as categorias que o fundamentam ou o constituem, ou seja, “as determinações mais precisas” (p.54) permitem uma reprodução ou uma abstração mais circunstanciada.
É preciso salientar que o objeto pode ser apropriado e reproduzido pelo pensamento, mas não se trata, ele próprio, de um produto da ideia, ou, nas palavras de Marx (2011), “de forma alguma é o processo de gênese do próprio concreto” (p.54-55). Encontra-se aqui e acolá, por exemplo, famílias que abrem suas casas como meios de hospedagem fundamentalmente para interagir com outras pessoas, sendo que o propósito material adquire um caráter secundário, tal como é possível observar em alguns poucos Chambres D’Hôtes encontrados na França. Mas, se essas iniciativas podem ser explicadas a partir do todo social, não é correto afirmar que seja possível partir delas para se compreender a totalidade da produção socioespacial pelo Turismo, uma vez que as relações sociais estabelecidas com a produção em seu conjunto efetivam condições ontologicamente precedentes e essas precisam ser conhecidas[8]. Por isso, as pesquisas que se baseiam na concepção materialista da história devem necessariamente lidar com questões complexas, totalidades no interior de uma totalidade, ou, como explica Lukács (2012b), todo fato “é sempre um complexo com propriedades concretas, qualitativamente específicas, um complexo de forças e relações que agem em conjunto” (p.307). Não é preciso salientar que tal compreensão não condiz com um entendimento das categorias segundo conexões lógico-sistemáticas-ideais, mas de acordo com conexões reais formadas por totalidades de uma totalidade:
É sobretudo importante o fato de ele [Marx] considerar ‘o conjunto das relações de produção’ a ‘base real’ a partir da qual se explicita o conjunto das formas de consciência; e que estas, por seu turno, são condicionadas pelo processo social, político e espiritual da vida. [...] Desse modo, o mundo das formas de consciência e seus conteúdos não é visto como produto imediato da estrutura econômica, mas da totalidade do ser social. A determinação da consciência pelo ser social, portanto, é entendida em seu sentido mais geral. Só o marxismo vulgar ‘desde a época da Segunda Internacional até o período stalinista e suas consequências’ é que transformou essa determinação numa relação causal declarada e direta entre economia, ou mesmo entre alguns momentos desta, e ideologia (Lukács, 2012b, p.308)[9].
Isso significa que: (1) as interações entre forças produtivas, sendo o trabalho o seu ente fundamental, as relações sociais que baseiam a produção e as formas de consciência devem ser investigadas e compreendidas em seus aspectos processuais e relacionais, não sendo simplista ou mecânica a relação entre base produtiva (econômica) e a superestrutura correlata [Estado, ideologia, política, filosofia]; 2) a categoria totalidade colocada por Marx e evidenciada por Lukács não faz referência a um conjunto de fatores fixos que se movem em uma unidade, mas a uma diversidade de relações entre categorias dinâmicas como “diferenças dentro de uma unidade” (Marx, 2011, p.53). Se há uma “influência recíproca” (Lukács, 2012a, p.85) entre categorias [Estado, Turismo, ideologia] e dessas com o todo [a forma social ou base econômica], a noção de totalidade está para além da soma das partes, mas diz respeito a relação como ente que “torna-se a determinação que condiciona a ‘forma de objetividade’ de todo objeto [...]” (Idem).
Por fim, e considerando as categorias centrais do método [determinação, mediação, contradição e totalidade], importa salientar que a Dialética orientada pela concepção do Materialismo Histórico não está posta como recurso de pesquisa para elaborar modelos, formular estruturas ou prescrever saídas ideais, mas ocupa-se em fornecer aos sujeitos ou à sociedade as explicações do movimento do real com o intuito de orientar as suas ações. Ou seja: “o Materialismo Histórico é uma ciência que não fornece soluções teóricas para problemas reais, mas uma ciência crítica que fornece aos sujeitos reais elementos de análise para a sua prática” (Faria, 2011, p.27).
O Materialismo Histórico significa justamente a produção da história não pelas ideias, mas pelas atividades humanas que criam materialidades e imaterialidades a partir de certas condições, as quais, todas elas, permitem tanto a existência física como a base real das interações, noções, sistema de ideias e ações. Compreende-se, então, que a forma social opera e é ontologicamente precedente ao pensar e isso significa que os sujeitos devem dar respostas às circunstâncias que lhes são relegadas pelas gerações anteriores e as quais se deparam ao nascerem e no curso de suas vidas. Tais respostas demonstram o caráter ativo dos seres, sendo que elas irão compor uma infinidade de mediações do indivíduo com sua realidade natural e social. Mas o fato é que, para haver respostas deve haver questionamentos, os quais são colocados essencialmente pela estrutura socioprodutiva e sua formatação em um dado momento. Ou seja: as perguntas são ontologicamente precedentes às respostas e não desconsideram a importância dessas últimas, mas ressaltam a sua necessária vinculação aos questionamentos que a realidade coloca independentemente de os sujeitos quererem ou não. Por isso, Marx (2007) aponta que “toda vida social é essencialmente ‘prática’. Todos os mistérios, que levam a teoria do misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e no ato de compreender essa práxis” (p.29). Tal ato seria o próprio Método.
Nos Manuscritos de Paris, Marx (2010) reconhece a “grandeza da ‘Fenomenologia’ hegeliana e de seu resultado final, a dialética” (p.123). Mas a epistemologia que irá norteá-la será a do Materialismo Histórico, onde, conforme apontado, a primazia é a da realidade produzida pelo trabalho e pela práxis em uma considerada formação social [a capitalista] e onde o “ser social do homem [e não o ser individual] condiciona a sua consciência [sendo que] a condicionalidade anuncia que há um sujeito social, sujeito ativo e condicionante [...] da construção social [...]” (Faria, 2011, p.19). Dizer que as objetivações humanas têm como fundamento a realidade socioespacial não retira de cada individuo as suas possibilidades de ação mediante seu talento, preparação, disposição, mas somente demonstra que as ideias não têm prioridade ontológica frente às relações sociais que as provocam, afinal, o “anti-idealismo ou ‘materialismo’ de Marx não pretendia negar a existência e/ou a eficácia causal das ideias [pelo contrário, por oposição ao materialismo reducionista, insistia nisso], mas apenas a autonomia e/ou o primado explicativo a elas atribuído” (Bottomore, 2012, p.269). A forma social precede o eu subjetivo, de maneira que “mesmo o modo como cada um desses pode se manifestar [o talento, a disposição moral], como agem também em direção ao exterior, como, por sua vez, repercutem sobre os homens que põem, é impossível de ser compreendido separadamente das reações sociais que os desencadeiam” (Lukács, 2010, p.106).
O método seria a mediação operada pelo pensar entre o objeto e a realidade histórica e socialmente construída, incluindo todo um conjunto de representações e interações, quer dizer, um momento da totalidade do ser. Cabe compreendê-la como um processo social e não ideal, sendo que a sua dinâmica pode ser inteligível a partir de elementos empíricos que se apresentam travestidos em suas formas fenomênicas. É digno de nota que a aparência é somente o ponto de partida da abstração, a qual, se descontextualizada dos suas categorias constituintes e desconectada da base real [ou materialidade social], aparece por ela mesma como se não houvesse a dimensão da essência. As pesquisas que se valem de métodos que desprezam a forma social e contemplam as representações ideais como pressupostos básicos, não têm condições de tornar inteligível a dinâmica do seu objeto, permanecendo e se aprofundando tão somente no campo das ideias que se têm acerca dele.
E essa é a diferença essencial quando se considera o Método em Marx: se, para Hegel, a Dialética consiste no movimento do pensar onde as contradições são antíteses que agem para o aprimoramento da razão ou conhecimento absoluto, o qual, por sua vez, se externalizaria com a formatação de situações ideais ou uma síntese social mais avançada; para Marx tal movimento é o da própria realidade histórica e social, onde a situação [ou afirmação] concreta contêm sua negação e que, no decurso do tempo, irá necessariamente gerar condições para uma negação da negação, convertendo-se em nova afirmação. A forma social, ou seja, a interconexão contraditória entre relações sociais de produção, forças produtivas e entes superestruturais constituem o movimento. Em relação a essa inversão empreendida por Marx a partir de Hegel, Fernandes (1978) explica:
O aproveitamento construtivo das perspectivas abertas por Hegel às ciências da sociedade e da história dependia de uma inversão completa de sua orientação, através da qual se substituísse a especulação pela investigação empírica, o idealismo especulativo pela ciência [...]. Em Marx, o método dialético e a doutrina hegeliana dos conceitos são reelaborados de forma radical. Não havia outra alternativa para quem pretendesse explorá-los no conhecimento científico do real (p.104-105).
Em Hegel é a razão que se modifica e transforma a realidade; em Marx, são as contradições do tempo histórico que a movimenta e estabelecem caminhos para uma nova situação, tratando-se de uma dinâmica impelida pela sociedade de classes e, portanto, que não é condicionada pela realidade como se essa não fosse formada por sujeitos sociais ativos tal como no materialismo mecânico: “L’Intervention de l’homme dans l’histoire peut être décisive. L’histoire ne se fait pas seule” [10] (Ellul, 2003, p.104). Transformações efetivas, qualitativas ou fundamentais, as quais são sempre coletivas, não podem ser alcançadas a partir do aperfeiçoamento da razão e por ela mesma, mas somente por um aprimoramento ajustado, ou seja, aquele que se dá entre a consciência e os componentes contraditórios e efetivamente operantes da base econômica real, uma vez que as processualidades independem das ideias ou noções que os sujeitos têm delas. Os projetos que são críticos às interações humanas sob o capitalismo, mas que desconhecem, divagam ou desconsideram as relações sociais em que a produção e a distribuição ocorrem, somente têm possibilidades de formular cartilhas em que a aplicabilidade fica no campo das ideias ou alcançam transformações que ficam circunscritas às formas ou a dimensão da aparência. Pretende-se salientar, com isso, que foi somente com Marx que a Dialética pôde ter uma aplicação prática no sentido de se constituir no ato que irá estabelecer a intermediação entre o sujeito-pesquisador e o seu objeto situado em uma forma histórico-social e, portanto, não ficando restrita a uma lógica da razão.